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Bitcoin: o filho rebelde do neoliberalismo

PARANÁ, Edemilson. Bitcoin - a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico. São Paulo: Autonomia Literária, 2020

Dizia o autor boliviano René Zavaleta Mercado (1983: 20) que as crises oferecem oportunidades ímpares para o autoconhecimento das sociedades, pois expressariam uma forma de “unidade patética do diverso”. As crises econômicas, societárias e políticas sintetizam concretamente a totalidade social não aparente no cotidiano, e que, por isso, emerge de maneira mais direta e nítida para aqueles com disposição e instrumental teórico-crítico para captá-la. O segundo livro de Edemilson Paraná, Bitcoin - a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico, insere-se nesse desafio: busca captar, a partir de um objeto concreto - o Bitcoin -, aspectos fundamentais da dinâmica do capitalismo em sua forma neoliberal no contexto de sua crise contemporânea.

Em Finança digitalizada (Paraná, 2016PARANÁ, Edemilson. Finança digitalizada: capitalismo financeiro e revolução internacional. Florianópolis: Insular, 2016.), seu livro anterior, Paraná analisou a relação entre o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (TICs) e a reconfiguração do capitalismo contemporâneo, sobretudo no aspecto referente à intensificação do processo de financeirização da economia mundial. Aqui, em Bitcoin, na mesma esteira de preocupações, o boom da referida criptomoeda aparece como consequência - ou sintoma - dessa dinâmica, como produto de sua instabilidade sistêmica (p. 141).

Ao analisar o Bitcoin a partir de um referencial teórico marxista robusto, o autor constrói uma abordagem interdisciplinar que o permite explicar não só o que é e como funciona o Bitcoin, mas também a forma como ele se insere no movimento geral do capitalismo contemporâneo e o que efetivamente encarna no cenário de crise do neoliberalismo. A partir daí, oferece ao leitor uma definição precisa e contextualizada da criptomoeda, que contém em si a explicação para muitos de seus limites: a despeito do que pretendiam (ou pretendem) seus idealizadores, o Bitcoin não representa a superação da política no que diz respeito à administração monetária, dentre outras coisas, porque justamente pelas características que são aventadas como propulsoras dessa superação, o Bitcoin não é dinheiro.

O livro tem o mérito de atingir com muita qualidade diferentes públicos, porque está organizado em três “camadas” de profundidade. A parte I, “Do Bitcoin ao dinheiro”, serve como excelente discussão sobre o que é a criptomoeda e como ela é expressão da forma contemporânea assumida pelo capitalismo. Essa parte, em si, já seria um livro suficientemente bom para explicar o Bitcoin e suas contradições. Entretanto, a parte II, “Do dinheiro ao Bitcoin”, dá outra dimensão à leitura, proporcionando um debate de alto nível com públicos mais especializados, na medida em que para localizar teoricamente a discussão sobre o Bitcoin nos debates da economia monetária e da sociologia do dinheiro, sistematiza e conecta as principais vertentes dessas áreas de estudo, forjando um referencial teórico interdisciplinar que aprofunda o sentido da análise sobre o objeto e que contribui muito para a compreensão do papel do dinheiro no capitalismo e de suas expressões contemporâneas. Por fim, dialogando com um público ainda mais especializado estão as notas de rodapé, que aprofundam as discussões ao longo de todo o texto.

O autor chega a afirmar na Introdução que a ordem de leitura das duas partes pode ser definida pelo leitor sem prejuízo para a compreensão do conteúdo. É verdade. Entretanto, pela lógica de exposição de todo o texto, parece-me que a ordem de leitura mais natural e fluida seria começar pela Parte II, onde são construídas as bases teóricas para toda a análise, e terminar pela Parte I, na qual, a partir delas, é analisado o contexto histórico e o objeto de pesquisa propriamente dito. Por isso, aqui, o livro está analisado na ordem inversa à proposta pela publicação: depois da Introdução, discutem-se os Capítulos 4, “Valor, dinheiro e capital”, e 5, “Dinheiro, Estado e poder”, contidos na parte II, para depois chegar aos Capítulos 2, “Dinheiro e hegemonia neoliberal: os antecedentes do Bitcoin”, e 3, “Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico”, publicados na parte I.

As últimas cinco décadas são marcadas por dois processos estruturais entrelaçados: a financeirização neoliberal, de um lado, e a ascensão das máquinas, especialmente através das TICs, de outro (p. 17). Com a crise financeira de 2008 e todas as suas consequências, o desenvolvimento tecnológico segue sendo propagandeado como “esperança” para solucionar os inúmeros problemas estruturais gerados pelo capitalismo: nesse contexto, o investimento nas TICs só cresce, e as perspectivas são de transformações ainda mais profundas nas próximas décadas. Daí as discussões recentes sobre a potencial substituição de mão de obra humana por máquinas e os impactos disso no mundo do trabalho (Benanav, 2019BENANAV, Aaron. Automation and the future of work - I. New Left Review, n. 119, Sep.-Oct., p.5-38, 2019.), sobre o uso de tecnologia para as ciberguerras (Dyer-Whiteford & Mativyenko, 2019), sobre o uso de algoritmos para planificar economicamente grandes empresas (Phillips & Rozworski, 2019PHILLIPS, Leigh; ROZWORSKI, Michal. People’s Republic of Walmart. London: Verso, 2019.) e tantas outras. Paraná argumenta que a expansão do setor financeiro é o motor para o desenvolvimento tecnológico contemporâneo, já que na prática é nos mercados financeiros que se encontram as fronteiras para a expansão da inteligência artificial, do processamento ubíquo de dados, de realidade aumentada etc. O Blockchain, tecnologia base do Bitcoin, é um dos exemplos disso (p. 20).

A busca por compreender o fenômeno do Bitcoin e revelar seu papel na dinâmica do capitalismo contemporâneo é, para o autor, parte de um desafio ainda mais amplo: pensar, a partir da esquerda política, em como sair do quadro atual de crise a partir de ideias e agendas novas, sem repetir a busca por soluções do passado que, no mundo globalizado da finança digitalizada, não têm mais sustentação. A partir de um balanço das diferentes vertentes da teoria do dinheiro no marxismo, o autor enfatiza que, para Marx, o dinheiro é caracterizado, a partir de seus vínculos com o valor de troca das mercadorias, como “relação social constitutiva de organização da vida socioprodutiva sob o capitalismo” (p. 199). Essa percepção foge das perspectivas mais simplistas que o enxergam como mero facilitador de trocas e traz sua caracterização para o âmago de seu funcionamento no capitalismo, independentemente de qual tenha sido a origem do dinheiro e das funções que exercia em outros modos de produção. Neste sentido, Paraná segue aqueles que tratam o dinheiro como algo fundamental para o funcionamento do capitalismo, não apenas como forma de agilizar as trocas, mas como necessidade para a generalização destas na sociedade, portanto, para o próprio sistema socioeconômico (p. 207).

Uma das principais marcas da teoria marxista do dinheiro é a percepção de que ele exerce diferentes funções - complementares e contraditórias entre si - na dinâmica econômica e social: é, ao mesmo tempo, medida de valor, meio de circulação, meio de entesouramento, meio de pagamento e dinheiro mundial. Ao seguir as reflexões de Maria de Lourdes Mollo, Paraná lembra que o dinheiro pode existir mesmo que não cumpra bem todas essas funções, mas que sempre que uma delas se destaca de forma generalizada em detrimento de outras, há problemas sérios no funcionamento das economias (p. 220). Ainda nessa discussão, agora com a economista marxista Suzanne de Brunhoff, o autor lembra que a teoria marxista é compatível com a ideia de um dinheiro que não tenha de fato a forma mercadoria: ao atuar como equivalente geral, ganha um status especial, diferente das outras mercadorias (p. 225). Além disso, na esteira de Alfredo Saad-Filho, tem-se a ideia do dinheiro como pivô da homogeneização dos diferentes trabalhos concretos realizados - que em sua forma abstrata subsidiam o valor de troca - através da “restrição monetária” (p. 238).

Paraná demonstra que todo o processo que leva o dinheiro a cumprir uma função-chave na dinâmica socioeconômica do capitalismo depende de uma validação social, de um reconhecimento e de um acordo tácito entre as pessoas (p. 239). Para produzir esse “acordo”, o Estado atua deliberadamente do ponto de vista jurídico e político, e mecanismos ideológicos também são mobilizados. Analisar como isso acontece é o objetivo do capítulo seguinte.

Aqui, o fetichismo do capital - e do dinheiro - emerge na análise como parte importante da produção ideológica que ajuda a sustentar o sistema capitalista e para a qual o Estado cumpre um papel decisivo (p. 267). A partir de uma extensa revisão sobre a discussão marxista acerca do Estado, Paraná, na esteira de Suzanne de Brunhoff, argumenta que o Estado é, ao mesmo tempo e contraditoriamente, condição e resultado do processo capitalista. Essa é a marca da atuação do Estado e está na base de sua autonomia relativa frente ao capital, sendo melhor compreendida justamente quando se analisa o papel deste na garantia do funcionamento das mercadorias “especiais”: a força de trabalho e a moeda, que são, sob este aspecto, a um só tempo mercadorias e relações sociais (p. 285). É, entre outros, através de diversos mecanismos de atuação do Estado que o reconhecimento do dinheiro como equivalente geral é reproduzido, garantindo a dinâmica mercantil da sociedade. Nesse contexto, o dinheiro adquire sua materialidade social, como

um mecanismo de representação e realização do valor (sem o qual não haveria capital e capitalismo), perpassado por violência e confiança, coerção e consentimento, em suma, por ideologia; e que ademais existe, em si mesmo, como ideologia (p. 304).

Finda a parte II com as bases teóricas para discussão, passamos aos comentários sobre a parte I do livro, na qual o autor contextualiza o momento atual do capitalismo (Cap. 2) e finalmente localiza o Bitcoin em toda a discussão. Em “Dinheiro e hegemonia neoliberal”, o autor explica e define o neoliberalismo, culminando com uma análise ancorada no marxismo sobre os motivos de sua crise. Paraná refuta, ancorado em Polanyi e outros, a ideia de que o neoliberalismo significaria uma diminuição do papel do Estado, argumentando que se trata de uma reconfiguração de suas funções: do ponto de vista da discussão sobre o dinheiro, ele passa a ser uma espécie de polícia da moeda e dos salários, cuidando da disciplina relacionada a esses aspectos do funcionamento do sistema (p. 52).

Paraná demonstra ainda que há muitas continuidades entre as concepções do monetarismo de Milton Friedman, tornadas hegemônicas em matéria de política fiscal durante o neoliberalismo, e seus antecessores e sucessores na ortodoxia da teoria econômica (p. 69). Se o mercado moderno sempre precisou do Estado para regulá-lo e organizá-lo, no neoliberalismo o Estado passa a ser regulado pelo mercado, num cenário em que a economia aos poucos se liberta dos grilhões da sociedade (p. 70). A utopia do Bitcoin, analisada no Capítulo 3 do livro, é uma radicalização, que Paraná demonstrará no mínimo ingênua, dessa perspectiva neoliberal: a ideia de um dinheiro que, baseado na técnica e na cooperação no âmbito do próprio mercado, não precise da mediação da política para existir.

Movido por princípios ideológicos bastante condizentes com o individualismo neoliberal e, ao mesmo tempo, dialogando com demandas típicas, bastante generalizadas em nossa época - proteção e privacidade diante dos grandes conglomerados comunicacionais; desconfiança com relação ao papel do Estado em prol do interesse comum; exigência de transparência contra a corrupção etc. - o Bitcoin é fruto de uma ideologia “libertária”, baseada nos movimentos da hackers, cipherpunks, ciberativistas e criptoanarquistas. Ele emerge, então, como resposta às promessas não realizadas do neoliberalismo, mas uma resposta que busca radicalizar seus princípios, não questioná-los: dá-se, então, o que Paraná define como uma “trágica batalha entre o neoliberalismo utópico e o neoliberalismo realmente existente” (p. 83), com o Bitcoin representando uma busca pela realização idealizada dos fundamentos mais profundos que orientam o neoliberalismo e, por isso, se deparando com o muro da dinâmica concreta de funcionamento do capitalismo contemporâneo, que, independentemente do que se pregue em termos de ideologia, é hegemonizado pelo capital financeiro (que torna tudo, até mesmo o Bitcoin, ativo de especulação) e não prescinde do Estado.

Concretamente, o Bitcoin é uma moeda alternativa digital e um sistema de pagamento on-line, criado em 2009, que se diferencia por ter uma lógica de funcionamento descentralizada e competitiva, através da tecnologia do Blockchain, que permite a atualização em tempo real de todas as transações feitas com a moeda. Se sua formulação está conectada com uma ideologia neoliberal, isso fica ainda mais explícito pelo fato de a criptomoeda ter uma regra, inscrita em seu algoritmo-base, que limita a oferta total de Bitcoins em 21 milhões, a serem emitidas até 2140. Essa limitação é baseada na crença de que o valor do dinheiro depende apenas da quantidade de moeda ofertada, derivada da concepção monetarista de inflação proposta por Milton Friedman (p. 92).

A partir, portanto, da descrição do funcionamento do Bitcoin na prática, Paraná demonstra suas contradições e toda a inviabilidade de seu projeto como pretensa forma de dinheiro. Mais do que isso, estabelece suas relações com mecanismos de lavagem de dinheiro, demonstra os limites de sua gestão supostamente descentralizada (p. 129), percebe que ele funciona atualmente muito mais como ativo de especulação financeira (p. 138) e, finalmente, demonstra que, ao fim e ao cabo, o Bitcoin não pode ser considerado dinheiro. Ao levar à ideia de independência dos Bancos Centrais ao limite, quando propõe um dinheiro sem mediação estatal, os idealizadores do Bitcoin buscam construir um dinheiro apolítico, orientado por uma “regra impessoal, um protocolo, uma máquina” (p. 167). Acontece que em diversos pontos, os preceitos que orientam o Bitcoin aparecem como sendo excessivamente radicais, inclusive para os neoliberais no poder:

Daí o Bitcoin ser um filho “rebelde”, inesperado e um tanto perturbador, sob inúmeros aspectos, do neoliberalismo: ele nasce, em chave contraditória, como um produto, ao mesmo tempo, da intensificação e da crise desse, em favor de seus princípios ideais norteadores, mas em conflito direto com sua forma institucional “realmente existente” de governo, objetivada no par Estado-finanças. Em sua contradição monstruosa, o Bitcoin é, ao mesmo tempo, um indício da força e da fraqueza que constitui o regime neoliberal em nosso tempo (p. 171).

Concluída a pesquisa, Paraná decreta a impossibilidade de o Bitcoin cumprir as tarefas às quais se propôs: ao invés de substituir o dinheiro mundial, tem baixo volume e alcance de circulação; ao invés de produzir estabilidade monetária, é altamente instável devido ao seu papel como ativo especulativo; e, por fim, ao invés de garantir uma tutela descentralizada, a concentração de poder relativa entre seus usuários só cresce. Dito isso, o autor reforça a ideia de que a tentativa de neutralizar o dinheiro no capitalismo simplesmente não é factível (p. 305). O dinheiro é uma relação social mediada de várias formas pelo Estado e o Bitcoin, socialmente, não é dinheiro.

Paraná, por fim, buscando afastar-se de qualquer perspectiva tecnofóbica, aventa a possibilidade de uso de algumas das tecnologias presentes no Bitcoin (especialmente o Blockchain) para outros fins que pudessem colocar em xeque, ou trabalhar numa lógica distinta da dinâmica do capitalismo neoliberal. De fato, há um longo debate sobre até que ponto o uso de parte das tecnologias desenvolvidas nas últimas décadas pode ser operacionalizado para a construção de dinâmicas societárias diferentes daquelas nas quais elas foram desenvolvidas. Sem entrar no mérito dessa discussão, é certo que o livro aqui analisado nitidamente contribui para essa percepção: nenhuma transformação social relevante, menos ainda qualquer perspectiva de revolução, se faz meramente a partir do desenvolvimento e uso de novas tecnologias. Não há mudança substancial que não passe por novos valores, por novos mecanismos de decisão democrática, por outra forma de organização socioeconômica e por uma nova relação do Estado com a sociedade. Fora disso, qualquer tentativa de transformar um pilar fundamental da sociedade - como o dinheiro - de forma apolítica fracassará e, no pior cenário, contribuirá para radicalizar ainda mais os problemas do capitalismo neoliberal.

Referências

  • BENANAV, Aaron. Automation and the future of work - I. New Left Review, n. 119, Sep.-Oct., p.5-38, 2019.
  • DYER-WHITEFORD, Nick; MARTVIYENKO, Svitlana. Cyberwar and revolution: digital subterfuge in global capitalism. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 2019.
  • PARANÁ, Edemilson. Finança digitalizada: capitalismo financeiro e revolução internacional. Florianópolis: Insular, 2016.
  • PHILLIPS, Leigh; ROZWORSKI, Michal. People’s Republic of Walmart. London: Verso, 2019.
  • ZAVALETA MERCADO, René. Las masas en noviembre. In: ______ (Comp.). Bolivia hoy. México: Siglo XXI, 1983.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2021
  • Aceito
    27 Jan 2022
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