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(Infr)atores juvenis: artesãos da análise

Young (infr)actors: artisans of analysis

Resumos

Este relato de experiência com jovens em situação de abrigagem e, em maior número, com autores de ato infracional pretende mostrar a potência de vida existente nesses jovens que costumam ser vistos apenas como violentos e ameaçadores. O trabalho com o paradoxo representado por esse jovem, com sustentação no referencial da Análise Institucional, levou a questionar alguns lugares e saberes naturalizados e contribuiu para pensar em novas formas de fazer psicologia e de lidar com o público em questão.

juventude; infração; grupo-dispositivo; analisador


This report on the experience with youth who live in shelters and, in a larger number, with young infractors, intends to show the force of life that exists in this youths and young girls who are usually seen only as violent and threatening individuals. The work carried out with the paradox represented by this youth, always supported by the reference of Institutional Analysis, made the authors question some places and knowledges erroneously taken for granted, and helped to think of new ways of making psychology and dealing with this public.

youth; infraction; dispositive-group; analyzer


(Infr)atores juvenis: artesãos da análise

Young (infr)actors: artisans of analysis

Fernanda Bocco; Gislei Domingas Romanzini Lazzarotto

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO

Este relato de experiência com jovens em situação de abrigagem e, em maior número, com autores de ato infracional pretende mostrar a potência de vida existente nesses jovens que costumam ser vistos apenas como violentos e ameaçadores. O trabalho com o paradoxo representado por esse jovem, com sustentação no referencial da Análise Institucional, levou a questionar alguns lugares e saberes naturalizados e contribuiu para pensar em novas formas de fazer psicologia e de lidar com o público em questão.

Palavras-chave: juventude, infração, grupo-dispositivo, analisador

ABSTRACT

This report on the experience with youth who live in shelters and, in a larger number, with young infractors, intends to show the force of life that exists in this youths and young girls who are usually seen only as violent and threatening individuals. The work carried out with the paradox represented by this youth, always supported by the reference of Institutional Analysis, made the authors question some places and knowledges erroneously taken for granted, and helped to think of new ways of making psychology and dealing with this public.

Keywords: youth, infraction, dispositive-group, analyzer

Esta escrita surgiu a partir da experiência com um grupo de jovens durante o estágio curricular de Psicologia do Trabalho. O estágio estava inserido em um projeto de Extensão do Departamento de Psicologia Social da UFRGS, o qual consistia em dar assessoria em Psicologia Social ao Programa Integrado de Profissionalização Gráfica e Marcenaria. Este Programa era uma iniciativa do Governo do Estado do Rio Grande do Sul e ocorria nas dependências da CORAG (Companhia Rio-Grandense de Artes Gráficas do Rio Grande do Sul), visando à profissionalização nos cursos de editoração eletrônica, off set, serigrafia e marcenaria.

O público beneficiado pelo Programa era de jovens entre 16 e 21 anos que se encontravam em proteção especial (situação de abrigagem devido a abandono ou maus tratos, relacionado à Fundação de Proteção Especial - FPE) ou cumprindo medida sócio-educativa (medida aplicada ao jovem autor de ato infracional, relacionada à Fundação de Atendimento Sócio Educativo - FASE), sendo predominantemente estes em maior número. Cada edição do curso, cuja duração média era de quatro meses, atendia aproximadamente 64 jovens, divididos nos turnos da manhã e da tarde.

O Programa funcionou em grande parte como articulador de diversas Instituições (Juventude, Profissionalização, Políticas públicas, Formação acadêmica, Infração, Violência), as quais se materializavam em diversos órgãos públicos1 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Secretaria do Trabalho, Cidadania e Ação Social - STCAS, Secretaria da Educação - SE, Fundação de Proteção Especial - FPE (antigo DRA - Divisão da Rede de Abrigos do Estado do RS), Fundação de Atendimento Sócio-Educativo - FASE (antiga FEBEM/RS), Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos - SARH, Fundação de Assistência Social e Cidadania - FASC. . Por isso, pensamos no Programa como um agenciamento (DELEUZE E PARNET, 1998), ou seja, diagramas e traçados que foram se compondo para constituir a multiplicidade que caracterizou seu funcionamento. Foi resultado não de uma causa específica, mas de um acontecimento com elementos políticos, sociais e desejantes, o que permitiu criar redes e sentidos através das diversas parcerias necessárias para sustentar sua ação.

A equipe de assessoria em psicologia estava constituída por uma professora, quem coordenava e supervisionava a intervenção, e por quatro alunas da graduação (três estagiárias e uma bolsista de extensão). Além das supervisões semanais presenciais, trabalhamos intensamente através de uma lista de discussão eletrônica, na qual participavam os cinco membros da equipe assessora. Por meio dessa rede virtual, criamos um ambiente de continência e de produção que nos convocava constantemente à escrita e a compartilhar essa escrita com o grupo, fazendo com que analisássemos constantemente nossa intervenção e a implicação de cada uma nesse processo.

O modo como nossa equipe funcionou se deu dentro de uma lógica da produção desejante (DELEUZE E GUATTARI, 1973), ou seja, atuávamos seguindo os fluxos que se formavam durante a experimentação da intervenção. O conceito de desejo apresentado pelos autores não se caracteriza por ter uma falta inerente, como o proposto pela psicanálise. Pelo contrário, é uma criação de vida, uma força afirmativa de invenção e de diferença que segue sempre em movimento, operando como uma potência criadora e quebrando as normas inflexíveis (DELEUZE E GUATTARI, 1973).

Durante o II Fórum Social Mundial, ocorrido em Porto Alegre/RS em fevereiro de 2002, configurou-se uma nova possibilidade do Programa: a Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social - STCAS, junto à CORAG, pelo lado do Brasil, e a Agência Quebec-Américas para a Juventude - OQAJ, junto à Imprime-Emploi, pelo lado do Canadá, assinaram um convênio de parceria. Esse intercâmbio visava promover uma experiência de formação em outra comunidade e favorecer a aquisição de habilidades sócio-profissionais, facilitando, desta forma, o desenvolvimento de competências de comunicação, sentido de responsabilidade e auto-confiança nos jovens participantes.

Em maio de 2002, chegaram sete jovens canadenses selecionados pela Imprime-Emploi (empresa de formação gráfica similar à CORAG, onde ocorriam cursos profissionalizantes para inserção no mercado de trabalho). No Brasil, foram selecionados seis jovens que já haviam passado pelo Programa e que preenchiam alguns pré-requisitos como idade, disponibilidade para viajar e situação legal, entre outros. Para dar conta das dimensões abertas pela viagem de intercâmbio a Quebec-Canadá, decidiu-se, entre a coordenação do curso e a equipe de assessoria em psicologia, que seria importante um trabalho de preparo, o qual incluiria aulas de francês, debates inter-culturais entre Quebec e Brasil, aulas de história do Brasil e do Rio Grande do Sul e um momento com a psicologia. A partir de algumas discussões sobre como operacionalizar essa idéia, ficou determinado que os jovens deveriam comparecer em todas as atividades do preparo, correndo risco de serem substituídos no intercâmbio se faltassem.

Dentro da equipe de psicologia, definimos que Fernanda acompanharia esse grupo durante o preparo. Entre os seis jovens selecionados, havia alguns cumprindo medida sócio-educativa e outros em situação de proteção especial (abrigagem), mas chamou a atenção desde o começo que todos pareciam de alguma forma atravessados pela relação com o ato infracional, mesmo os que tinham sido encaminhados ao Programa pelos abrigos. É importante lembrar que antes de serem divididos em FASE e FPE (o que ocorreu em 2002), os dois estabelecimentos pertenciam à antiga FEBEM, a qual era responsável pelos adolescentes em ambas situações. Além disso, talvez a proximidade da origem socio-econômica entre os jovens dava um significado semelhante à infração: de certa forma era um lugar reconhecido pela comunidade e permitia desfrutar do respeito dos demais. Assim, muitas vezes os que estavam em abrigos falavam de si também como autores de transgressões e, por isso, quando nos referirmos aos que cumprem medida sócio-educativa ao longo do texto também estaremos falando dos participantes do grupo que se identificavam com essa condição, apesar de não estarem passando por ela.

Quatro meses antes do embarque para Quebec, Fernanda e os jovens começaram o grupo semanal. Junto à equipe de psicologia, tínhamos pensado como ponto de partida para direcionar o trabalho os seguintes objetivos gerais: construir no coletivo um projeto comum para essa viagem, reconhecendo as diferenças de interesses de cada um, e visibilizar os efeitos da participação no programa na trajetória dos jovens. Mesmo assim, ninguém sabia ao certo quais seriam os desdobramentos dessa experiência em comum.

DESEJOS EM PAUSA: O ENCONTRO

Desde que começou a ser discutido o preparo dos jovens para a viagem, surgiu um tensionamento sobre o grupo com a psicologia: que nome dar? O que seria feito nesse momento? Com qual objetivo? É sempre difícil falar em devir, essa transição do que está em potência ao ato, em meio a uma lógica que privilegia o lugar-comum seguro, conhecido por todos. Ficou acertado que o "grupo", como ficou provisoriamente intitulado, aconteceria semanalmente, com uma hora e meia de duração, e serviria para trabalhar questões referentes à viagem que fossem surgindo nos jovens. A coordenação do Programa sugeriu o nome "avaliação" para definir esse momento, evidenciando a idéia que tinha de que a psicologia deveria responder à questão sobre os jovens estarem prontos para viajar. O nome "grupo" foi o mais vago que a equipe de psicologia conseguiu manter diante do pedido insistente de catalogar e premeditar as ocorrências daquele espaço. Queríamos, com essa oposição a um título prévio, tentar deixar em aberto também as possibilidades daquele conjunto, em bora tivéssemos também em mente os objetivos mencionados na introdução deste artigo.

No início, como em toda experiência na qual nos lançamos no desconhecido, era difícil sair do modelo estruturado que conhecíamos até então, dentro do qual o conceito de grupo estava muito associado a atividades, técnicas, resultados. Não conseguíamos deixar de lado a organização e planejamento para a semana seguinte, ficávamos frustradas por não perceber neles nenhum "interesse" pelas propostas feitas (como algum tema para discussão ou uma dinâmica), não distinguíamos o espaço do grupo dos outros espaços informais que eles tinham, como almoço e hora do lanche. Em outras palavras: não nos sentíamos seguras para trabalhar com o grupo e procurávamos alguma direção para seguir. O encontro com a Análise Institucional e com a Esquizoanálise se deu precisamente nesse momento de angústia.

Talvez o impacto desse referencial se deveu à sua explicação sobre o que sentíamos: um efeito da forma de subjetivação que circula em nossa sociedade e que tende a cristalizar e imobilizar qualquer produção alternativa. Entendemos, então, que todo movimento desterritorializante esbarraria na reterritorialização, essa força invisível que trabalha para impedir as criatividades. Mas, como dizia, com Guattari começamos a entender que o trabalho consistia justamente em levar as linhas de desterritorialização até o limite do tolerável (1993), o que deu ânimo para aceitar a angústia como força do processo e investir na construção de algo original naquela relação com os jovens.

A supervisão teve um papel fundamental para dar conta do que sentíamos. A forma como funcionava, com reunião de toda a equipe e com momentos de supervisão individual, dava a todas uma continência imprescindível para lidar com os intensos efeitos do contato com os jovens. Aquele era nosso espaço para compartilhar dificuldades e permitir-nos a experimentação plena, acompanhadas atentamente pela orientação da supervisora enquanto descubríamos nossas diferenças quanto ao modo de trabalhar na psicologia. Tanto presencialmente como pelo contato através da rede virtual, usávamos nossos afetos para produzir coletivamente a intervenção e a análise, dialogando com a teoria para compor nosso fazer.

O início da produção de linhas de fuga (DELEUZE, 1973), caminhos alternativos que sempre operam no sentido de dissolver os contornos pré-estabelecidos para promover a singularidade, se deu num momento de problematização dos objetivos do grupo. Atrasos, aparente desinteresse com as atividades propostas e esquecimento do que havia sido discutido em ocasiões anteriores, enfim, atos que apontavam para algo que não conseguia ser enunciado de outra forma. Decidimos, então, abrir a possibilidade de que os jovens não participassem daquele espaço: suas presenças não seriam obrigatórias se não quisessem ir (apesar da combinação inicial de que deveriam participar em tudo para poder viajar). Essa resolução foi possível unicamente porque estava sustentada pelo aval da Universidade e porque havia uma relação com a coordenação do Programa que permitia certa autonomia em nossas ações com o grupo.

A palavra central naquele momento era querer, pois foi com esse analisador (presença opcional) que colocamos em movimento a análise do desejo de todos e da implicação deles com a viagem e com o grupo em si. Poderiam escolher continuar ou não, mas deveriam assumir a decisão, e isto pressupunha envolvimento, qualquer que fosse o caminho tomado. Não valia mais a participação porque nós (coordenação e psicologia) havíamos decidido que aquilo era importante (alguém de fora determinando que aquilo se daria daquela maneira). Agora estava colocada a possibilidade de apropriação do espaço criado por todos.

As dimensões que se abriram com o aparentemente simples ato de permitir uma escolha foram algo da ordem do virtual no sentido Bergsoniano (Deleuze, 1999), pois apontou para um aspecto da realidade incapaz de ser imaginado ou antecipado, apenas concretizado enquanto acontecimento já no campo do possível. Mas, para que se produzisse essa pequena abertura, estava funcionando, já naquele momento, o conceito de grupo enquanto dispositivo, embora não tivéssemos consciência disso. Não havia uma elaboração teórica "dispositivo", mas ele já operava tendo a própria ação como força que trouxe a noção de dispositivo como ferramenta da intervenção.

De modo geral, o saber não-intelectual que aciona nosso fazer de forma intuitiva ((DELEUZE, 1999) não é percebido nem reconhecido. A formação acadêmica se baseia no incentivo da racionalidade científica e costuma priorizar o conceito teórico previamente estudado mais que a função que esse conceito possa operar, de forma puramente intensiva, antes do contato formal com a teoria. Poder pensar nos movimentos que percebíamos na intervenção a partir do referencial esquizoanalítico (Baremblitt, 1998) foi, efetivamente, o que abriu passagem para que os fluxos percorressem seus caminhos. A criação de sentidos ocorria para os jovens e para nós no mesmo processo coletivo.

Em meio a essa intensidade de significações, apareceu uma discussão, agora dentro do próprio grupo, sobre como chamar o momento com a psicologia. As demais atividades tinham nomes e tarefas específicas, e isso os fazia pensar sobre nossa aparente ambigüidade. Foi deles mesmos, depois de algum tempo de trabalho, que surgiu a idéia: "eu acho que isto são encontros, porque não é aula nem debate... o nome podia ser encontro, né?". Todos concordaram, e um comentou, rindo: "eu nunca tinha tido um encontro às 8:30 da manhã!", evidenciando o caráter amoroso implicado no termo escolhido.

Encontrar justamente tem a ver com capturar, com roubar, um roubo oposto à imitação (Deleuze, 1998). Em nosso encontro, as possibilidades outras, em devir, eram roubadas do coletivo propiciado no grupo; eram tomadas de empréstimo porque eles não as reconheciam em si. Para jovens nos quais o roubo estava dado no ato, estávamos construindo outros roubos plausíveis com nossa proposta de trabalho.

Cartografando roubos, corpos e poesias

Estes e aqueles (cadeados no meio)

Como expressar, senão no corpo,

isto que vem, depois de um roubo?

Corpo de fluxos, corpo-potência,

roubo de ethos , roubo de essência.

Mas quem rouba e quem é roubado?

Este corporativiza, aquele é incorporado

pela alucinada seqüência levada a um ato,

que sempre constrange a intensidade de fato.

E como produzir, a não ser pelo corpo,

outros caminhos possíveis pro roubo?

É por ele que fala aquele, sem voz,

aquele que gera um medo atroz

nestes que tentam (na verdade em vão)

fechar os olhos para os que lá estão

a ocupar os corpos, vazios (ou não),

onde o furto, então, encontra razão.

E quando o discurso não sai em palavras,

o que se ouve, é claro, não é o enunciado,

mas sim a raiva que vem deste lado

da linha traçada pelas mãos enluvadas,

limpas da graxa que lá é forjada

para lubrificar uma máquina, aqui louvada:

aqueles operam buscando alcançar

o que estes, ilusos, supõem abarcar.

Os sentidos do corpo, do roubo, do ato

ficam perdidos em meio ao tumulto

destes que gritam e guardam seu vulto

feridos, com assombro, por tal desacato.

Estes se fecham, colocam cadeados,

protegendo algo que já foi tomado.

Aqueles calam, com olhar desviado

e voltam, de novo, a ser internados.

Fernanda Bocco

Cartografar é a atividade de traçar mapas, mas não se refere a formar imagens rígidas, congeladas no tempo, e sim a criar paisagens mutantes, em permanente construção e reconfiguração. A tarefa do cartógrafo é dar voz aos afetos que pedem passagem, diz Rolnik (1989), e, no trabalho com os jovens autores de ato infracional, sente-se o tempo todo esses afetos passando através do corpo, lugar no qual as diversas vozes se materializam e geram dor de cabeça, enjôo, mal-estar.

Numa tentativa de dar conta dos momentos de intensa experimentação, o poema acima foi escrito a partir do desconforto dessas passagens, dando densidade à indigestão vivenciada na mistura de medos, paradoxos, (não)lugares, (in)diferenciações, distâncias e proximidades. Como expressar, senão assim, os inúmeros roubos? Roubos de possibilidades, de vida, de caminhos outros, de sensações, de histórias, de espaços, de potência. Quem tentava se apropriar do que? Quem roubava e quem era roubado? "Roubar é o contrário de plagiar, de copiar, de imitar ou de fazer como. A captura é sempre uma dupla-captura, o roubo, um duplo-roubo", ((DELEUZE E PARNET, 1998, p. 15).

Pela produção literária da poesia, foi possível criar um sentido para esse duplo, entendendo que só podíamos cartografar os fluxos se os reconhecêssemos em nós e nos efeitos que o roubo colocava em movimento. Na lógica do devir (Deleuze e Guattari, 1996), em que não se trata de um ou outro, mas de um entre, a experiência e a análise aconteciam em zigue-zague, algo que passava entre todos sem fixar-se em nenhum.

DIS POSITIVAR PARA DESPOSITIVAR: EXPERTS EM QUESTÃO

Dispositivo, como salienta Barros (1994, p. 151), "aponta para algo que faz funcionar, que aciona um processo de decomposição, que produz novos acontecimentos, que acentua a polivocidade dos componentes de subjetivação". Assim, o grupo serve para descristalizar lugares, papéis, hierarquias, formas de ser que são construídas pelo modo de subjetivação dominante. Naquele momento de tensionamento no grupo, começávamos a exerci tar esse novo modo de trabalhar, pensar e principalmente de sentir(-se) (n)o mundo.

Sempre que há desterritorialização, há medo, há insegurança, há reterritorialização. Os jovens manifestavam claramente este desconforto provocado pela abertura de sentidos e colocaram que era difícil escolher sem saber exatamente o que eu tinha para oferecer, e que era mais difícil ainda conseguir pensar no que queriam daquele grupo, pois estavam acostumados pela sociedade de modo geral a receber tudo pronto e não opinar nem escolher sobre o que dizia respeito a eles. Esse sentimento era nosso também: como assim não saber o que aconteceria na semana seguinte? Como assim não ir com algo estruturado, fechado, enfim, esterilizado num estojo para fazer com eles? Estava em análise também o lugar e o fazer da psicologia. A partir daquele momento, graças à experiência do estágio, não era mais possível o saber hegemônico de uma psicologia que tudo explicava e, principalmente, que tudo previa através de suas técnicas e mecanicismos.

A formação acadêmica, de modo geral, tende a construir técnicos especializados, pautados pelo instituído, pela norma, pelo que está estipulado como comum a todos, com papéis e atribuições bem definidos. A posição de expert tinha que ser reformulada a partir desse contato horizontal com o coletivo em questão. Compartilhar a angústia de mudar aquilo enraizado em cada um de nós era a melhor forma de começar essa reconstrução, e iniciamos, assim, a criação de novos lugares também para a psicologia, sem saber, nenhum de nós, aonde nos levariam essas linhas.

Deleuze coloca que o dispositivo é um conjunto multilinear. O grupo dispositivo seria, então, "um novelo, um conjunto multilinear (...) composto de linhas de natureza diferente" (1988 apud BARROS, 1997, p. 183). Ele é um emaranhado de linhas no nível molecular, e o trabalho consiste justamente em "se instalar sobre as linhas que o compõem e o atravessam seguindo suas múltiplas direções. Rachar as palavras, rachar as coisas, rachar o grupo para pegar as coisas por onde elas crescem, pelo meio" (BARROS, 1997, p. 186). Dispositivando a normatividade, conseguimos despositivar aquilo que aparecia como pronto e imutável.

Fomos percebendo uma tendência desses jovens de se relacionarem através de padrões pré-construídos, e isso tinha a ver com uma força que tentava ensacar o desejo, agindo na mesma lógica que fazia colocar distância entre si e as coisas que aconteciam ao seu redor. O aparente não-envolvimento (com viagem, com a vida) pôs em análise o medo que eles tinham de que as coisas não acontecessem. Não se envolver para não se frustrar depois com desfechos imprevisíveis, já que não podiam saber nem controlar como terminaria tudo: "eu nem sei se amanhã eu vou estar vivo!", "não dá para se planejar pro futuro, quem sabe o que vai acontecer amanhã?", "o futuro tá longe!", "como é que eu vou saber o que vai acontecer depois?".

Em análise os jovens, em análise a psicologia: será que o medo não habitava em nós também? O senso comum sobre o trabalho com estes jovens, seguidamente verbalizado por profissionais que têm contatos com eles, é o de que não há garantias, não se têm certeza sobre o efeito de nossas ações em suas vidas. Ouvíamos, com freqüência, a interrogação: "se eles vão continuar com atitudes consideradas socialmente inaceitáveis, qual o sentido de fazermos algo?". Sabíamos que enquanto reproduzíssemos a noção de que um futuro "criminoso" (termo usado com freqüência para referir-se ao jovem autor de ato infracional) era o único possível para esta juventude, manteríamos aprisionado nosso desejo no trabalho com eles, como se nenhum investimento fosse válido. Quando o grupo traz esse anestesiamento com relação à vida, necessariamente entra em análise também o nosso anestesiamento, e o da sociedade como um todo, com relação a eles. Como lhes dizer para arriscarem-se com apostas pela vida, se não nos arriscávamos apostando em suas potências de vida?

Misturar-se no coletivo nem sempre é fácil, e não passamos por isso de modo impune: sair das torres de marfim construídas com o especialismo nos lança no oceano turbulento das intensidades. No entanto, pensamos que essa é a única forma de rastrear as linhas em jogo, desembaraçar as pontas dos novelos para dar corpo a essa potencialidade do grupo-dispositivo de se transformar, de desterritorializar, irromper em devires, fazendo, assim, emergir novas singularidades.

Questionar o desejo dos jovens e os da psicologia foi a primeira ponta do novelo; começamos a puxar o fio e, todos curiosos, a seguir sua trilha, o que nos levou a questionar os fazeres e saberes instituídos. Agora era tarde para voltar ao ponto do qual havíamos partido, e as linhas do novelo continuaram se desemaranhando em alguns pontos e enredando em outros. Desejo... psicologia... a próxima ponta foi a noção de tempo.

EM TEMPO: O PRESENTE, O FUTURO

Em determinado momento, pedimos aos integrantes do grupo que fizessem uma linha do tempo para contextualizarem a viagem em suas trajetórias pessoais. Aqui a proposta foi usar a técnica, sim, mas como forma de escutar o que se produziria a partir dela, e não como um modelo inflexível a ser seguido. Com efeito, o que apareceu foi uma grande relutância para realizar a atividade proposta. Esse desconforto, que poderia ser tomado como "não vontade de fazer nada", como é comum escutarmos dos profissionais que trabalham com este público, foi o que produziu o tensionamento necessário para colocarmos em análise o fio que pedia para ser seguido.

Nos cartazes para a linha do tempo, espaços em branco onde deveriam situar o presente: "aqui não sei o que botar, como me colocar aí no papel? O presente sou eu, eu estou aqui!". Encontramos intervalos no presente. O senso comum diria que para eles o difícil é o futuro, é o que vão fazer depois. Mas a angústia estava colocada no momento atual: como podiam abstrair o que estava em ato concreto? Não era o futuro o que aparecia como indefinido, e sim o presente, porque se é certo que era o que estavam experienciando, por outro lado falar sobre aquilo implicava um desdobramento desse experienciar. Fazer não é o mesmo que falar sobre o fazer. O presente estava dado como algo que não era em si, parecia só existir enquanto experimentação de um entretempo em relação ao passado e ao futuro.

Não é tão surpreendente que o presente seja mais angustiante que o futuro se considerarmos que a sociedade, de modo geral, reserva a estes jovens um restrito lugar: será, pelo sentido comum, o "delinqüente", o "marginal", aquele que não pode querer para si uma vida diferente. Justamente o que se tentava trabalhar era essa possibilidade de que eles experimentassem outras formas de ser que não fossem necessariamente essas da urgência, do imediato, do tempo atual que tentava invisibilizar as construções de futuro que fugiam do lugar suposto "criminoso".

No início, o tempo mais marcado era o da disciplina, o da obrigatoriedade. Depois passamos a trabalhar a noção de tempo como intensidade para si, como experimentação dos jovens, mas também pensávamos em fugas desse tempo-intensidade-urgência para um outro tempo de vida, abrindo para um tempo-devir que não só o da ação imediata. Poder fazer rascunhos também, além da pura vivência, e criar intervalos para si a partir do intervalo-presente colocado no cartaz da linha do tempo, esse era o fluxo em potência. Na experiência deles, as coisas iam se vendo na hora, na atualidade, não estava dada a opção de planejamento. Na ironia do jogo dos fios, o que no princípio era a proposta de pensar a viagem em suas vidas, tornou-se pensar suas vidas a partir da viagem.

Com isso, éramos lembrados de que o trabalho com o grupo-dispositivo é sempre cartográfico, já que na cartografia acompanhamos as linhas que se traçam, desenhamos ao mesmo tempo em que ocorrem os movimentos de transformação da paisagem (ROLNIK, 1989). Não havia um sentido a ser revelado, e sim sentidos a serem criados, não havia delineamento prévio, como um mapa, a ser percorrido, e sim trajetórias singulares que se produziam enquanto caminhávamos. Não havia previsibilidade naquele trabalho, que era criado, inventado a cada momento pelo próprio processo.

Dizíamos, então, que a dificuldade de planificação e o predomínio do ato eram marcas que se evidenciavam também na infração cometida por alguns. Programar-se para algo implicava afetar-se, envolver-se, antecipar. Claro que não queríamos obstruir o fluxo, a intensidade que estava colocada nessa permanente atualidade de tudo, mas também era importante pensar no planejamento no sentido de dispor e redispor as coisas até que estivessem em outra lógica que não a da urgência. Não falamos da elaboração de uma versão final, já que tudo está em permanente construção, mas nos referimos ao jogo de forças de possibilidades no qual os rascunhos são simulações, linhas que se contrapõem, outras formas de ser para sair do lugar já marcado.

Mas é nessa elaboração do rascunho que aparecem as incertezas, o medo de se frustrar com o curso dos acontecimentos, as proteções contra a possibilidade de dar errado. Os jovens queriam viajar logo, e diziam "bem que a gente podia ir de ônibus e sair amanhã, né?", "tem como a viagem trancar?", mal segurando a angústia sentida nesse entretempo entre o pensar e o fazer. Por momentos, o sentimento era tal que alguns chegaram a verbalizar que estavam quase desistindo da viagem, pois não tinham vontade de passar pelos momentos de preparo. Eram invadidos por uma inquietação e um desconforto, efeitos da desterritorialização, dos caminhos produzidos na cartografia, que levavam a trilhas ainda não percorridas.

Enquanto os provocávamos para que produzissem rascunhos-ensaios, tínhamos que pensar também na produção de nossos rascunhos, espécies de zonas nas quais experimentar-nos nesse devir-psicólogo que tantas questões nos colocava. O espaço da rede virtual foi onde achamos esse intervalo no qual nos jogávamos em vivências, delírios, afetos, sem preocupar-nos com o caráter formal comumente exigido pela academia, apesar de estarmos inseridos num contexto universitário. Pelo correio eletrônico, tínhamos eternos rascunhos-intensidades, constante possibilidade de criação, pois o processo em rede operava essas forças no grupo-equipe e apontava para a produção. As escritas faziam-se na velocidade dos desconfortos da equipe de psicologia, de nossas dores e alegrias, constituindo um poderoso instrumento de construção coletiva que era continente com as questões-instituições analisadas a partir do contato com os jovens.

O novelo, seguindo seu movimento, já mostrava novas configurações, tinha desenhos que antes não existiam, formados no próprio percurso do desenrolar de si mesmo, impossível de ser previsto antes. No grupo-dispositivo, não se pode definir qual será A Questão a ser tratada simplesmente porque ela vai sendo gerada a todo momento, é produzida com, e não determinada a priori: o processo é pensado no processo. O pensar-se no tempo (atividade proposta) foi dando espaço ao pensar o tempo, como localizar-se nessa construção subjetiva de todos.

Com esse deslocamento, voltou novamente a desterritorialização da psicologia cristalizada, já que só foi possível perceber o movimento do grupo por estarmos atentas a como as coisas aconteciam na prática e não acharmos que "nada foi produzido" por não haver saído como planejado. Poder observar como se articula o que é proposto como ponto de partida com a realidade em questão, é sumamente importante na intervenção. Escutar o que esses jovens falam com sua forma de ser - entendida como "desinteressada" por muitos profissionais - e perceber com eles, não com nossa lógica fechada em si mesma. O fato de sair da noção disciplinar de tarefas a serem cumpridas permitiu a relação de análise e de implicação do grupo que produzia-consumia as linhas do novelo-viagem.

O BOM, O MAU E O FEIO: ESTÉTICAS DOMINANTES

Como o intercâmbio era decorrência de um acordo entre governos, ouvia-se seguido que estavam viajando com verba do Estado, ou seja, pública, portanto todos os cidadãos haviam pagado, o que significava que eles deveriam ter grande consciência e responsabilidade a respeito disso. No grupo, foi aparecendo certa ironia sobre esse "lembrete" constante, pois qualquer que fosse a discussão, isso era trazido à tona pela coordenação do Programa.

Mais um movimento da tecelagem em nossa caminhada, entrando em cena a relação entre eles e o estado/sociedade. O lugar atribuído era o de "coitados", sujeitos jogados em uma eterna dívida pelo que o Estado fazia. A frase cuspida pelo grupo enunciava essa sensação: "eles querem ouvir que estamos muito gratos, que precisamos de ajuda e que agradecemos muito pelo que nos dão... é, sempre o bonito ajudando o feio!". Questionavam o lugar de seres "doces" (sic) recebendo a ajuda caritativa de seres "benevolentes" (sic). Na visão dualista predominante, só podiam haver duas possibilidades: ou os jovens eram criminosos, sem chances de mudanças, ou eram coitados que deviam ser tuteladas e guiados a um lugar seguro para todos. Certamente, a proposta do Programa e da equipe de psicologia fugia desse dualismo e apostava em outros desfechos possíveis.

Um tempo depois, ao verem alguns artigos em jornais, manifestaram novamente a desconformidade com os termos usados para se referirem a eles ("infrator", "sob risco", "em situação de risco", "abrigados", "internos"). "Ninguém perguntou para mim se podiam me chamar assim!", foi o que disseram. Estava claro que aquela nomenclatura não descrevia satisfatoriamente o que eles eram, mas a pergunta era inevitável: como querem, então, ser chamados? A questão era pertinente, pois deviam começar a pensar em como se apresentariam quando estivessem participando das atividades propostas no outro país. O que queriam falar de si? O que tinham para contar? Não conseguiram responder, e o silêncio em suas respostas apontava para nova análise. Novo ponto de nosso novelo, o qual parecia ter entrado no ritmo acelerado de desconfigurações e reconfigurações de sentidos.

Mais tarde, o tema "assaltos" passou a manifestar-se em vários encontros, invariavelmente com comentários an passant ou com rápidas referências a fatos ocorridos com "terceiros", sempre com uma distância prudente entre os fatos relatados e suas experiências pessoais. Atentas aos fios que se abriam, escutamos essas falas como uma forma de trazer o desejo de discutir o tema. Decidimos colocar em palavras o que sentíamos estar em análise, de forma direta: "por que será que vocês fazem questão de mostrar principalmente esse aspecto da vida de vocês, relacionado aos assaltos e violência?". Foi o suficiente. O que vinha se perfilando há algum tempo com relação à posição de vítimas em que eram colocados (e se colocavam), aos termos usados para designá-los, à dicotomia entre serem vítimas (crianças indefesas que se curariam com o passar do tempo, existentes apenas enquanto futuro) e serem "monstros" (adultos prontos, marcados por seu passado marcante) estava agora rachado, de modo a permitir que fosse analisado o que estava em luta no campo de forças, e nessa fenda aberta estavam as formas de produção de subjetividade do contemporâneo.

Diante de nossa pergunta, a reação foi veemente: "claro que tem outras cosas para a gente falar, nossa vida não é só isso!". Mas, nos dez minutos seguintes, nenhum deles conseguiu articular uma fala sobre si que não se referisse ao contexto da FASE - Fundação de Atendimento Sócio Educativo (insistimos em lembrar que nem todos os jovens daquele grupo tinham passagem por esse estabelecimento, mas mesmo os que estavam em abrigos se sentiam marcados de alguma forma por ele). Percebemos que não conseguiam pensar algo de si que não estivesse relacionado ao ato infracional, trancando suas vidas em uma referência identitária aprisionadora (GUATTARI, 1998). Por que não conseguiam ver-se de outra forma que não aquela marcada pela violência e/ou pela infração?

Sabemos que a lógica de funcionamento e as possibilidades de ação dos sujeitos encontram-se estruturadas pelas instituições vigentes na sociedade onde vive (trabalho, educação, família, etc). Neste sentido, "o sujeito é concebido como efeito das instituições que o perpassam, ou seja, sua subjetivação é dada nestes espaços e interjogos simbólicos" (FRANCISCO, 1997). Os acionamentos do dispositivo grupal trabalham para interromper as falas cristalizadas, os afetos congelados em territórios fechados, provocando inquietações que, se amplificadas, geram deslocamentos dos lugares rígidos nos quais se encontravam tais falas e afetos.

Naquele momento, o grupo dispositivo operava em plena potência, tensionando, denunciando e deslocando, provocando outros agenciamentos. Tínhamos chegado em um ponto no qual eles começavam a perceber como as máquinas de subjetivação dominantes produziam suas formas de viver e de se relacionarem com o mundo, e como eles reproduziam isso em seu dia a dia. Falar dos assaltos era uma forma de falar de si e, ao mesmo tempo, denunciar as sabotagens daquelas máquinas às tentativas dos jovens de habitar outras formas de ser.

QUEBRANDO CLICHÊS

No começo, as credenciais pareciam já estar dadas, eles enquanto transgressores (não apenas no sentido do ato infracional), nós enquanto autoridade. Mas, no grupo, estas certezas foram se confundindo, e a saída desses lugares garantidos que ocupávamos dava medo, mesmo que fosse saída do lugar de "maloqueiro" (sic) e o jovem gritasse para ser visto de outra forma. Quando propomos outra psicologia, que não a que julga e avalia, precipitamos uma desconstrução que era incômoda tanto para eles como para nós, pois implicava que renunciássemos à relação (e à segurança) propiciada pelos lugares tradicionais, arriscando a perder o laço estabelecido com eles dentro desses moldes. Mas, se por um lado era desconfortável, por outro o grupo ia mostrando que queria (e precisava) desse lugar diferente, um outro que não fosse nem o do igual que se confundia, nem o do superior que definia, de antemão, sua distância mínima: o grupo precisava transversalizar (DELEUZE E GUATTARI, 1996).

Apesar de criticarem duramente o modo como os outros os viam, eles acabavam reforçando e confirmando a imagem construída através de suas falas e ações, vestindo esse tricô pronto ao invés de tecer uma outra malha. Ao experimentar uma situação diferente, que não remetia a nenhum lugar previamente conhecido, necessariamente tivemos, todos, que pensar em novas formas de vincular-nos, novas formas de ser. Tomar o discurso sobre assaltos como um analisador permitiu que isso fosse colocado em movimento.

Tende-se a pensar que uma mudança assim só aconteceria se fosse assegurado um lugar fixo, uma espécie de lei externa essencial para que esses jovens encontrassem uma referência identitária. Surpreendentemente, descobrimos que a busca de alternativas só seria possível através de algo que fosse móvel, em vez de rígido: nosso lugar na relação com eles. Se nos autorizávamos a procurar outros papéis, eles podiam arriscar-se a tentar também.

ARTESANIA NA JUVENTUDE (INFR)ATORA?

Devemos reconhecer que fomos, todos, persistentes e corajosos desbravadores dos terrenos do desejo. Fazer com que os jovens e nós mesmos nos reconhecêssemos em nossas produções exigiu constantes investimentos e empréstimos de corpos para dar eco às criações, visibilizando aquilo que tendia a passar desapercebido. Para o cartógrafo, atentar para os afetos e intensidades que pedem passagem é condição sine qua non do trabalho. Para nós, significava ser ponto de ressonância dos movimentos do coletivo, apontar para as fendas e ampliá-las ao máximo.

Ao se enxergarem no processo, através do que percebiam em nós como efeitos do encontro, os jovens perceberam as mudanças em cada uma das linhas do novelo com agradável surpresa. Um deles verbaliza: "bah, nosso envolvimento com a viagem aumentou um monte! Antes eu vinha para as atividades e ficava pensando nas coisas da rua, o que tinha que fazer no outro dia, o que ia comer depois, e agora venho e fico pensando nas coisas daqui, da viagem...". A viagem tinha passado de ser algo apenas recebido de fora para ser algo conquistado, que tinha o desejo de cada um em ir, envolver-se e deixar-se misturar nesse processo.

Relacionar-se desta forma com a viagem fazia com que levassem isso a outros planos de suas vidas. O grupo era uma espécie de exercício no campo de forças, onde era possível experimentar outros estatutos para manter essa vivência na vida além-viagem. Essa é, precisamente, a marca do dispositivo: os efeitos ali produzidos vão sempre além, não estão encapsulados naquele tempo e espaço determinados (BARROS, 1994).

Sentimos que o fazer cartográfico é semelhante ao fazer do artesão: tecer tramas com fios que se enredam e configuram paisagens, ao mesmo tempo em que se cria a si mesmo. Os novelos de lã decompõem-se e se oferecem, como os territórios, para serem traçados durante o percurso. O desafio é "deixar-se levar, atentamente, pelo rumo dos acontecimentos e, nesse fluxo, construir territórios de sentidos" (DIÓGENES, 1998, p. 18). Os artesãos-analistas, neste caso, éramos todos, a ação não estava restrita apenas à psicologia. São os analisadores que fazem a análise, afirma Baremblitt (1992), referindo-se a que no próprio processo do grupo emergem temas, as "pontas de novelo", que colocam em marcha a análise e mais novos movimentos.

A juventude, de forma geral, tem uma velocidade característica que parece empurrar os analisadores em seu aparecimento. De fato, todos conhecemos a facilidade com que o jovem questiona o sistema e a autoridade com suas provocações, apontando para as incongruências da sociedade em que se insere. Nos jovens autores de ato infracional, essa capacidade parece estar potencializada, e tanto suas ações como suas falas colocam constantemente em análise o modo como estamos organizados socialmente. Por essa função sinalizadora que exercem, os reconhecemos como autênticos artesãos de análise.

Parece estranho falar de supostos "delinqüentes" como artesãos-analistas? Talvez, mas não estamos sós nessa construção. Rassial (1999) define o delinqüente como o que desaloja, o que sai do lugar que lhe é atribuído pela sociedade em busca de um novo espaço. O ato delinqüente seria uma tentativa, dentre outras, de inventar outras regras de deslocamento do sujeito e dos objetos. Nesse sentido, o ato delinqüente poderia ser concebido como algo positivo: ainda é um apelo à sociedade. O autor considera que o jovem delinqüente, na verdade, não é radicalmente diferente de outro jovem, exceto que o acentua, estando mais suscetível aos impasses do laço social.

Freire Costa (2002) menciona um tipo de transgressão a qual chama de trasngressão moral ética, que seria algum ato que dá margem ao surgimento de outros atos inovadores no terreno da reinvenção de si. Neste sentido, a transgressão é tomada como criação, criatividade, invenção, busca de novas formas e sentidos. Birman (2002) também fala que transgredir é a forma pela qual a individualidade resiste ao imperativo da normalização e da disciplina; questiona o território delimitado pelas normas. A transgressão proporia singularidade, diferença, ruptura, descontinuidade. Não é algo semelhante ao fazer de um analista?

A diferença é que a palavra infração provoca, na maioria de nós, uma sensação desconfortável, associada principalmente a uma parte da população que costumava ser chamada de "menor infrator". Mas, a partir do contato com os jovens no grupo, adquirimos o hábito de questionar os termos que usamos cotidianamente, como um exercício para desnaturalizar os fenômenos que nos parecem como a-históricos e isentos de valor. Procurando no dicionário, descobrimos que infração vem do latim infractione, que significa ação de quebrar. Desalojar, inovar na invenção de si, quebrar com o estabelecido, definitivamente havia algo ali que insistia na positividade dos termos, numa autoria que procura construir territórios que de outra forma são impedidos. Infração passou a ser (infr)ação, com especial ênfase no movimento que o termo implica.

O jovem cumprindo medida sócio-educativa nos coloca diante de um paradoxo: por um lado nos mostra a violência, a morte, e por outro a criação, a vida. Se pensássemos no infrator como alguém com desvio de conduta, e não como alguém que busca algo diferente para si, ficaríamos limitadas por essa visão dualista e não poderíamos perceber que o jovem tinha tanto a violência como a criação dentro de si, e também muito mais além disso. O medo nos faz perceber estes jovens como agressores e ameaçadores, mas quando partimos desse sentimento para ir um pouco além, descobrimos quanta vida há neles, quanta luta, uma potência incrível para a construção e a invenção.

A infração e os roubos, aqueles do poema inicial, passaram a ter outros sentidos: agora falavam de empréstimos mútuos de novas formas de ser para cada um. Quem emprestava a quem? Quem tomava de quem? Difícil dizer. Na pragmática, aprendemos que a subjetividade não se encontra restrita a um sujeito em particular, pois é muito mais que individual. O indivíduo, na verdade, funciona como um terminal por onde passam os processos dos conjuntos humanos, socioeconômicos, etc; ele consome a subjetividade que circula (Guattari, 1990). Naquele coletivo, não se tratava de pensar em termos de "eles" e "nós" nem de aprisionar a subjetividade como uma propriedade privada. Tratava-se de impregnar-nos com as possibilidades que aquele encontro abria para todos.

NOTAS

Recebido: 9/12/2003

1ª revisão: 5/2/2004

Aceite final: 2/3/200

Fernanda Bocco é psicóloga formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, participante do Grupo de Extensão Juventude e Contemporaneidade do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS. O endereço eletrônico da autora é: fbocco@terra.com.br

Gislei Domingas Romanzini Lazzarotto é professora do Instituto de Psicologia da UFRGS e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. O endereço eletrônico é: gislei@portoweb.com.br

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Nov 2004
    • Data do Fascículo
      Ago 2004

    Histórico

    • Recebido
      09 Dez 2003
    • Revisado
      05 Fev 2004
    • Aceito
      02 Mar 2004
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