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Os sentidos do cooperativismo de trabalho: as cooperativas de mão-de-obra à luz da vivência dos trabalhadores

The senses of labor cooperativism: manpower cooperatives from the standpoint of the worker's living experience

Resumos

O artigo, síntese de pesquisa apresentada como tese de doutorado, discute os sentidos do cooperativismo a partir de observações e de relatos de trabalhadores sobre suas vivências, sobre as relações de trabalho estabelecidas em suas cooperativas e procura construir uma crítica de viés psicossocial às cooperativas de mão-de-obra. Foram realizadas observações, conversas informais e 14 entrevistas semi-estruturadas em diversas cooperativas. Os aspectos mais importantes de diferenciação presentes nas entrevistas referem-se a: formas distintas de participação nas diferentes cooperativas; relação entre gestão da cooperativa e gestão do trabalho. Conclui que o sentido do cooperativismo nas cooperativas industrial e populares estudadas é marcado pelos dilemas próprios da autogestão, enquanto, na cooperativa de mão-de-obra, pela precarização do trabalho em relação ao vínculo empregatício tradicional.

psicologia social; cooperativismo; produção de sentidos; relações de trabalho; autogestão; economia solidária


This article, synthesis of a research presented as doctoral thesis, discusses the senses produced about the cooperativism taken from observations and the descriptions from workers about their living experiences on work relations present in their cooperatives and tries to build a psychosocial critic concerning manpower cooperatives. It is based on observations, informal talks and 14 semi-structured interviews with cooperators from various cooperatives. The most important elements of differentiation in the interviews are: different ways of participation in different cooperatives; cooperative management and work management relationship. It concludes that the sense of cooperativism from the industrial and popular cooperatives that were studied is marked by self-management dilemmas, while, at manpower cooperatives, it is marked by precarious conditions of work in relation to the traditional employment contract.

social psychology; cooperativism; sensemaking; work relations; self-management; solidarity economy


Os sentidos do cooperativismo de trabalho: as cooperativas de mão-de-obra à luz da vivência dos trabalhadores

The senses of labor cooperativism; manpower cooperatives from the standpoint of the worker's living experience

Fábio de Oliveira

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

RESUMO

O artigo, síntese de pesquisa apresentada como tese de doutorado, discute os sentidos do cooperativismo a partir de observações e de relatos de trabalhadores sobre suas vivências, sobre as relações de trabalho estabelecidas em suas cooperativas e procura construir uma crítica de viés psicossocial às cooperativas de mão-de-obra. Foram realizadas observações, conversas informais e 14 entrevistas semi-estruturadas em diversas cooperativas. Os aspectos mais importantes de diferenciação presentes nas entrevistas referem-se a: formas distintas de participação nas diferentes cooperativas; relação entre gestão da cooperativa e gestão do trabalho. Conclui que o sentido do cooperativismo nas cooperativas industrial e populares estudadas é marcado pelos dilemas próprios da autogestão, enquanto, na cooperativa de mão-de-obra, pela precarização do trabalho em relação ao vínculo empregatício tradicional.

Palavras-chave: psicologia social; cooperativismo; produção de sentidos; relações de trabalho; autogestão; economia solidária.

ABSTRACT

This article, synthesis of a research presented as doctoral thesis, discusses the senses produced about the cooperativism taken from observations and the descriptions from workers about their living experiences on work relations present in their cooperatives and tries to build a psychosocial critic concerning manpower cooperatives. It is based on observations, informal talks and 14 semi-structured interviews with cooperators from various cooperatives. The most important elements of differentiation in the interviews are: different ways of participation in different cooperatives; cooperative management and work management relationship. It concludes that the sense of cooperativism from the industrial and popular cooperatives that were studied is marked by self-management dilemmas, while, at manpower cooperatives, it is marked by precarious conditions of work in relation to the traditional employment contract.

Keywords: social psychology; cooperativism; sensemaking; work relations; self-management; solidarity economy.

Cooperativas de Trabalho e Cooperativas de Mão-de-Obra

Temos assistido desde meados da década de 90 ao grande crescimento do número de empreendimentos econômicos denominados como cooperativas. Dentre os diversos tipos de novas cooperativas surgidas nesse período no Brasil (sejam elas de consumo, de crédito, de produção, de serviços etc.), destacam-se aquelas em que pessoas se reúnem para obter renda através da fabricação de produtos, de sua comercialização, da oferta de serviços ou, ainda, da venda da mão-de-obra de seus sócios a terceiros.

Esse verdadeiro "surto", nas palavras de Paul Singer (2004), de cooperativas é resultante das transformações da economia mundial e de suas decorrências para a dinâmica dos mercados de trabalho. Dentre essas decorrências, destacam-se a crescente demanda empresarial pela flexibilização dos vínculos de trabalho e o desemprego (Dowbor, 2002; Singer, 1998).

As cooperativas que proliferam pelo país representam respostas de diferentes setores sociais às transformações que vivemos na economia e na sociedade. Se as empresas, na busca pela diminuição dos custos da aplicação do trabalho humano, lançam mão, dentre outras coisas, da terceirização,1 1 Além da adoção de tecnologias que diminuem a necessidade de aplicação de mão-de-obra e das novas formas de organização do trabalho, que intensificam o trabalho e, dentre outras coisas, diminuem os custos com chefias ao aplicarem novos modos de exercício de poder (Antunes, 1999; Busnardo, 2003). inclusive por meio de cooperativas de mão-de-obra, os trabalhadores, por sua vez, tomam suas próprias iniciativas de luta pela sobrevivência, incluindo também a constituição de cooperativas, seja por meio da recuperação de empresas falidas ou em crise, seja pela reunião em torno de cooperativas populares no contexto da economia solidária (Singer, 2004; Singer & Souza, 2000).

Embora abrigados sob a mesma denominação, esses empreendimentos apresentam diferenças que nos fazem pensar se é adequado considerá-los como fenômenos equivalentes. Somam-se a isso as críticas que têm sofrido as cooperativas de mão-de-obra (Carelli, 2002; Lima, 2004; Singer, 2004) e a necessidade crescente de criação de critérios para identificar as cooperativas que efetivamente ferem a legislação trabalhista.

Tanto o Ministério Público, quanto o Ministério do Trabalho e Emprego têm voltado suas atenções para as genericamente chamadas cooperativas de trabalho. A compreensão do Ministério Público é de que a "venda" de mão-de-obra pelas cooperativas de trabalho caracteriza burla à legislação trabalhista, pois a relação estabelecida com o "comprador" equivale à relação de assalariamento. Por sua vez, o Ministério do Trabalho e Emprego tem procurado criar critérios para diferenciar as cooperativas existentes e evitar que cooperativas efetivamente geridas pelos próprios trabalhadores sejam perseguidas injustamente. Segundo Singer (2004):

A fiscalização e o ministério público, na verdade, tentam distinguir entre cooperativas de trabalho e cooperativas que chamam de mão-de-obra. As cooperativas de trabalho seriam as que vendem o produto do trabalho dos membros, desde que seja feito com meios próprios de produção e em recinto da cooperativa. As cooperativas de 'mão-de-obra' seriam as que vendem o produto do trabalho (serviço) feito com meios de produção e no local do comprador (p. 2).

Na diferenciação sugerida acima entre cooperativas de trabalho e cooperativas de mão-de-obra, Paul Singer (2004) toma como ponto de partida o modo como a atividade de trabalho é realizada e enfatiza o maior ou menor grau de dependência dos cooperados em relação ao comprador dos produtos ou dos serviços da cooperativa. Em outros termos, refere-se ao maior ou menor grau de autonomia e de controle dos trabalhadores sobre seu próprio trabalho e sobre a gestão da cooperativa.2 2 Para uma discussão do conceito de autonomia ver: Castoriadis (1982).

Lima (2004) faz, por sua vez, a distinção entre dois grupos de cooperativas, dividindo-as entre "pragmáticas" e "defensivas":

No primeiro grupo, estão as cooperativas 'pragmáticas' (que podem incluir as chamadas 'falsas cooperativas' ou cooperfraudes), que funcionam terceirizadas para empresas e, em geral, foram organizadas por essas mesmas empresas, ou ainda, integram programas estatais de geração de renda, desvinculadas dos princípios do movimento cooperativista. No segundo grupo, as cooperativas 'defensivas', formadas a partir de movimentos de trabalhadores para manutenção do emprego em fábricas em situação falimentar, ou de programas governamentais de geração de renda para populações pobres. Estas são apoiadas por sindicatos, ONGs e instituições da sociedade civil e enquadram-se na proposta de 'economia solidária', na qual os valores da autogestão dos trabalhadores, o combate ao desemprego e o desenvolvimento sustentável são norteadores (p. 46).

A diferenciação feita por Lima (2004) enfatiza as origens e as razões que levaram à formação dos empreendimentos. De um lado, cooperativas que visam facilitar a terceirização da mão-de-obra e às quais se adere pragmaticamente, de outro, cooperativas que enfatizam os valores da autogestão e representam a defesa de interesses em comum dos trabalhadores.

Como Singer (2004), Lima (2004) também aponta para o risco da dependência das cooperativas, pragmáticas ou defensivas, em relação às empresas contratantes (p. 57). Se, de acordo com Singer, possuir meios próprios de produção e realizá-la em recinto da cooperativa garante maior independência dos trabalhadores em relação aos seus "clientes", um número restrito de clientes e a diferença de poder econômico entre estes e a cooperativa, por exemplo, também podem ser um elemento limitador da defesa de seus interesses legítimos no momento das negociações (Lima, 2004).

Deve-se ainda acrescentar a essa discussão, mesmo que brevemente, uma distinção entre a comercialização de serviços e a venda de mão-de-obra. Prestar serviços significa oferecer uma atividade pontual com começo, meio e fim (um corte de cabelo, a manutenção de um jardim etc.) a um cliente. Comprar mão-de-obra significa dispor das horas de trabalho de alguém, mesmo que essas horas sejam utilizadas ou não para a finalidade contratada. Por esse caminho, os trabalhadores que produzem no local do contratante e com os meios fornecidos por este não estão vendo os produtos que fabricam. Também não estão vendendo um serviço, pois o contratante dispõe de seu tempo, quer o trabalho aconteça ou não. O que vendem é tão somente a sua força-de-trabalho, "mercadoria" que, por sinal, tem sua comercialização rigorosamente regulada pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Uma cooperativa de serviços não pode, portanto, ser equiparada a uma cooperativa de mão-de-obra. E esta última se diferencia das outras cooperativas de trabalho (produção, serviços) justamente pelas razões expostas.

Embora as distinções entre as cooperativas de trabalho de um modo geral e as cooperativas de mão-de-obra pareçam significativas, há ainda poucos estudos que detalhem essas diferenças e que discutam suas implicações para os trabalhadores e para as relações cotidianas de trabalho constituídas no interior desses empreendimentos.

A partir de um olhar da psicologia social preocupada com os processos cotidianos (Sato, 2002a; P. K. Spink, 1996) e com a produção de sentidos (M. J. P. Spink, 1999, 2004) caberia perguntar: o que a vivência dos trabalhadores cooperados e as relações cotidianas de trabalho podem nos revelar sobre os tipos de cooperativas que vêm se construindo no Brasil? No caso específico das cooperativas de mão-de-obra, o que dizer do tipo de trabalho que oferecem em comparação com o trabalho assalariado das empresas tradicionais? Em que condições o cooperativismo pode significar emancipação dos trabalhadores e democratização do direito de empreender? E, afinal, que tipo de cooperativismo queremos?

Considerando-se as diferentes origens das cooperativas em atividade no país, os vários interesses envolvidos em sua criação, a necessidade de formulação de critérios que identifiquem distorções da legislação trabalhista e as implicações dessa discussão para o campo da economia solidária e do cooperativismo, empenhamo-nos, assim, em identificar os elementos de diferenciação das cooperativas de trabalho e refletir mais especificamente sobre as peculiaridades, dentro desse quadro, das cooperativas de mão-de-obra.

Metodologia

A interrogação pelos sentidos localmente construídos convida o olhar para os modos pelos quais diferentes elementos são articulados no interior de situações materiais e sociais específicas (Latour, 2005), interessando muito a particularidade dessa articulações.3 3 Para Becker (1999), a teoria deve ser capaz de compreender a particularidade e o estudo empírico do acontecer particular tem como função rever as próprias formulações teóricas. Conforme M. J. P. Spink (2003):

A atenção é assim fixada nas conexões parciais: os materiais, as socialidades e as histórias que contamos sobre eles são como retalhos costurados em uma colcha; como há muitas linhas possíveis e muitas tramas, a atenção se desloca para os modos locais de costura (p. 4).

Seguindo esse caminho teórico-metodológico, procurou-se compreender o sentido que assume cada tipo de cooperativa em razão do contexto em que se inserem e das relações cotidianas de trabalho estabelecidas em seu interior a partir da perspectiva dos próprios trabalhadores.

Para essa finalidade, foi realizado trabalho de campo que envolveu a inserção do pesquisador no contexto do cooperativismo,4 4 O nosso "campo-tema", para usar terminologia de P. K. Spink (2003). envolvendo contato com associações e instituições de fomento de cooperativas, análise de documentos, visitas a cooperativas e conversas informais com seus sócios. Como parte desse trabalho de campo também foram realizadas 14 entrevistas com cooperados de três tipos de empreendimentos cooperativos: uma cooperativa de mão-de-obra (quatro entrevistas), uma cooperativa industrial (três entrevistas) e sete cooperativas populares (sete entrevistas). Desse modo, a análise apresentada a seguir, embora dedique sua atenção às conversas gravadas, faz isso no contexto de um conjunto maior de relatos e de experiências.

As entrevistas foram semi-estruturadas, isto é, foram orientadas por questões abertas que versavam sobre o histórico da inserção do entrevistado na cooperativa, as atividades de trabalho, a gestão da cooperativa, as relações cotidianas de trabalho e a comparação com as empresas tradicionais. Elas foram orientadas pela busca de exemplos do cotidiano, vividos pelos entrevistados e reconstruídos pela memória.5 5 Questões norteadoras: (a) Como é que você começou a trabalhar nesta cooperativa? Como você imaginava naquela época o que era trabalhar em uma cooperativa? (b) Qual é o seu trabalho nesta cooperativa? Como é que vocês se organizam para trabalhar? Como vocês se organizam para "administrar" a cooperativa? Como são as assembléias nesta cooperativa? (c) Quais são as diferenças entre uma cooperativa e uma empresa "tradicional"? O que é uma coopergato ou uma falsa cooperativa na sua opinião? Como você entende a autogestão? Perguntas "confrontativas" (Potter & Mulkay, 1985) deixadas para o final de cada entrevista: Uma cooperativa precisa de alguém que mande para que ela possa funcionar? Isto é, ela precisa de um chefe? Você sente que sua opinião é ouvida dentro da cooperativa? Você sente que participa das decisões da cooperativa? Você deixaria de trabalhar em uma cooperativa para trabalhar em uma empresa "tradicional" (com chefe ou patrão) ou para trabalhar por conta própria? Se você pudesse mudar alguma coisa na sua cooperativa, o que mudaria?

A partir dessas conversas e observações, é apresentada a síntese a seguir, na qual se cotejam elementos de diversas ordens, materialidades e socialidades (Latour, 2005; P. K. Spink, 2003), que concorreram para a montagem das diferentes versões do cooperativismo.

As categorias de análise foram definidas a partir da comparação das entrevistas e visam, através do contraste, evidenciar as diferenças entre os sentidos localmente produzidos. Não pretendemos, de modo algum, esgotar neste artigo essas diferenças e tampouco fazer generalizações indevidas, o que significa que não se afirmará a seguir que as cooperativas em geral são de uma ou de outra maneira, mas que, através dos casos estudados, encontramos elementos que têm alguma chance de entrar na composição peculiar de arranjos locais de outras cooperativas (Becker, 1999; Yin, 2001). A pergunta que se tenta responder é: que elementos podem concorrer para a composição de diferentes arranjos locais ou de diferentes modos locais de "costura"?

Comecemos por conhecer as cooperativas estudadas.

Pragmática e Defensivas

A cooperativa de mão-de-obra estudada fornece funcionários para várias instituições de saúde. Os entrevistados – dois auxiliares de enfermagem, uma psicóloga e uma terapeuta ocupacional – trabalham todos em um mesmo hospital (objeto de diversos estudos e projetos de nossa equipe). Nesse estabelecimento, a maioria dos trabalhadores são sócios dessa mesma cooperativa.

A adoção de mão-de-obra terceirizada foi resultado da crise financeira do hospital. O ingresso em uma grande cooperativa de mão-de-obra pré-existente e estranha aos trabalhadores foi a condição para que mantivessem sua condição de empregados. A cooperativa, em seu papel, limita-se a fazer essa mediação.

A cooperativa industrial (objeto de várias visitas, muitas conversas informais e três entrevistas gravadas) é uma empresa do ramo metalúrgico, cujo comando foi assumido pelos trabalhadores após uma longa crise. A transformação da empresa em cooperativa contou com o apoio do poder público e do movimento sindical local. Parte do patrimônio da metalúrgica foi entregue aos trabalhadores como pagamento de encargos trabalhistas.

O destino da empresa durante a crise foi objeto de longas discussões e assembléias. Foram consideradas várias possibilidades, das quais saiu vitoriosa a tomada de controle da fábrica através da sua posse por uma cooperativa formada pelos trabalhadores, os quais, passado o primeiro momento de incertezas, têm feito investimentos e expandido a produção.6 6 É interessante notar que muitos desses investimentos, decididos em assembléias soberanas, não respondem apenas aos objetivos da produção, mas também à melhoria das condições de trabalho.

As sete cooperativas populares estudadas são empreendimentos formados a partir de um conjunto de políticas de geração de emprego e renda da Prefeitura Municipal de São Paulo e amparados por incubadoras universitárias ou outras entidades dedicadas ao fomento da economia solidária.7 7 O autor deste artigo acompanhou de perto todo esse processo por atuar em uma incubadora universitária naquela época. Elas surgiram a partir da reunião de bolsistas em torno de um curso de cidadania e economia solidária realizado ao longo de seis meses.

A decisão sobre a divisão dessas pessoas em cooperativas de diferentes ramos de atuação foi tomada por elas próprias, considerando-se suas experiências de trabalho, seus interesses e as possibilidades de qualificação profissional oferecidas pela prefeitura municipal. Desse processo surgiram os empreendimentos populares estudados, que englobam cooperativas de alimentação, de costura, de serviços diversos e de reciclagem, reunindo, em torno de atividades de produção artesanal ou de prestação de serviços, pessoas em situação de pobreza.

A prosperidade encontrada na cooperativa industrial não foi constatada aqui, ao contrário, essas cooperativas populares ainda não eram capazes de constituirem-se como a principal fonte de renda de seus sócios. Essa não necessariamente é a realidade de outras cooperativas populares formadas pela mesma política municipal. Além das visitas e das conversas informais, foram gravadas entrevistas com um cooperado de cada um dos sete empreendimentos estudados.

Em maior ou menor grau, o ingresso em uma cooperativa significou a constituição de um projeto coletivo e de um negócio próprio para os sócios da cooperativa industrial e para os das cooperativas populares. Ao passo que o ingresso dos trabalhadores do hospital na cooperativa de mão-de-obra revelou-se como apenas um meio para manterem uma condição semelhante à anterior, a de funcionários em um empreendimento pertencente a outrem. O caráter defensivo das primeiras e o caráter pragmático da última já se esboçam nesse momento.

Gestão da cooperativa e gestão do trabalho

Um aspecto essencial na comparação dos empreendimentos estudados foi a relação existente entre, de um lado, a cooperativa e, de outro, o espaço de trabalho ou, dito de outro modo, a relação entre a gestão da cooperativa em si e a gestão das atividades de trabalho. Nos relatos dos trabalhadores da cooperativa de mão-de-obra, observa-se a separação entre a vivência como sócios de uma cooperativa e a vivência como trabalhadores de um hospital, seja pela separação espacial, seja pelo fato de a condição de sócio da cooperativa não interferir diretamente nas relações que estabelecem como funcionários e como subordinados no dia-a-dia de trabalho. O hospital é gerido hierarquicamente à maneira de um hospital tradicional e a cooperativa, sempre distante de seus sócios, é objeto de uma gestão profissional da qual a grande maioria dos sócios não participa. O depoimento abaixo ilustra a vivência dessa separação:

"Mas a cooperativa fica muito de fora, muito distante do nosso dia-a-dia, tanto é que eu não me sinto cooperativa, sabe? Eu sou como se fosse funcionária, não me sinto fazendo parte das decisões" (Priscila).

Ao contrário, nas outras cooperativas (a industrial e as populares), o espaço da cooperativa confunde-se com o espaço de trabalho. Decisões relacionadas à cooperativa mesclam-se àquelas relacionadas ao trabalho em si. Mesmo na cooperativa de serviços estudada – na qual os trabalhadores se deslocam até os clientes para realizar serviços de jardinagem, construção civil etc. –, a cooperativa é sempre uma referência para os trabalhadores, pois é o local de onde partem para realizar suas atividades diárias e onde os próprios sócios negociam com os contratantes.

A distância de que se fala aqui, portanto, não é apenas a da separação física entre o lugar em que se trabalha e o local onde está estabelecida a cooperativa. Trata-se principalmente da distância entre, de um lado, os trabalhadores e, de outro, a gestão tanto da cooperativa, quanto do trabalho, a distância do trabalhadores em relação ao governo de cada uma dessas instâncias.

Assembléias e Negociações

As assembléias também são um elemento que reflete a maior ou menor distância entre os trabalhadores e a gestão, segundo constatamos:

Na cooperativa industrial e nas cooperativas populares estudadas, as reuniões e as assembléias são espaços importantes de discussão e de decisão, mesmo que nem todos os cooperados participem assiduamente delas. O eventual esvaziamento depende do teor dos temas que serão debatidos e votados, mas as assembléias são sempre soberanas em suas decisões, que abarcam, desde a escolha de representantes até decisões relativas a negócios, como aprovação de contratos, compra de equipamentos e investimentos (Oliveira, 2005, p. 76).

Por seu turno, as assembléias, na vida dos cooperados da cooperativa de mão-de-obra, ocupam um outro lugar. Segundo os entrevistados, elas são pouco freqüentes, acontecem em local distante do hospital e, em geral, durante o horário de trabalho. Além desses impedimentos, os entrevistados não encontram muitos motivos para participar, pois as assembléias são um acontecimento distante de suas vidas como trabalhadores. Lídia, uma auxiliar de enfermagem, relata:

[Você fica sabendo como foram as assembléias?] Como eu te falei, nunca participei, não posso te dizer como funcionam essas assembléias, eu nunca pude ir até lá [Alguém que trabalha aqui com você já participou?] Dos funcionários, não. Normalmente, a gestora8 8 A gestora é uma representante da cooperativa dentro do hospital, mas ela própria não é trabalhadora nesse estabelecimento. participa. Ela tem que participar todo mês... [E ela repassa alguma informação de lá para vocês?] Pessoalmente, não. Ela deixa sempre no mural o que foi dito na assembléia, coloca no painel, quem tiver interesse vai lá e olha.

Nos depoimentos encontram-se diversos relatos de conflitos e de processos de negociações micropolíticas (Sato, 2002b). Os diferentes planos em que eles acontecem revelam diferenças importantes entre as cooperativas estudadas.

Nas cooperativas populares e na cooperativa industrial, segundo os relatos, os conflitos e as negociações ocorriam habitualmente nos espaços coletivos de decisão (formais, como as assembléias e as comissões, ou informais), isto é, as negociações ocorriam no plano das relações horizontais, as relações diretas entre os sócios. Por sua vez, na cooperativa de mão-de-obra, os conflitos e as negociações descritas pelos entrevistados aconteciam no confronto com uma instância exterior de poder (Clastres, 1978), seja a direção do hospital, seja o grupo de gestores da cooperativa localizados fora do hospital. No depoimento de Priscila essas relações verticais ficam bastante evidentes:

Eu acho que as pessoas acabam tendo um outro chefe, sabe? Tendo dois, na verdade! Tendo o daqui e tendo a cooperativa... não fica uma coisa apropriada. Eu sinto assim, acho que não tem muito para falar de como funciona lá, a não ser esse jeito como eu vivencio a relação com a cooperativa... E, assim, na verdade, a gente tem – eu não sei se é essa coisa de funcionário e seu patrão –, mas a gente tem uma vivência com relação à cooperativa que é de que se você não ficar esperto, você vai ser passado para trás, entendeu?

Identificam-se assim nessa análise dois pólos de diferenciação entre as cooperativas de trabalho (de produção e de serviços) e a cooperativa de mão-de-obra estudadas: o das negociações horizontais (dos trabalhadores entre si) e o das negociações verticais (dos trabalhadores contra uma instância exterior de poder). Isso se reflete, por exemplo, no uso dos pronomes "nós" e "eles" entre os trabalhadores do hospital: a direção do estabelecimento e também a cooperativa de mão-de-obra são sempre referidas como "eles" e em oposição a "nós", os funcionários.

Autonomia e Responsabilidades

A idéia de autonomia presente nos discursos varia segundo o tipo de cooperativa. Nas cooperativas populares e na industrial, "autonomia" aparece mais fortemente com o sentido de trabalhar sem chefe (sem uma instância exterior de poder) e de atuar com outros, mesmo que existam dificuldades nesse tipo de funcionamento, ao passo que, na cooperativa de mão-de-obra, o sentido de "autonomia" aponta para outra direção: o cada um por si.

[P]ois seu sentido refere-se mais à falta de vínculo entre o cooperado e a empresa contratante do que a alguma possibilidade de determinar e influenciar o próprio trabalho. Nesse 'cada um por si' – que, vale dizer, descarta qualquer apreço pela cooperação –, a autonomia é um solitário desamparo (Oliveira, 2005, p. 97).

Temos, assim, de um lado, a autonomia como a superação coletiva da subordinação, sentido próximo ao proposto por Castoriadis (1982). De outro, o abandono ao solipicismo e, portanto, um distanciamento do sentido de autonomia: nesse contexto ela não significa agir por leis próprias, mas não ter vínculos.

Os tipos de responsabilidades demandadas dos trabalhadores em seu cotidiano também apresentaram variações relevantes. Essas "convocações" do grupo em relação a seus membros compareceram às entrevistas de diferentes formas, como, por exemplo, através das queixas dos entrevistados em relação a seus colegas. De um lado, nos contextos em que os cooperados vivenciam a experiência de serem sócios de fato, eles são convocados a serem responsáveis pelos seus empreendimentos, a não se comportarem mais "como funcionários", tendo responsabilidades para com os outros sócios e sendo cobrados por isso.9 9 Os sócios são, inclusive, no caso da cooperativa industrial, compelidos a uma espécie de "polivalência", pois, para garantir a prosperidade de seu próprio negócio, engajam-se em fazeres que escapam do escopo da sua atividade profissional de origem. Note-se que tudo isso não está livre de ambigüidades e de conflitos.

Diferentemente, "responsabilidade" na cooperativa de mão-de-obra estudada aparece, em geral, como algo que poderíamos chamar de responsabilidade pela própria carreira, o que decorre do "cada um por si" descrito acima: o peso que sentem não é do compromisso com os outros, dos rumos de seu destino em comum, mas das responsabilidades que são forçados a assumir sozinhos em virtude da precariedade de seu vínculo com o hospital.

"Casamento" ou Descompromisso

Um dos entrevistados da cooperativa industrial descreveu seu vínculo com a cooperativa como semelhante a um "casamento". A comparação refere-se especialmente à estabilidade do vínculo entre os cooperados e à dificuldade de expulsão de um sócio, mas também aos conflitos que caracterizariam, em sua opinião, um relacionamento familiar. A mesma idéia de estabilidade do vínculo de trabalho apareceu nas outras entrevistas com sócios dessa empresa e com vários dos membros das cooperativas populares.

Por sua vez, os trabalhadores da cooperativa de mão-de-obra, que se reconhecem como trabalhadores "autônomos", como veremos a seguir, descreveram um tipo de relacionamento com a cooperativa que seria melhor nomeado como descompromisso (algo bem diferente da imagem de um "casamento"). A fala de Lídia esclarece esse tipo de desprendimento:

Se está me agradando, eu fico, se não está me agradando também, eu pego e vou embora, como muita gente faz... nem dá uma satisfação: não vem mais a partir de amanhã. [Porque não tem um contrato de...] Não tem nada que te prenda e nada que nos prenda a eles também. Isso eu digo, com os hospitais. Mas se eu quiser me desligar da cooperativa, simplesmente eu chego lá e falo 'olha, eu, a partir de hoje, não quero mais ser sócio-cooperado de vocês' e eles me devolvem a cota-parte... eu me desligo da cooperativa e eu não tenho mais vínculo nenhum com ela.

A idéia de "casamento" deriva do exercício pleno da condição de sócio e do envolvimento do trabalhador com o funcionamento da cooperativa. A impossibilidade de "demissão" de um cooperado e a partilha tanto do valor produzido, quanto dos prejuízos reforçam a idéia de estarem "no mesmo barco" e, ao mesmo tempo, apresentam sua condição como muito diferente da condição de empregado. O descompromisso descrito na cooperativa de mão-de-obra, por sua vez, aponta para o sentido oposto.

Repúdio à subordinação ou... saudades da CLT

Nas cooperativas populares com que tivemos contato e, especialmente, na cooperativa industrial – mesmo levando-se em conta as nuances com que isto se apresenta – pode ser reconhecido um forte sentimento de repúdio à subordinação. Os entrevistados, quando perguntados se voltariam a trabalhar como assalariados em empresas tradicionais, responderam, no caso da cooperativa industrial, que prefeririam trabalhar por conta própria a retornar ao "cabresto" (nas palavras de um dos entrevistados), isto é, negam-se a voltar ao trabalho heterogerido, à vivência de subordinação, ao vínculo empregatício; os trabalhadores das cooperativas populares, em geral, também se ressentiam das figuras do patrão e do chefe, mas, em alguns casos, admitiram a possibilidade de retornar ao trabalho assalariado, tendo em vista que suas cooperativas ainda não lhes garantiam o sustento.

Algo bem diferente foi enunciado pelos trabalhadores da cooperativa de mão-de-obra. Sua maior aspiração era justamente retornar ao trabalho assalariado com carteira assinada e com todos os direitos garantidos pela CLT. Caio, um auxiliar de enfermagem que trabalha em dois hospitais, com vínculos diferentes em cada um, exemplifica essa aspiração:

É claro que eu vou escolher outra CLT... do que ficar trabalhando numa cooperativa, entendeu? Eu trabalho, assim, porque no momento estou em outro CLT, entendeu? Eu não arranjei outro, né, não consegui outro CLT, então, estou na cooperativa.

A enunciação dessa preferência é acompanhada por diversas queixas em relação ao trabalho no hospital através da mediação da cooperativa de mão-de-obra: não há férias, não há décimo terceiro salário, não há fundo de garantia, falta a segurança oferecida pela carteira assinada.

Se, na primeira situação, o modo como o mundo se apresenta aos cooperados permite uma vivência de superação da subordinação e a construção gradual da consciência de ser parte de um empreendimento coletivo no qual têm voz, na cooperativa de mão-de-obra, a semelhança entre o trabalho como cooperado e o trabalho assalariado cria uma outra situação: ser cooperado na cooperativa de mão-de-obra só não é equivalente a ser trabalhador assalariado por ser pior. O trabalho na cooperativa de mão-de-obra é vivido como mais precário que aquele regido pela CLT.

Sócios-trabalhadores e "empregados precários"

Os relatos dos entrevistados permitiram reconhecer diversas nuances nos sentidos do cooperativismo presentes nos empreendimentos estudados. Apesar das peculiaridades de cada cooperativa e sem negar as referidas nuances, no entanto, um claro contraste foi constatado entre, por um lado, as cooperativas populares e a cooperativa industrial e, de outro, a cooperativa de mão-de-obra. O que pode ser depreendido dos elementos discutidos acima.

Essa oposição evidencia-se em vários aspectos e pode ser sintetizada quando são comparadas duas vivências muito distintas, apreendidas das falas dos entrevistados: a de sócio-trabalhador e a de, em nossas palavras, "empregados precários".

Enquanto sócios-trabalhadores,10 10 Há uma excelente discussão do conceito em Esteves (2004). condição que caracteriza o trabalho associado,11 11 O trabalho associado caracteriza as cooperativas e diferencia-se, por definição, do trabalhado assalariado e do trabalho autônomo. os entrevistados da cooperativa industrial e das cooperativas populares se reconhecem duplamente, com maior ou menor intensidade e clareza, como empreendedores (sentem-se sócios em um negócio coletivo e ao mesmo tempo seu) e como produtores, isto é, como trabalhadores. Vivenciam isso pela proximidade com a gestão e pelas preocupações que têm que ter simultaneamente com o negócio e com o cotidiano da produção, gostem disso ou não.

Por sua vez, os trabalhadores da cooperativa de mão-de-obra, como já vimos, não vivem como uma unidade essas duas dimensões de suas vidas. A experiência de sócio da cooperativa é separada da experiência de ser trabalhador. Na falta de melhor designação, os trabalhadores do hospital estudado referem-se ao seu vínculo de trabalho como semelhante ao do trabalhador autônomo. Mas a semelhança está unicamente na inexistência de vínculo empregatício entre o sócio, de um lado, e a cooperativa ou o hospital, de outro. Lídia esclarece esse aspecto ao contanos sobre sua entrada na cooperativa:

Eles fazem você assistir uma palestra, você participa para saber quais são os direitos numa cooperativa – que não são muitos a nosso favor... – e explicam um pouco o que é um sistema de cooperativismo... Em primeiro lugar, eles deixam bem claro que você não tem nenhum vínculo empregatício com eles, você trabalha como autônomo. E, sendo autônomo, você não tem direito a fundo de garantia, décimo terceiro, férias, nenhum dos outros benefícios que um CLT teria. Benefícios como vale-transporte, cesta básica, licença médica, você não tem direito. A não ser que você queira, aí paga por fora e eles descontam da sua folha de pagamento porque você está pagando.

Sua condição e a de todos os seus colegas é, na prática, a de "funcionários" sem vínculos quaisquer com a empresa, portanto, são como os empregados de outros hospitais, mas vivem uma situação mais precária. A mediação da cooperativa de mão-de-obra apenas legaliza esse tipo de vínculo. Todos eles estão muito distantes de se reconhecerem como sócios de um negócio em comum e das preocupações que caracterizam essa condição.

Considerações Finais

Não se pretendeu no espaço destas páginas esgotar as diferenças entre as cooperativas estudadas nem oferecer uma descrição exaustiva de cada um dos casos. O conjunto dos elementos apresentados foi bastante para apontar, pelo contraste, as diferenças importantes entre os empreendimentos estudados e seus peculiares modos locais de costura, o que era justamente o nosso objetivo.

A pesquisa identificou alguns dos eixos diferenciadores das cooperativas estudadas e pesquisas futuras poderão nos mostrar se são eles realmente os mais importantes e se são também relevantes para a compreensão de outros casos.

Localizadas em posições opostas em cada um desses eixos, como se procurou demonstrar nos parágrafos acima, parece-nos razoável afirmar que – do ponto de vista das vivências, das relações cotidianas de trabalho, do funcionamento dos empreendimentos e das suas práticas de gestão – a cooperativa de mão-de-obra estudada diferencia-se substancialmente das cooperativas de trabalho com as quais foi comparada (a cooperativa industrial e as sete cooperativas populares analisadas).

Assim, o estudo dos casos sobre os quais nos debruçamos reafirma as preocupações de Lima (2004) e de Singer (2004) em relação à necessidade de não se tomar o conjunto das cooperativas que oferecem trabalho a seus associados como um todo homogêneo. À luz do presente estudo, faz sentido distinguir as cooperativas de mão-de-obra das cooperativas de trabalho – sem colocar as primeiras como um caso particular das segundas –, bem como nomeálas como pragmáticas em oposição às cooperativas de caráter defensivo.

Os eixos que diferenciam esses dois tipos de cooperativas, do ponto de vista da análise psicossocial por nós empreendida e em relação aos casos que estudamos, são aqueles que norteiam a composição de diferentes vivências, as quais puderam ser agrupadas em dois tipos: as vivências de sócio-trabalhador e de "funcionário precário".

Esses eixos, tomando de empréstimo as idéias de Latour (2005),12 12 Especificamente a "teoria do ator-rede". referem-se a elementos de diversas ordem que se articulam de modo a produzir a estrutura do mundo tal qual se apresenta a cada um desses grupos de trabalhadores.

A razão de ser da cooperativa de mão-de-obra estudada, retomando a conceituação de Lima (2004), é de caráter pragmático: ela existe para permitir que o hospital possa contratar funcionários de forma flexível e com menor custo e não há nessa sua origem qualquer tentativa de mudar a forma de gestão do hospital ou de entregar seu controle aos trabalhadores. A adesão dos trabalhadores é igualmente pragmática: associam-se, não por desejarem pertencer a um empreendimento cooperativo e autogerido nem por aspirarem estar à frente de um negócio próprio, mas por não terem outra opção e lá permanecem até conseguirem ocupação melhor. Do mesmo modo, desta vez retomando Singer (2004), a realização do trabalho no recinto do comprador do "produto" da cooperativa de mão-de-obra coloca os trabalhadores em uma condição de subordinação semelhante àquela que caracteriza o trabalho assalariado, com o agravante de também estarem subordinados, como visto acima, aos gestores da própria cooperativa.

O que permite a esses trabalhadores construírem o sentido do cooperativismo como sendo um tipo de trabalho mais precário do que o trabalho assalariado é a articulação de um conjunto de vários elementos. A experiência de ser sócio de um negócio, por exemplo, não está presente na vivência desses funcionários, seja pela forma como se tornaram cooperados, pela distância que estão em relação à gestão do hospital e da cooperativa, pela pouca participação nos processos decisórios, por suas relações cotidianas de trabalho caracterizarem-se pelas negociações verticais em confronto com um outro que não são os seus próprio pares, o que é próprio da heteronomia. A cooperativa e o trabalho não são algo que lhes pareça pertencer, pertencem a outros (a "eles"). A fragilidade do vínculo também contribui para isso, pois a qualquer momento podem não mais fazer parte do quadro de trabalhadores, o que reafirma que não se trata de algo que possam tomar como seu. Diante disso, não é difícil compreender que sintam saudades do trabalho assalariado tradicional, pois, em sua vivência, as únicas diferenças substanciais entre o trabalho na cooperativa de mão-de-obra e o trabalho assalariado é a precariedade do vínculo e a ausência dos direitos trabalhistas. A estrutura de suas vidas não se modifica a ponto de reconhecem essa sua condição de trabalhadores como diferente da condição de empregados.

Se a estrutura do mundo não se modifica, isto é, se as relações de trabalho estabelecidas no interior dos empreendimentos em nada diferem daquelas estabelecidas nas empresas heterogeridas, isso significa que a experiência do cooperativismo de mão-de-obra não representa transformação das relações de trabalho vigentes, mas o aprofundamento da precarização do trabalho.

Quanto às cooperativas de trabalho estudadas – isto é, a cooperativa industrial metalúrgica e as cooperativas populares de alimentação, costura, serviços diversos e reciclagem –, embora sejam muito diferentes entre si, os sentidos que o cooperativismo assume nesses contextos definem-o como uma experiência muito diversa daquela vivida como empregado em uma empresa tradicional. Vários elementos, que também enfatizam o caráter defensivo dessas cooperativas, articulam-se nessa produção. Isso inclui principalmente a vivência como sócio de fato de um negócio, o que envolve todos os problemas, conflitos, dilemas, responsabilidades, preocupações e conquistas que derivam disso. Impressiona o valor dado ao fato de não se ter um chefe, mesmo que alguns colegas sejam criticados por ainda agirem como "funcionários". Essa própria crítica é um indicador de que alguma coisa mudou, de que nesses empreendimentos, nos quais os produtores são também os empreendedores (sócios), as responsabilidades dessa condição e desse lugar recaiam sobre eles próprios.

Diante disso, a questão a ser respondida em relação à definição de critérios de diferenciação das cooperativas é: em que medida as condições de existência oferecidas por uma cooperativa convidam, permitem, exigem ou impedem a participação das pessoas na gestão do negócio e na gestão de seu trabalho? É isso, em nossa opinião, que define a diferença fundamental entre a cooperativa de mão-de-obra e as cooperativas de trabalho que foram objeto desta pesquisa, qual seja: a manifestação ou não da autogestão enquanto ação coletiva governada pelos próprios membros do grupo (Castoriadis, 1982).

Sendo este um estudo qualitativo, não se pretendeu fazer uma "epidemiologia" dos tipos de cooperativas, isto é, não se aspirou poder afirmar que tais e quais características são próprias de ou são encontradas em determinada proporção em um tipo ou outro de empreendimento. Contudo, como é próprio deste modo de fazer pesquisa, podemos pensar que os estudos dos "modos locais de costura" podem apontar para condições ou situações possíveis de aparecerem como elementos em arranjos locais semelhantes. A separação entre a gestão da cooperativa e a gestão de trabalho é um exemplo disso. Trata-se de uma condição que impõe certos limites ao funcionamento da cooperativa de mão-de-obra estudada. As formas de lidar com essa situação apresentadas neste texto são próprias das pessoas com quem conversamos e convivemos. Mas essa condição, a separação entre o contexto da cooperativa e o contexto em que se trabalha – se sairmos dos limites da nossa própria pesquisa13 13 Para Becker (1999), a pesquisa é sempre um empreendimento coletivo, isto é, não se espera que uma pesquisa isolada traga sozinha grandes contribuições para uma área de investigação, mas o conjunto das pesquisas sobre um mesmo tema e baseadas em diferentes casos pode lançar luz sobre muitas questões e trazer novas perguntas. e considerarmos o que também sabemos sobre outras cooperativas (de zeladores, faxineiros, pedreiros, costureiras etc.) –, também está presente em outras cooperativas de mão-de-obra. Como trabalhadores em outros arranjos locais lidam com a separação entre cooperativa e local de trabalho?

As interrogações podem ir além: será possível algum tipo de apropriação da sua condição de sócios que favoreça as negociações com o comprador da mão-de-obra? Haveria algum relato de "levante" contra a cooperativa e de tomada de controle de sua gestão? Em que medida é possível esse tipo de rebelião e de que modos poderíamos contribuir com uma tal sabotagem à hierarquização?

Notas

Recebido: 27/06/2006

1ª revisão: 08/01/2007

Aceite final: 06/03/2007

Fábio de Oliveira é Docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e psicólogo do Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Co-editor dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho (ISSN 1516-3717). Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP e mestre em Psicologia Social pela USP. Endereço para correspondência: Rua Prof. Mello Moraes, 1721, bloco D, sala 163, Cidade Universitária, São Paulo, SP, 05508-030. Telefone: (11) 3091-4188 faboli@uol.com.br

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  • 1
    Além da adoção de tecnologias que diminuem a necessidade de aplicação de mão-de-obra e das novas formas de organização do trabalho, que intensificam o trabalho e, dentre outras coisas, diminuem os custos com chefias ao aplicarem novos modos de exercício de poder (Antunes, 1999; Busnardo, 2003).
  • 2
    Para uma discussão do conceito de autonomia ver: Castoriadis (1982).
  • 3
    Para Becker (1999), a teoria deve ser capaz de compreender a particularidade e o estudo empírico do acontecer particular tem como função rever as próprias formulações teóricas.
  • 4
    O nosso "campo-tema", para usar terminologia de P. K. Spink (2003).
  • 5
    Questões norteadoras: (a) Como é que você começou a trabalhar nesta cooperativa? Como você imaginava naquela época o que era trabalhar em uma cooperativa? (b) Qual é o seu trabalho nesta cooperativa? Como é que vocês se organizam para trabalhar? Como vocês se organizam para "administrar" a cooperativa? Como são as assembléias nesta cooperativa? (c) Quais são as diferenças entre uma cooperativa e uma empresa "tradicional"? O que é uma coopergato ou uma falsa cooperativa na sua opinião? Como você entende a autogestão? Perguntas "confrontativas" (Potter & Mulkay, 1985) deixadas para o final de cada entrevista: Uma cooperativa precisa de alguém que mande para que ela possa funcionar? Isto é, ela precisa de um chefe? Você sente que sua opinião é ouvida dentro da cooperativa? Você sente que participa das decisões da cooperativa? Você deixaria de trabalhar em uma cooperativa para trabalhar em uma empresa "tradicional" (com chefe ou patrão) ou para trabalhar por conta própria? Se você pudesse mudar alguma coisa na sua cooperativa, o que mudaria?
  • 6
    É interessante notar que muitos desses investimentos, decididos em assembléias soberanas, não respondem apenas aos objetivos da produção, mas também à melhoria das condições de trabalho.
  • 7
    O autor deste artigo acompanhou de perto todo esse processo por atuar em uma incubadora universitária naquela época.
  • 8
    A gestora é uma representante da cooperativa dentro do hospital, mas ela própria não é trabalhadora nesse estabelecimento.
  • 9
    Os sócios são, inclusive, no caso da cooperativa industrial, compelidos a uma espécie de "polivalência", pois, para garantir a prosperidade de seu próprio negócio, engajam-se em fazeres que escapam do escopo da sua atividade profissional de origem.
  • 10
    Há uma excelente discussão do conceito em Esteves (2004).
  • 11
    O trabalho associado caracteriza as cooperativas e diferencia-se, por definição, do trabalhado assalariado e do trabalho autônomo.
  • 12
    Especificamente a "teoria do ator-rede".
  • 13
    Para Becker (1999), a pesquisa é sempre um empreendimento coletivo, isto é, não se espera que uma pesquisa isolada traga sozinha grandes contribuições para uma área de investigação, mas o conjunto das pesquisas sobre um mesmo tema e baseadas em diferentes casos pode lançar luz sobre muitas questões e trazer novas perguntas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Set 2007
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Aceito
      06 Mar 2007
    • Revisado
      08 Jan 2007
    • Recebido
      27 Jun 2006
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