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Resenha: modernidade e identidade

Resenha: modernidade e identidade1 1 Giddens (2003).

Rafaela Cyrino Peralva Dias

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Autores dos mais diversos campos de conhecimento científico vêm enfrentando o desafio de compreender o extremo dinamismo que caracteriza a sociedade contemporânea. No campo da sociologia, Anthony Giddens destaca-se como um teórico que, ao refletir sobre o sentido da sociedade em que vivemos, penetra no terreno da auto-identidade, procurando analisar de que forma a contemporaneidade se relaciona com os aspectos mais íntimos da vida pessoal. Em seu livro, Modernidade e identidade, o autor analisa justamente a transformação na concepção de identidade a partir do rompimento com uma ordem dita tradicional.

Giddens não segue a orientação de alguns autores que nomeiam a sociedade contemporânea como pós-moderna ou pós-industrial. Em vez disso, prefere a terminologia modernidade alta ou tardia, para indicar que os princípios dinâmicos da modernidade ainda se encontram presentes na realidade atual. Alta modernidade, modernidade tardia ou modernização reflexiva, portanto, é definido pelo autor, como uma ordem pós-tradicional, que, longe de romper com os parâmetros da modernidade propriamente dita, radicaliza ou acentua as suas características fundamentais.

A discussão tem início com o reconhecimento de que, em uma sociedade tradicional, a identidade social dos indivíduos é limitada pela própria tradição, pelo parentesco, pela localidade. A modernidade, caracterizada como uma ordem pós-tradicional, ao romper com as práticas e preceitos preestabelecidos, enfatiza o cultivo das potencialidades individuais, oferecendo ao indivíduo uma identidade "móvel", mutável. É, nesse sentido, que, na modernidade, o "eu" torna-se, cada vez mais, um projeto reflexivo, pois aonde não existe mais a referência da tradição, descortina-se, para o indivíduo, um mundo de diversidade, de possibilidades abertas, de escolhas. O indivíduo passa a ser responsável por si mesmo e o planejamento estratégico da vida assume especial importância.

É interessante como o autor consegue dar visibilidade a fenômenos de grande complexidade. Não que esteja sendo dito algo absolutamente novo. Touraine (1994) em "Crítica da Modernidade" já havia abordado teoricamente o processo de subjetivação, ao considerar que o mundo moderno é, cada vez mais, ocupado pela referência a um sujeito libertado, que coloca como princípio do bem o controle que exerce sobre suas ações e comportamentos, na composição da sua história pessoal de vida. Entretanto, mesmo que o tema da reflexividade do sujeito já tenha sido abordado de alguma forma por outros autores, o grande mérito de Giddens, a meu ver, foi abordar esta questão a partir de temas relacionados à psicologia do eu, como a identidade, a busca da auto-realização, o estilo de vida, entre outros. Ao optar por esta trajetória, o autor aproxima-se do leitor, tornando mais familiar questões teóricas de grande alcance, através da análise da relação entre a modernidade e os aspectos mais pessoais de nossa existência.

Apesar da complexidade do tema, Giddens procura abordar as várias facetas de um processo inerentemente contraditório. De fato, o rompimento, ainda que parcial, com uma ordem tradicional, ao mesmo tempo em que promove uma certa autonomia pessoal, retira também uma sensação de firmeza das coisas, podendo constituir-se em grande fonte de ansiedade para o indivíduo. Uma simples leitura de um jornal de domingo é suficiente para observarmos a ocorrência de inúmeros desacordos entre especialistas das mais diversas áreas. Podemos dizer que vivemos hoje em um contexto instável e complexo de argumentos e contra-argumentos científicos. Na ausência de uma autoridade definitiva, ao indivíduo é que cabe escolher e decidir em que acreditar. Várias são as correntes, vários são os discursos, várias são as teorias, cada um realiza a sua síntese pessoal e desenvolve o seu projeto reflexivo individual.

Este projeto reflexivo diz respeito, portanto, a um mundo cada vez mais constituído de informação, e não de modos preestabelecidos de conduta, em que o indivíduo sente-se obrigado a viver realizando escolhas contínuas que passam a compor a sua narrativa de identidade, sempre aberta à revisões. A reflexividade da modernidade, considerada pelo autor uma das maiores influências sobre o dinamismo das instituições modernas, permite vislumbrar de que forma a modernidade, fenômeno global de longo alcance, altera a natureza da vida social cotidiana. Nas condições da alta modernidade, sensações de inquietude e ansiedade podem se infiltrar na experiência cotidiana dos indivíduos, pois a narrativa da auto-identidade torna-se inerentemente frágil diante das intensas e extensas mudanças que a modernização provoca. Entretanto, ainda que a modernidade seja inerentemente suscetível à crise, favorece, por outro lado, a apropriação de novas possibilidades de ação ao indivíduo, oferecendo oportunidades de revisão de hábitos e costumes tipicamente tradicionais. É justamente o caráter ambíguo presente na realidade contemporânea que justifica a recusa de Giddens em acolher definições propostas por autores como Lasch (1980) acerca da natureza supostamente apocalíptica da vida social moderna.

Para quem se interessa pela dinâmica da modernidade a leitura deste livro é fundamental. Sem fazer apologia nem da modernidade e nem das sociedades tipicamente tradicionais, o autor aborda várias facetas da sociedade contemporânea. Se hoje existe o cultivo das potencialidades individuais, percebe-se, também, um certo empobrecimento moral, uma certa crise de valores, uma certa crise de moralidade. E, por mais paradoxal que possa parecer, ao lado de um alto grau de reflexividade social, surge, também, uma preocupação com a reconstrução da tradição como uma forma de enfrentar as demandas cambiantes das sociedades modernas. A reconstrução da tradição pode ser observada, por exemplo, na busca, cada vez mais intensa, de novas experiências religiosas, novas formas de espiritualidade.

É inegável que tal objeto de discussão é extremamente relevante e vem adquirindo, cada vez mais, um caráter de centralidade na sociedade contemporânea. Entretanto, abordagens que privilegiem estudos interdisciplinares, ainda são pouco freqüentes na academia. E este é, a meu ver, o grande mérito do livro de Giddens: permitir a incorporação do elemento subjetivo na perspectiva sociológica, de maneira analítica, crítica e consistente.

Referências

Giddens, A. (2003). Modernidade e identidade (P. Dentzien, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lasch, C. (2000). The Culture of Narcisism. Londres: Abacus.

Touraine, A. (1994). Crítica da Modernidade (E. F. Edel, Trad.). Petrópolis: Vozes.

Recebido: 09/09/2005

1ª revisão: 03/11/2005

Aceite final: 15/12/2005

Rafaela Cyrino Peralva Dias é Docente vinculada a PUCMINAS, Mestre em Psicologia das Organizações pela Universidade Federal de Santa Catarina. Endereço: Rua do Mosteiro, 37, 302, Vila Paris, 30380 780, Belo Horizonte, MG. E-mail: rafaelacyrino@pucminas.br

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    Giddens (2003).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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