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(Re)lembrando Jango hoje: uma análise sociológica das memórias sobre João Goulart

Remembering Jango today: a sociological analysis of the memories about João Goulart

Resumo

O objetivo do trabalho é analisar as memórias das esquerdas dos anos 1960 sobre a figura de João Goulart a partir de uma perspectiva sociológica. Para isso, são analisadas diversas entrevistas de história oral realizada nos últimos anos com militantes de esquerda do período em questão, incluindo membros do PCB e de grupos de luta armada. A partir da pesquisa, conclui-se que, ao longo das últimas décadas, essas memórias sofreram alterações significativas, sendo Goulart inicialmente considerado pelas esquerdas radicais um presidente excessivamente conciliador e hoje sendo visto como um líder democrático e bem-intencionado.

Palavras-chave:
João Goulart; Ditadura militar; Esquerdas; Memória; Entrevistas

Abstract

The objective of this paper is to analyze the memories held by the 1960s’ Lefts of former President João Goulart, following a sociological perspective. To this end, I analyze several Oral History interviews carried out in recent years with left-wing activists from the period in question, including members of the Brazilian Communist Party and members of the armed left. Based on this research, it can be concluded that, over the last few decades, these memories have undergone significant changes, with Goulart being initially considered by the Lefts to be an overly conciliatory president and today being seen as a democratic and well-intentioned leader.

Keywords:
João Goulart; Military dictatorship; Lefts; Memory; Interviews

Introdução

P or ser figura importante em um dos eventos mais traumáticos do país - o golpe de 1964 -, a memória de Jango é carregada de ideologias e simbolismos, evidenciando diversas questões sociais presentes no Brasil de hoje, como o conflito entre democracia e autoritarismo, por exemplo. Assim sendo, o objetivo do presente trabalho é analisar as memórias das esquerdas radicais dos anos 1960 sobre a figura de João Goulart a partir de uma perspectiva sociológica, argumentando que as memórias sobre figuras públicas são disputadas e “estão em jogo” (Fine, 1996FINE, Gary Alan. Reputational entrepreneurs and the memory of incompetence: Melting supporters, partisan warriors, and images of president Harding. American Journal of Sociology, v. 101, n. 5, p. 1159-1193, 1996.).

A tese central defendida neste trabalho é que as lembranças, relembranças e esquecimentos mudam de acordo com a conjuntura e com as possibilidades e necessidades políticas de cada época. O sociólogo Maurice Halbwachs (1990HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice; Revista dos Tribunais, 1990.), ao analisar o papel da memória, chegou à seguinte conclusão:

A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada (Halbwachs, 1990HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice; Revista dos Tribunais, 1990.: 71).

E como argumentou Pollak (1989POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, v. 2, n. 3, 1989.), “não se trata mais de lidar com os fatos sociais como coisas, mas de analisar como os fatos sociais se tornam coisas; como e por quem eles são solidificados e dotados de duração e estabilidade” (Pollak, 1989: 4).

Ao seguir esses pressupostos sociológicos, o artigo pretende demonstrar que entre as esquerdas radicais houve mudanças significativas nas memórias sobre o governo João Goulart nos últimos anos. Enquanto antes havia um notório esquecimento da figura do ex-presidente, defende-se que, recentemente, há uma inflexão nessas memórias, na qual a imagem de Goulart passa a ser recuperada pelas esquerdas de maneira muito mais positiva. Como será visto a seguir, é recorrente entre os historiadores o argumento de que a figura de Goulart foi bastante esquecida, principalmente durante a ditadura e nas primeiras décadas após o seu fim. Porém, essa hipótese de que Goulart é majoritariamente lembrado de maneira negativa será questionada ao longo do artigo.

A originalidade e contribuição da presente pesquisa são reveladas ao analisarmos que as memórias dos entrevistados não corroboraram a perspectiva do esquecimento, tão enfatizada pelos historiadores. Assim, argumento que, nos últimos anos, essas memórias têm sofrido significativas mudanças1 1 Em minha tese de doutorado, discuto mais profundamente o impacto de outros eventos nas memórias sobre João Goulart, como o lançamento do documentário Jango, a exumação dos restos mortais do ex-presidente, e a devolução simbólica de seu mandato (Goulart, 2020b). , o que nos leva a um debate sociológico sobre lembranças, relembranças e esquecimentos.

João Goulart na historiografia

Como visto, primeiro é preciso mencionar a escassez inicial de trabalhos sobre João Goulart, que permaneceu deste modo até o início dos anos 2000. Apesar de não usar esses termos, Lucília Delgado (2010DELGADO, Lucília. O governo João Goulart e o Golpe de 1964: memória, história e historiografia. Tempo, v. 14, n. 28, 2010.) salienta o projeto político intencional de esquecimento da figura de João Goulart. A historiadora diz que desde a sua posse como ministro do Trabalho até a conjuntura pré-64, muitos buscaram desqualificar o presidente (Delgado, 2010: 127). Salienta também o papel da imprensa, que escolheu não noticiar sobre o presidente no exílio. De fato, a censura imposta pelo regime militar provocou esse silenciamento, entretanto, o silêncio continuou mesmo com o enfraquecimento do regime.

Existe, então, um claro paradoxo nas memórias coletivas sobre o tema aqui analisado, pois, apesar de João Goulart ser o presidente em exercício durante o evento considerado um dos mais marcantes de todo o século XX no Brasil, poucos historiadores se dispuseram a analisar sua figura. Na maioria das vezes, ele é rapidamente mencionado em trabalhos maiores sobre o contexto do golpe. Nesse caso, essas análises tiveram um certo olhar teleológico, analisando-o dentro da ótica de que era inevitável que seu governo fosse interrompido por um golpe militar (Mattos, 2008MATTOS, Marcelo Badaró. O governo João Goulart: novos rumos da produção historiográfica. Revista Brasileira de História, v. 28, n. 55, p. 245-263, 2008.: 245).

Essa perspectiva foi debatida pela teoria do populismo, largamente difundida por Francisco Weffort (1978WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978 [1968].), em que o governo Goulart é o marco do processo que culminou no golpe de 1964. Esse teria sido o último entre os diversos governos populistas implementados no Brasil, incluindo os de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, nos quais líderes carismáticos manipulavam as massas trabalhadoras. Ao serem todos enquadrados no modelo populista, as diferenças que existem entre eles são, muitas vezes, esquecidas nas análises dos autores. Nessa corrente de estudos, a especificidade de Goulart seria apenas de ter sido o último presidente populista antes da ditadura. Seu governo foi analisado dentro de uma perspectiva marxista muito particular, na qual o colapso do populismo - modelo político considerado pequeno-burguês - teria provocado a ditadura militar brasileira. Nesse caso, a falta de um governo que fosse genuinamente do proletariado teria impedido o levante das massas para apoiar Jango contra os militares.

Na contramão dessas análises está a obra clássica de Luiz Alberto Moniz Bandeira (2001MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. 7. ed., Rio de Janeiro; Brasília: Revan; Editora UnB, 2001 [1977].), O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1964), lançada originalmente ainda nos anos 1970. O trabalho é considerado de extrema relevância, pois foi a primeira tentativa de estudar o governo em sua especificidade, para além do golpe militar que veio a seguir. O autor relata o período em que Jango esteve na Presidência até o momento do golpe. Recentemente, outros analistas se dispuseram a estudar o ex-presidente fora do eixo de estudos sobre a ditadura militar. Com as comemorações dos 40 anos do golpe, em 2004, e os 30 anos da morte de Goulart, em 2006, novas obras foram publicadas sobre o assunto (Mattos, 2008MATTOS, Marcelo Badaró. O governo João Goulart: novos rumos da produção historiográfica. Revista Brasileira de História, v. 28, n. 55, p. 245-263, 2008.).

A maioria dos historiadores, nessa nova leva de pesquisas, analisou o ex-presidente de forma positiva, buscando trazer novas perspectivas sobre sua figura. Muitos também criticaram a análise teleológica de seu governo, evitando colocar sua derrubada como desfecho inevitável do contexto político do período. Nessa linha de estudos está o livro de Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira (2007), intitulado Jango: as múltiplas faces, em que os autores também argumentam que Goulart é um presidente esquecido ou lembrado em “chave muito crítica/negativa”. Assim, seria necessário estudar mais a fundo as memórias sobre ele, enfatizando, principalmente, a pluralidade de perspectivas nos relatos sobre o ex-presidente. Na mesma linha está a coletânea organizada por Marieta Moraes Ferreira (2006), João Goulart: entre a memória e a história. Nessa obra, diversos historiadores e cientistas sociais buscam analisar de forma mais acurada vários aspectos do governo Goulart.

Outra obra publicada sobre o ex-presidente é João Goulart: uma biografia, escrita por Jorge Ferreira (2011FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.). Ao longo do texto, o autor sublinha a experiência profissional de Jango na política como deputado estadual, secretário de Estado, deputado federal, ministro do Trabalho e duas vezes vice-presidente, antes de se tornar presidente da República. Ademais, fez faculdade de direito e “formou-se em política brasileira pelas mãos de Getúlio Vargas” (Ferreira, 2011: 10). Ferreira também relembra a escassez de trabalhos sobre Goulart e salienta que a maioria dos estudos sobre o tema trata da crise do governo e do colapso da democracia, e não da figura de Goulart, que permanece como personagem secundário (Ferreira, 2011: 13). Ele também sublinha as críticas de setores importantes das próprias esquerdas à conciliação do governo João Goulart afirmando que, para eles, “as palavras conciliar, acovardar e trair eram tidas como expressões sinônimas” (Ferreira, 2011: 380).

Portanto, a partir da presente pesquisa será possível expandir essas hipóteses e analisar os elementos contraditórios entre os diversos discursos sobre o ex-presidente, mostrando, assim, a maleabilidade e parcialidade das memórias coletivas construídas pela sociedade brasileira, sendo continuamente capazes de transformar o passado a partir das questões do presente. Já afirmo aqui que o argumento colocado nos trabalhos de Delgado (2010DELGADO, Lucília. O governo João Goulart e o Golpe de 1964: memória, história e historiografia. Tempo, v. 14, n. 28, 2010.), Castro Gomes e Ferreira (2007) e Ferreira (2011) - de que Goulart é lembrado negativamente por setores da esquerda, principalmente entre os mais jovens, que amadureceram politicamente durante a ditadura - não é confirmado pela presente pesquisa. Pelo contrário. Ao longo das entrevistas realizadas por esta pesquisadora, com diversos antigos militantes da esquerda radical, são apresentadas visões muito mais positivas sobre João Goulart, demonstrando que a memória é um processo dinâmico que implica em mudanças ao longo do tempo.

“Sociologizando” o debate histórico

Como argumentei em trabalho anterior (Goulart, 2020aGOULART, Barbara. Reflexões sociológicas sobre memória e política. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, v. 10, n. 1, Jan.-Abr. 2020a.), vale a pena debruçar-se sobre questões envolvendo memória e política a partir de uma perspectiva sociológica. A memória é manipulável e também seletiva, pois, se escolhe coletivamente, socialmente e politicamente o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido (Ricœur, 2000RICŒUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Les Éditions du Seuil, 2000.). Entretanto, o passado não é inteiramente imaginado, sendo necessário baseá-lo em fatos históricos reais. Por isso, em vez de definir o passado como maleável ou durável, os sociólogos Jeffrey Olick e Daniel Levy (1997OLICK, Jeffrey K.; LEVY, Daniel. Collective memory and cultural constraint: Holocaust myth and rationality in German politics. American Sociological Review, v. 62, n. 6, p. 921-936, 1997.) escolhem definir a memória coletiva como processo contínuo de negociação ao longo do tempo.

De fato, Jango foi esquecido por muito tempo e, quando lembrado, era de forma crítica. Entretanto, argumento que isso vem mudando nas últimas décadas. Ao longo da pesquisa, vemos que não há uma unanimidade em relação a Goulart, o que ocorre é uma disputa simbólica pelo passado. Como colocou outro sociólogo, Gary Alan Fine (1996FINE, Gary Alan. Reputational entrepreneurs and the memory of incompetence: Melting supporters, partisan warriors, and images of president Harding. American Journal of Sociology, v. 101, n. 5, p. 1159-1193, 1996.), casos em que personalidades históricas são definidas como heróis ou vilões são facilmente compreendidos, pois são pouco contestados. Os exemplos de heroísmo servem para aumentar a solidariedade comunal - no estilo durkheimiano de análise - e os exemplos de vilania servem para exemplificar as fronteiras morais da sociedade - modelo próximo aos estudos do interacionismo simbólico e da sociologia da moral de Howard Becker.

Entretanto, em outros casos, as memórias são contestadas e reputações alternativas são plausíveis. Fine (1996FINE, Gary Alan. Reputational entrepreneurs and the memory of incompetence: Melting supporters, partisan warriors, and images of president Harding. American Journal of Sociology, v. 101, n. 5, p. 1159-1193, 1996.) argumenta que, nesse caso, há uma rivalidade discursiva, na qual as reputações servem como recurso retórico em um ambiente de contestação. Assim, em vez de iluminar as áreas de consenso histórico, a análise dessas reputações contestadas - como a de Goulart - nos ajuda a mostrar a intensa batalha pelo controle desses símbolos e evidencia, também, como a memória de algumas figuras permanece “em jogo”, disputada por forças políticas competitivas.

Ao mesmo tempo, vemos que as reputações de figuras históricas não servem apenas para corroborar o passado, mas também para influenciar os debates do presente. Como concluiu Charles Horton Cooley, mais de 90 anos atrás,

é porque a fama existe para o nosso uso no presente e não para perpetuar um passado morto que o mito se torna uma parte tão integral da própria fama. O que precisamos é de um bom símbolo que nos ajude a pensar e sentir (Cooley, 1927COOLEY, Charles Horton. Social processes. New York: Scribner’s, 1927.: 116).

Logo, as memórias não devem ser tratadas como algo estático, mas sim como um processo mnemônico de construção e reconstrução de imagens sobre o passado. Por isso, analiso a fundo as memórias sobre João Goulart. Acrescento que a área da memória e, principalmente, da reputação política, ainda são campos problemáticos pouco estudados pelas ciências sociais. Assim, é necessário investir mais nessa linha de estudos, questionando as distinções sociológicas entre história e memória.

Acredito que o ato de lembrar é fundamentalmente um ato social, no qual os indivíduos empregam categorias sociais e normativas para definir quais são os elementos que comporão o passado (Olick & Robbins, 1998OLICK, Jeffrey K.; ROBBINS, Joyce. Social memory studies: from “collective memory” to the historical sociology of mnemonic practices. Annual Review of Sociology, v. 24, p. 105-140, 1998.: 134). Como disseram Jeffrey K. Olick, Vered Vinitzki-Seroussi e Daniel Levy:

Estudar (e teorizar) sobre a memória nos permite retirar nosso foco da análise do tempo e mudá-lo para a análise das temporalidades. Logo, nos torna capazes de entender quais são as categorias que as pessoas, grupos e culturas empregam para dar sentido a suas vidas, seus vínculos sociais, culturais e políticos, e os ideais concomitantes que elas validam (Olick, Vinitzki-Seroussi & Levy, 2011OLICK, Jeffrey K.; VINITZKI-SEROUSSI, Vered; LEVY, Daniel. The collective memory reader. New York: Oxford University Press, 2011.: 37).

Portanto, entender como a sociedade brasileira lembra é uma forma de entender também a própria sociedade em questão (Goulart, 2020aGOULART, Barbara. Reflexões sociológicas sobre memória e política. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, v. 10, n. 1, Jan.-Abr. 2020a.: 225). Ao revisar a literatura sociológica sobre memória, Brian Conway (2010CONWAY, Brian. New directions in the sociology of collective memory and commemoration. Sociology Compass, v. 4, n. 7, 2010.) argumenta que o estudo da memória coletiva abre ricas possibilidades para exercer a imaginação sociológica, utilizando a terminologia de Wright Mills. É para esse debate que pretendo contribuir.

Metodologia

As distorções da memória produzidas nos relatos de história oral ajudam-nos a entender não os fatos “como aconteceram realmente”, mas como eles foram interpretados pelas subjetividades individuais dos entrevistados. Assim, as “tendências” e “fantasias” expostas nas narrativas servem como recursos reveladores para a compreensão das identidades. Os indivíduos compõem passados com os quais podem conviver, por isso há uma relação dialética entre identidade e memória (Thomson, 1997THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre história oral e as memórias. Projeto História, v. 15, 1997.: 52). Assim, a história oral ajuda o sociólogo a entender a dimensão receptiva da memória, em que os materiais mnemônicos são compreendidos pelo indivíduo de acordo com suas experiências pessoais.

Para compreender esse processo, realizei, ao longo da pesquisa, 22 entrevistas semiestruturadas2 2 Minha tese de doutorado inclui uma transcrição mais completa do conteúdo das entrevistas (Goulart, 2020b). . Todas as entrevistas foram realizadas no contexto da presente pesquisa sobre João Goulart. De maneira geral, busquei incluir entrevistas com membros de diversas correntes de esquerda do período, alguns fazendo parte da geração de João Goulart e outros muitos fazendo parte da geração posterior. As conclusões aqui presentes foram retiradas a partir da análise de todas essas entrevistas, porém, infelizmente, por questões de espaço, não será possível incluir trechos de todas elas no artigo.

Escolhi, assim, expor aqui apenas oito entrevistas, focando naquelas realizadas com membros da geração posterior à de João Goulart, buscando então mostrar como sua imagem foi recuperada por aqueles que vieram depois e não conviveram pessoalmente com o presidente. Nesse sentido, busco focar na memória pública do ex-presidente e não nas memórias pessoais de amigos. Incluí entrevistas com membros de diferentes grupos da luta armada - como ALN, MR-8 e PCdoB -, além de pecebistas que se posicionaram contra a luta armada, buscando abarcar um amplo espectro de perspectivas. Outros membros da esquerda radical também foram entrevistados, porém, foco aqui nos trechos das entrevistas mais representativos da totalidade desta pesquisa3 3 Os 22 entrevistados foram: Agostinho Guerreiro, Almino Affonso, Anita Prestes, Arnaldo Mourthé, Carlos Fayal, Cecília Coimbra, Clóvis Brigagão, Daniel Aarão Reis, Dulce Pandolfi, Eduardo Costa, Eliete Ferrer, Flora Abreu, Ivan Pinheiro, Marcello Cerqueira, Maria Prestes, Milton Temer, Pedro Luiz Moreira Lima, Raphael Martinelli, Sílvio Tendler, Tânia Fayal, Trajano Ribeiro e Victória Grabois. .

Todas as entrevistas foram realizadas por mim entre 2018 e 2019. É importante salientar esse ponto, já que o Brasil apresentava um contexto político muito específico neste momento. Havia ocorrido recentemente o impeachment da presidente Dilma Rousseff, quando aqueles que defenderam a sua derrubada foram acusados de golpistas, pois estariam repetindo as atitudes que levaram à deposição do presidente eleito João Goulart pelo golpe de 1964. Lula foi também pouco tempo depois preso e em 2018, foi eleito presidente da República, Jair Bolsonaro - homem que defende publicamente a ditadura e tem como herói pessoal o coronel Brilhante Ustra, torturador de Dilma e de tantas outras vítimas. Assim, as entrevistas aqui analisadas foram realizadas nesse contexto dramático, em que o passado da ditadura influenciava as discussões do presente. Assim, as comparações entre 1964 e 2016 fizeram com que Goulart “voltasse ao presente”.

Por fim, vale a pena sublinhar também o contexto social específico em que os entrevistados militaram. Creio que isso é importante para não prejudicar uma percepção mais ampla e diversificada a respeito das imagens prévias e atuais de João Goulart no âmbito da própria esquerda brasileira. Todos os entrevistados atuaram dentro do contexto da ditadura militar, onde o cenário intelectual da esquerda era permeado por debates hoje considerados desatualizados.

Dentro da cultura revolucionária e utópica de certos grupos de esquerda do período - com grande influência do pensamento marxista -, havia uma compreensão diferente do que significava democracia naquele momento. Havia um certo “romantismo revolucionário” (Löwy e Sayre, 1995LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.), no qual aqueles conhecidos por fazerem parte da esquerda radical promoviam uma idealização das classes populares, do “homem do povo”, que não teria sido contaminado pelo capitalismo.

Segundo o sociólogo Marcelo Ridenti (2010RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2010.), essa idealização serviria como combustível utópico para a luta por um futuro diferente, um futuro socialista. Nesse sentido, o presente era considerado insuportável e deveria ser abolido, utilizando os meios que fossem necessários. A revolução socialista seria o grande ideal dos integrantes da esquerda radical, da qual também fazia parte diversos intelectuais e artistas de classe média. Para eles, não seria coerente fazer aliança e pregar a conciliação com reacionários e imperialistas. Ao acompanhar a cultura política libertária, radical e utópica desses grupos, tinha-se que implementar as reformas radicais. Qualquer solução intermediária não seria suficiente. Aliás, seria o mesmo que nada, pois manteria em vigor as estruturas podres e viciadas do passado conservador do Brasil. Era necessário abolir esse passado. Nesse sentido, a necessidade de Goulart conciliar com empresários, parlamentares conservadores, latifundiários etc., era vista como sinal de atraso e falta de comprometimento real com os interesses da classe trabalhadora.

Críticas ao presidente conciliador após o golpe

Daniel Aarão Reis4 4 Entrevista concedida à autora em 21 de novembro de 2019, no Rio de Janeiro. , historiador, integrou o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) em sua juventude. Ao ingressar em 1965 na faculdade, ele conta em sua entrevista que “aquela juventude era mais radicalizada”. Sobre a geração anterior à sua - aqueles que participaram das lutas políticas ao longo do governo João Goulart -, ele relata que “a gente estava se preparando para entrar no baile e fecharam a porta, acabou o baile.”

Aarão Reis explica que logo se aproximou do PCB, mas que já naquela época havia uma luta interna “para transformar o PC. E se não fosse possível transformar o PC, criar um outro partido revolucionário”. Nesse momento, delineia as divergências dentro do Partido Comunista, em que os antigos dirigentes acreditavam que teria sido possível evitar o golpe se tivessem exigido menos, enquanto os jovens acreditavam que o melhor caminho teria sido lutar pela radicalização. Assim sendo, em um contexto de ditadura, tornava-se necessário fazer o que antes não havia sido feito: a luta armada. Nesse contexto, João Goulart foi considerado um dos responsáveis pelo fracasso das esquerdas, visto como um dos “líderes da derrota”, dada a sua posição excessivamente moderada. Segundo Aarão Reis, apesar de haver alas radicais no PCB e no PTB, a maioria dos dois partidos “ou hesitavam, ou estavam com uma posição muito francamente moderada”. Assim, evitou-se um enfrentamento em 1964. Goulart teria se tornado, segundo o entrevistado, o “bode expiatório” dessa nova geração e foi responsabilizado pelo fracasso em impedir o golpe militar pela “impiedade típica da juventude radical”.

Como foi visto então, para Daniel Aarão Reis, essa perspectiva crítica à atuação do PCB entre 1961 e 1964 resultava, necessariamente, em uma perspectiva crítica também em relação ao presidente João Goulart, que teria ido para a “lata de lixo da história”. Segundo essa interpretação, Jango era um representante da burguesia, excessivamente moderado e de perfil conciliador, e o PCB teria errado justamente por deixá-lo liderar os movimentos de esquerda no país. Por ser um representante da burguesia - um populista - e não defender os verdadeiros interesses do povo e dos trabalhadores, ele não teria sido capaz de evitar o golpe. O erro do PCB teria sido de apoiá-lo em vez de buscar a sua independência e lutar pela revolução.

Uma visão diferente sobre Goulart

Mas será mesmo que o primeiro argumento - de que o PCB havia sido conservador demais - nos leva necessariamente ao segundo argumento - de que Goulart não era um bom presidente? A partir das entrevistas, fica claro que esse não é o caso. Alguns entrevistados criticaram a atuação do PCB, mas apresentaram opiniões positivas em relação ao presidente. Um deles foi Ivan Pinheiro5 5 Entrevista concedida à autora em 19 de novembro de 2019, no Rio de Janeiro. , que também participou do MR-8, mesmo grupo revolucionário de Daniel Aarão Reis. Ele tinha 17 anos quando houve o golpe, sendo assim, da mesma geração de Aarão Reis. Eles não viveram intensamente a vida política no governo Goulart, mas construíram, posteriormente, uma memória sobre o presidente - e sobre a atuação do PCB neste período - a partir da vivência da ditadura militar.

Sobre Goulart, Pinheiro acrescenta que sua “visão hoje é muito generosa”, e que “a minha imagem do Jango continua maravilhosa e eu responsabilizo muito mais o PCB do que o Jango pelo que aconteceu”. Por responsabilizar o PCB, afastou-se do partido e acabou se juntando ao MR-8, entrando para a luta armada, vista por ele como a via mais eficaz para enfrentar a ditadura naquele momento - apesar de não participar efetivamente das ações clandestinas. Ao retratar o dia do golpe, Pinheiro argumenta que Jango não errou ao ir para o Uruguai - visto por ele como um recuo estratégico e não como fuga. O erro teria sido do próprio PCB em não criar uma oportunidade para que Jango voltasse.

Assim como disse Daniel Aarão Reis, Ivan Pinheiro explica que, a partir de 1958, o PCB passou a adotar uma postura mais moderada, de aliança com a burguesia nacional e de transição gradual e pacífica para o socialismo. Ele apresenta o mesmo quadro político proposto por Daniel Aarão Reis, em que, entre os comunistas, havia aqueles que acreditavam que o PCB errara ao ter sido excessivamente radical - percepção compartilhada em grande parte pelos dirigentes mais velhos do PCB - e os mais jovens, que acreditavam que o PCB errara justamente por não ter sido radical, podendo ter mesmo partido para o uso de armas de fogo. Assim como Aarão Reis, Pinheiro também se posiciona ao lado do segundo grupo: dos radicais. Por isso, também se juntou ao grupo armado MR-8 (voltando para o PCB apenas com o fracasso da luta armada). Ressalta que hoje vê que “Jango deveria ser mais ‘heroificado’ do que é pelo que fez”. Portanto, Pinheiro admite que Goulart não é tratado como herói, mas acredita que deveria ser. Isso significa que havia, sim, entre as esquerdas radicais, aqueles que criticavam Goulart - como Aarão Reis pontuou -, mas havia, também, aqueles que o viam de maneira positiva. Perguntei a Ivan Pinheiro sobre as críticas que faziam a Goulart. Ele disse que ouviu, sim, chamarem Jango de populista e burguês, mas sobre isso, ele afirma que outros personagens como Marx, Fidel Castro e Che Guevara também tinham origens burguesas “nesse sentido social e familiar”.

Perguntei, então, sobre as obras de Jacob Gorender (1987GORENDER, Jacob. Combate nas trevas - A esquerda brasileira. Das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987.) e Caio Prado Jr. (2014), nas quais havia críticas enfáticas de comunistas a Goulart6 6 Sobre a recusa do presidente em resistir ao golpe, Gorender havia afirmado que “Jango não quis a luta, colocou a ordem burguesa acima de sua condição política pessoal” (Gorender, 1987: 66). Ao comentar os textos de Caio Prado Jr. para a Revista Brasiliense, Gorender afirma que, na análise de Prado Jr. sobre o governo Goulart, o economista marxista teria argumentado que “a corrupção parecia até justificar a sua derrubada” (Gorender, 1987: 73). . Ele foi categórico ao dizer que não leu nenhum dos dois livros, mas comenta que “eu nunca ouvi falar de corrupto e de burguês nesse sentido de que ele era da burguesia, fica parecendo que ele ajudou o golpe.” Mas é justamente isso que é argumentado nos textos de Jacob Gorender (1987) e Caio Prado Jr. (2014)7 7 Caio Prado Jr. (2014) argumenta que o governo Goulart “de nada mais serviu que para preparar o golpe de abril e o encastelamento no poder das mais retrógradas forças da reação” (Prado Jr., 2014: 23). e foi confirmado na entrevista de Aarão Reis. Porém, Ivan Pinheiro parece desconhecer essa interpretação dos eventos.

Essa análise dialoga com a perspectiva sociológica apresentada no trabalho de Alessandro Portelli (1996PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana: mito, política, luto e senso comum. In: MORAES FERREIRA, Marieta; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV 1996.). O autor sublinha os aspectos ideológicos da memória coletiva, que deve ser analisada criticamente. Para ele, haveria memórias divididas, nas quais grupos sociais distintos apresentariam versões diferentes para os mesmos acontecimentos históricos. Assim, discursos sobre eventos traumáticos do passado são marcados não apenas por dor e luto, mas também por ideologias. “As narrativas resultantes - não a dor que elas descrevem, mas as palavras e ideologias pelas quais são representadas - não só podem, como devem ser entendidas criticamente” (Portelli, 1996: 108). Portanto, argumento que há, claramente, duas versões distintas de interpretação dos eventos por parte das esquerdas radicais. Um grupo critica o PCB e o governo Goulart por não terem preparado a resistência contra o golpe enquanto outro responsabiliza exclusivamente o PCB. E os entrevistados das duas correntes parecem desconhecer - ou negar - a existência uma da outra.

Críticas ao PCB

Incluo, aqui, o relato de Cecília Coimbra8 8 Entrevista concedida à autora em 8 de agosto de 2018, no Rio de Janeiro. , que abrigou membros do MR-8 em sua casa, apesar de não fazer parte oficialmente do grupo de luta armada. Durante o governo João Goulart, ela era ligada ao PCB, e diz: “Sabíamos que era um governo burguês, mas era um governo aliado. Tínhamos uma série de críticas, mas era muito interessante, porque a gente se colocava como se estivesse também no poder”. Assim, como disse Aarão Reis, ela explica que essa interpretação também foi questionada posteriormente por ela. Coimbra percebeu que o PCB, de fato, não estava no poder. Porém, “essas críticas, posteriormente, eu começo a fazer ao próprio Partido Comunista” e não a João Goulart. Ela afirma que era, sim, um governo populista, mas, mesmo assim, apresenta uma percepção bastante favorável ao governo Jango, assim como apresenta Ivan Pinheiro. Ela afirma que tinham respeito pela integridade do presidente e que Goulart foi “um mito”.

Carlos Fayal9 9 Entrevista concedida à autora em 29 de agosto de 2018, no Rio de Janeiro. , antigo guerrilheiro do grupo de fogo da Ação Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighella, também enfatiza em seu depoimento que era a favor da resistência, mas que essa crítica era direcionada ao PCB, assim como havia sido dito por Ivan Pinheiro, argumentando que “tinha, parece, declarações lá do Prestes que tinha um esquema militar, que resistiria, e tal e coisa, e nada disso existia”. Ele apresenta, então, o mesmo argumento já visto anteriormente na entrevista de Ivan Pinheiro - e de muitos outros entrevistados -, que as maiores críticas da luta armada foram direcionadas ao PCB e ao Prestes, e não ao presidente João Goulart. Fayal, assim como Pinheiro, também afirma que Jango nunca se propôs a fazer uma revolução, então isso não poderia ser cobrado dele. Deveria ser cobrado, sim, de Luiz Carlos Prestes, comunista que defendia a via pacífica para a revolução.

Como contraponto, vale a pena colocar, aqui, a própria percepção de Carlos Marighella sobre o governo João Goulart. Segundo a biografia escrita por Mário Magalhães (2012MAGALHÃES, Mário. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.), Marighella estaria muito mais próximo de Brizola do que Jango, chamando, inclusive, Prestes de janguista. O guerrilheiro criticava a tutela que o presidente exercia sobre o PCB e, em suas cadernetas, chegou mesmo a atentar para a possibilidade de um golpe de Estado planejado pelo próprio presidente João Goulart (Magalhães, 2012: 267-280). Assim, essa perspectiva contrasta bastante com o que foi apresentado nas entrevistas com ex-militantes da ALN.

Incluo aqui também o relato de Dulce Pandolfi10 10 Entrevista concedida à autora em 28 de outubro de 2019, no Rio de Janeiro. , outra guerrilheira ligada a ALN. Em sua entrevista, Dulce admite que havia, sim, pessoas de esquerda criticando fortemente João Goulart no período posterior ao golpe. “Aliás, o próprio Partido Comunista também criticava Jango: ‘Vacilão’. Ele tinha muito essa imagem do cara vacilão”. Porém, ela acrescenta: “essa crítica não me sensibilizou de maneira alguma”, afirmando que ainda tinha uma imagem muito positiva do presidente.

A perspectiva do PCB

Como foi pontuado por diversos entrevistados, após o golpe, houve um “racha” no PCB: alguns de seus membros aderiram à luta armada e saíram do partido, outros permaneceram e escolheram lutar pela via parlamentar. Analiso, agora, uma entrevista realizada com um membro desse segundo grupo, que defende que o erro do PCB foi ter radicalizado demais o seu discurso no período do pré-golpe. Anita Prestes11 11 Entrevista concedida à autora em 17 de agosto de 2018 no Rio de Janeiro. , filha de Luiz Carlos Prestes, admite que houve aproximações e distanciamentos entre o PCB e o governo João Goulart. Segundo ela, “havia um apoio sim, mas não um apoio incondicional. Um apoio às medidas progressistas que eram tomadas”.

Anita Prestes também salienta que Jango não era visto como um representante dos trabalhadores, e sim como um representante da burguesia, mas com ideais progressistas. Desse modo, ela admite que, muitas vezes, o PCB se posicionava contra o governo. Assim como Aarão Reis, ela também parece apresentar uma desilusão em relação ao golpe militar e à ditadura que veio a seguir. Acreditava-se que havia uma burguesia nacional que se manteria do lado dos trabalhadores e contra o golpe, mas, segundo ela, essa “burguesia nacional, na prática, não existia”. Porém, apesar de ver Goulart como um representante dessa mesma burguesia, ela afirma: “eu acho que o Jango tinha preocupação em atender até certo ponto os interesses dos trabalhadores. Dentro desse regime capitalista. Tem que pôr em questão o capitalismo”. Ela também admite que, dentro do PCB, os posicionamentos “conciliadores” de João Goulart eram bastante criticados e considerados “vacilantes”.

Elogios a João Goulart

Ao longo das entrevistas que realizei, diversos entrevistados elogiaram João Goulart; cito aqui alguns desse momentos. Carlos Fayal argumenta que toda sua geração, posterior ao golpe, se formou a partir das ideias que vieram do governo Goulart. “Todo mundo veio, na verdade, dali, né? Todo mundo se formou a partir daquelas ideias. De mudar a realidade brasileira dentro dessa linha”. Ele admite que havia críticas ao presidente, mas, segundo ele, elas estavam restritas à questão da não resistência. “Claro que existiam críticas, por exemplo, ‘ah não, porque o Jango devia ter resistido’ e tal, mas aí são aspectos menores, factuais”.

Para demonstrar que o caso de Carlos Fayal não é isolado, coloco, aqui, os depoimentos de outros antigos membros da ALN que também teceram diversos elogios ao presidente João Goulart. Esse é o caso de Eliete Ferrer12 12 Entrevista concedida à autora em 13 de agosto de 2018 no Rio de Janeiro. , que afirma: “Jango é um herói brasileiro. Quiçá o melhor presidente que o Brasil já teve. Eu tenho uma admiração absurda pelo Jango”. Porém, ela admite que nem todos os membros da ALN pensam da mesma maneira, sublinhando as críticas em relação à escolha de Goulart em não resistir em 1964, e que ela própria “confessa” que “às vezes eu tendo a achar que ele tinha razão, às vezes eu tendo a achar que ele não tinha razão”, mas que “adorava ele”.

Nesse sentido, apesar de não concordar com o posicionamento de Goulart em não resistir, os comentários de Eliete Ferrer ainda são bastante positivos. Na entrevista, eu perguntei se havia mais críticas em relação a Goulart entre as esquerdas, mas ela nega, preferindo enfatizar a perseguição sofrida pelo presidente por parte da direita reacionária. Ela diz que entre as esquerdas “a memória de Jango é sempre positiva”, sublinhando que “a figura dele é uma figura querida. Eu não conheço ninguém que tenha ódio ao Jango”. Anita Prestes também tece comentários interessantes sobre a figura de Jango. É interessante pontuar que, apesar das críticas do ponto de vista ideológico a João Goulart, ela elogia algumas características pessoais do presidente. Ao mesmo tempo, por ser uma pessoa afável e carismática, isso, segundo ela, “iludiria” os trabalhadores, os fazendo pensar que ele poderia ser um revolucionário.

Frustração no dia do golpe e a descoberta da invasão americana

Diversos entrevistados pontuam um evento específico que levou a uma mudança na percepção da resistência contra o golpe. No caso, o evento é a descoberta de que o governo americano havia enviado uma frota de navios, para esperar na costa brasileira, e que as forças entrassem no país para a guerra, caso houvesse resistência por parte de Goulart. O presidente havia recebido essa informação no dia do golpe, por parte de assessores, porém, o grande público só ficou sabendo dessa informação anos depois.

Em 30 de março de 1964, San Tiago Dantas havia telefonado para Afonso Arinos, auxiliar administrativo de Magalhães Pinto. Dele, ouviu que o governo americano apoiava a sublevação e que não apenas daria apoio diplomático, como interviria militarmente no país caso fosse necessário (Moniz Bandeira, 2001MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. 7. ed., Rio de Janeiro; Brasília: Revan; Editora UnB, 2001 [1977].: 178-179). Foi discutida a gravidade da situação com o presidente e as consequências da intervenção militar estrangeira, com o risco de secessão no Brasil, agravada com a internacionalização do conflito. Dantas ainda comunicou que navios militares norte-americanos se dirigiam para a costa do Espírito Santo.

Hoje sabe-se que o golpe foi deflagrado com o conhecimento e a concordância do Departamento de Estado americano, que viria a reconhecer a existência de outro governo no território livre do Brasil caso houvesse uma guerra civil. Porta-aviões americanos estavam estacionados perto de Santos. A esquadra era composta por seis contratorpedeiros, um porta-helicópteros, quatro petroleiros e um posto de comando aerotransportado, carregados com 110 toneladas de munição e 553 mil barris de combustível (Moniz Bandeira, 2001MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. 7. ed., Rio de Janeiro; Brasília: Revan; Editora UnB, 2001 [1977].: 173). Entretanto, naquele dia, essa informação foi compartilhada apenas entre os que estavam presentes na reunião.

Cecília Coimbra admite que houve uma grande frustração quando Goulart decidiu não resistir no dia do golpe, e que foram “pegos de surpresa, como se dizia, de calças curtas né, na mão”. Porém, ela nota que “anos depois, não precisa ser muitos anos não, ainda já durante a ditadura, a gente começou a perceber né. De como foi sábia aquela decisão [de não resistir]”. Além disso, ela vê essa decisão como corajosa: “eu acho isso de uma coragem muito grande. Ser visto como um covarde, mas perceber que não tinha como resistir”.

A partir desse discurso, é possível argumentar que as esquerdas radicais passaram por um momento significativo de autocrítica durante a ditadura. No início, as críticas em relação ao governo João Goulart parecem ter sido mais profundas, porém, ao decorrer da ditadura, elas parecem ter se amenizado. É importante pontuar que os livros mencionados anteriormente - de Gorender (1987GORENDER, Jacob. Combate nas trevas - A esquerda brasileira. Das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987.) e Prado Jr. (2014) - foram escritos no calor dos acontecimentos, logo após o golpe e no período da luta armada. Assim, é possível argumentar que, com o fracasso da guerrilha, esses grupos passaram por um momento de revisão em que o governo João Goulart passou a ser visto de outra forma. Ademais, descobriu-se que a frota americana estava na costa brasileira no dia do golpe e que apenas João Goulart e seus colaboradores mais próximos sabiam disso na época, e que, por esse motivo, não teria sido possível resistir.

Carlos Fayal também comenta sobre a presença da frota americana no Brasil; o que fez parte da esquerda “ter uma compreensão de dar mais razão a Jango, porque ali ia ser um Vietnã”. Quando houve o golpe, as esquerdas não sabiam desse fato e a descoberta disso, anos depois, teria valorizado a imagem de Goulart, facilitando a compreensão por parte dos radicais da escolha de Jango em não resistir. Anita Prestes também comenta sobre a questão do apoio americano. Ela concorda que não seria possível uma resistência, pois “hoje, a partir das novas informações que a gente tem [...], eu acho que realmente não havia condições”.

Mais uma vez, é possível analisar os discursos a partir de um diálogo com a literatura sociológica sobre memória. Robert Jansen (2007JANSEN, Robert S. Resurrection and appropriation: reputational trajectories, memory work, and the political use of historical figures. American Journal of Sociology, V. 112, n. 4, 2007.) argumenta que, na maioria das vezes, as memórias sobre os indivíduos históricos são estáveis, havendo poucos momentos de mudança. Entretanto, o autor recomenda que o foco da análise seja exatamente nesses momentos de ruptura, quando há mudanças críticas nas imagens desses indivíduos. É necessário entender essas clivagens que marcam o processo macro-histórico de construção de memórias, outrora permeado pela estabilidade simbólica.

Seguindo esse modelo, as “trajetórias reputacionais” são pontuadas por conjunturas críticas, cujos resultados não determinam o que ocorrerá a seguir, mas trazem consequências a longo prazo, que se solidificam e se institucionalizam. Essas consequências criam novas condições históricas que constrangerão, posteriormente, o espaço no qual os atores poderão atuar. Por isso, os atores envolvidos - chamados de empreendedores reputacionais - nunca trabalham a partir de uma tábula rasa. Eles encontram restrições e oportunidades herdadas do passado em que outros procuraram construir seus próprios projetos mnemônicos anteriores (Jansen, 2007JANSEN, Robert S. Resurrection and appropriation: reputational trajectories, memory work, and the political use of historical figures. American Journal of Sociology, V. 112, n. 4, 2007.: 962). Assim, é possível pensar nas chamadas “conjunturas críticas” que levaram a uma mudança nas memórias sobre o presidente João Goulart. Argumento que a descoberta da possibilidade de uma invasão americana seria uma dessas conjunturas, que fez com que as esquerdas mudassem sua imagem sobre Jango, passando a vê-lo de maneira mais positiva.

O fator tempo

Nesse sentido, argumento que é fundamental o fator tempo nas memórias sobre o governo João Goulart. Argumento que, com o fracasso da luta armada, foi possível repensar as escolhas políticas do presidente João Goulart. Setores da esquerda radical passaram a perceber que talvez não teria sido tão fácil uma resistência liderada por Goulart contra a ditadura. Como concluiu Coimbra: “Não tinha como partir para o confronto. Não tinha como”. Ademais, comparando ao que se veria nos projetos políticos de governos posteriores, até mesmo no período democrático recente, as conquistas do governo João Goulart passaram a ser vistas de maneira mais significativa, pois, apesar de não se chegar à sonhada revolução, o que foi feito por Jango já seria muito mais do que aquilo implementado por muitos governos posteriores.

Dulce Pandolfi, ligada à ALN, explica que as críticas das esquerdas a Goulart “foram minimizadas naquela época” e que foi a área acadêmica que recuperou essa discussão posteriormente. Cecília Coimbra apresenta versão distinta, afirmando que seus companheiros do PCB, apesar de considerarem Goulart um presidente burguês, o viam com bons olhos, não mencionando as críticas mais enfáticas das próprias esquerdas ao presidente. Curiosamente, Daniel Aarão Reis, o único entrevistado que sublinha fortemente as críticas das esquerdas radicais a João Goulart em seu depoimento, é também um historiador, e, assim como Dulce Pandolfi, é também especialista na atuação das esquerdas durante a ditadura militar. Não por acaso, são os dois entrevistados capazes de discutir de maneira mais detalhada as críticas dos grupos radicais de esquerda em relação a Jango. Questões parecidas são também levantadas por Anita Prestes, outra historiadora entrevistada.

Dulce Pandolfi comenta que “a esquerda mesmo, o pessoal da militância, não estava se voltando muito para discutir o governo Jango”. Portanto, Pandolfi apresenta um quadro distinto daquele proposto por Aarão Reis. Em sua experiência, as críticas a Goulart e ao passado parecem ter sido muito mais localizadas, algo que vivenciou de maneira passageira. Enquanto isso, Aarão Reis havia colocado as críticas a Goulart e à atuação do PCB durante o seu governo como questões essenciais para a opção pela luta armada, algo que parecia ter perpassado a ideologia revolucionária.

Pandolfi também aponta para uma questão muito importante. No momento do governo João Goulart, era necessário que as correntes radicais de esquerda criticassem os petebistas, pois eles estavam disputando espaço. Enquanto isso, já na ditadura, com Goulart no exílio, a disputa era entabulada por outros grupos políticos. Nesse sentido, era importante criticar Goulart no primeiro momento, para diferenciar os grupos guerrilheiros do PCB, considerado conservador. Porém, com a intensificação da ditadura e a permanência dos petebistas no exílio, a crítica a Goulart sai da agenda de discussão dos grupos revolucionários.

Argumento que a memória a longo prazo do período torna-se muito mais crítica à oposição de verdade: a direita, os políticos conservadores e os próprios militares. A curto prazo, as críticas recaem aos oponentes da própria esquerda, com quem se está disputando espaço, porém, a longo prazo, permanece na memória a grande oposição, que seria aos atores de direita. Não por acaso, Pandolfi diz se lembrar muito bem da divergência de sua família com Lacerda, mesmo quando era criança.

Para compreender essa questão, é possível se utilizar da análise da socióloga Claire Moon (2006______. Narrating political reconciliation: truth and reconciliation in South Africa. Social & Legal Studies, v. 15, n. 2, 2006.)13 13 Claire Moon (2006, 2008) analisa o caso da reconciliação pós-Apartheid na África do Sul, mas acredito que seu argumento possa ser aplicado para o caso da ditadura brasileira sobre justiça de transição. Com o fim da ditadura militar, ocorre um “processo de reconciliação”, visto pela autora como uma “ficção transformativa, que confere unidade moral aos eventos ocorridos” (Moon, 2006: 272). Nesse caso, esses diferentes grupos políticos de esquerda esquecem suas próprias divergências do passado, para construir um futuro comum, onde se possa “purgar ou purificar a nação dos pecados de seu passado violento, para que possa futuramente se reconciliar” (Moon, 2008: 92). Assim, o foco passa a ser a luta contra a memória oficial do período ditatorial, que afirma que não houve crimes cometidos pelo Estado (Goulart, 2020aGOULART, Barbara. Reflexões sociológicas sobre memória e política. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, v. 10, n. 1, Jan.-Abr. 2020a.). As esquerdas se unem então contra um inimigo comum: a ditadura e a memória de apologia a ela. Ao mesmo tempo, a questão da violação dos direitos humanos se torna um tema particularmente sensível (Santos, 2021SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória e ditadura militar: lembrando as violações de direitos humanos. Tempo Social, v. 33, n. 2, 2021.).

Como historiadora, Dulce Pandolfi passa a ver as críticas a Goulart “muito fortes depois, quando eu comecei a estudar a parte da literatura”. Segundo ela, hoje “é que está sendo resgatada a figura do Jango”, citando os trabalhos de Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes. Assim, houve “um período das críticas tremendas”, onde se falava “aquela coisa da fuga”, que Jango “fugiu”. Assim, termina por criticar, indiretamente, o argumento defendido pelo próprio Aarão Reis, que, em outro momento de sua entrevista, comentou “a fuga do presidente” quando optou pelo exílio. Aponta, então, para o fato de que essa teria sido uma crítica recorrente no período, mas também sinaliza que essa interpretação dos eventos vem sendo questionada recentemente.

Assim, argumento que, talvez, as críticas das esquerdas ao governo João Goulart ficaram relegadas à história, como disciplina acadêmica, sendo parcialmente esquecidas na memória daqueles que não estudam intensamente o período em questão (Ivan Pinheiro também havia dito não se lembrar das críticas mais efusivas a Goulart). Portanto, é possível perceber que as memórias não são estáticas, mas maleáveis. É possível argumentar que as memórias dos entrevistados não expressam o passado ou o presente, mas as diferentes interações entre passado e presente, pois a memória tem também uma dimensão processual e cumulativa (Olick, 1999OLICK, Jeffrey K. Genre memories and memory genres: a dialogical analysis of May 8, 1945 commemorations in the Federal Republic of Germany. American Sociological Review, v. 64, n. 3, p. 381-402, 1999.).

Vale a pena citar aqui o trabalho da socióloga Jocelyn Viterna (2009VITERNA, Jocelyn. Negotiating the muddiness of grassroots field research: managing identity and data in rural El Salvador. In: HUGGINS, Martha. K.; GLEBBEEK, Marie-Louise (Orgs.) Women fielding danger. Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 2009.), que comenta a dificuldade de se ter relatos fidedignos em relação ao passado, quando a perspectiva dos entrevistados mudou ao longo do tempo. Segundo ela, os entrevistados têm uma tendência a “higienizar” seus discursos mnemônicos de acordo com o “ambiente rememorativo” contemporâneo (Viterna, 2009: 283). Assim, argumento que como a perspectiva política atual envolve uma imagem mais positiva sobre Goulart, os entrevistados tendem a diminuir as críticas que já tiveram em relação ao presidente. Mesmo assim, ainda é possível entrever alguns comentários interessantes sobre a questão da conciliação do presidente.

A conciliação de Jango

Anita Prestes admite que antes do golpe a “conciliação do Jango” era “o inimigo principal a se combater” e que havia uma cobrança para que o PCB radicalizasse mais. Anita afirma que houve uma radicalização excessiva durante o governo João Goulart - causada por erros não de Prestes, mas dos membros radicais e “esquerdistas” do PCB, como Marighella, Apolônio de Carvalho, Gorender, Mário Alves etc. Nesse sentido, ela admite que o próprio PCB via, sim, antes do golpe, Jango e sua conciliação como o inimigo principal. Ao mesmo tempo, Anita admite que, com o tempo, passou a ver que isso teria sido um erro do partido e que o PCB teria contribuído para o isolamento do presidente ao longo de seu governo, levando-o a ficar “prensado e sem condição de realmente preservar o governo” e considera que a “estratégia do partido estava errada. Isso é uma posição que eu defendo já há bastante tempo”.

Anita Prestes admite que o PCB pensava na possibilidade de fechar o Congresso e “passar por cima da legalidade democrática”, assim como Julião e Brizola. O fato de o presidente não fazer o mesmo, de seguir a regra democrática, de não tomar certas medidas sem a aprovação do Congresso, era visto pelos comunistas como conciliação. Assim, para os comunistas da época, seguir a democracia no seu sentido institucional era sinônimo de conciliação e para realizar as reformas seria, para eles, necessário romper as regras democráticas. Contudo, sublinho que Anita faz uma autocrítica à posição do PCB durante o governo João Goulart, assim como foi feita no próprio Congresso do PCB após o golpe. Ela admite que não seria possível aprovar as reformas sem conciliação. Assim, apresenta, hoje, uma opinião mais favorável ao presidente do que tinha durante o seu governo. Nesse sentido, apesar de ter criticado a conciliação do presidente, admite que hoje percebe que não teria sido possível não conciliar.

Essa visão é compartilhada por Victória Grabois14 14 Entrevista concedida à autora no dia 25 de julho de 2018 no Rio de Janeiro. , ligada ao grupo PCdoB, surgido a partir de um racha do PCB, sendo um de seus fundadores o seu pai - Maurício Grabois -, morto na guerrilha do Araguaia: “quando chegou no golpe, todo mundo se aliou, porque a esquerda só se alia na desgraça”. Em primeiro lugar, Victória tenta equilibrar elogios ao presidente, enquanto admite que ele era criticado pelo grupo do qual fazia parte. Afirma que considera “João Goulart um dos melhores presidentes do Brasil”, isso demonstra que, apesar das possíveis críticas, ele ainda é visto com certa admiração. Por outro lado, Victória Grabois admite que o PCdoB se posicionou contra João Goulart em diversos momentos, inclusive no plebiscito sobre o presidencialismo.

Conclusões

A partir do diálogo entre história e memória, é possível realizar uma sociologia compreensiva e interpretativa do passado, buscando entender as percepções dos atores sobre o que ocorreu e os enquadramentos de memória realizados por eles. Com a sociologia compreensiva e interpretativa, enfatizo a necessidade de compreender a perspectiva subjetiva dos atores investigados (aqueles que se “lembram” de Jango), delineando o sentido atribuído por eles ao passado, assim como às suas experiências pessoais que os levaram a tais interpretações do passado.

A partir das entrevistas que fiz, é possível perceber que muitos entrevistados repetem um discurso razoavelmente positivo em relação ao presidente, contrariando o argumento de que as esquerdas radicais - que participaram da luta armada contra a ditadura - construíram memórias majoritariamente negativas sobre o governo João Goulart. O oposto, a grande maioria dos entrevistados parece concordar com, ou pelo menos entender, a escolha do presidente em não resistir. Ao mesmo tempo, argumento que há um apagamento das críticas realizadas pelas próprias esquerdas ao presidente, durante e depois do período democrático. Portanto, muitas vezes as memórias recentes dos entrevistados não corroboram o que foi analisado pelos historiadores e isso é um dado de extrema importância, pois demonstra as diferenças entre os fatos políticos e sua interpretação a posteriori.

Para além das novas descobertas factuais em relação aos eventos políticos de 1964 - particularmente a possibilidade de uma invasão americana - e como essas novas informações afetaram as opiniões das esquerdas sobre as escolhas de João Goulart, o objetivo do texto é mostrar também uma mudança nos próprios valores defendidos pelas esquerdas brasileiras. Ao desvencilhar-se de uma cultura revolucionária utópica, as esquerdas passam a defender valores associados à democracia-liberal institucional, onde a conciliação e a decisão por uma saída pacífica passam a ser vistas de maneira mais positiva. Assim, são essas mudanças de valores que levam a uma reinterpretação do passado e da atuação de João Goulart naquele momento.

Esse argumento abre espaço para uma discussão sociológica mais profunda sobre mudanças mnemônicas a longo prazo. Como escreveu Conway (2010CONWAY, Brian. New directions in the sociology of collective memory and commemoration. Sociology Compass, v. 4, n. 7, 2010.), é preciso ter uma maior sensibilidade em relação às mudanças históricas de longo prazo, entendendo a memória como imagens em movimento (Conway, 2010: 451). Sobre o caso aqui analisado, argumento que com a efetivação do golpe em 1964, um longo processo de revisão e autocrítica foi iniciado entre as esquerdas, com a instalação da ditadura militar. Esse processo foi aprofundado com o fracasso das guerrilhas. Argumento que a perda em 1964 gerou uma necessidade de reelaboração do passado e uma mudança nas memórias - incluindo suas próprias experiências de vida -, buscando entender o que, de fato, ocorrera e os erros cometidos pelas próprias esquerdas. Nesse sentido, ao longo das décadas, as esquerdas abandonaram o discurso revolucionário radical. Na retomada da democracia no Brasil, houve um progressivo declínio “da sedução das utopias revolucionárias, substituídas, pelo menos por enquanto, pela lógica da negociação, do diálogo, das reformas” (Aarão Reis, 2005: 68).

Defendo que, nesse novo contexto de revalorização da moderação e do reformismo, a imagem de João Goulart começou a ganhar projeção, servindo de legado da democracia no Brasil. É nesse contexto de retomada da democracia que grande parte dos livros sobre o ex-presidente são publicados. Nesse processo, as atitudes antes consideradas conciliadoras - expressas na figura do ex-presidente João Goulart - a partir do ponto de vista revolucionário, agora passam a ser vistas como expressões de democracia e liberdade de expressão.

Ao mesmo tempo, no momento em que foram realizadas as entrevistas, a imagem de João Goulart também reaparecia de maneira mais explícita, permeando os debates das esquerdas no cenário nacional. No contexto político de derrubada da presidente Dilma Rousseff, grande parte das esquerdas passou a defender uma memória de que são sempre perseguidas quando ocupam o poder, vítimas de golpes perpetrados pela direita, associando assim o legado de Vargas e Jango a Lula e Dilma Rousseff (Goulart, 2020b). Com isso, João Goulart passou a ser associado - pelas esquerdas - à importância da manutenção da democracia institucional, vigente de maneira ampla e irrestrita em seu governo.

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  • VITERNA, Jocelyn. Negotiating the muddiness of grassroots field research: managing identity and data in rural El Salvador. In: HUGGINS, Martha. K.; GLEBBEEK, Marie-Louise (Orgs.) Women fielding danger. Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 2009.
  • WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978 [1968].
  • 1
    Em minha tese de doutorado, discuto mais profundamente o impacto de outros eventos nas memórias sobre João Goulart, como o lançamento do documentário Jango, a exumação dos restos mortais do ex-presidente, e a devolução simbólica de seu mandato (Goulart, 2020b).
  • 2
    Minha tese de doutorado inclui uma transcrição mais completa do conteúdo das entrevistas (Goulart, 2020b).
  • 3
    Os 22 entrevistados foram: Agostinho Guerreiro, Almino Affonso, Anita Prestes, Arnaldo Mourthé, Carlos Fayal, Cecília Coimbra, Clóvis Brigagão, Daniel Aarão Reis, Dulce Pandolfi, Eduardo Costa, Eliete Ferrer, Flora Abreu, Ivan Pinheiro, Marcello Cerqueira, Maria Prestes, Milton Temer, Pedro Luiz Moreira Lima, Raphael Martinelli, Sílvio Tendler, Tânia Fayal, Trajano Ribeiro e Victória Grabois.
  • 4
    Entrevista concedida à autora em 21 de novembro de 2019, no Rio de Janeiro.
  • 5
    Entrevista concedida à autora em 19 de novembro de 2019, no Rio de Janeiro.
  • 6
    Sobre a recusa do presidente em resistir ao golpe, Gorender havia afirmado que “Jango não quis a luta, colocou a ordem burguesa acima de sua condição política pessoal” (Gorender, 1987: 66). Ao comentar os textos de Caio Prado Jr. para a Revista Brasiliense, Gorender afirma que, na análise de Prado Jr. sobre o governo Goulart, o economista marxista teria argumentado que “a corrupção parecia até justificar a sua derrubada” (Gorender, 1987: 73).
  • 7
    Caio Prado Jr. (2014) argumenta que o governo Goulart “de nada mais serviu que para preparar o golpe de abril e o encastelamento no poder das mais retrógradas forças da reação” (Prado Jr., 2014: 23).
  • 8
    Entrevista concedida à autora em 8 de agosto de 2018, no Rio de Janeiro.
  • 9
    Entrevista concedida à autora em 29 de agosto de 2018, no Rio de Janeiro.
  • 10
    Entrevista concedida à autora em 28 de outubro de 2019, no Rio de Janeiro.
  • 11
    Entrevista concedida à autora em 17 de agosto de 2018 no Rio de Janeiro.
  • 12
    Entrevista concedida à autora em 13 de agosto de 2018 no Rio de Janeiro.
  • 13
    Claire Moon (2006, 2008) analisa o caso da reconciliação pós-Apartheid na África do Sul, mas acredito que seu argumento possa ser aplicado para o caso da ditadura brasileira
  • 14
    Entrevista concedida à autora no dia 25 de julho de 2018 no Rio de Janeiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2021
  • Aceito
    27 Jan 2022
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