Acessibilidade / Reportar erro

Digitação na entrada de dados: transformações na identidade ocupacional

Typing and data entry keyers: changes in occupational identity

Resumos

O artigo tem como objeto a ocupação de digitador na entrada de dados, que constituía, nos anos 70-80, a base do sistema ocupacional na organização do trabalho da computação e da informática. Com base numa pesquisa realizada na cidade de Goiânia, analisa-se as transformações na identidade ocupacional de digitadores em serviços de entrada de dados com o desenvolvimento tecnológico dos sistemas de informação e comunicação. Procura-se reconstruir as condições de imputação e de reconhecimento de um vocabulário dos motivos que é internalizado pelos digitadores e remete a situações sociais específicas, relacionadas à organização do trabalho informático no Brasil e a suas transformações, incluindo o deslocamento dos digitadores para outros setores de trabalho ou ocupações, como processamento de textos.

Trabalho informático; Ocupação; Profissão


The article focuses the occupation of data entry keyers, the base of the occupational system that organized computer work in seventies and eighties. Based in a qualitative research realized in the city of Goiania, deals with changes in the occupational identity in data entry keyers due to the technical development of information and communication systems. The inquiry analyses the conditions of imputation and acknowledgement of a vocabulary of motives that is internalized by data entry workers. This vocabulary refers to specific social situations, concerned to changes in computer work organization that include the shifting of data entry keyers to other work sectors ou occupations, like word processor typing.

Occupation; Profession; Computer work


Digitação na entrada de dados: transformações na identidade ocupacional1 1 O presente texto já serviu de base para uma comunicação, apresentada no GT Ocupações e Profissões do XI Congresso Brasileiro de Sociologia realizado na Unicamp em setembro de 2003.

Typing and data entry keyers: changes in occupational identity

Jordão Horta Nunes; Juliana Abrão da Silva Castilho

Universidade Federal de Goiás

RESUMO

O artigo tem como objeto a ocupação de digitador na entrada de dados, que constituía, nos anos 70-80, a base do sistema ocupacional na organização do trabalho da computação e da informática. Com base numa pesquisa realizada na cidade de Goiânia, analisa-se as transformações na identidade ocupacional de digitadores em serviços de entrada de dados com o desenvolvimento tecnológico dos sistemas de informação e comunicação. Procura-se reconstruir as condições de imputação e de reconhecimento de um vocabulário dos motivos que é internalizado pelos digitadores e remete a situações sociais específicas, relacionadas à organização do trabalho informático no Brasil e a suas transformações, incluindo o deslocamento dos digitadores para outros setores de trabalho ou ocupações, como processamento de textos.

Palavras-chave: Trabalho informático. Ocupação. Profissão.

ABSTRACT

The article focuses the occupation of data entry keyers, the base of the occupational system that organized computer work in seventies and eighties. Based in a qualitative research realized in the city of Goiania, deals with changes in the occupational identity in data entry keyers due to the technical development of information and communication systems. The inquiry analyses the conditions of imputation and acknowledgement of a vocabulary of motives that is internalized by data entry workers. This vocabulary refers to specific social situations, concerned to changes in computer work organization that include the shifting of data entry keyers to other work sectors ou occupations, like word processor typing.

Key-words: Occupation. Profession. Computer work.

A ocupação de digitador foi considerada, na fase áurea dos centros de processamento de dados (CPDs), como o ponto de partida numa promissora carreira no emergente mercado de trabalho da computação e da informática. De fato, a digitação compreendia a base de um sistema ocupacional organizado hierarquicamente, que incorporava também, numa classificação ascendente, as funções de operador, programador e analista de sistemas. O emprego maciço de digitadores ocorreu numa segunda fase da evolução tecnológica dos computadores, que sucedeu uma primeira etapa de produção artesanal e experimental, ainda confinada nos centros e laboratórios de pesquisa. Caracterizada pelo uso de grandes sistemas de computadores (mainframes) instalados em CPDs, essa fase marca a própria estruturação do trabalho informático que, no Brasil, ocorreu entre os anos 70 e 80. Com a gradativa substituição dos mainframes por microcomputadores e a correspondente flexibilização do sistema ocupacional anterior, aproximando as fases da produção (digitação e operação) e do desenvolvimento (programação e análise), algumas dessas ocupações transformam-se drasticamente e outras, como é o caso da digitação na entrada de dados, tendem a declinar ou mesmo a desaparecer. Contudo, ainda que o desaparecimento de trabalhadores ligados à entrada de dados seja evidente, o mesmo parece não ocorrer com a ocupação de digitador. Afinal, é comum a referência à digitação de trabalhos entre os diversos serviços oferecidos por empresas de reprografia ou mesmo por gráficas de pequeno porte.

Trataremos aqui das transformações na ocupação de digitador e das conseqüências dessa mudança na construção de uma identidade ocupacional. Segundo a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) o digitador trabalha na entrada de um sistema de processamento de dados, operando mini ou microcomputadores digitais; sua função é gravar informações e "interpretar as mensagens fornecidas pela máquina, para efetuar a detecção dos registros incorretos e adotar as medidas adequadas ao sistema" (Categoria de Digitador - Código 3-42.40 - CBO). A pesquisa valoriza uma proposição teórica que é familiar à psicologia social e à escola sociológica do Interacionismo Simbólico: qualquer discussão de identidade tem como ponto central a linguagem. Quando expressamos vocabulários de motivos, ou simplesmente nomeamos ou classificamos despertamos também expectativas, realizamos antecipações e revelamos uma perspectiva de avaliação. Cada vocabulário de motivos não representa simplesmente uma descrição de uma situação social, mas consiste numa forma de agir e envolve uma negociação de identidades. Em outras palavras, efetiva-se uma definição "lingüística" de situações e interações envolvendo os digitadores e outros profissionais da entrada de dados na organização do trabalho informático.

O recurso à teoria sociológica dos motivos (MILLS, 1970; SCOTT e LYMAN, 1989) indica uma abordagem interacionista à questão da identidade (STRAUSS, 1997; BECKER, 1963) que valoriza o processo de construção identitária e não uma visão essencialista, que concebe a identidade como unidade psíquica coerente e estável. Por outro lado, situamos a noção de "identidade ocupacional" no contexto de uma distinção entre "profissão" e "ocupação" que é tão caro à sociologia do trabalho. Vários autores compartilham a idéia de que uma profissão requer a constituição de um tipo de controle sobre o reconhecimento de ocupações, que são atividades ou habilidades funcionais sistematicamente relacionadas. Andrew Abbott, por exemplo, enfatiza um sistema de conhecimento com certo grau de abstração que gera práticas técnicas. Este tipo de conhecimento consiste o instrumento pelo qual certos grupos ocupacionais se impõem num contexto histórico e social, garantindo exclusividade e validade num sistema concorrencial. Ainda que uma categoria ocupacional possam desenvolver um código de ética, obter reconhecimento legal ou até constituir representação sindical, "somente um sistema de conhecimento governado por abstrações pode redefinir seus problemas e tarefas, defendê-los de intrusos e dimensionar novos problemas" (ABBOTT, 1988, p. 9).

Embora os digitadores não tenham logrado a constituição de um tal sistema de conhecimento em nível abstrato, como ocorreu em outros grupos ocupacionais que atingiram o nível de profissão (a exemplo dos analistas de sistemas), eles vivenciaram um processo de definição e negociação das atividades ocupacionais, assim como do conhecimento técnico a elas associado, tanto em nível interno da categoria quanto em relação com outros profissionais da entrada de dados. Este processo de construção da identidade ocupacional, que compreende a inclusão e a exclusão de categorias, procedimentos e regras sofreu profundas transformações nos últimos vinte anos, a despeito de sua expressão lingüística mais geral ter permanecido: digitadores.

METODOLOGIA

As considerações a seguir têm como base uma pesquisa realizada na cidade de Goiânia durante um ano, a partir de agosto de 2001, com a participação de Juliana Abrão da Silva Castilho, na época bolsista do PIBIC. A investigação envolveu o artifício metodológico da triangulação, processo de validação de dados obtidos com fontes e métodos diferentes (DENZIN, 1978; BRANNEN, 1992). A memória da experiência profissional2 2 Jordao Horta Nunes, coordenador da pesquisa, teve uma experiência prévia como digitador na entrada de dados, trabalhando regularmente nesta ocupação em 1983 e depois no período 1986-88, em vários birôs que prestavam serviços para a Cia. Paulista de Força e Luz (CPFL), na época uma companhia estatal que se encarregava da produção e da distribuição da energia elétrica no interior do estado de São Paulo. , complementada por algumas obras específicas como fontes secundárias e resultados de uma base de dados administrativa do MTE formaram a base que orientou a obtenção de dados primários qualitativos, a partir de entrevistas semi-estruturadas. O critério para a aceitação de novos elementos empíricos surgidos unicamente das entrevistas realizadas à base constituída por fontes secundárias, memória da experiência do pesquisador e bases de dados sobre o mercado de trabalho (RAIS e Caged) foi a consistência na informação em pelo menos duas entrevistas.3 3 Esse critério para admissão de novas informações na base de triangulação foi inspirado em Davies (2001: 78-9).

Embora a triangulação envolva técnicas de análise de dados quantitativos e qualitativos, a base empírica da pesquisa é eminentemente qualitativa e tem como fonte privilegiada o discurso dos digitadores e profissionais de entrada de dados a respeito de sua experiência profissional. Foram entrevistados 14 profissionais; doze trabalharam na digitação de entrada de dados, sendo que um deles ainda trabalha nessa ocupação. Os dois restantes são jovens profissionais da categoria de "digitador" em processadores de textos para computadores pessoais4 3 Esse critério para admissão de novas informações na base de triangulação foi inspirado em Davies (2001: 78-9). . O critério para a escolha dos informantes foi fundamentalmente a experiência anterior do pesquisador como digitador. O ponto de partida foi uma entrevista com um ex-funcionário da Codeg5 5 Companhia de Desenvolvimento do Estado de Goiás, empresa estatal que se encarregava do processamento de dados de diversas instituições prestadoras de serviços públicos (água, energia elétrica, trânsito, receita, etc.). , a primeira empresa estatal de processamento de dados do estado de Goiás. O profissional iniciou a carreira como digitador e hoje é analista de sistemas, tendo vivenciado, portanto, toda a hierarquia funcional do trabalho informático na época. A indicação de alguns colegas para entrevistas iniciou um processo do tipo "bola-de-neve" (snowball), conduzindo a uma sucessiva seleção de novos informantes, sob o critério da relevância em relação à fundamentação teórica e com base nas declarações dos entrevistados. Os textos das entrevistas foram codificados com base em categorias interpretativas que conferiram unidade ao corpus formado pelas transcrições. O suporte semântico de tais categorias é a memória da experiência profissional do digitador e os dados secundários sobre a organização do trabalho informático, no aspecto geral, e sobre digitadores da entrada de dados em países subdesenvolvidos, numa dimensão específica. O processo de criação de categorias de codificação é de caráter recursivo; o mapeamento das categorias confere unidade semântica ao corpus, mas do próprio corpus emergem novas categorias, aprimorando os códigos básicos que são derivados de teorias sobre a organização do trabalho informático e de reconstruções da experiência vivida.

Os nomes dos entrevistados foram associados a pseudônimos, para preservar a identidade dos participantes. O mesmo ocorre com pessoas eventualmente citadas nos depoimentos, a não ser personalidades publicamente reconhecidas. Os nomes de empresas ou instituições eventualmente mencionados são mantidos, com exceção da empresa em que o digitador estivesse empregado na ocasião da entrevista.

A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO INFORMÁTICO NA FASE ÁUREA DOS CPDS

Sintetizamos a seguir algumas constatações a respeito das características gerais da organização do trabalho nos antigos CPDs e, especificamente, do trabalho de digitador na entrada de dados (Soares, 1989; LAZZAROTTO, 1992; Rapkiewicz e Segre, 1999, 2001a, 2001b; SALLES, 1995; MERLO, 1999). Há concordância em que uma forma de taylorismo estrutura a organização de trabalho nos CPDs e pode ser evidenciada nos seguintes aspectos:

- nítida divisão entre planejamento e execução do trabalho;

- fragmentação e racionalização do trabalho, por um processo de desqualificação para os executores (programadores, operadores, preparadores, digitadores e fitotecários) e hiperqualificação para os poucos que podem planejar (analistas);

- controle do trabalho por monitoração eletrônica. A valorização desse tipo de controle nos CPDs ilustra que "o emprego de novas tecnologias não é utilizado no sentido de aliviar a carga de trabalho ou de permitir maior autonomia" ou criatividade em sua execução, mas de "impor maior exigência de ritmos e cadências" (MERLO et al, 2003: 129).

- interação mínima entre a organização e o trabalhador em termos de qualificação, minimizando o treinamento e gerando dificuldades para a ascensão profissional;

- instalação dos CPDs em ambientes isolados, com o objetivo de intensificar o trabalho e disciplinar a mão-de-obra;

- insatisfação dos digitadores perante a monotonia e a falta de perspectivas do trabalho;

- ocorrência de LER (lesões por esforço repetitivo) entre os digitadores, em decorrência de instalações inadequadas e jornadas longas e ininterruptas, por vezes em decorrência de superposição de dois turnos de trabalho em empresas diferentes.

Ainda que a caracterização anterior seja fidedigna para os grandes centros do Sul e do Sudeste, o quadro anterior parece incorporar outros fatores, em outras regiões e cidades com padrões sociais e econômicos distintos, como indicam os resultados da pesquisa que realizamos em Goiânia.

OS DIGITADORES NA ESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO INFORMÁTICO EM GOIÂNIA

Planejada e construída para ser a nova capital de Goiás no início dos anos 30, Goiânia era, em meados dos anos 70, uma cidade com uma população economicamente ativa de 47295 pessoas, segundo o Censo Econômico de Goiás de 1975. A economia da cidade, concentrada, nos anos 50 e 60, preponderantemente no setor primário (67% e 64%, respectivamente), tem seu centro deslocado para o terciário (68,6%), com declínio acentuado no primário (8,7%) e relativo crescimento no secundário (de 12,95% em 1950 para 22,67%) em 1975 (MIRANDA, 1984). O processo de urbanização acelerada por que passou Goiânia não teve, portanto, a exemplo dos centros do Sul e do Sudeste, um desenvolvimento industrial concomitante. Embora a esperança de seguir carreira nessa área fosse grande nos digitadores que ingressavam, tanto em Goiás como nos centros do Sul e Sudeste, nestes a situação era mais difícil, pois os centros de processamento de dados já eram bastante comuns. Bancos de dados setoriais já estavam constituídos e não era mais viável ou desejável implantar uma central única que gerenciasse dados de diversas áreas, como era o caso em Goiânia. Daí a excepcionalidade da condição dos trabalhadores de informática no CPD da Codeg, demandando uma responsabilidade muito grande de seus profissionais, que constituíam um tipo de elite técnica. Conseqüentemente, o salário era bastante alto nos níveis médio e alto da carreira e Niara ressalta bem essa distinção: "Nós éramos a elite dentro do estado de Goiás, técnico em informática era, como se fosse, assim, um doutorado. Quando você falava assim: 'eu trabalho na Codeg, eu sou programador', era super respeitado".O salário de um analista era suficiente, segundo Niara, "dava para comprar um carro zero por mês". Ainda assim, os salários iniciais dos digitadores no CPD da Codeg eram relativamente baixos. Niara ganhava Cr$ 600 em 1975, o equivalente a 1,1 salário mínimo. No final do mesmo ano, quando já ocupava a função de supervisora de digitação, passou a receber 2,3 salários mínimos. Mesmo considerando que haja, eventualmente, recebido por horas extras de trabalho ou percentuais pela alta produção, seu salário não teria ultrapassado, na ocupação de digitadora, a média de 2 a 3 salários mínimos que se recebia por essa ocupação. Portanto, a ênfase nas vantagens da profissão presente em vários depoimentos decorre muito mais da apologia em torno de uma profissão técnica "do futuro", socialmente construída e amplificada em razão das peculiaridades do mercado de trabalho na capital emergente, do que de reais benefícios com o exercício da profissão.

O CPD da Codeg apresentava o tipo de organização de trabalho taylorista, com fragmentação e hierarquização de ocupações, rígido controle e monitoração constante das atividades. Havia uma possibilidade de interação entre os profissionais hierarquizados, nos intervalos que, na Codeg, eram de 10 minutos a cada hora trabalhada, com um intervalo de 20 minutos para lanche no meio de jornada de 6 horas por turno. Vale destacar que essa prática de realizar intervalos de 10 minutos por hora trabalhada não era usual nos CPDs. O sistema na Codeg antecipava a Portaria 3.751/90, que estipulava "parâmetros que permitem a adaptação das condições de trabalho às características psicofisiológicas dos trabalhadores". Um desses parâmetros (que veio a ser reconhecido entre os digitadores como "lei cinqüenta dez") prescreve que "nas atividades de entrada de dados deve haver, no mínimo, uma pausa de 10 minutos para cada 50 minutos trabalhados, não deduzidos da jornada normal de trabalho". Contudo, antes dessa norma ser aprovada, após anos de reivindicação sindical em todo o país, a prática dos 15 minutos de intervalo por turno era quase um padrão.

O trabalho na digitação de entrada de dados consistia um atrativo, sem dúvida, principalmente para jovens que ingressavam na vida profissional. Contudo, os turnos de meio período atraíam preponderantemente pessoas que desejavam, ou necessitavam, exercer outras atividades no tempo diário restante. A ausência de uma qualificação em termos de técnica ou escolaridade para o ingresso na profissão constituía outro estimulo. O depoimento de Teka, que foi digitadora na Celg por muitos anos, é exemplar para mostrar os motivos que conduziam ao ingresso nessa profissão:

No meu caso foi por necessidade de tempo, eu fiquei viúva muito nova e tinha duas filhas pequenas e trabalhava oito horas e tinha dificuldade de pessoas pra ajudar, de ajudante, então foi preciso, de uma vez por outra, eu precisei trabalhar meio período pra cuidar de minhas filhas. Tinha muitos casos de gente igual eu e tinha muita gente que trabalhava pra ter um outro serviço ou estudar, fazer uma faculdade, eu sei vários casos de pessoas que trabalhavam em um período e em outro período, fazia coisas à parte. Eu tinha que trabalhar meio período e nessa época, meio período, ou você era digitador ou você era telefonista. Então eu optei por ser digitadora.

A declaração de Teka ilustra a segregação ocupacional, mas também a desigualdade nas oportunidades de ascensão profissional relacionadas ao gênero, temática que têm recebido a atenção de especialistas em ocupações na sociologia do trabalho (HULTIN, 2003; LARANJEIRA, 1990; SEGNINI, 1998, 1996). Embora o motivo mencionado por Teka seja mais freqüente no gênero feminino, havia muitos homens que digitavam em turnos noturnos para complementar a renda ou que trabalhavam de dia para custear um curso técnico ou faculdade à noite. Entretanto, a prática mais comum entre os digitadores era superpor dois e até três turnos de trabalho. Poucos experimentaram uma ascensão profissional; no caso dos que trabalhavam em birôs, essa mobilidade era praticamente impossível. Em que consistia o trabalho do digitador? Reproduzir valores numéricos ou alfanuméricos (que continham caracteres alfabéticos, além de numéricos) de documentos como contas de água, de luz, cheques a serem compensados, multas de trânsito, faturas e documentos administrativos diversos. Havia dias críticos em que se precisava fechar a arrecadação de contas de luz, por exemplo. Nesses dias os digitadores faziam horas extras, chegando até a dobrar seus turnos, para finalizar a quantidade de lotes de documentos necessária para o cumprimento da tarefa.

Os CPDs eram ambientes fechados, sempre mantidos em baixa temperatura, para não danificar os equipamentos. A atenção requerida e a fiscalização feita pelo supervisor tornavam praticamente inviável a comunicação durante o horário de trabalho. A incomunicabilidade, tanto em nível da operação interna, como no contato com outros setores da empresa, traço da fragmentação do trabalho que caracterizava a organização de trabalho do tipo taylorista, se manifestava desde o arranjo físico da sala até a programação da rotina e das atividades. A disciplina, o controle e a racionalização do processo do trabalho em todos os seus aspectos constituíam a essência dos CPDs. Contudo, a percepção dessas características pelos digitadores varia e está relacionada com a probabilidade de ascensão ocupacional.

O CONTROLE DO PROCESSO DE TRABALHO: DO OLHAR PANÓPTICO À MONITORAÇÃO ELETRÔNICA

Perguntamos a todos os digitadores de entrada de dados entrevistados como seria "um bom digitador", ou seja, quais seriam as características de um bom profissional nessa área. Todas as respostas incluíram os critério de "velocidade" e "correção", ainda que, eventualmente, houvesse menção a outros fatores, como a capacidade de se adaptar às regras ou à disciplina exigida no trabalho:

O bom digitador era aquele que produzia e sem erro, na época exigia que a gente tinha que digitar e checar o serviço, não era checado, e hoje checa [automaticamente], né? Você tivesse checado os erros que passa são mínimos, né? Então era aquele que não deixava passar erro. (Carô)

Era aquele que tinha rapidez, e que errava o menos possível, era um bom digitador. (Esther)

Essas concepções de um adequado exercício da profissão parecem se relacionar com o domínio da técnica. Contudo, não há propriamente uma técnica de digitação para entrada de dados. Os textos alfanuméricos eram muito menos freqüentes do que as simples seqüências de números. Assim, o trabalho do digitador compreendia apenas um reduzido domínio da técnica datilográfica. Além disso, as teclas oferecem pouquíssima resistência ao toque, em comparação com os teclados mecânicos, o que permite que um profissional de nível médio chegue a produzir até 18 mil toques/hora; os resultados são ainda melhores para digitadores mais experientes e habilidosos. O profissional nessa área está envolvido pela contagem escrupulosa de sua produção de toques/hora desde o momento em que faz um teste para admissão até as circunstâncias em que é promovido ou despedido por evolução ou declínio em sua performance. A situação em que trabalha, necessariamente vinculado a um terminal de vídeo, sem possibilidade de interagir com os colegas e, ao mesmo tempo, dependente de uma performance operativa para assegurar sua posição no sistema, cuja mensuração é feita pela própria máquina, o faz desenvolver uma certa forma de falar. Trata-se de um vocabulário típico associado a essa situação de trabalho peculiar, sobre a qual há um consenso, entre os que a experimentam, a respeito de sua percepção pelos agentes e da norma que a rege. Essa forma típica de falar constitui, segundo Mills (1970) e Lyman & Scott (1989), um "vocabulário dos motivos".

Mills sugere uma forma para analisar sociologicamente os vocabulários de motivos: a variável é o vocabulário de motivos aceito, os extremos do discurso, em cada grupo dominante para a formação da opinião de um indivíduo. "A determinação de tais grupos, seu caráter e localização iriam possibilitar a delimitação e o controle metodológico de atribuições de motivos" (1970: 477).. Em nosso caso, o vocabulário de motivos expressa a identidade ocupacional do digitador, que é reconhecida em função de sua rapidez e correção ou, na fala dos próprios funcionários ligados à entrada de dados, dos "toques/hora". Já nos classificados de empregos procurando digitadores o requisito de identificação do funcionário aparece: "Vaga para digitador. Exige-se um mínimo de 12 mil toques/hora". O "toques/hora" implica qualificação individual, controle administrativo, reconhecimento num grupo ocupacional e distinção num sistema de processamento de dados. O depoimento de Carô, que inclusive chegou a ser supervisora, além de digitadora, evidencia que o controle da produção estava relacionado com a avaliação e refletia no prestígio e até na remuneração do funcionário, embora este não concordasse com a mensuração: "Além da Saneago as outras todas tinham um programa de produção que saía de toques, nível de toques. Você fazia tantos toques e ganhava uma porcentagem que eu não lembro como era feito o pagamento, a gente tinha o salário mais a quantidade de produção".

O controle não incidia apenas sobre o número de toques/hora e a quantidade de erros, mas também sua o tempo de permanência na máquina e as flutuações da velocidade e da precisão no decorrer do período. Por esse tipo de controle e o caráter de isolamento dos CPDs, Soares chega a qualificar os CPDs nas décadas de 70 e 80 como instituições totais, no sentido conferido por Goffman de Asylums (1961: 4-5). O controle principiava na distribuição especial dos pools de digitação nos CPDs, que geralmente adotavam a forma de uma sala de aula, com o supervisor (em analogia com o professor regente) ocupando uma mesa à frente da sala e os digitadores alinhados, como estudantes em carteiras, de frente para o supervisor.. O supervisor, com sua visão panóptica, tinha controle do trabalho em toda a sala. Contudo, seu controle era mais no sentido de restringir a interação, pois o controle da produção era feito pelo software do sistema (monitoração eletrônica) que gerava relatórios no final de cada turno, que eram recolhidos e analisados.

Reconhecer a eficácia da monitoração eletrônica no controle dos digitadores, apesar de ser um componente indiscutível da taylorização dos CPDs, não implica negar que haja algum tipo de resistência por parte dos envolvidos. Há algumas estratégias que são desenvolvidas, ora pelos supervisores, em grau hierárquico superior, ora pelos próprios digitadores, que conduzem à transformação dessas próprias normas e, conseqüentemente, da interação e da organização no processo de trabalho. Poderíamos dizer, concordando com Anselm Strauss, que há uma ordem negociada entre os agentes, em que intervêm estratégias criativas aproveitando o caráter de incompletude da própria organização (1978). Apesar de que essa ordem negociada se manifeste mais com as inovações tecnológicas que viriam a prescindir da própria digitação na entrada de dados ou requisitá-la em menor grau, podemos detectar na própria fase áurea dos CPDs alguns sinais dessas transformações. O primeiro deles é conferir ao processo de controle da performance uma dimensão lúdica, transformar a competição profissional numa brincadeira.A competição por toques/hora não só era ludicamente interpretada, mas seus resultados se transformavam em metas desejáveis; digitadores rápidos eram exemplos, conforme nos evidencia o depoimento de Gaby:

Cheguei a fazer 23 mil toques, numa noite eu digitei cento e tantos mil toques e a hora que eles viram aquilo Goiânia inteirinha ficou sabendo disso! Goiânia tinha poucos Centros de Processamento de Dados. Nós trabalhávamos à noite, eu e minha irmã, ela trabalhava na Caixego e eu no Banco Real, e o pessoal chegava para meu pai e minha mãe e falava: "Olha a gente cria filho com o maior carinho, e eles escapam pros lugar".E tinha homem e tinha mulher, eles deduziam o que? O que as duas iam fazer na rua? O povo não entendia, hoje não, hoje mil e um trabalha de madrugada, a noite toda, mas naquela época era um absurdo trabalhar à noite, e a maioria do serviço bancário era feito à noite.

As palavras de Gaby expressam claramente uma exposição de motivos: justifica-se um horário insalubre e exigências de produção que afrontariam normas básicas de ergonomia pelo reconhecimento profissional que era conferido à performance em toques/hora, sinal que legitimava sua identidade como digitadora exemplar. Contudo, os profissionais mais experientes já sabem que o escore no final do mês é um valor médio. Um bom digitador pode controlar sua produção de modo a compensar alguns dias com um trabalho mais lento, parando diversas vezes, com outros dias de digitação rápida e ininterrupta.

A negociação sobre as condições de trabalho muitas vezes extrapolava o ambiente da empresa e se deslocava para as associações e sindicatos. Contudo, nem sempre a ordem negociada coincidia com o que seria mais razoável para os digitadores e, para esse resultado insatisfatório a eficácia simbólica do vocabulário de motivos tinha grande influência. O depoimento de Carô sobre as conseqüências práticas da "lei dos cinqüenta dez" sobre o sistema de trabalho na digitação evidencia o paradoxo de uma "ordem negociada" desfavorável, do ponto de vista da manutenção da força de trabalho, a médio prazo:

Não, até a gente não usa lá o 50/10, a gente fez um acordo entre empresa e sindicato e em vez do 50/10 diminuir uma hora, dá 90 minutos a diferença, o que a gente descansa, trabalha as 5 horas e descansa quinze minutos, então no diminui a produção. (...) Sair mais cedo, diminuir a carga, não, por que se você aproveita o 50/10, o que você vai fazer em 10 minutos? Se você não pode sair da sala... Isso foi um acordo que não foi só da empresa, foi entre sindicato, empresa e funcionário. Prefere e trabalha melhor, sabendo que vai sair uma hora mais cedo, do que ficar uma hora digitando a mais.

O digitador, após anos seguidos de trabalho insalubre, acumulação de turnos e horas extras, acostuma-se a manter um padrão regular de toques/hora, acima dos oito mil por hora básicos, que é suficiente para uma margem de negociação. Se aumentar o ritmo, pode trabalhar menos. Como a lei garante dez minutos a cada hora, ele prefere sacrificar a saúde e sair mais cedo, provavelmente para outro turno de trabalho, do que descansar os músculos e tendões, evitando as tenossinovites que tanto afligem e incapacitam os digitadores.

Os supervisores têm evidentemente, controle total sobre as estatísticas de um período de trabalho, ainda que não tenham controle sobre todo o processo.6 6 Embora vários dos entrevistados ressaltem a igualdade de tratamento e de condições entre os digitadores, certamente havia distinções entre eles, justamente no que se refere à precisão e rapidez, geralmente adquiridas com a experiência. A distinção entre júnior, sênior e master, usual para os níveis do desenvolvimento (analistas e programadores) transferia-se, em algumas empresas, aos digitadores. Podem, portanto, relaxar o monitoramento, retirando seu caráter ostensivo, estrategicamente dissimulando a vigilância autoritária. Os digitadores, por sua vez, chegam a pensar que têm autonomia no controle de seu próprio trabalho, bastando o bom senso e o domínio técnico adquirido com a experiência para se atingir a produção desejada. Essa estratégia é eficaz, sem dúvida, para a interação entre supervisores e digitadores.

A valorização da disciplina e do controle no ambiente de trabalho ocorria também de forma crítica, sem a submissão entusiasta ligada a uma assimilação como competição lúdica. Reconhecia-se, pragmaticamente, o valor daquele controle como fundamental para o bom funcionamento de um CPD e, eventualmente, ampliava-se essa valorização para outras atividades, já no âmbito do que designamos aqui por profissão.

Havia também um tipo de resistência concreta à monitoração eletrônica, que não se consistia numa reação indireta por meio de reivindicações trabalhistas junto a sindicatos e associações. Tratava-se de manobras técnicas que só poderiam ser realizadas com algum conhecimento da informática e mediante alguma relação com grupos hierarquicamente superiores, como programadores ou analistas. Questionada sobre a existência de técnicas pra aumentar a velocidade no trabalho, Esther nos informa:

Não, o que existia era uma maneira em que a gente burlava a estatística da máquina. A gente apertava umas teclas juntas e ali ela fazia: tá, tá, tá, tá, tá, e ela contava pontos. Você sabia? ((risos)) Então existia, você apertava três teclas juntas, as vezes o supervisor saía ou descuidava com alguma coisa e você ia lá e segurava, ali, enquanto você tava segurando ele tava contando toques. A gente conhecia isso e isso o povo fazia mesmo ((risos)).

A valorização positiva do controle e da disciplina ocorria nos profissionais que vieram a ascender na carreira da informática, como supervisores, programadores ou analistas. O novo campo a ser explorado excluía, praticamente, as pessoas que precisavam desempenhar outros tipos de trabalho, ou mesmo trabalhar em mais de um turno na digitação. Os que adquiriam conhecimentos na área logo se tornavam supervisores ou programadores, passando, conseqüentemente a controlar e administrar a produção dos colegas. A falta do conhecimento das linguagens de programação e da operação do sistema torna os digitadores e, em grau menor, os próprios programadores e analistas, alienados em relação ao próprio sistema que monitora, intangivelmente, suas próprias performances. Aos que não têm a possibilidade de acesso ao conhecimento técnico, resta a desilusão e a nostalgia de uma época em que a ocupação, ainda nova no mercado de trabalho, garantia um bom rendimento relativamente à baixa qualificação exigida e ao número de horas trabalhadas. Datti, por exemplo, que tem hoje vinte anos e começou a trabalhar como digitação é cética com relação à idéia de fazer carreira: "Na mesma área eu acho que não, nunca pensei nisso não! Mas eu tô querendo fazer vestibular, mas continuar nisso, eu não sei não, pode até ser, mas acho pouco provável".

A digitadora Dorali, que trabalhou durante a década de 80 principalmente em bancos de dados de empresas particulares e birôs de terceirização, chegando a acumular até jornadas de três turnos diários, relata o que ganhou com o exercício da profissão: "Depois de uns oito anos de serviço eu já estava como braço meio estourado, meio que bagunçadinho, mas nada que tenha me, tenha assim ((pausa)), deformação. Eu sinto dor, quer dizer, hoje se eu passar muito tempo no computador eu sinto dor. Hoje eu não lavo uma roupa, eu não dou conta de esfregar, não dou conta de torcer, não dou conta de lavar uma vasilha, dar uma areada, isso eu, não faço mesmo".

DIGITADORES E "DIGITADORES" – MUDANÇAS NA OCUPAÇÃO E NA IDENTIDADE

Alguns fatores, preponderantemente relacionados à evolução tecnológica na informática, conduziram à inviabilidade da manutenção dos CPDs e a seu progressivo desaparecimento, juntamente com a área de entrada de dados. O primeiro deles foi a criação de bancos de dados setoriais, possível graças ao surgimento de novas técnicas de transmissão de dados utilizando modems e linhas de fibra ótica. Outra fase do desenvolvimento da informática compreendeu o desenvolvimento dos sistemas de leitura ótica e magnética, permitindo com que documentos como cheques e boletos de pagamentos já contivessem a informações sobre o cadastro do cliente e da instituição. Assim, o próprio cidadão comum, como usuário, passa a digitar os valores desses documentos em caixas de atendimento on-line, que se tornaram cada vez mais comuns.

A digitação de entrada de dados constitui hoje uma função sazonal requerida em períodos específicos, como na época de eleições ou em casos de recadastramento de funcionários em grandes empresas; concursos públicos representam outra instância de contratação temporária de digitadores, assim como épocas de matrícula na rede estadual de ensino. Embora alguns digitadores ainda acreditem na preservação de alguns "nichos" no trabalho informático que permaneceriam residuais à digitação na entrada de dados, além dos contratos temporários, a tendência é reconhecer que seu desaparecimento é iminente.

No entanto, a ocupação de digitar, quer seja ou não realizada profissionalmente num mercado de trabalho, ainda consiste um meio muito eficiente para inserção de dados ou para se comunicar com a máquina, inserindo linhas de programação, por exemplo. Talvez os sistemas de comando por voz não substituam a digitação completamente, ou em todos as circunstâncias de uso. A conservação do termo "digitador" é testemunha dessa permanência do ato de digitar. Alguns digitadores até acreditam que a função de copiar textos empregando softwares de processamento de texto corresponde às novas funções da profissão de digitador: "Eu acho que não é que não é mais necessário [o digitador de entrada de dados]; é que hoje com tanta tecnologia, com tantas máquinas, eu acho que tá ficando de lado, eu acho que hoje manualmente já não é tão exigido, mas aqui ainda existe alguns digitadores que digitam texto, trabalho, eu mesmo tenho uma filha que trabalha num departamento aqui".(Teka)

A questão da indefinição da categoria ocupacional do digitador traz vários problemas não só para os profissionais envolvidos, mas para o próprio sistema de classificação profissional que, no Brasil, tem como suporte a Classificação Brasileira de Ocupações. Levando em conta as considerações anteriores, é coerente afirmar, como hipótese, que haja um declínio de vínculos empregatícios na ocupação de digitador, nos últimos dez anos, na cidade de Goiânia, similar ao que deve ter ocorrido antes em outros centros que tiveram uma urbanização relacionada ao processo de industrialização, como São Paulo. Vejamos o que indica uma série histórica obtida por consulta na base de dados da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais), uma das fontes mais confiáveis para a avaliação do mercado formal de trabalho:

NOTAS

Vemos que em São Paulo e no Rio há tendência nítida de queda no número de vínculos na digitação (CBO 3-42.40), no intervalo considerado, entre 1995 e 2000. Em Goiânia, Brasília e Belo Horizonte, cidades que têm em comum o fato de serem cidades novas, capitais planejadas e construídas sob interferência política e econômica dos governos federal e estaduais, não se verifica uma tendência decrescente. Como explicar essa diferença em relação à tendência decrescente tão nítida em outros centros na mesma época? Podemos afirmar, a título de hipóteses, duas possibilidades: a) a base da RAIS contabiliza os vínculos; pode ocorrer, e isso é bem plausível, que os digitadores de entrada de dados remanescentes, nessas cidades, trabalhem mais de um turno e sejam registrados mais de uma vez; b) os "digitadores" de textos estão sendo registrados como digitadores de entradas de dados (CBO 3-42.40), o que configuraria um problema na CBO, além de um problema na administração desses estabelecimentos;1 1 O caso de erro na atribuição da ocupação explicaria, certamente, as discrepâncias no caso do Rio de Janeiro em 1999 e de Belo Horizonte em 2000. A Datamec, empresa responsável pela manutenção e supervisão da RAIS realizou uma investigação para averiguar a discrepância apurada, constatando declarações equivocadas por algumas empresas e sugerindo que não se considere os vínculos apontados, o que nos permite afirmar a tendência decrescente verificada em outras capitais. c) Poderíamos também supor, nos anos discrepantes (como 1998 para Goiânia e 2000 para Belo Horizonte), uma demanda sazonal em razão, por exemplo, de um ano eleitoral ou de um recadastramento no funcionalismo público, exigindo pools de digitação e contratação de trabalhadores. Contudo, essa hipótese parece improvável, pois verifiquei, por exemplo, que no ano de 1998 só foram registrados 20 digitadores na condição de temporários, dentre mais de 1300 pela CLT.

A hipótese de uma designação incorreta para os atuais "digitadores" de textos e sua equiparação aos digitadores de entrada de dados que são mencionadas na CBO nos é particularmente interessante, porque está em jogo a identidade ocupacional de milhares de pessoas, separadas em dois grupos: as que originam da antiga base do trabalho informático, da entrada de dados no ramo da produção e as que hoje compõem um novo grupo ocupacional, talvez até mais numeroso, que beira a informalidade e está precariamente inserida num mercado de trabalho que não é mais o da informática.

Ainda que não façam parte propriamente do trabalho informático e não estejam submissos às mesmas exigências que os profissionais da antiga área de entrada de dados, os "digitadores" manifestam, talvez em razão das leis de proteção e das propagandas nas próprias empresas sobre como evitar as lesões por esforço repetitivo, maior conscientização e cuidado com a postura e a proteção da saúde do que os digitadores de CPDs. Antonil, um dos "digitadores" entrevistados, relata: "[faço] alongamento, desde a hora que eu acordo, venho pra cá, alongamento, e depois aqui eu paro pra fazer os alongamentos, às vezes passo direto mas faço uma parada maior. (...) Já é automático, quando chega a uma hora vai me dando aquela canseira e eu tenho de levantar e dar uma voltinha". Entretanto, os problemas de LER são freqüentes nos digitadores de textos, principalmente porque as condições de trabalho nos estabelecimentos de reprografia são muito precárias. Ainda que os rendimentos desses profissionais sejam comparativamente altos em relação a seus colegas de CPDs, os "digitadores" ampliam a lista de ocupações do setor informal. Juntamente com os digitadores de entrada de dados freelancers e contratados em caráter temporário, os "digitadores", mesmo os que são registrados, se acomodam na precariedade das relações e das condições de trabalho.

DISCUSSÃO

O vocabulário de motivos relacionado à valorização da rapidez e precisão numa situação de trabalho rigidamente controlada é bastante fiel à experiência profissional dos digitadores. Analisando esse vocabulário típico com base no discurso dos entrevistados, desvelamos as condições de imputação e reconhecimento de um vocabulário que remete a situações sociais específicas. O digitador internaliza esse vocabulário de motivos e, ainda que possa modificá-lo eventualmente e até contestá-lo, ele permanece como padrão de referência. Aqueles que conseguem atingir níveis mais elevados na carreira da informática, como programadores ou analistas, chegam a uma concepção mais abstrata do ato de digitar, que corresponde a sua função num sistema de informação, ou seja, a de um dispositivo mecânico de emitir sinais que têm algum significado num contexto de linguagem específico. Esther, por exemplo, ainda realiza o ato que, em sua essência, é mecânico, de digitar, mas em outro contexto. Insere sinais numa linha de programação, numa rotina que irá executar funções num programa. Não precisa fazê-lo rápido, nem precisa ter tanta precisão, pois pode voltar e corrigir várias vezes. Porém deve ter consciência do efeito que ocasiona cada comando que escreve e do que cada comando representa no programa. Assim, faz escolhas sobre os melhores meios para atingir seus objetivos e, como cada programa realiza alguma operação no sistema, toma decisões práticas. O digitador de entrada de dados não toma decisões, não precisa refletir sobre o que faz, já que sua função é fazer corresponder um movimento específico com um sinal específico, uma letra ou um número. A operação não requer nem que compreenda ou mesmo leia as palavras que digita. Ele não tem consciência do significado do documento que está transcrevendo. Porém, se essa correspondência de sinais e estímulos mecânicos falha, ou não atinge uma freqüência determinada, há efeitos indesejados no sistema. Notamos, portanto, que seu vocabulário de motivos, que se manifesta de forma simples e aparentemente precária é, na verdade, conciso e completo. No contexto de um CPD nos anos 80, o digitador deve ser rápido, preciso e cumprir regras, pois sua função é estritamente mecânica.

As estratégias de "negociação da ordem" demonstram também como o digitador que, intuitiva ou racionalmente, captava as regras do jogo, não tinha problemas com LER nem tampouco sofria punições por falha na produção. Trabalhando na média de toques/hora, esse profissional tinha a velocidade do sistema, enquanto os muito rápidos e que trabalhavam em mais de um turno fatalmente viriam a ter doenças ocupacionais. A capacidade de conviver com a monitoração eletrônica e manter uma estabilidade física e emocional no ambiente de trabalho constituía um tipo de conhecimento prático que nem todos chegavam a desenvolver. O reconhecimento efetivo da "lei 50/10" no início dos anos 90 conduziu a uma situação que, à primeira vista, pode parecer um paradoxo, mas que é bem coerente com a idéia de que o sistema não precisa de digitadores ultra-rápidos, mas dos que conseguem manter uma velocidade média por mais tempo de trabalho. A entrevista de Peter evidencia uma das estratégias para garantir uma "nova ordem" na vigência da "50/10":

Peter: Depois que veio um superintendente para cá, esse acabou com a digitação; ele chamava quem digitava treze mil toques era burro, por que a lei mandava oito e tinha que ser oito e não treze mil; treze mil você tava estragando a sua saúde, como tem muita gente aí, que você vê que não tem movimento das mãos, devido a isso, excesso de toques.

A "nova ordem" nos já decadentes CPDs não envolvia apenas o respeito às normas de proteção e à ergonomia, mas trazia já novas necessidades na capacitação técnica dos profissionais do mais baixo escalão do trabalho informático. A entrada de dados on-line já era uma realidade e os microcomputadores em rede começavam a tomar o lugar dos mainframes. O digitador vai cedendo seu lugar ao operador de micro, que requer, evidentemente, maior qualificação para operar com alguns aplicativos básicos.

Ainda resta um lugar para a digitação na entrada de dados e a valorização exclusiva de uma habilidade mecânica num profissional? Sim, e isso já ocorre em uma nova forma de organização do trabalho, que vem sendo designada por teletrabalho (teleworking ou telehomeworking). A forma mais simples de ocupação no teletrabalho é a leitura de e-mails: após enviar algumas informações a uma companhia que paga para ler e-mails, o teletrabalhador passa a receber mensagens de outras companhias clientes que utilizam o banco de dados formado por todos os inscritos na primeira. Ganha-se por cada e-mail enviado à empresa de teletrabalho, replicando a mensagem de propaganda recebida e provando, assim, que esta foi "lida". Outra forma emprega softwares especiais que detectam banners (pequenas faixas de propaganda, em geral utilizando algum tipo de animação, que acompanham páginas em hipertexto na maioria dos sites pela rede). O teletrabalhador simplesmente "navega" pela rede, o mais variada e rapidamente possível. Ganha-se pela quantidade de anúncios "vistos", contabilizados automaticamente pelo software, e também pelo tempo conectado em rede. Pode-se também ganhar dinheiro indicando outros teletrabalhadores, o que constitui um "marketing multinível", ampliando cada vez mais o banco de dados e a rede de colaboradores e usuários. Essas formas de ocupação, além de inúmeras outras possíveis, constituem uma espécie de entrada de dados, em que o teletrabalhador, analogamente aos digitadores dos terminais "burros" na época dos CPDs, não tem o menor controle do sofisticado processo de marketing e transferência de capital e lucros envolvida. Na ilusão de estarem trabalhando livre e autonomamente, essas pessoas passam horas diárias em condições ergonomicamente deficientes, geralmente subaproveitando algum espaço disponível em suas próprias residências e acabam se sujeitando a altas cargas horárias de trabalho, sem a menor proteção para sua saúde e segurança. Nesse sentido, os teletrabalhadores se aproximam dos "digitadores" de textos que consideramos antes. A esses profissionais falta, sobretudo, a garantia, em termos de direitos, que é fornecida pelo trabalho formal: representação sindical, férias, 13º salário, FGTS, ou seja, um conjunto mínimo de direitos definidos em relação a uma estratificação ocupacional legitimada que Wanderley Guilherme dos Santos muito bem designou como "cidadania regulada" (1979).

NOTAS

Recebido: 23/06/2004

1ª revisão:4/10/2004

Aceite final: 25/10/2004

Jordão Horta Nunes é professor Adjunto na Universidade Federal de Goiás.

O endereço eletrônico do autor é: jordao@fchf.ufg.br

Juliana Abrão da Silva Castilho é mestranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás

  • ABBOTT, A. The System of Professions An Essay on the Division of Expert Labor. Chicago: University of Chicago, 1988.
  • BECKER, H. S. The outsiders New York: Free, 1963.
  • BRANNEN, J. (Ed.). Mixing Methods Qualitative and Quantitative Research. Hants: Aldershot/Brookfield, 1992.
  • DAVIES, P. H. J. Spies as Informants: Triangulation and the Interpretation of Elite Interview Data in the Study of the Intelligence and Security Services. Politics Brighton, v. 21, n. 1, p. 73-80, 2001.
  • DENZIN, N. Sociological Methods: a Sourcebook. New York: McGraw-Hill, 1978.
  • FREEMAN, C. Designing women: corporate discipline and Barbados's Off-Shore Pink-Collar Sector. Cultural Anthropology Seattle, v. 8, n.2, p. 169-186, 1993.
  • GOFFMAN, E. Asylums Essays on the Social Situation of Mental Patients and Other Inmates. Garden City: Anchor, 1961.
  • HULTIN, M. Some Take the Glass Escalator, Some Hit the Glass Ceiling? Career Consequences of Ocupational Sex Segregation. Work and Occupations Nashville, v. 30, n. 1, p. 30-61, February 2003.
  • LARANGEIRA, S. M. G. Reestruturação produtiva no setor bancário: a realidade dos anos 90. Educação e Sociedade. Campinas, p. 111-138, 1990.
  • LAZZAROTTO, G. D. R. A organização do trabalho e a construção do sujeito: o caso da digitação, uma apreciação crítica da psicologia. Porto Alegre, 1992. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
  • LYMAN, S. M.; SCOTT, M. B. Accounts. In: A Sociology of the Absurd 2ed. Dix Hills: General Hall, 1989 [1968]. p. 112-132.
  • MERLO, A. R. C. A informática no Brasil: prazer e sofrimento no trabalho. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1999.
  • MERLO, A. R. C. et al. O trabalho entre prazer, sofrimento e adoecimento: a realidade dos portadores de lesão por esforços repetitivos. Psicologia & Sociedade Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 117-136, jan./jun. 2003.
  • MILLS, C. W. Situated Actions and Vocabularies of Motive. In: Stone, Gregory P. e Farberman, Harvey A. (eds.) Social Psychology through Symbolic Interaction Waltham: Xerox College, 1970 [1940], p. 472-480.
  • MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Registros Administrativos: RAIS e CAGED. Brasília: MTE, SPPE/DES/CGETIP, 1999.
  • MIRANDA, T. G. Expropriação e segregação: trajetória de vida e representações de um grupo migrante em Goiás. Belo Horizonte, 1984. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Minas Gerais.
  • RAPKIEWICZ, C. E.; Segre, L. M. Mercado de Trabajo y formación de recursos humanos en tecnologia de la información en Brasil: żencuentro o desencuentro?.Serie Desarollo Produtivo Santiago de Chile, v.117, p.1-58, 2001a.
  • RAPKIEWICZ, C. E.; Segre, L. M. Tecnologia y Proceso de Trabajo: la Restructuración y precarización del trabajo en Informática. Boletín de Política Informática Ciudad de México, v. 24, n.6, p.51-71, 2001b.
  • RAPKIEWICZ, C. E.; Segre, L. M. Reestruturação Produtiva na Área de Informática: Evolução ou Precarização do Trabalho? Trabalho apresentado no XXIII Encontro Nacional da Anpocs. Caxambu, 1999.
  • SALLES, M. M. Lesões por esforço repetitivo em operadores de computador Brasília, 1995. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade de Brasília.
  • SANTOS, W. G. dos. Cidadania e Justiça - A política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979.
  • SEGNINI, L. R. P. Mulheres no trabalho bancário: difusão tecnológica,qualificação e relações de gênero. São Paulo: Edusp, 1998.
  • SEGNINI, L. R. P. Mulher em tempo novo: mudanças tecnológicas e nas relações de trabalho. Campinas, 1996. Tese (Livre Docência em Sociologia) - Universidade Estadual de Campinas.
  • SOARES, A. S. Work Organization in Brazilian Data Processing Centres: Consent and Resistance. Labour, Capital and Society Montreal, v. 24, n. 2, p. 154-183, 1991.
  • SOARES, A. S. A organização do trabalho informático São Paulo, 1989. Dissertação (Mestrado em Administração) - Pontifícia Universidade Católica.
  • STRAUSS, A. L. Negotiations, varieties, contexts processes, and social order San Francisco: Jossey-Bass, 1978.
  • STRAUSS, A. L. Espelhos e máscaras. A busca de identidade. Trad. de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Edusp, 1997 [1959].
  • 1
    O presente texto já serviu de base para uma comunicação, apresentada no GT
    Ocupações e Profissões do XI Congresso Brasileiro de Sociologia realizado na Unicamp em setembro de 2003.
  • 2
    Jordao Horta Nunes, coordenador da pesquisa, teve uma experiência prévia como digitador na entrada de dados, trabalhando regularmente nesta ocupação em 1983 e depois no período 1986-88, em vários birôs que prestavam serviços para a Cia. Paulista de Força e Luz (CPFL), na época uma companhia estatal que se encarregava da produção e da distribuição da energia elétrica no interior do estado de São Paulo.
  • 3
    Esse critério para admissão de novas informações na base de triangulação foi inspirado em Davies (2001: 78-9).
  • 4
    Empregaremos doravante a notação "digitador" para designar essa nova categoria de profissionais que não trabalham mais em sistemas de inserção de dados.
  • 5
    Companhia de Desenvolvimento do Estado de Goiás, empresa estatal que se encarregava do processamento de dados de diversas instituições prestadoras de serviços públicos (água, energia elétrica, trânsito, receita, etc.).
  • 6
    Embora vários dos entrevistados ressaltem a igualdade de tratamento e de condições entre os digitadores, certamente havia distinções entre eles, justamente no que se refere à precisão e rapidez, geralmente adquiridas com a experiência. A distinção entre júnior, sênior e master, usual para os níveis do desenvolvimento (analistas e programadores) transferia-se, em algumas empresas, aos digitadores.
  • 1
    O caso de erro na atribuição da ocupação explicaria, certamente, as discrepâncias no caso do Rio de Janeiro em 1999 e de Belo Horizonte em 2000. A Datamec, empresa responsável pela manutenção e supervisão da RAIS realizou uma investigação para averiguar a discrepância apurada, constatando declarações equivocadas por algumas empresas e sugerindo que não se considere os vínculos apontados, o que nos permite afirmar a tendência decrescente verificada em outras capitais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Maio 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Revisado
      04 Out 2004
    • Recebido
      23 Jun 2004
    • Aceito
      25 Out 2004
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
    E-mail: revistapsisoc@gmail.com