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Entrevista com Ana Luísa Janeira

Entrevista com Ana Luísa Janeira

Universidade de Lisboa

Tania Mara Galli Fonseca

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

" O que caracteriza o conhecimento não é a confirmação; é a informação".

" A interdisciplinaridade é uma utopia. É uma atitude, um desejo, uma propensão, um posicionamento".

" Nós nunca fechamos um caminho, uma investigação".

Ana Luísa Janeira é filósofa, professora associada do Departamento de Química da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, tendo-se doutorado em Filosofia Contemporânea pela Université de Paris I. Esteve em Porto Alegre, como professora visitante do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nos anos de 2001 e 2002, tendo sido entrevistada nesta última visita, quando também foi convidada a participar de um projeto de pesquisa integrado que vem sendo desenvolvido no âmbito do Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre, sob a coordenação da professora Tania Mara Galli Fonseca.

Seu percurso de pesquisa inclui um projeto de identidade epistemológica inerente a espaços de produção científica. Para tanto, parte do pressuposto de que o universo teórico moderno tem condicionado a planificação e edificação de espacialidades próprias, ligadas às características singulares dos seus objetos e métodos. Procura determiná-las no interior de um processo orientado para a construção de um modelo teórico, capaz de fornecer uma perspectiva inovadora sobre essas estruturas cognitivas e materiais, com aplicação direta a casos concretos, de modo a testá-lo no confronto com textos e imagens significativos. Define, desta forma, relações entre conjuntos heterogêneos – como o são as espacialidades e as textualidades – no sentido de caracterizá-las, histórica, científica, filosófica e epistemologicamente. O modelo teórico e a metodologia processual afastam a exigência de manipular um corpus biblio-iconográfico pretensamente completo. Na verdade, o conjunto lacunar de fontes nunca apresenta nada de semelhante a qualquer valorização, maior ou menor, através de diferenças originadas numa hierarquia de testemunhos. Apesar de determinante, a representatividade dos documentos não significa terem importância por critérios de autoridade.

Assim sendo, com base em pressupostos marcados pelas exigências interdisciplinares da História e da Filosofia das Ciências, definiu um percurso teórico-metodológico com três objetos e três tempos: estruturas institucionais dos Laboratórios de Química, com relevo para a organização do espaço, produção do discurso científico e sistema epistêmico; condições de emergência e sobrevivência dos Jardins Botânicos e dispositivos dos Museus de História Natural.

Foi a partir do projeto CulturaNatura. Do Passado para o século XXI – 500 anos de convívio com o Brasil, iniciado em 1997, que considerou importante alargar o já referido modelo teórico ao espaço da cidade, no sentido de determinar lógicas de emergência e de implementação dos saberes e instâncias científicas no contexto da malha urbana.

É a partir desse enquadre que desenvolvemos a entrevista com Ana Janeira, contando com o auxílio dos estudantes de psicologia da UFRGS e bolsistas de iniciação científica Luís Artur Costa e Danichi Hausen Mizoguchi, os quais se encontram diretamente implicados no projeto de pesquisa aqui referido e que se intitula "Desterritorializações no espaço-tempo da loucura: análises iniciais do Hospital Psiquiátrico São Pedro".

Tania: O nosso interesse é o de te escutar em relação à tua trajetória como filósofa pesquisadora e podermos fazer algumas articulações e nexos na relação da Filosofia conosco como psicólogos sociais e, inclusive, falar algo dessa nossa última invenção, relativa ao projeto de pesquisa a ser implementado, aqui em Porto Alegre, junto ao Hospital São Pedro. Então te deixamos à vontade para falar disto. A gente vai conversando...

Ana Luísa Janeira: A primeira coisa que acho importante dizer é que eu nunca, em trinta e tantos anos de prática, de investigação e de ensino em Filosofia, duvidei da sua utilidade. Ao longo destes anos, várias vezes encontrei pessoas (não digo muito freqüentemente, mas algumas) que duvidam da utilidade da Filosofia. E curiosamente são filósofos! No meu meio, que é o meio de uma Faculdade de Ciências, nomeadamente um Departamento de Química, onde estou há vinte e tal anos, a situação é um tanto diferente. Então penso que isso decorre da forma como se entende o papel da Filosofia relativamente às outras áreas do conhecimento e da variedade de objetos não tradicionalmente filosóficos que, no caso, eu tenho usado. Não concebo a Filosofia como legitimadora, isto é, como algo que fecha um conjunto de práticas, um conjunto de conhecimentos, um conjunto de atitudes, e que claudica no que está sendo feito, por exemplo, no caso das ciências. Não desejo que ela tente, tão-só simplesmente, justificar e legitimar, por exemplo, a questão dos clones, ou a questão dos transplantes, ou outras questões do ambiente. Não. Acho, sim, que ela tem, na sua tradição, algo que é profundamente questionante, crítico e reflexivo. E é neste aspecto que sinto que é muito interessante e bom, no contexto de interdisciplinaridade, que a filosofia interrogue, realmente, vários e múltiplos objetos.

Concretamente, confesso que sinto polêmica e problemática a relação da Filosofia com a Psicologia. Talvez por ter sido o último ramo a sair... Eu tenho certa dificuldade, e penso que isso é freqüente. Não sei o que se passa aqui no Brasil, mas, muitas vezes, no contexto da Europa, surgem dificuldades. O fato da Filosofia, no princípio histórico e depois ter sido um aglomerado, de que a Psicologia foi a última a sair dificulta o diálogo. Agora, como já trabalhei um conjunto de objetos, não me parece impossível que o objeto Psicologia Social e Institucional também entre na minha prática. Nomeadamente no caso em que esta problemática é concretizada e materializada em situações de espaços institucionais, como é o caso do projeto de que a Professora Tânia falou, a questão do São Pedro Cidadão. E, neste aspecto, nós temos ali uma instituição, numa perspectiva onde as psi's (a psiquiatria, a psicologia, a psicanálise) criam um objeto que é suscetível de ser tratado, penso eu, pela metodologia que tenho usado, metodologia que decorre sempre, é bom ressaltar, de um modelo teórico.

Não vejo possível abordar um objeto, que não tenha por trás, de fato, uma questão muito concreta que é: este objeto nada diz, nada fala, nada supõe no conjunto da história do conhecimento se nós não soubermos fazê-lo falar a partir de um modelo teórico. Talvez pelo fato de trabalhar numa Faculdade de Ciências, essa questão para mim é muito forte. Eu me pergunto sempre, e ainda hoje pela manhã eu estava a pensar, quando estávamos a conversar lá na reunião que decorreu no Hospital Psiquiátrico São Pedro: qual é o modelo teórico das pessoas? É por isso que penso que vai ser importante, por exemplo, no caso desta pesquisa, uma reunião com a equipe de pesquisadores, para que se perceba se há um modelo teórico comum. Sem um modelo teórico, eu diria sem teorização, sem princípios teóricos, dificilmente uma equipe funciona. Isto sugere-me lembrar essa situação do ano passado: passei por aquele edifício, o Hospital São Pedro, achei-o muito interessante, não sabia o que era, perguntei, disseram que era um hospital psiquiátrico, depois eu vim a saber que em outros tempos ali houve uma aldeia Guarani, e como eu trabalhei a questão das Missões e das Reduções Jesuíticas, das aldeias jesuíticas dos Sete Povos, fui muito sensível à imagem de exclusão. Parece que aquele espaço é um espaço pré-destinado à exclusão. Porque os índios foram excluídos, e, posteriormente, os loucos. E agora, há todo um processo, de fato, de integração, que faz parte, às vezes de uma forma que nem sempre é tão integradora quanto se deseja, ou quanto as pessoas pensam que é, por que o sistema capitalista, uma das coisas que o caracteriza é o ato de excluir todos aqueles que não são produtores, e, na verdade, nesse aspecto, nós temos ali um caso que merece ser estudado e de certeza que vai fornecer dados extremamente interessantes. Até para o conhecimento, por um lado, da história da cidade de Porto Alegre e do outro lado, de como é que a Psiquiatria e as ciências afins que trabalharam a loucura se posicionaram com crises e rupturas. Agora, no que respeita o papel do filósofo do espaço, porque neste caso eu acho que é fundamentalmente a sua intervenção, trata-se de trabalhar com os conceitos de espaço e tempo. A Filosofia é detentora de uma tradição que os integra, pelo menos desde Aristóteles, se não antes, e que veio a ser realmente reelaborada modernamente por Kant, e nós temos, de fato, um legado. O que caracteriza o espaço e o tempo depende um pouco dos filósofos. Por exemplo, no caso do Leibniz, o espaço é a ordem da coexistência e o tempo a ordem da sucessão. Ora, isto tem implicações na abordagem de uma instituição, por que podemos pegar numa instituição como esta, a psiquiátrica ou outra, segundo uma ou outra ordem. Na ordem da sucessão, é fundamental o requisito, digamos, de uma área do conhecimento como a História. Aqui creio que iremos trabalhar mais na perspectiva da ordem da coexistência, para vermos como, espacializando aquela instituição, surgem determinados momentos onde uma figura, por exemplo, de médico, coexiste com determinada área do conhecimento, psiquiatria ou psicologia, que teve uma determinada influência, e uma determinada construção arquitetônica que veio corresponder a isso, incluindo certa legislação. Isto é, penso que devemos poder fazer, e vai ser interessante em termos de fontes, conjugar fontes muito variadas e interdisciplinares que nos permitam definir um dispositivo onde entram elementos, como, por exemplo, uma técnica de cura, relacionada com um determinado decreto ou com determinado estatuto da Psicologia em relação à Medicina ou à Psiquiatria. É natural que, em determinados períodos, por exemplo, a Psicanálise tenha tentado impor-se, e que tenha encontrado, por exemplo, uma Psiquiatria behaviorista, que se contrapõe. Isto gera situações que é interessante misturar e mapear com outros tipos de fontes. O trabalho será tanto mais interessante quanto conseguirmos descrever as esquadrias da razão relativamente à loucura, que se processa num determinado espaço e num determinado período de tempo, e simultaneamente vermos que, para definirmos essas esquadrias, essas réguas e regras (tem a mesma origem, não é?), como é que as réguas da razão e a regulamentação das normas interferiam para que um comportamento seja considerado normal ou anormal.

O patológico e o normal decorrem de uma série de posicionamentos, dos quais o próprio edifício, na medida em que enclausura, que seqüestra, que fecha, também contribui. Um dos aspectos interessantes do trabalho será exatamente este tipo de contributo, fazer interferir o edifício construído, o espaço construído no conjunto de processos de danação da norma, como diria Roberto Machado. Isto, então, pode atuar, pode intervir, e penso que é um dos aspectos que poderá ser interessante no trabalho. E evidentemente que a Psicologia Social, através dos praticantes que fazem parte do conjunto do projeto poderá beneficiar, contribuir e dar elementos para a própria elaboração epistêmica deste objeto.

Agora, o que também eu penso é que, de fato, um aspecto importante da parceria da filosofia com as outras áreas do conhecimento é que cada um de nós saiba muito bem a área onde se move. Não acredito que a interdisciplinaridade seja possível sem que cada um domine muito bem a sua própria disciplina. E não temos nada que transgredir os limites da nossa disciplina. Quer dizer, acho que sim que, sob certo aspecto, temos que transgredir, mas acho que cada um saiba muito bem sobre o seu domínio. Por exemplo, no contexto da Psicologia Social seria interessante perceber o que aquele objeto, o Hospital Psiquiátrico São Pedro, significa. Porque eu, por exemplo, vejo uma questão de espaço, vejo uma questão de tempo, e isto faz parte dos conceitos da área da filosofia. O que eu penso é que aos psicólogos, no caso, beneficiará saber como aquele objeto pode ser trabalhado. E é isso que eu penso que vocês terão mais propensão, e evidentemente, mais competência para fazer.

Tania: Ana, hoje pela manhã me agradou muito te escutar, a respeito da idéia de que não se fecha uma pesquisa, de que não se totaliza o objeto em um olhar unificador e definitivo, ou, enfim, de esgotamento. Gostaria que falasses desta questão do olhar do pesquisador e da própria precariedade do mesmo frente à existência da coisa pesquisada.

Ana Luisa Janeira: Claro que isso aconteceu em relação à intervenção de uma ou duas pessoas que, durante a reunião que levamos a efeito no Hospital, viam com bons olhos esta intervenção da filosofia na medida em que ela poderia corresponder a um fechamento. O que aliás corresponde a algo que talvez aconteça também aqui no Brasil, mas que acontece em países da Europa, Portugal e França. A filosofia vem no fim da formação média. Eu não sei... vocês no secundário tem filosofia?

Artur: Em geral no primeiro, segundo e terceiro ano do segundo grau.

Ana Luisa Janeira: Tem, não é? Mas é no fim. Com que idade?

Artur: A partir dos quinze.

Ana Luisa Janeira: Exato. Isto é a tradição francesa. A Inglaterra não tem filosofia, a Alemanha não tem filosofia no secundário. Mas Portugal, fiel à tradição francesa, também tem. E isso tem a ver com o modelo teórico do conhecimento, que é as várias áreas do conhecimento e, no fim, a filosofia. Aliás, o Hegel representa bem dizendo que, ao cair da noite, Atena desce, transformada em coruja e, a filosofia, como um manto noturno, cobre o fim do dia. Quer dizer, corresponde à plenitude do fim do dia. Como que uma espécie de um manto nebuloso, escuro, complexo, que terminava o dia.

Ora, a minha visão da filosofia não tem nada a ver com isso, e é uma questão que não é só da filosofia, é uma questão do próprio conhecimento. Nós nunca fechamos um caminho, uma investigação, se é científica , com a intenção de ter terminado, fechado um objeto. O que caracteriza o conhecimento não é a confirmação, é a infirmação. É o aspecto questionante do conhecimento que é realmente chave, e então, por outro lado, este é um aspecto chave e eu penso que importante para a interdisciplinaridade. Cada disciplina concorre, nenhuma delas é senhora do objeto, nenhuma sabe mais sobre um objeto que as outras, e todas concorrem para uma produção do objeto. Mas, outro aspecto é a questão de que, nesta metodologia que será interessante, a meu ver, aplicar ao Hospital Psiquiátrico, como a outros objetos, é a questão de que não é pelo fato de nós termos um levantamento exaustivo de um corpus que nós conhecemos melhor este objeto. Por vezes, há investigações que se beneficiam de ter um corpus lacunar. Não há a preocupação de um conhecimento de todas as fontes, um conhecimento de todo o material, mas de definir que a investigação vai encarar o objeto em determinados momentos históricos, em determinada situação de ruptura. A arqueologia e a genealogia de Michel Foucault trabalham muito com as rupturas, as mudanças em questão. Eu teria que dizer que não é preciso realmente ter um levantamento completo de um corpus. Agora, nós também simultaneamente temos de ser humildes, e até mesmo reconhecedores dos nossos campos limitados de atuação e de conhecimento , que nós só podemos concluir no interior do corpus. Porque se um corpus é lacunar, nós não devemos concluir para o todo. Nós concluímos e exploramos os materiais tendo a certeza do que estamos a dizer e de quanto é rigoroso de acordo com aquele corpus. E que pode sempre aparecer um documento que invalide para outro período, o período que nós conhecemos. Eu acho que o interessante nisto é que os objetos ficam abertos, nunca vai haver um fechamento e um enclausuramento do objeto, mesmo quando se trata do processo de clausura dos hospitais psiquiátricos, e que acentua uma capacidade de se ver o contrário. Simultaneamente, outras áreas do conhecimento podem fornecer outras informações. E isto, é uma das coisas que, provavelmente, como uma equipe interdisciplinar, nós temos as condições de conseguir. Mais do que se estivermos fechados, continuados, delimitados e delimitantes, com uma área de conhecimento única.

Tania: Mas uma das coisas que a gente tem observado é que a interdisciplinaridade às vezes é praticada como uma justaposição, e não como um elemento que vá perturbar visão do outro, uma alteração na própria visão disciplinar. Então produzem-se justaposicões de olhares, em que um não perturba o outro. Configurações de saberes organizados em torno de um centro, de eixo organizador , estrutura hierárquica de circulação de saberes e poderes. Como vês a questão da interdisciplinaridade relacionada ao processo de diferenciação das disciplinas interligadas?

Ana Luisa Janeira: Eu comecei, há quarenta anos, a utopia da interdisciplinaridade. Eu acho que é uma utopia. Ninguém poderá talvez dizer, com rigor, que faz um trabalho interdisciplinar. A interdisciplinaridade é uma atitude, um desejo, uma propensão, um posicionamento. Mas, de fato, é muito complicado. Primeiro, porque o que caracterizou a modernidade foi a criação de disciplinas, disciplinas nos dois sentidos, de área de conhecimento e de regulamentação. A palavra disciplina tem estes dois sentidos. E, aliás, ela foi usada a partir do século XVIII. Os Estados, quando criaram, por exemplo, colégios, a criação do colégio dos nobres na Europa, dos vários colégios de nobres, era para disciplinar os nobres. Disciplinar. Eles estavam habituados geralmente a andar de cavalo, tinham a prática da guerra, mas, geralmente, também eram pessoas que aprendiam línguas, uma certa educação musical, mas, por exemplo, não eram sujeitos a um processo de treinamento. E os colégios de nobres aparecem na Europa no sentido de discipliná-los. Porque a guerra moderna é uma guerra disciplinada, é um certo modelo de guerra prussiano e, por esse modelo, o nobre deveria ser disciplinado. E, por aí, aprende ciências. Ciências são ensinadas aos nobres nos colégios para que eles estejam disciplinados. Essa coisa que é a modernidade era um conhecimento que vinha a ser disciplinador. A razão tinha de regulamentar, de normalizar as atitudes. E, então , nós somos a ponta avançada de uma tradição de disciplinas. Evidentemente que a partir do século XIX, e de movimentos sociais como o dos hippies e o de maio de 1968, as pessoas quiseram acabar com as disciplinas. E, então, se fala da interdisciplinaridade, quando quase ninguém a pratica. Porque a prática da interdisciplinaridade pressupõe que nós descentralizamos o saber e o poder. Nenhuma disciplina é mais poderosa do que a outra, nem sabe mais. É muito complexo, porque é isso, nós nunca podemos dizer que, frente a determinado objeto, a Física sabe mais que a Psicologia, ou que a Medicina é mais poderosa do que a Biologia. Ora, como se trata de uma descentralização do saber e do poder, só realmente numa atitude muito crítica e muito despojada é que a consegue. A imagem que eu acho realmente mais interessante e mais significativa, e ainda não encontrei melhor, é a do prefácio de Mil Platôs, onde se fala do rizoma. Nesta obra, nesta metáfora, eu acho que se encontra a possibilidade de percebermos porque se justapõem e não se intersectam e, como aquilo que foi justaposto, não é interdisciplinaridade. Tudo o que foi justaposto é pluridisciplinaridade, isto é, é realmente o símbolo, e eu penso que isto já é um grande avanço, que várias áreas do conhecimento encarem um objeto e que cada uma delas produza, no interior de si mesma, determinado enfoque do objeto. E que, juntando a visão da Medicina, mais a visão da Biologia, mais a visão da Matemática, a visão da Filosofia, da Psicologia, da História, este objeto fique enriquecido. Isto é o que acho que seja a pluridisciplinaridade. Deleuze fala como o rizoma é um caule; ele diz que a interdisciplinaridade é, de fato, um caule, não é uma raiz. E, além da pluridisciplinaridade, quando nós só trabalhamos no interior de uma disciplina, então temos a raiz aprumada, a raiz fasciculada e o rizoma. A raiz aprumada correspondendo a uma tradição de disciplinas, a raiz fasciculada correspondendo à pluridisciplinaridade e, então, a novidade do rizoma, que é um caule, que nós não sabemos nunca como é que ele vai se desenvolver, ele desenvolve-se aleatoriamente, e que é o caso, por exemplo, do caule do lírio, que nós nunca sabemos qual é o eixo fundamental do desenvolvimento em um rizoma, e ele vai acrescentando-se, vai diversificando-se, vai gesticulando para um ou outro lado, mas esses eixos intersectam-se uns nos outros. Isto é difícil. Agora, o fato de ser difícil não permite realmente que, com rigor, se questione a interdisciplinaridade, e é o que está acontecendo. O que acontece há uns anos, já desde o final do século XX, é que as pessoas, como não conseguem fazer os instrumentos, tendem a voltar todos às disciplinas básicas. E estão a voltar. Precisamente face ao insucesso, ou face às dificuldades que a interdisciplinaridade tem e, em vez de segmentar e avançar, melhor ou pior, usam a palavra, as vezes e, na maior parte dos casos, dizem que é muito difícil.

Tânia: Nós temos tido interesse pela questão do "fazimento" do mundo, um olhar de inflexão ontológica, olhar marcado pela importância do tempo enquanto processualidade. Considerando a tradição da modernidade, que colocou a razão como o pivô central do edifício do conhecimento, expulsando e desprezando outras vias de acesso e de construção de saberes, eu pergunto: Como se conhece e aprende? gostaria que falasses algo destas questões, uma vez que temos colocado em análise a problemática da cognição desde pressupostos que a dissociam do processo de subjetivação. Para nós, é legítimo conceber a subjetivação imbricada ao processo de objetivação do mundo.

Ana: Eu acho que isto é muito psicológico, eu não coloco exatamente nessa posição, mas respeito. Eu teria de dizer algo. O que a razão fez de nós foi o que a gente deixou fazer. Não é por acaso que, no final do século XVIII, se impõem as chamadas luzes da razão. Iluminismo. Muito curiosamente, no Rio de Janeiro, quando lá estive recentemente, tive a felicidade de poder ver uma exposição sobre a razão, no contexto da criatividade espanhola; eu não sei exatamente o título. Era uma exposição que estava no Museu de Belas Artes e eu fiquei fascinada porque seu motivo era o espelho, e a exposição começava com uma sala sem palavras, eu presumo que não tivesse palavras, e tinha o buxo todo muito bem aparado de um jardim francês. O que esta imagem realmente demarca é que a razão é a questão da esquadria, a questão da régua, a questão da regulamentação. E nós, precisamos disto para controlar; é também uma questão de poder, a relação de saber e poder é incrível, realmente. O controle da razão se impunha e eu não sei se é intuição. Mesmo que não seja a intuição, são um milhão de outras coisas que não são razão. Eu também não acho que é assim: agora a gente vai dizer não é razão, é intuição, ou é razão mais a intuição. É muito mais coisas! É todo o afeto. É toda a postura, é todo o corpo que intervém no conhecimento, é todas as atitudes, é todas as formas como nós intervimos no conhecimento. Eu acho que o dualismo razão/intuição não me agrada. Ainda é muito redutor e muito bipolarizante, e acho que temos de ultrapassar os bipolarismos. Agora, de certeza, qualquer um de nós nem sequer precisa ler muitos livros. Vivenciou coisas ao longo de sua vida em que intervieram elementos que não são unicamente razão.

PRINCIPAIS PUBLICAÇÕES DA AUTORA

. JANEIRA, A. L. Conhecer Simone Weil. Braga: Livraria Cruz, 1967.

. ______ A Energética no pensamento de Teilhard de Chardin. Braga: Livraria Cruz, 1978.

. ______ et al. Sobre as Ciências e as Tecnologias. Lisboa: Didactica Editora, 1980.

. ______ Sistemas epistémicos e ciências. Do Noviciado da Cotovia à Faculdade de Ciências de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1987.

. ______ Jardins do Saber e do Prazer. Jardins Botânicos. Lisboa: Edições Salamandra, 1991.

. ______ Fazer-Ver para Fazer-Saber. Os Museus das Ciências. Lisboa: Edições Salamandra, 1995.

. ______ et al. Demonstrar ou Manipular? O Laboratório de Química Mineral da Escola Politécnica de Lisboa e sua época (1884-1894). Lisboa: Livraria Escolar Editora, 1996, 29-51.

. ______ Divórcio entre cabeça e mãos? Laboratórios de Química em Portugal (1772-1955). Lisboa: Livraria Escolar Editora, 1998, 8-9, 119-126,143-150,189-216.

. ______ O regresso do sagrado. Lisboa, Livros e Leituras, 1998.

. ______ (Org.) Gabinete de Curiosidades. Lisboa, Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL), 1999.

. Além de 80 artigos em revistas portuguesas e estrangeiras.

Recebido: 15/8/2002

Aceite final: 17/12/2002

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2003
  • Data do Fascículo
    Dez 2002
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