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Editorial do número especial

EDITORIAL DO NÚMERO ESPECIAL

Não vale a pena economizar a vida para não gastar: notas introdutórias

Maria Elizabeth Barros de Barros

Universidade Federal do Espírito Santo

É no âmbito das políticas em curso nas associações de pesquisa e nos programas de pós-graduação que nos colocamos para pensar no contemporâneo os modos de produção e avaliação no campo da educação. A valorização e a sustentação de um processo de avaliação em uma sociedade democrática depende de seus pares, mas, sobretudo do retorno construtivo de seus resultados. É com esse propósito que se produziu esse número especial da Revista Psicologia & Sociedade, que é fruto dos debates que temos travado no âmbito das universidades onde trabalhamos. Reúne trabalhos produzidos por integrantes do Grupo de Trabalho da Associação Nacional Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (GT-ANPEPP), "Subjetividade, conhecimento e práticas sociais" e parceiros que vêem lutando pela criação de novas práticas de avaliação e produção nas universidades. Práticas que propõem projetos para outros modos de educação que coloquem em funcionamento o que é inerente ao vivo: sua capacidade de criar a si e ao mundo, incansavelmente.

É, também, uma revista-resistência, não como simples reação, mas como afirmação de um novo modo de existência, recusando a petrificação de certas formas de funcionamento social/político que nos sufocam, condenando a vida à sua contração. Cada autor pretende enfrentar a cada dia a indiferença da formação especializada e ascética que tem dominado as práticas nas universidades.

Perseguimos um modo de ser trabalhador da educação, um novo modo de estar com o outro, com outros, de se misturar a eles; de ver, sentir, compartilhar, principalmente ansiando aquilo que ainda não somos e o que estamos em via de tornarmo-nos. O que dizemos nessa revista não se situa no lugar da falta, da cobrança e muito menos dos julgamentos, mas, como nos indica Santos (1989), trata-se de um dizer que seja momento de produção, de afirmação, que surge no bojo de um movimento de expulsão, de exorcismo das forças da mente que se apropriam da energia vital. Momento de luta feroz e surda contra as forças da morte que tentam ir contra o sopro de vida; é des-solidarizar-se das forças da morte. Dizer já é, portanto, um início da vitória.

É esse exercício do dizer que buscamos praticar nesse número da Revista Psicologia & Sociedade. Esperamos produzir esse dizer que é grito que se descobre forte e deseja festejar a vida, fazendo dos academicismos de todas as ordens um acontecimento, uma guerra, não uma guerra reativa que objetiva vencer uma disputa, mas uma guerra que diz não aos mil fascismos que rondam nossas condutas cotidianas. Uma revista que tem por tarefa deixar-nos invadir pelos movimentos de nosso tempo dada a indissociabilidade entre processos de mutação subjetiva e social. É um convite para que nos coloquemos à escuta do contemporâneo buscando construir novos laços entre os humanos.

Linhares (2001, p. 9), ao lembrar Milton Santos como arauto do alerta àqueles que militam nas universidades, afirma que é necessário "[...] compartilharmos com outros pesquisadores da urgência de construirmos pontes entre nossas análises e esta realidade que nos desafia a recriá-la", pois, as práticas instituídas no âmbito da educação vêm

[...] exibindo um esgotamento da razão e da política hegemônica que os 'donos do poder' declaram como a única saída em confronto com o caos e a barbárie. Para superar a dicotomia deste dilema, importa escutar um clamor que dele parte para desentranharmos, com nossa vidas, outras formas de política, só viáveis se formos também capazes de forjar conceitos fecundantes de uma realidade mais includente, mais plural e mais solidária (LINHARES, 2001, p. 10).

Ao longo das conversas dos autores, as tensões entre o crescente volume de encargos, o produtivismo, a hegemonia de uma racionalidade e de uma política que despreza os humanos e a própria vida, a responsabilidade da universidade na criação de outros processos de formação, de produção e de avaliação, foram alguns eixos por onde as discussões transitaram.

Os aqui reunidos nesse número da Revista Psicologia & Sociedade têm o sabor das práticas e das reflexões de pesquisadores que afirmam, permanentemente, uma forma criadora de fazer ciência. Criação acadêmica e política eivada de uma suavidade, de uma sensibilidade que busca a construção de novas condições subjetivas que contemplem um mundo solidário.

Cabe destacar que nossos trabalhos se situam numa experiência de fronteira entre os domínios da psicologia e da política, nos convocando, permanentemente, a problematizar esses limites que, ao nosso ver, estão conectados e não separados. Afirmamos essa interface psicologia-política, pois,

Lidamos com modos de produção de subjetividade que correspondem, indissociavelmente, a modos de experimentação e de construção de realidade. Estamos engajados com modos de criação de si e criação do mundo que não podem se realizar em sua função autopoiética sem o risco constante de experiência de crise. (Uma psicologia) em sua relação com os processos de produção de subjetividade implica, necessariamente, que nos arrisquemos numa experiência a um só tempo de crítica e de análise, ou como poderíamos dizê-lo, critico-analítica das formas instituídas, o que nos compromete politicamente (RAUTER; PASSOS, BENEVIDES DE BARROS, 2002, p. 7).

O vivido hoje nas universidades, frente as atuais políticas publicas para a educação, não deve produzir em nós sentimentos de perplexidade, pessimismo, apatia e/ou sensação de saturação, mas desejo de produzir outros modos de trabalhar, produzindo bifurcações no fluxo de pensamento hegemônico no âmbito das Instituições Federais de Ensino Superior. Ao invés de acuo, tais processos precisam produzir desejo de criação, acionando outros devires, outros modos de ser trabalhador na educação, outras formas militantes nas universidades públicas brasileiras.

Os pesquisadores que participam dessa revista apresentam seus caminhos singulares de abordar a temática das transformações por que passa a Universidade Brasileira na atualidade. Indicam a tendência da subordinação gradativa dessa instituição a uma ideologia que fundamenta-se em políticas educacionais, de pesquisa, assim como a própria gestão universitária, com o objetivo de cumprir metas produtivistas. Destacam o processo gradativo por que tem passado essa instituição, que vem perdendo seu caráter de instituição geradora de conhecimento independente, laico e reflexivo para se converter em produtora de conhecimento tecnocrático, o que se configura como um fator de crise que se abate, principalmente, sobre a área das Humanidades na Universidade.

Em seu instigante ensaio sobre os modos de avaliação que a universidade brasileira tem priorizado, Décio Rocha e Marisa Rocha referem-se a um produtivismo que tem se tornado um instrumento de política educativa que afirma modelos cognitivos e culturais marcados por uma racionalidade individualizante e homogeneizadora, com conseqüente sentimento de solidão e esvaziamento dos espaços de discussão e produção coletivas. Os rumos atuais das mudanças da educação superior no Brasil tem, segundo os autores, instituído dispositivos que privilegiam ligações funcionais e pragmáticas dos trabalhadores com seu processo de trabalho. "Trazem a produtividade, a competência, a autonomia, a competitividade como palavras de ordem no mercado de saberes, gerando isolamento, fragmentação e tédio no cotidiano das práticas acadêmicas", afirmam no trabalho "Produção de conhecimento, práticas mercantilistas e novos modos de subjetivação", aqui apresentado.

Denyse Meirelles, por sua vez, em seu texto "Atuando em contexto: o processo de avaliação numa perspectiva inclusiva", afirma que é preciso repensar a avaliação educacional, questionando os processos de avaliação hegemônicos e propor uma avaliação processual que abandone o diagnóstico dos especialistas. O esgotamento da racionalidade de uma política educacional como cálculo no indivíduo é anunciado pela autora que afirma uma outra lógica apoiada na diversidade, na criação, ou seja, na expansão das infinitas expressões da força da invenção.

O artigo de Esther Arantes, Lilia Ferreira Lobo e Tania Mara Galli Fonseca, intitulado "Pensar: a que se destina? Diferentes tempos de uma reflexão sobre a morte anunciada do educador", aponta para hegemonia de uma racionalidade que deveria ter se limitado apenas a certos usos e a certos propósitos, sem a pretensão de se constituir como único modo legítimo e verdadeiro de leitura do mundo. "Não se trata de negar validade ao modelo das ciências da natureza ou à matemática, mas apenas de reconhecer que as ciências humanas e sociais não podem se reduzir ao discurso da razão abstrata, pretendendo a construção de verdades a-históricas e universais. Quanto mais a razão se fecha em um modelo único e absoluto, maior o empobrecimento do pensamento, a domesticação da vida e a intolerância à diferença", é o tese que defendem.

Margarete Axt, no seu texto "O pesquisador frente à avaliação na pós-graduação: em pauta novos modos de subjetivação", não questiona a importância da avaliação como condição necessária para o crescimento da excelência na Pesquisa e na formação Pós-Graduada, considera que não é, contudo, condição suficiente. Como nos indica "...cabe criar condições de possibilidade na instância micropolítica para, com base em avaliações coletivas de conjunto, propor estratégias de intervenção que trabalhem no engendramento de novos agenciamentos, na contracorrente do pensamento homogêneo, individualizante e de competição excludente. Tais movimentos, ao adquirirem força de potência, podem provocar a emergência, na instância macropolítica, de modelos de avaliação mais contemporâneos, perspectivando questões científico-políticas na dimensão do seu compromisso com uma ética-estética".

O que move os pesquisadores que aqui apresentam seus artigos, como assinala Cecília Coimbra em "Tensão ou oposição entre ciência e política na pós-graduação? Um falso problema?", é a idéia de que resistindo, denunciando, cansando, algumas vezes indignando-se, estamos vivendo os extertores da Universidade pública brasileira, em especial na área conhecida como Ciências Humanas e Sociais. O ideário neoliberal de Estado mínimo, os recursos e financiamentos que têm sido alocados na educação superior pública e laica, em nosso país são, a cada ano, mais irrisórios, afirma Cleci Maraschin no seu texto "Pesquisar e intervir".

Visando colocar em análise a gestão universitária que tem perseguido cumprir metas produtivistas, Suzana Molon em seu artigo intitulado "algumas questões epistemológicas e éticas da Psicologia: a avaliação em discussão", faz algumas reflexões sobre os "dilemas epistemológicos e éticos que encontramos na produção do conhecimento psicológico frente à racionalidade hegemônica que institui um modelo de produção e de avaliação do conhecimento". Aponta a crise dessa racionalidade e a emergência de um novo paradigma para a ciência.

"Que ensino e a pesquisa acontecem (ou deixam de acontecer) enquanto tentamos nos ajustar ao modelo de avaliação vigente, caracterizado pelo viés empresarial?", questiona Regina Simões no seu artigo "Da avaliação da educação à educação da avaliação: o lugar do educador no processo da avaliação universitária". A autora destaca a importância dos processos de formação que desviem dos modelos estabelecidos quando se objetiva "educar a avaliação".

É essa a direção de análise proposta por Andrea Zanella que afirma, em seu trabalho "Atividade criadora, produção de conhecimento e formação de pesquisadores: algumas reflexões", a necessidade de reflexões constantes e pesquisas sobre a atividade criadora nos processos de formação, posto que a formação de educadores é condição para que novos olhares sejam forjados. "Independente de como se objetiva, a atividade criadora funda-se em um olhar que rompe com o imediato e episódico. A constituição desse olhar, por sua vez, decorre de um processo, de intervenções deliberadas que objetivem romper com a explosão de imagens e mensagens desconexas que caracterizam a realidade atual, destituindo-a de sentidos voltados à crítica e sua transformação".

A atividade criadora é também a preocupação de Leila Domingues Machado quando afirma que a escrita científica tem deixado poucos rastros das inúmeras implicações que a tecem. "A razão no estilo cartesiano assegura métodos de pesquisa e também de escrita assépticos e tristes", afirma a autora em seu texto "Desafio ético da escrita".

Completando a composição dessa revista, Maria Juracy Toneli Siqueira, em seu trabalho "Direitos sexuais e reprodutivos: algumas considerações para auxiliar a pensar o lugar da Psicologia e sua produção teórica sobre a adolescência", coloca em análise o contemporâneo com seus aparelhos de normalização disciplinar. Tais aparelhos encontram-se intensificados, o que nos permite também já reconhecer a natureza "biopolítica" como o "novo paradigma do poder" que busca produzir o corpo social, tendo a própria vida como seu objeto e objetivo. Seguindo a autora, poderíamos afirmar que se coloca como um desafio criar formas de resistência aos movimentos homogeneizantes movidos pela axiomática capitalista em curso, produzir deslocamentos de uma posição instituída no campo das políticas educacionais e de pesquisa na atualidade garantindo seu caráter instituinte. Propõe um olhar sobre os dispositivos que "constituem o sujeito em sua dupla dimensão: sujeito a alguém ou a algo e atado à sua identidade pela consciência e autoconhecimento".

Problematizar/interrogar as relações das atuais políticas educacionais com o capitalismo contemporâneo é, portanto, o que nos move nessa revista/encontro. É preciso entender/analisar, no nível de suas condições materiais, os meios e as forças de produção da realidade social, bem como os processos de subjetivação que a animam/constituem. Apresentamos um panorama geral das políticas neoliberais que fundamentam as reformas propostas para o ensino superior, os modos de subjetivação que vêm ganhando corpo nas relações entre docentes-pesquisadores e os efeitos produzidos pela adoção de um modelo de avaliação do trabalho realizado. Que qualidade vem sendo demandada? A que princípios políticos tal qualidade atende? O que tem produzido?

Vislumbramos com esses textos a possibilidade de abrir o debate sobre uma outra ética no âmbito da produção acadêmica, que busque analisar os problemas da universidade em sua complexidade e construir estratégias para superá-los. Entre os aspectos destacados nos textos aqui apresentados está a necessidade de envolver toda a comunidade acadêmica nessa discussão e fazer da avaliação fruto de um debate ampliado, de forma a contemplar as múltiplas variáveis que compõem o processo de trabalho nas universidades.

Convidamos o leitor para que produza um encontro com os textos aqui apresentados naquilo que eles possuem de potência de estranhamento. É preciso olhar as coisas como se fosse pela primeira vez. Olhar a vida como um poeta e uma criança que vêem o que os adultos normalmente não vêem. A rotina e o hábito podem cansar nossas vistas impedindo a criação (KASTRUP, 2003).

REFERÊNCIAS

BENEVIDES, R., PASSOS, E., RAUTER, C. Clínica e Política: subjetividade e violação dos Direitos Humanos. In: BENEVIDES, R., PASSOS, E., RAUTER, C. Clínica e Política, Rio de Janeiro: Clínica e Política, 2003. P. 9-11.

KASTRUP, V. Produção da subjetividade numa oficina de leitura no Brasil.Texto resultado do projeto integrado de pesquisa "Cognição e subjetividade: a dimensão ética da invenção de si e do mundo", 2003.

LINHARES, C. Educação e professores em tempo de amar. In: LINHARES, C. Os professores e a reinvenção da Escola, São Paulo: Cortez, 2001

REVISTA Adunicamp. Editorial, Campinas, ano 4, n. 1, p.3, Novembro de 2002.

SANTOS, L.G. dos, Tempo de Ensaio, São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Recebido: 6/11/2004

Aceite final: 8/01/2004

Maria Elizabeth Barros de Barros Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFES. O endereço eletrônico da autora é:

betebarros@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2004
  • Data do Fascículo
    2004
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