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Resenha: as marcas do humano

Resenha: as marcas do humano

Alice Casanova dos Reis

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil

Pino, A. (2005). As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez.

A busca pelas origens é talvez um dos anseios fundamentais do homem. O ser que coloca em questão seu próprio ser vive historicamente desdobramentos dessa busca por meio de interrogações ontológicas desenvolvidas de diferentes modos a partir da mitologia, religião, filosofia, ciência e arte. A partir desse leitmotiv e partindo da perspectiva do materialismo histórico e dialético, em "As marcas do humano", o autor Angel Pino (2005) perscruta as origens do "humano", a partir das "marcas" que histórica e culturalmente o constituem enquanto tal.

Desde esse olhar epistemológico e, apoiando-se fundamentalmente na teoria de Vygotski, Pino problematiza a complexa relação entre natureza e cultura, costurando com a linha de pensamento dialético uma trama na qual a emergência do humano aparece no movimento em que "a natureza adquire consciência dela mesma" (Pino, 2005, p. 17), construindo como forma específica de existência a simbólica. Partindo da premissa vygotskiana da origem cultural do psiquismo humano, o autor tem como objetivo: "desvelar na realidade empírica da evolução da criança logo após o nascimento a maneira concreta como a natureza, constitutiva da sua condição biológica, transforma-se sob a ação da cultura, fazendo da criança um ser humano" (Pino, p. 18).

Pino apóia-se na "lei genética do desenvolvimento cultural", elaborada por Vygostki para explicar como, no processo de desenvolvimento, as funções biológicas com as quais o homem nasce são convertidas em funções culturais, a partir da transposição da mediação sígnica do plano social, interpsicológico, para o plano intrapsicológico da criança. Considerando a existência desses dois momentos, Pino traz a hipótese de que no interstício entre o nascimento biológico e o cultural transcorre um "momento zero cultural" (Pino, 2005, p. 33), em cuja passagem encontramos, a partir da ação do Outro, a emergência do humano na criança: "na medida em que as ações da criança vão recebendo a significação que lhe dá o Outro... ela vai incorporando a cultura que a constitui como um ser cultural, ou seja, um ser humano" (Pino, p. 66).

Pino, a partir de uma concepção marxista de cultura como produção material humana, enfatiza que "a materialidade é uma exigência da natureza do signo" (2005, p. 91). A significação é, portanto, a chave cuja posse permite a abertura ao humano e a conquista universalmente necessária dessa chave remete à materialidade histórica das relações sociais em que os processos de significação acontecem. A mediação semiótica opera, segundo o autor, como o conversor das funções naturais em sociais, as quais se desenvolvem sobre bases biológicas, transformando-as em culturais.

Pino nos ajuda a compreender o signo como a unidade em que natureza e cultura se encontram num nó dialético de onde emerge o humano. Interessa ao autor desvelar esse nó em sua historicidade, ou seja, coerente com a perspectiva histórico-cultural que o orienta, investigar o momento dessa emergência, detectando, nos primeiros meses de vida da criança, indícios que permitam inferir o início do seu processo de desenvolvimento cultural. A diretriz metodológica aponta, portanto, para uma abordagem histórico-genética, dialética e interpretativa.

A partir da observação de uma criança (um menino), utilizando como procedimento o registro em vídeo de diferentes momentos de sua vida, desde seu nascimento até completar um ano de idade, o autor mostra ser possível encontrar indícios do processo de desenvolvimento cultural num momento anterior ao proposto por Vygotski ao analisar o movimento de apontar da criança. Para tanto, enfoca determinados "indicadores de desenvolvimento" (choro, movimento, olhar, sorriso e a combinação de vários deles), buscando neles detectar os primeiros sinais da presença de elementos de significação, inicialmente atribuídos pelo Outro e que, ao serem internalizados pela criança, passam aos poucos a regular essas funções, convertendo-as, da ordem do biológico para a ordem do simbólico.

Pino conclui que imediatamente após o nascimento da criança já se encontram indícios claros da ação da cultura sobre o desenvolvimento da criança, a qual, pela mediação social do outro, opera "conferindo aos gradientes de evolução biológica as 'marcas do humano'" (Pino, 2005, p. 268). Nesse sentido, as funções orgânicas, ao mesmo tempo em que são a condição necessária para o surgimento das funções culturais, não são suficientes ao seu aparecimento, o qual está relacionado à apropriação da significação pela criança, como mostram os seguintes exemplos extraídos de uma série mais abrangente analisada no livro:

...assim, o "choro", que, inicialmente, não passava de um sinal de alerta de um mal-estar orgânico, diversifica suas causas e modifica suas formas, tornando-se um meio de expressão da criança; o olhar, que no início estava perdido no espaço, pouco a pouco vai selecionando seus alvos e olhando-os de forma diferente... porque esses têm para a criança alguma significação; os sons vão surgindo imitando os "sons da fala", não dos inúmeros ruídos que invadem o ouvido da criança; a energia muscular torna-se, pouco a pouco, controlada para produzir movimentos apropriados para lidar com os objetos culturais que envolvem a criança e para encontrar formas cada vez mais adequadas de expressão dos seus estados internos; o tempo biológico vai adaptando-se ao relógio cultural do tempo humano e da sua repartição das ações... (Pino, 2005, p. 267).

A contribuição principal trazida por Pino através de seu estudo diz respeito à verificação empírica da teoria de Vygotski acerca do desenvolvimento cultural do ser humano. Entender o modo como as funções biológicas e culturais, sem perder sua especificidade, articulam-se no desenvolvimento, consiste no "núcleo duro da teoria" (Pino, 2005, p. 195), no qual o autor consegue nos introduzir com grande clareza teórica. A interrogação fundamental pelas origens do humano encontra nesse estudo, coerente com a perspectiva epistemológica em que é formulada, uma resposta dialética:

Se a natureza precede a cultura, a cultura supõe a natureza, porque ela é, em última instância, a própria natureza transformada em cultura, mas uma cultura que, sem deixar de ser natureza, torna-se algo novo. Eu a chamaria uma natureza humanizada (Pino, 2005, p. 268).

Nessa humanização, conforme nos mostra Pino, o papel do outro, como aquele por meio de quem a cultura age sobre a natureza da criança, é fundamental. Nas reflexões tecidas pelo autor, o NÓ tramado pela dialética entre natureza e cultura para explicar a origem do humano não se desfaz, no sentido de que não postula a anterioridade determinística de uma em relação à outra, mas antes o NÓ dialeticamente se (re)faz em NÓS, pois é o nós, ou seja, o vínculo social do nascido ser biológico com o mundo cultural em que nasce que faz dele um nascente ser humano.

Referências

Pino, A. (2005). As marcas do humano: Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo, SP: Cortez.

Recebido: 17/07/2006

1ª revisão: 02/11/2006

Aceite final: 09/11/2006

Alice Casanova dos Reis é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, atuando no Núcleo de Pesquisa Relações Estéticas e Processos de Criação. alicecasanova@yahoo.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2007
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