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Notas para uma genealogia da Psicologia Social

Notes for a genealogy of Social Psychology

Resumos

A partir de uma "desnaturalização" do conceito de social, pretende-se situar as condições de possibilidade para a invenção da psicologia social. Utilizando uma estratégia genealógica, nosso objetivo é mostrar que, no lugar da psicologia explicar o social, é o próprio social que deve explicar o surgimento da psicologia moderna. Para tanto, é preciso deixar de considerar o social como sinônimo da noção de sociabilidade e passar a considerá-lo como algo essencialmente construído a partir de determinadas práticas humanas. Tal problematização permite entender como se produzem, no final do século XIX, as primeiras aproximações da psicologia moderna em direção ao social a partir das questões relacionadas ao fenômeno das multidões.

Psicologia Social; Epistemologia; Genealogia


The "denaturalization" of the concept "social" allow us to situate the conditions to the invention of social psychology. Using the genealogy strategy, our goal is to show that it is not psychology that explains the "social" but it is the "social" itself that explains the emergence of modern psychology. In order to attain our goal it is necessary to abandon the use of social as a synonym of sociability and to consider the "social" as a product essentially constructed by determinate human practices. This strategy allows us to understand how, at the end of the XIX century, modern psychology's firsts theoretical approaches towards the "social" were produced from matters related to the phenomena of the masses.

Social Psychology; Epistemology; Genealogy


Notas para uma genealogia da Psicologia Social

Notes for a genealogy of Social Psychology

Rosane Neves da Silva

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO

A partir de uma "desnaturalização" do conceito de social, pretende-se situar as condições de possibilidade para a invenção da psicologia social. Utilizando uma estratégia genealógica, nosso objetivo é mostrar que, no lugar da psicologia explicar o social, é o próprio social que deve explicar o surgimento da psicologia moderna. Para tanto, é preciso deixar de considerar o social como sinônimo da noção de sociabilidade e passar a considerá-lo como algo essencialmente construído a partir de determinadas práticas humanas. Tal problematização permite entender como se produzem, no final do século XIX, as primeiras aproximações da psicologia moderna em direção ao social a partir das questões relacionadas ao fenômeno das multidões.

Palavras-chave: Psicologia Social, Epistemologia, Genealogia

ABSTRACT

The "denaturalization" of the concept "social" allow us to situate the conditions to the invention of social psychology. Using the genealogy strategy, our goal is to show that it is not psychology that explains the "social" but it is the "social" itself that explains the emergence of modern psychology. In order to attain our goal it is necessary to abandon the use of social as a synonym of sociability and to consider the "social" as a product essentially constructed by determinate human practices. This strategy allows us to understand how, at the end of the XIX century, modern psychology's firsts theoretical approaches towards the "social" were produced from matters related to the phenomena of the masses.

Key-words: Social Psychology, Epistemology, Genealogy

Imaginemos um psicólogo social que resolvesse perguntar a seus pares o que é o social. Ele ficaria surpreso não apenas pelo número de respostas diferentes a essa questão, mas, sobretudo, por uma reação de espanto face a uma pergunta tão ingênua. Em primeiro lugar, seus colegas vão tentar lhe mostrar a ingenuidade de tal questão recorrendo ao bom senso e, parafraseando Descartes, assinalarão que o social é a coisa melhor partilhada do mundo. Basta abrir um jornal ou ligar a televisão para encontrar essa palavra disseminada nos mais diferentes segmentos da sociedade contemporânea: há social em toda parte. Sendo assim, bastaria um pouco de bom senso para concluir que todo o mundo sabe o que é o social.

Contudo, o apelo ao bom senso e ao senso comum não foram suficientes para dissuadir nosso psicólogo de prosseguir com sua questão. Ele considera que o fato de trabalharmos no social nos impede muitas vezes de saber sobre o que exatamente nós trabalhamos, e que, por essa razão, especificar a que estamos nos referindo quando empregamos o termo "social" para caracterizar o terreno no qual se organiza nossa prática, pode nos ajudar a sair de vários impasses que resultam de uma compreensão ingênua a esse respeito.

Com efeito, o problema para o nosso psicólogo, neste momento, não é chegar a uma definição precisa do social, mas compreender de onde vem essa ubiqüidade, própria ao social, que o torna ao mesmo tempo tão evidente quanto opaco.

Na maioria das vezes, esse termo confunde-se com a qualificação daquilo que constitui uma característica comum a todas as formas de existência coletiva que pressupõem um certo tipo de relação entre seus membros. Nesse caso, o social é considerado como algo intrínseco à condição humana e tomado como um sinônimo da noção de sociabilidade. Isso faz com que o social torne-se um fato natural tão evidente que acaba parecendo supérflua e desnecessária todo tipo de questão que procure defini-lo.

Contudo, essa evidência do social começa ela mesma a colocar alguns problemas. Se o social, do qual se ocupam os psicólogos sociais, confunde-se com a noção de sociabilidade, isto é, com aquilo que constitui uma qualidade intrínseca ao modo de existência próprio da humanidade, seria um pleonasmo falar de "psicologia social" , pois toda psicologia seria desde o início indiscutivelmente uma psicologia social, dado que o homem é, por excelência, um "ser social" , visto que ele tem necessidade de outros homens para se constituir enquanto tal.

Qual seria então a especificidade de uma psicologia social, e como explicar o aparecimento relativamente recente de um campo de conhecimentos e de um conjunto de práticas para se ocupar das "relações sociais" entre os indivíduos?

Enquanto o social for tomado como um fato natural fundado sobre o senso comum, as respostas a esse tipo de questão apenas produzirão paralogismos. Parece-nos que, para sair desse impasse, é preciso em primeiro lugar deixar de tomar o social como uma evidência e passar a constituí-lo como um problema, isto é, deixar de tomá-lo como um fato natural intrínseco ao próprio modo de existência da vida humana e passar a constituí-lo como uma multiplicidade necessariamente construída a partir de uma relação de forças num campo historicamente dado. Se o social confunde-se com a qualificação daquilo que constitui uma característica própria às relações humanas, é precisamente porque essa dimensão histórica é negligenciada em favor de uma coordenada estritamente espacial que reduz a complexidade do social às simples relações que ligam os indivíduos ou àquilo que eles partilham entre si e que constitui seu espaço comum.

É precisamente a ênfase dada a essa coordenada espacial que pode nos ajudar a compreender a ubiqüidade do social, isto é, sua evidência e, ao mesmo tempo, sua opacidade. Em função dessa ubiqüidade, torna-se difícil considerar o social como um campo problemático que possui uma historicidade e que é forjado a partir de uma configuração específica de práticas que variam de acordo com as características de cada coletividade humana. Ao deixarmos de reduzir o social à mera noção de sociabilidade e passarmos a problematizá-lo a partir do conjunto de práticas que o constituem, podemos dizer que o próprio social cessa de ser um "objeto natural" entre outros. Quando deixamos de considerá-lo como uma evidência e passamos a constituí-lo como um campo problemático, vemos que o social é essencialmente um objeto construído e produzido a partir de diferentes práticas humanas e que não cessa de se transformar ao longo do tempo.

Podemos dizer que esta mesma ubiqüidade do social, que faz com que ele permaneça reduzido à sua simples evidência, dificulta igualmente qualquer tipo de questionamento tanto com relação à especificidade de uma psicologia social (ou seja, àquilo que a diferencia de outros campos dentro da própria psicologia e de outras disciplinas afins como a sociologia e a antropologia), quanto com relação à própria compreensão das condições de possibilidade imanentes à criação de um tal campo de conhecimentos.

Em todo manual de psicologia social encontramos esboçada uma delimitação do objeto de investigação deste campo de conhecimentos. No entanto, é como se este objeto, definido geralmente em torno da interação social dos indivíduos, "falasse" por si mesmo e tornasse igualmente supérflua e desnecessária qualquer questão relativa à sua própria especificidade e historicidade. Neste caso, o objeto de uma psicologia social passa a ser igualmente considerado um "objeto natural" , permanecendo assim reduzido à simples evidência do senso comum e sobreposto à noção de sociabilidade.

Deste modo, podemos dizer que toda resposta à pergunta "o que é uma psicologia social?" é apresentada como algo que preexistiria à própria questão; como se fosse possível saber de antemão a resposta, já que todos estão de acordo que as relações sociais fazem parte da experiência humana. Assim, os psicólogos sociais passam a construir seus sistemas teóricos apoiados unicamente sobre uma evidência fundada no senso comum, sem perceberem que o conjunto questão-resposta pertence desde já a uma problemática que condiciona tanto uma quanto a outra.

Da mesma maneira, dificilmente encontraremos entre os psicólogos sociais uma discussão sobre as condições de possibilidade para a criação de um campo de conhecimentos em torno daquilo que se convencionou chamar de "psicologia social" . A discussão sobre o surgimento desse campo restringe-se a um relato cronológico das diferentes construções teóricas em psicologia social, sem a pretensão de compreender as contingências históricas que marcam sua singularidade e as tornam possíveis.

Parece-nos que, para que as questões colocadas acima tenham um sentido, seria preciso antes de mais nada abandonar uma compreensão ingênua do social que, segundo Ibañez (1994), encontra-se ancorada em dois tipos de crenças mutuamente implicadas: a primeira consiste em crer na existência de uma realidade completamente independente de nosso modo de acesso a ela; a segunda, em crer que há um tipo de acesso privilegiado que nos conduziria, graças a uma busca constante de objetividade, à realidade tal como ela verdadeiramente existiria. Em suma, estas duas crenças pressupõem a existência de uma verdade em si na realidade, uma verdade que seria acessível somente pelas vias da percepção e que, por conseguinte, implicaria a criação de um campo de conhecimentos com um discurso neutro capaz de revelar essa verdade.

Esses dois tipos de crenças se encontram na base da maior parte das construções teóricas em psicologia social e nos impedem de ver que tanto a especificidade quanto as condições históricas para a emergência de tal campo de conhecimentos se constituem a partir de uma certa configuração do próprio social, caracterizada pela valorização de um determinado conjunto de práticas com função normativa e reguladora.

Isso explica por que consideramos que a chave para compreender a invenção de uma psicologia social se encontra particularmente num movimento de conceitualização do social, ou seja, num movimento que cessa de tomar o social como uma simples evidência fundada sobre o senso comum (no sentido de uma "universalidade fictícia" que atravessaria todas as relações humanas) e, ao contrário, passa a constituí-lo em relação a um campo problemático que emerge a partir de um determinado conjunto de práticas. Podemos então dizer que se o social existe entre os indivíduos, não é apenas em função das múltiplas interações que se produzem entre os mesmos, mas que é, sobretudo, numa espécie de interstício, marcado por uma multiplicidade de acontecimentos e de práticas que atravessam uma formação histórica num dado momento, que o social irá ganhar uma consistência e se constituir como um campo problemático.

Consideramos que essa passagem da evidência à problematização do social implica necessariamente uma pesquisa genealógica, uma vez que se trata de ressaltar aquilo que marca a singularidade de um certo tipo de configuração do tecido social. A pesquisa genealógica, tal como foi desenvolvida por Michel Foucault ao longo de sua obra, constitui-se assim na principal ferramenta metodológica dessa investigação em torno da invenção da psicologia social, pois permite-nos compreender que, com o social, jamais estamos diante de um objeto real concreto (o dado), mas de um objeto real de conhecimento (o construído).

Isso significa que a genealogia não pretende buscar uma origem ou uma identidade primeira; ela pretende desnaturalizar os objetos e mostrar como os mesmos são historicamente constituídos. A pesquisa genealógica busca, portanto, explicitar como determinados objetos passam a ganhar uma certa consistência e operacionalidade em alguns contextos históricos específicos.

É a partir dessa perspectiva genealógica que o social deixa de ser considerado uma evidência para ser tomado como um objeto essencialmente construído. A primeira conseqüência desta destruição das evidências característica do método genealógico é nos depararmos exatamente com a multiplicidade. Precisamos admitir que não vamos encontrar apenas uma configuração do social, mas várias: cada formação histórica cria um campo de possibilidades de onde emerge uma certa problemática que engendra, ao mesmo tempo, uma configuração específica do social. Todavia, o que nos interessa para o desenvolvimento de nossa análise é poder compreender os dispositivos criados por uma determinada formação social no sentido de resolver os problemas aos quais ela se vê confrontada. Em suma, é poder compreender a partir de que momento o social passa a ser formulado como um problema que requer um tipo de intervenção específica.

Tomemos, por exemplo, uma sociedade por assim dizer "primitiva" : nela encontraremos um conjunto de práticas e de registros semióticos que marcam o espaço do social. Tomemos o caso de um velho e de um órfão nessa sociedade. Certamente não encontraremos nenhuma instituição especializada (asilo ou orfanato) para ocupar-se de cada um desses casos; essas "disfunções" são reabsorvidas no próprio tecido das relações sociais informais dessa sociedade. Assim sendo, não se poderia sequer falar de uma "disfunção" , pois essa palavra só pode ser aplicada na medida em que esse tipo de situação se torna objeto de uma intervenção específica numa determinada sociedade.

Portanto, é a partir do momento em que certos disfuncionamentos de uma sociedade não são mais regulados de uma maneira relativamente informal no tecido dessa sociedade que podemos falar de uma "problematização" do social. As relações sociais informais não são mais suficientes para resolver tais disfuncionamentos. Assistimos então à criação de alguns equipamentos institucionais e, por conseguinte, de um corpo profissional especializado que passará a se ocupar de tais disfuncionamentos.

Podemos dizer que a invenção do social, enquanto um espaço problemático, implica um modo de intervenção que se distingue das relações informais entre os membros da sociedade em questão.

Isso nos permite compreender como uma primeira configuração do social começa a se esboçar tendo como pano de fundo uma problemática formulada em torno do campo assistencial. É nessa perspectiva que podemos compreender, por exemplo, a criação dos asilos, dos hospícios e dos orfanatos. A criação desses diferentes equipamentos institucionais teve por objetivo assistir certas categorias de populações carentes cujas necessidades não eram supridas dentro do próprio tecido informal das relações sociais.

É importante assinalar que, quando colocamos a idéia de configurações do social, não temos a intenção de precisar a origem das mesmas em termos cronológicos. As configurações são tomadas aqui como a superfície de inscrição de um conjunto de práticas que adquirem uma relativa consistência em um determinado momento. Neste sentido, elas não se restringem meramente a uma dimensão cronológica propriamente dita. Elas traduzem um certo arranjo entre as estratégias de poder e as técnicas de subjetivação que atravessam uma formação histórica em um determinado momento, atualizando sistemas de referência distintos quanto ao modo de organização do tecido social.

Ao falarmos de uma primeira configuração do social, estamos nos referindo às condições segundo as quais se atualizam um conjunto de práticas que levam à criação de determinados equipamentos institucionais, tais como os asilos, os hospícios, os orfanatos, etc. Trata-se portanto de mostrar como um certo tipo de problema requer um modo de intervenção específico que exige, por sua vez, um novo arranjo do tecido da sociedade em questão.

Nessa primeira configuração do social, esse arranjo vai se caracterizar por um modelo chamado "social-assistencial" (CASTEL, 1995). A lógica inerente a esse sistema implica o desenvolvimento de um conjunto de práticas que possuem uma função protetora e integradora, cujo objetivo é o atendimento de certos segmentos da população carente.

Torna-se então imprescindível a delimitação de alguns critérios para definir o tipo de população que deverá ser assistida, pois não é o caso de assistir o conjunto da população desfavorecida.

Dois critérios de base foram assim formulados a fim de distinguir os que receberiam ajuda dos que não a receberiam: o fato de pertencer à comunidade e a incapacidade de trabalhar. Isso quer dizer que era preciso favorecer os membros do grupo (rejeitando, portanto, os "estrangeiros") e acolher preferencialmente os que não poderiam prover suas próprias necessidades através do trabalho.

Segundo Castel (1995), é a partir do final do século XIII que vamos encontrar o esboço de uma "gestão racional da indigência" com a implementação de uma espécie de "serviço social local" , para o qual colaboram todas as instâncias que dividem a responsabilidade pelo "bom governo" da cidade.

Deste modo, Castel (1995) irá mostrar que uma gestão racional da indigência, tendo como eixo privilegiado a tutela comunitária para a estruturação do social-assistencial, não esperou uma "laicização" da sociedade para se manifestar. Nas mais diferentes formas de assistência desde a alta Idade Média, verifica-se uma colaboração entre as instâncias religiosas e leigas (senhores da nobreza, notáveis, etc.) para se encarregar desse problema. Se na Idade Média esse papel "caritativo" era em geral associado à Igreja, é porque os senhores eclesiásticos (o abade ou o bispo, por exemplo) eram com freqüência senhores das cidades e tinham, portanto, os mesmos deveres de proteção e de assistência que os senhores leigos.

Nessa primeira configuração, a problematização do social permanece conectada a um vetor estritamente espacial: é sobretudo a pertença a um território comum que definirá as populações "aptas" a receber algum tipo de auxílio. Mas ela já revela uma ligação explícita com a questão do trabalho, uma vez que a operacionalização de certos dispositivos assistenciais estará relacionada preferencialmente aos que são julgados incapazes de trabalhar.

Deste modo, podemos constatar que, na estruturação do "social-assistencial" , a relação entre trabalho e pauperismo já constituía o núcleo de uma lógica assistencialista, mesmo que essa relação ainda se mostre circunscrita ao domínio de uma certa "handicapologia" , ou seja, à assistência a uma população incapaz de prover suas necessidades através do próprio trabalho. Por essa razão, até a metade do século XIX, a problematização do social se encontrará ligada às formas de intervenção que caracterizam o campo assistencial.

Segundo Donzelot (1994), é somente a partir da segunda metade do século XIX que podemos falar da emergência de uma "questão social" propriamente dita. Na perspectiva desse autor, a entrada em cena do social como um problema específico - extrapolando, de certo modo, um domínio até então marcado por um modo de intervenção característico do campo assistencial - está ligada ao fato político da democracia e, portanto, à sobrevivência do projeto republicano enquanto tal.

A emergência de uma questão que doravante será definida como uma questão especificamente social "surge no momento em que o ideal republicano, forjado no século das Luzes, se vê confrontado à forma democrática quando ela foi pela primeira vez posta em prática, ou seja, logo após a revolução de 1848" (DONZELOT, 1994, p.18).

A partir dessa data, o ideal republicano se vê colocado num impasse. É verdade que a República já havia passado por outras provas anteriormente, mas agora ela é atacada por um inimigo muito mais sutil, um inimigo que cresce no interior mesmo do ideal republicano e ameaça tornar evidente a incompatibilidade entre os dois princípios que sustentavam seu projeto, a saber, um princípio que concede uma soberania igual a todos, e um princípio que estimula uma liberalização do mercado.

Aparentemente esses dois princípios não parecem ser contraditórios. Todavia, se os analisarmos mais de perto, podemos compreender a origem de sua incompatibilidade. Comecemos pelo imaginário político oriundo dos ideais da revolução francesa e fundado sobre o reconhecimento dos direitos dos cidadãos: na forma democrática da República nascente, a noção de direito constitui um dos fundamentos da soberania do indivíduo. Essa ordem política pressupõe a existência de uma relação de reciprocidade entre indivíduos livres e iguais, e o Estado será, portanto, aquele que garantirá o cumprimento dos princípios que norteiam essa relação de reciprocidade entre os indivíduos.

Por outro lado, o liberalismo econômico, ao menos do ponto de vista teórico, parecia ser o corolário natural dessa forma democrática aplicada doravante às leis do mercado, em função do fim dos monopólios e das corporações.

Segundo Donzelot (1994), infelizmente, na prática, a associação do voluntarismo político e do "laissez-faire" econômico liberava uma série de antagonismos que os próprios artesãos do Iluminismo não puderam prever. Com efeito, essa associação desencadeava e ao mesmo tempo ocultava uma dinâmica social cheia de contradições, sendo que a principal incidia particularmente na noção mesma de direito. Tomemos, por exemplo, a situação que se produziu com o fim dos monopólios e das corporações: apoiando-se na ordem política, o Estado passa a garantir o princípio do livre acesso ao trabalho, mas, ao mesmo tempo, é obrigado a recusar explicitamente a responsabilidade de assegurar trabalho para todos. Se o fizesse, seria incoerente com a lógica inerente ao princípio de base do liberalismo econômico que pressupõe uma intervenção mínima do Estado no mercado.

Portanto, podemos dizer que uma das primeiras lições ditadas pela forma democrática da República é a de não confundir um "livre acesso ao trabalho" com um "direito ao trabalho" .

De qualquer maneira, o direito continua a ser considerado como o instrumento por excelência da organização republicana da sociedade. Tudo se passa em torno da problemática colocada pela noção de direito subjacente ao ideal republicano: "a todo direito proclamado devia naturalmente corresponder um privilégio suprimido e uma ordem natural restaurada" (DONZELOT, op. cit., p.36).

Voltemos aos acontecimentos do ano de 1848 para compreendermos o impasse em que se viu lançado esse ideal republicano ao confrontar-se, pela primeira vez, com um exercício de soberania que proclamou o direito ao trabalho como um direito natural. A palavra de ordem de um direito ao trabalho constituía um verdadeiro "Cavalo de Tróia" (DONZELOT, op. cit., p.43) no interior da ordem liberal e poderia conduzir o Estado a duas direções igualmente contestáveis: ou o Estado aceita a tarefa de tornar-se ele próprio o mais importante empregador da nação, ou ele se torna uma espécie de regulador das relações de produção a partir, por exemplo, de uma regulamentação naquilo que diz respeito a preços e salários. Essas duas direções se mostram desde o início incompatíveis com os princípios do liberalismo econômico: uma, por seus efeitos, conduziria necessariamente à instauração do comunismo; a outra, pelo peso excessivo das regulamentações necessárias para aplicar uma lei que garanta o direito ao trabalho, representaria um retrocesso através da instauração de novas formas de relações fixas e corporativas.

Segundo Donzelot (1994), os mais proeminentes homens políticos dessa época foram unânimes em admitir que a colocação em prática de um direito ao trabalho representaria uma ameaça para o regime democrático.

Em realidade, a palavra de ordem enunciada pelos operários franceses durante as jornadas de junho no distante ano de 1848 produz a faísca que acaba por levar ao rompimento da capacidade consensual atribuída até aquele momento à noção de direito na forma democrática moderna.

Para Donzelot (1994), é nesse rompimento da noção de direito que a questão social emerge como um problema específico a fim de preencher o vazio resultante da fratura entre, de um lado, uma ordem política fundada sobre o reconhecimento dos direitos do cidadão e, de outro, uma ordem econômica que, obedecendo às leis do mercado, revela a trágica inferioridade da condição civil de alguns, exatamente daqueles que se encontravam mais afastados dos meios de produção.

No momento em que um novo perfil de populações desfavorecidas coloca o problema de um novo tipo de relação entre a questão do trabalho e a da pobreza, veremos se esboçar uma segunda configuração do social: a nova organização da sociedade industrial vai colocar em evidência uma dimensão diretamente implicada na questão do trabalho que não mais se limita apenas a uma demarcação das populações concernidas pelo campo assistencial em função de sua incapacidade ou não de trabalhar. Nessa segunda configuração do social, a relação entre trabalho e pauperismo ultrapassa o domínio de uma "handicapologia" e ameaça tornar evidentes as contradições intrínsecas ao modo de produção capitalista.

Trata-se então de compreender de que maneira, sobre o pano de fundo da assistência, essa segunda configuração do social vai tomar forma e constituir um problema que ultrapassa o campo do "social-assistencial" , inscrevendo-se no centro do processo de produção de riquezas das sociedades capitalistas.

Ao longo do século XIX, a liberalização selvagem do mercado, imposta pelas novas regras do modo de produção capitalista, provocou uma desregulação da organização do trabalho. Em realidade, a principal característica dessa desregulação foi a apropriação das forças produtivas em novas relações de produção. Portanto, um dos elementos que precipitará a formulação do que daí por diante será chamado de "questão social" é, seguramente, uma reorganização do mundo do trabalho.

Se a reorganização do trabalho se torna problemática nesse momento, não é em função das mesmas razões que anteriormente definiram a relação entre a questão do trabalho e a da pobreza dentro do domínio que caracterizava o "social-assistencial" .

Podemos dizer que, na aurora da revolução industrial, uma segunda configuração do social começa a se esboçar em função de um novo tipo de relação entre a questão do trabalho e a da pobreza.

Nessa segunda configuração, a problematização do social resulta de uma fratura entre uma ordem jurídico-política fundada sobre a igual soberania de todos, e uma ordem econômica que acarreta um aumento da miséria. É essa fratura que permite marcar o lugar do social como um problema indissociável de uma questão subjacente ao conjunto da sociedade capitalista, a saber, a questão do pauperismo. Não se trata do mesmo pauperismo que sempre ocasionou um certo tipo de intervenção pública e que caracterizava o campo específico do social-assistencial em função dos cuidados dispensados com certas categorias de populações desfavorecidas. Trata-se de um "novo pauperismo" , um pauperismo que acompanha doravante o crescimento mesmo da produção industrial em função de uma nova organização do tecido social que produz uma desterritorialização do capital e uma desterritorialização do trabalho ancorada na idéia de "trabalhador livre" .

"Esse hiato entre a organização política e o sistema econômico permite marcar, pela primeira vez com clareza, o lugar do 'social': desdobrar-se nesse entremeio (entre-deux), restaurar ou estabelecer ligações que não obedeçam nem a uma lógica estritamente econômica nem a uma jurisdição estritamente política. O 'social' consiste em sistemas de regulações não mercantis instituídos para tentar tapar essa fenda" (CASTEL, op. cit., p.19).

O que mais chama a atenção no novo modelo do capitalismo industrial é o fato de ele produzir um aumento de riqueza proporcional a um aumento de miséria. Isso pode parecer completamente paradoxal; no entanto, foi sobre esse paradoxo mesmo que o modelo capitalista se espalhou por toda parte e instaurou novas regras de organização do trabalho. A exploração capitalista imprime novas relações de produção a fim de capturar as forças produtivas em novas formas de dominação.

Certamente o pauperismo desencadeado pela nova organização do trabalho ameaçava a coesão social na aurora da sociedade industrial, já que as intervenções praticadas no simples registro do campo assistencial não eram mais suficientes para controlá-lo. A fim de manter essa coesão, considerada indispensável para o desenvolvimento do modo de produção capitalista, era preciso instituir um sistema de regulações para preencher o vazio entre duas ordens (a política e a econômica) cujos princípios eram incompatíveis, buscando promover assim a integração dos diferentes estratos dessa sociedade, sobretudo das margens que se encontravam mais afastadas do processo produtivo.

Podemos dizer que, nessa segunda configuração, o social se apresenta como um híbrido forjado na intersecção do político e do econômico, cuja função seria precisamente neutralizar o contraste violento que opõe o imaginário político moderno à dura realidade da sociedade civil.

Uma outra característica dessa nova configuração do social é colocar em evidência um outro tipo de problema que ameaça atingir o cerne do processo de produção de riquezas da sociedade capitalista, ou seja, o problema ocasionado pelo fenômeno das multidões que sacudiu a Europa ao longo do século XIX.

As multidões não foram uma novidade do século XIX. No entanto, é nesse momento que tal fenômeno se torna objeto de um estudo específico em função da ameaça crescente de ruptura dos equilíbrios sociais, desencadeada pelas contradições inerentes às novas normas da sociedade industrial. Conforme vimos, essas normas se apoiavam sobre duas ordens cujos princípios eram incompatíveis, e é precisamente no vazio dessa fratura que as multidões emergem como uma espécie de gás prestes a fazer explodir a nova ordem do capital.

Podemos dizer que o que marca a diferença entre a primeira e a segunda configuração é precisamente o novo estatuto do social nesta última. O social não se caracterizará apenas por um conjunto de equipamentos e de práticas que buscam regular os disfuncionamentos da sociedade. Essa característica, que já marcava a primeira configuração do social, permanecerá na segunda, embora seja atualizada de uma outra maneira em função dos novos problemas que atingem, desta vez, a dinâmica da sociedade industrial. O importante é que agora, nesta segunda configuração, o social se torna, além de tudo, um objeto de conhecimento. Aí reside a principal diferença com relação à primeira configuração: a objetivação do social enquanto um novo domínio de saber.

O fenômeno das multidões certamente desempenhou um papel decisivo nesse processo de objetivação do social não apenas porque ameaçava uma certa "ordem social" mas, fundamentalmente, porque suas reivindicações tornavam evidentes as contradições inerentes à dinâmica do projeto liberal. Por este motivo, as multidões vão se tornar o alvo de uma investigação sistemática.

Foi pelo viés do fenômeno das multidões que a psicologia moderna efetuou uma de suas primeiras aproximações na direção do social. As idéias apresentadas por Gustave Le Bon na obra "Psicologia das Multidões" publicada em 1895 (1963) procuram mostrar que os fenômenos de massa constituíam o ponto decisivo para toda interpretação do mundo moderno. Ele considerava que as multidões representavam a explosão de um lado irracional que conduziria necessariamente a uma crise generalizada na sociedade.

Segundo Moscovici (1981), a originalidade de Le Bon foi ter situado o problema das massas numa perspectiva inteiramente nova: a principal característica das multidões era a fusão dos indivíduos num espírito e num sentimento comuns, e é a partir dessa característica que o problema deveria ser colocado. A sugestão explicaria como se produz o desaparecimento dos caracteres individuais para aparecer essa fusão dos indivíduos no grupo. A hipnose torna-se, portanto, o modelo a partir do qual a psicologia das multidões vai desenvolver o conjunto de sua orientação teórica. É a partir desse modelo que se poderia explicar, por exemplo, a ação do líder sobre as massas.

No entanto, a novidade apresentada por Le Bon não estava simplesmente no fato de ele ter associado os meios da sugestão à política (pois Maquiavel já o fizera antes dele), mas, sobretudo, em transpor uma perspectiva estritamente jurídica que tratava o problema das multidões de um ponto de vista exclusivamente criminal, buscando na psicologia uma explicação plausível para as desordens provocadas pelas massas naquele momento. A sua principal contribuição foi ter mostrado que as massas são antes de tudo um fenômeno social, e que, para compreender a amplitude de tal fenômeno em nossas sociedades, era preciso situá-lo numa nova perspectiva: não mais a do direito ou da economia política, mas a da psicologia.

Le Bon (1963) introduz, por intermédio da psicologia, um elemento irracional na política, uma vez que até então toda a discussão em torno do debate político estava supostamente centrada na razão. Isso explica por que suas idéias foram aplaudidas pelo mundo político da época. Esse autor compreendeu muito bem que a principal característica das multidões é a fusão dos indivíduos num espírito e num sentimento comuns, fusão esta produzida de um modo inteiramente irracional e que demandava, para tanto, a direção de um líder. Buscando descobrir o que une o líder ao povo, Le Bon fornecia importantes subsídios às classes dirigentes, que viam aí uma explicação plausível para justificar seu poder na condução das multidões desprovidas de razão.

Pelo que foi visto até aqui podemos entender por que a questão social tornou-se um dos componentes essenciais da tecnologia política efetivada pelo poder moderno e de que forma as relações de força suscitadas pela problemática que atravessa aquilo que denominamos de segunda configuração do social criam as condições para a invenção de uma psicologia social.

Cabe ressaltar, no entanto, que a emergência desse novo corpo de conhecimentos não pode ser dissociado das características imanentes a essa nova configuração do social, pois, como já assinalara Foucault em "As palavras e as coisas" , é pouco provável que a simples relação às matemáticas tenha sido constitutiva da positividade científica do conjunto dessas ciências:

"Não resta dúvida que a emergência histórica de cada uma das ciências humanas se deu por ocasião de um problema, de uma exigência, de um obstáculo de ordem teórica e prática; certamente foram necessárias as novas normas que a sociedade industrial impôs aos indivíduos para que, lentamente, durante o século XIX, a psicologia se constituísse como ciência; não há dúvida também que foram necessárias as ameaças que desde a Revolução pesaram sobre os equilíbrios sociais, e sobre aquele particularmente que havia instaurado a burguesia, para que aparecesse uma reflexão de tipo sociológica" (FOUCAULT, 1966, p.356).

É dentro desta perspectiva que procuramos situar nossa análise sobre as condições de emergência de um certo discurso da psicologia em relação ao social: ao produzirem um discurso que se pretende verdadeiro, as primeiras teorizações que configuram este novo campo de conhecimentos traduzem relações de poder e saber do seu tempo.

Podemos considerar que há, portanto, uma complementaridade entre o que chamamos de uma segunda configuração do social e o advento das ciências humanas e que resulta na emergência de um novo campo do saber que marca a invenção deste território denominado de Psicologia Social.

Ao problematizarmos o conceito de social percebemos que não foi meramente através de um progresso da racionalidade das ciências exatas que foram aos poucos se constituindo as ciências humanas. Se partimos de uma genealogia do social para problematizar o objeto de uma psicologia social é porque consideramos que é num determinado arranjo do social (particularmente no que denominamos de "segunda configuração do social") que se produzem as condições de possibilidade para a invenção deste campo de saberes e práticas. Neste sentido, podemos dizer que o social não é meramente um campo de aplicação da psicologia moderna e sim aquilo que torna possível a própria constituição deste campo de conhecimentos. Sendo assim, a psicologia é que deve inicialmente ser explicada pelo social e não o contrário, ou seja, o social ser explicado pela psicologia.

Recebido: 15/10/2003

Aceite final: 12/4/2004

Rosane Neves, é Professora do Curso de Graduação em Psicologia, e do Mestrado em Psicologia Social e Institucional, do Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

O endereço eletrônico da autora é: roneves@cpovo.net

  • CASTEL, R. Les métamorphoses de la question sociale. Paris: Fayard, 1995.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2004
  • Data do Fascículo
    Ago 2004

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2003
  • Aceito
    12 Abr 2004
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