Acessibilidade / Reportar erro

Estado de exceção em perspectiva histórica e filosófica

GOUPY, Marie; RIVIÈRE, Yann. De la dictature à l’État d’exception: approche historique et philosophique. Roma: École Française de Rome, 2022

O termo “Estado de exceção” possui longeva historicidade e tem se tornado cada vez mais recorrente na linguagem contemporânea. Recorre-se a ele frequentemente para se apontar condições de vida política e jurídica na atualidade, ressaltando-se um fato ou um processo excepcional que aparenta estar se naturalizando na sociedade. De certo modo, essa perspectiva apresenta elos com uma noção teórica e prática mais precisa de Estado de exceção, mas não se resume a isso. Historicamente, a exceção é o meio pelo qual se busca defender a soberania ameaçada do Estado e de suas instituições, possibilitando mesmo a suspensão de alguns direitos e algumas garantias. De tal modo, o Estado de exceção está no limiar entre uma crise e práticas duradouras de governo, que podem, em última instância, se tornar ditaduras.

O Estado de exceção, contudo, é fruto de um Estado de direito, que formula suas previsões de emergência para os momentos mais críticos de sua comunidade. Logo, concerne a uma situação temporária de restrição de direitos e de concentração de poderes. Assim, o Estado de exceção é distinto de ditaduras e de Estados totalitários, uma vez que a restrição de direitos e a concentração de poderes são inerentes a essas situações.

Há vários analistas dedicados ao Estado de exceção como objeto de estudo, sobretudo nas ciências jurídicas. Em geral, não há abordagem que deixe de mencionar as reflexões do jurista e filósofo italiano Giorgio Agamben (2007AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2007.). Ao classificar o Estado de exceção como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal, o filósofo italiano expõe as áreas mais obscuras do direito e da democracia que legitimam a violência e a arbitrariedade, de uma forma tal que o poder de regulamentação e o controle não seriam mais apenas excepcionais, mas o paradigma dos governos.

A obra de Agamben, sem dúvida, deu maior visibilidade ao tema em função de sua notória repercussão. No entanto, há outros muito importantes estudos que carecem de mais atenção. Alguns exemplos incluem a pesquisa do historiador do direito francês François Saint-Bonnet (2001), que procura dissipar as sombras do abuso de poder em torno do direito público de crise; da cientista política norte-americana Nomi Lazar (2009LAZAR, Nomi Claire. States of emergency in liberal democracies. New York: Cambridge University Press, 2009.), que busca uma forma de superar os riscos da dualidade norma/exceção no Estado liberal; do professor de direito irlandês Alan Greene (2018GREENE, Alan. Permanent States of emergency and the rule of law: constitutions in an age of crisis. Oxford: Hart, 2018.), que explora o impacto da emergência permanente na validade das normas constitucionais; do jurista alemão Günter Frankenberg (2018FRANKENBERG, Günter. Técnicas de Estado: perspectivas sobre o Estado de direito e o Estado de exceção. São Paulo: Editora Unesp, 2018.), que reflete sobre as ambivalências do Estado de direito, a defesa da liberdade democrática e as práticas fundadas no direito de exceção; ou mesmo do jurista brasileiro Marcelo Tavares (2008TAVARES, Marcelo Leonardo. Estado de emergência: o controle do poder em situações de crise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.), que avalia os limites jurídicos das medidas de exceção no Estado de direto.

Algumas obras mais recentes têm apresentado interpretações mais objetivas sobre as manifestações dos Estados de exceção em certas abordagens, a exemplo da coletânea organizada por Gary Gerstle e Joel Isaac (2020GERSTLE, Gary; ISAAC, Joel (edits.). States of exception in American history. Chicago, IL: University of Chicago Press, 2020.), States of exception in American history, que enriquece o debate a partir de uma perspectiva que é pioneira na compreensão das políticas de exceção e emergenciais na história dos Estados Unidos, e o livro organizado por Antonio Gasparetto Júnior e Pedro Ivo Dias Tanagino (2020), Democracia e Estado de exceção: entre o temporário e o permanente, que apresenta leituras sobre a transição de um fator temporário para um permanente nos Estados de exceção.

Recém-publicada, a obra De la Dictature à l’État d’exception: approche historique et philosophique, organizada por Marie Goupy e Yann Rivière é mais uma publicação que contribuiu para entendimentos históricos e conceituais em torno da expressão Estado de exceção. Editado pela École Française de Rome, em 2022, o livro contém 24 capítulos que estão divididos em duas partes. A primeira, composta por 12 capítulos, remonta às formas históricas da exceção; a segunda parte, também composta por 12 capítulos, apresenta uma abordagem mais filosófica sobre os tempos históricos da exceção.

A composição da obra reúne um grande elenco de pesquisadoras e pesquisadores provenientes das mais variadas e relevantes instituições acadêmicas (École des Hautes Études en Sciences Sociales, Université Paris 1, Université d’Angers, Université de Bourgogne, Université de Montréal, Kingston University, Université Paris Nanterre, Université de Lyon, Université Panthéon-Assas, Institut Catholique de Paris, Università degli studi di Milano Biccoca, Université Libre de Bruxelles, Université Paris 8 e École Supérieure Fédérale d’Administration Publique), mesclando reflexões oriundas das áreas de história, ciência política, administração pública, sociologia, filosofia e ciências Jurídicas em seus trabalhos. Com destaque para a participação de importantes referências para o debate na área, como François Saint-Bonnet, mencionado anteriormente, Matthias Lemke, que organizou um dossiê sobre o assunto na revista Z Politikwiss, em 2018, e a própria organizadora Marie Goupy, autora de duas outras importantes obras sobre a exceção (2011GOUPY, Marie. L’Essor de la théorie juridico-politique sur l’État d’exception dans l’Entre-Deux Guerres en France et en Allemagne: une genèse de l’Etat d’exception comme enjeu pour la démocratie. Thèse de Doctorat (Philosophie), École Normale Supérieure de Lyon, Lyon, 2011. e 2016), que complementam a lista referenciada acima.

Resultante de um projeto iniciado em 2017 para promover um vasto estudo histórico sobre as formas do “Estado de exceção”, o livro foi produzido a partir de colóquios realizados em Paris (2017) e em Roma (2018). As reflexões nele contidas foram estimuladas pelos atentados terroristas ocorridos nos Estados Unidos, em 2001, e na França, em 2015, que, em especial, fizeram circular nos diálogos cotidianos a expressão “Estado de exceção”. Por isso, o projeto objetivou perscrutar elementos de compreensão sobre esse conceito e sua materialização em diferentes momentos históricos.

De la dictature à l’État d’exception oferece uma ampla leitura sobre a exceção no mundo ocidental e talvez seja o estudo mais completo sobre o assunto já publicado até o momento. De tal modo que o livro apresenta tanto perspectivas teóricas como estudos de caso.

A primeira parte do livro está subdividida em três momentos. No primeiro, os textos apresentam estudos de longa duração histórica que remetem desde o Estado de exceção na Antiguidade romana até sua abordagem na Era Moderna. Nesse sentido, Yann Rivière retorna aos institutos da ditadura e do iustitium em Roma para apresentar as fontes desse debate; Michelle Bubanice aborda o tema da exceção judiciária no contexto da Europa medieval; e Angela de Benedictis trata da violência da lei na época moderna. Já o segundo momento dessa primeira parte faz um recorte temporal entre a Revolução Francesa do final do século XVIII e as experiências do século XIX. Jean-Clément Martin enfoca a fase do Terror no processo revolucionário francês. Enquanto isso, Erwan Sommerer destaca uma transição da exceção revolucionária para uma exceção conservadora, e Jean-Claude Farcy e Thomas Beugniet seguem nessa mesma linha; o primeiro analisando a repressão à Comuna de Paris, na França, o segundo a legislação de exceção contra os anarquistas na França e na Itália na última década do século XIX.

Para encerrar a primeira parte da obra, seu terceiro e último momento contém capítulos que lidam com o século XX e o tempo presente. Sylvie Thénault o inicia com uma análise da exceção que é muito cara aos franceses, envolvendo a Guerra de Independência da Argélia. Augustin Simard e Jean-Claude Monod refletem sobre a exceção na teoria de algumas personalidades europeias. O trabalho de Simard abordas a exceção e o autoritarismo em Otto Kirchheimer, enquanto Monod trabalha os conceitos de ditadura em Lenin e Carl Schmitt. Por sua vez, Juliette Cadiot apresenta figuras do Estado de exceção no Império Russo e na União Soviética em um longo período, entre 1864 e 1941. Por fim, Nicolas Klausser, traz algumas reflexões jurídicas de tempo presente sobre o uso do instituto de Estado de urgência na França.

A segunda parte do livro oferece algumas interpretações mais teóricas para diferentes momentos históricos sobre Estado de exceção, o que acontece em quatro momentos que subdividem essa parte da obra. Esses textos são mais soltos, sem uma amarra territorial específica ou o destaque de contextos que se vinculam. O primeiro desses momentos nos convida a lidar com o Estado de exceção em suas formas transitórias e permanentes, além de outras formas discretas da excepcionalidade. Étienne Balibar se vale dos eventos de outubro de 1917, na Rússia, para pensar tempos revolucionários. Carlos Miguel Herrera oferece algumas notas de conceitualização jurídico-políticas dos regimes militares na Argentina. Isabelle Boucobza e Charlotte Girard refletem sobre o caso francês e os aspectos teóricos mais uma vez em torno do Estado de urgência. E Paolo Napoli apresenta uma provocação a respeito da Igreja Católica e a exceção discreta da pedofilia.

O segundo momento dessa segunda parte enfoca o Estado de exceção em suas crises do tempo e do espaço. O texto de Thierry Gontier é uma reflexão sobre as figuras do autoritarismo político no pensamento de Voegelin. A presença destacada de François Saint-Bonnet na obra sintetiza alguns de seus principais argumentos sobre os deslocamentos em torno do conceito de Estado de exceção na modernidade política. Enquanto o texto da organizadora Marie Goupy possui um título que também nomeia a obra como um todo, mas que se especifica no pensamento sobre a exceção para o jurista alemão Carl Schmitt.

O terceiro momento reúne três capítulos dedicados à temporalidade da exceção. Se Vittorio Morfino se insere nesse contexto apresentando a posição de Nicolau Maquiavel, Thomas Berns aborda as noções de golpe de Estado em Gabriel Naudé. E cabe a Ninon Grangé uma reflexão mais ampla sobre as temporalidades do Estado de exceção.

Por fim, o quarto e último momento da segunda parte que encerra a obra como um todo deixa à leitora e ao leitor inquietações sobre as possíveis abordagens para analisar o Estado de exceção. Rainer Maria Kiesow resgata as reflexões clássicas sobre o tema em Carl Schmitt para pensar a exceção entre a lei e o julgamento. Já a outra presença destacada na obra - Matthias Lemke - oferece um quadro analítico do Estado de exceção, uma reflexão entre a recuperação da democracia e a normalização do autoritarismo. A análise remonta aos cânones sobre a temática para contribuir com argumentos mais atualizados.

À guisa de conclusão, é muito importante ressaltar o texto com as considerações finais escrito pelo outro organizador da obra, Yann Rivière. Para leitoras e leitores que estão iniciando na temática de estudo sobre Estado de exceção, essas derradeiras considerações de Rivière apresentam uma arqueologia e a história da expressão, lançando luz sobre um objeto de análise que, por vezes, nos parece tão amplo, fluido e difícil de ser dimensionado. Por isso, curiosamente, é até mesmo interessante iniciar a leitura da obra pelo seu final, para quem almeja ingressar nesse debate estabelecendo um mapeamento acerca das possibilidades da expressão.

Em suma, De la dictature à l’État d’exception contribui para o debate com noções históricas, teóricas, filosóficas, jurídicas e práticas que nos alertam para uma crescente incorporação de medidas de exceção que, além de normatizadas, são normalizadas. Com análises relevantes em perspectiva histórica, os organizadores apresentam um avanço ao debate. O livro expressa uma robusta contribuição para a historiografia acerca das manifestações do Estado de exceção, tornando-se, assim, uma leitura importante para juristas, filósofos, historiadores e cientistas sociais em geral, que procuram caminhos mais concretos de compreensão das práticas de exceção e de suas incorporações em sistemas jurídicos de diferentes tempos e espaços.

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2007.
  • GASPARETTO JÚNIOR, Antonio; TANAGINO, Pedro Ivo Dias (orgs.). Democracia e Estado de exceção: entre o temporário e o permanente. Curitiba: CRV, 2020.
  • GERSTLE, Gary; ISAAC, Joel (edits.). States of exception in American history. Chicago, IL: University of Chicago Press, 2020.
  • GREENE, Alan. Permanent States of emergency and the rule of law: constitutions in an age of crisis. Oxford: Hart, 2018.
  • GOUPY, Marie. L’État d’exception ou l’impuissance autoritaire de l’Etat à l’époque du liberalisme. Paris: CNRS, 2016.
  • GOUPY, Marie. L’Essor de la théorie juridico-politique sur l’État d’exception dans l’Entre-Deux Guerres en France et en Allemagne: une genèse de l’Etat d’exception comme enjeu pour la démocratie. Thèse de Doctorat (Philosophie), École Normale Supérieure de Lyon, Lyon, 2011.
  • FRANKENBERG, Günter. Técnicas de Estado: perspectivas sobre o Estado de direito e o Estado de exceção. São Paulo: Editora Unesp, 2018.
  • LAZAR, Nomi Claire. States of emergency in liberal democracies. New York: Cambridge University Press, 2009.
  • SAINT-BONNET, François. L’État d’exception. Paris: Presses Universitaires de France, 2001.
  • TAVARES, Marcelo Leonardo. Estado de emergência: o controle do poder em situações de crise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2023
  • Aceito
    14 Jul 2023
Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília Instituto de Ciências Sociais - Campus Universitário Darcy Ribeiro, CEP 70910-900 - Brasília - DF - Brasil, Tel. (55 61) 3107 1537 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistasol@unb.br