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Sílvia Lane: a mulher que fermentou idéias e alimentou ações transformadoras

I – A Estética De Uma Vida

Sílvia Lane: a mulher que fermentou idéias e alimentou ações transformadoras

Margarida Barreto

Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas e Plásticas de São Paulo, São Paulo, Brasil

"Benditos sejam os amigos que acreditam na tua verdade,

ou te apontam a realidade;

Porque amigo é a direção, é a base, quando falta o chão!"

Machado de Assis (Poema Benditos)

Conheci a professora Sílvia Lane nos idos dos anos noventa, ao ler seu livro Psicologia Social: O homem em movimento como requisito para o exame de seleção ao mestrado. Posteriormente, Novas veredas da Psicologia Social. Apaixonei-me por suas idéias tão claras e sensíveis. E torci para conhecê-la, o que seria facilitado se fosse aprovada para cursar o mestrado.

Comecei a freqüentar o seu Núcleo, logo no primeiro ano do mestrado. Senti-me afortunada, por acompanhar de perto a sua incessante construção do edifício do saber em Psicologia Social. E ali permaneci durante quase dez anos, ouvindo, aprendendo e "fermentando idéias" e alimentando ações.

Posteriormente, tive acesso aos artigos "Significado psicológico de saúde como função de contingências grupais em duas faculdades de São Paulo" , "O significado psicológico de palavras relacionadas à saúde para diferentes grupos de professores" e "O mundo através das palavras" . Logo depois, li sua tese "O significado psicológico das palavras" , e senti que já não era a mesma.

Foi a partir da leitura dos textos da professora Sílvia Lane que repensei a relação saúde-doença, seu significado, sentido e conceitos. Seus artigos e capítulos de livros eram alimentos para a alma de seus alunos. De alguma forma, todos nós, tentavam acompanhar suas idéias, decifrando as ações e atos que transformam.

Todo o seu legado teórico transpira afetividade. São frases que nos afetam e nos fazem refletir os modos de caminhar a vida. São textos densos em conteúdo, plenos de humanismo e insinuações que nos instigam a viajar para dentro de nós mesmos, em solilóquios que nos enriquecem e nos fazem descobrir valores simples e, tão esquecidos nos dias atuais, como: generosidade, humildade, afetividade, ética, respeito e tolerância.

Sua forma de ver, refletir e agir, transformando o entorno com seus atos, nos instigava a procurar tenazmente, o que há de mais humano dentro de nós mesmos e em relação com o outro, tentando compreender as raízes e causas dos processos ditos por Freud, como inconscientes.

Sílvia Lane era exata em seus conceitos e definições não poupando críticas ao relativismo histórico positivista e paradigmas dominantes. Afinal, combatia com elegância e firmeza, os silogismos que manquejam e enganam.

Suas reflexões sobre emoções, o que pensamos, nossas necessidades, desejos e relações sociais, sintetizavam de alguma forma, as mudanças que ocorriam na sociedade e Psicologia Social.

De forma direta ou indireta, explicita ou não, sua personalidade afetava a todos nós, alunos de doutorado e mestrado, ávidos por ouvir, aprender e compreender a essência de suas indagações e questões epistemológicas. Entretanto, não nos enganemos: suas analises atingiam aqueles que pensavam a Psicologia Social a serviço do controle do comportamento humano, via normas rígidas e propagandas enganadoras. Para ela, não há como ignorar o homem em sua cotidianidade e historicidade, com suas necessidades e desejos, em atividade constante.

Sílvia Lane era defensora intransigente do homem enquanto "ser social" , sendo por isso um "um zoom políticon" 1 1 Termo usado por marx, cujo significado é: "Animal político" . Marx, K. Textos escolhidos e anotados. Do Homem Alienada à Sociedade Comunista. Lisboa: Editorial notícias, 1978. em movimento. Ouvir suas criticas, nos afetava de forma potencializadora. Afinal, o afeto tem caráter ativo e responsável, como dizia Santo Agostinho, e a emoção é um modo de ser total que envolve alma e corpo enquanto dois aspectos de uma única realidade, como refletia o filósofo Bento de Espinosa.

A partir da compreensão dos problemas comuns que nos cerca, enquanto latino-americanos, fomos "apresentado" a outros pesquisadores, como por exemplo da venezuelanas Maritza Montero, Elisa Jimenez e o salvadorenho Ignácio Martin-Baró, cujo livro " Sistema, grupo y poder" , ficou em nossas mãos durante meses, até concluirmos a leitura reflexiva e trabalho prático sobre "processo grupal" .

O entusiasmo como a Sílvia Lane falava de seus colegas latinos e, em especial, do Martin-Baró, era próprio daqueles que defendem, espalham e plantam sonhos e utopias em nossas mentes, tendo a certeza que são mais que possíveis de serem realizados.

Confesso: fui conquistada integralmente por esta mulher que apresentava a todos nós uma conduta ética, sem deslizes e compromissada com a reflexão teórica, a transformação social e as necessidades dos trabalhadores. Sua sensibilidade, seu interesse vivo por nossas práxis e sua escuta atenta a cada dúvida colocada por nós, era o que nos afetava a todos, envolvidos com seu Núcleo.

Sua forma delicada e compromissada, solidária e firme a qualquer hora que necessitássemos de seus ensinamentos, nos mostrava que a subjetividade dos homens e mulheres, seu sofrimento e angústias, suas tristezas e alegrias ou mesmo as palavras ditas, sentidas e talvez, não-ditas, expressavam de alguma forma, as relações sociais vividas por todos nós em sociedade.

De forma afetiva, nos fazia perceber a necessidade de compreendermos o vínculo entre o todo social e suas partes, sem fundi-los ou negá-los. E nos instigava a pensar suas necessidades, desigualdades, antagonismos de classes, conflitos e, especialmente, sua resistência e luta. Nos lembrava que somente o homem é capaz de isolar-se em sociedade. E, por isso, o movimento social não excluía o movimento político. Ao contrário, constituem uma unidade dialética, "faces" do mesmo movimento.

Sílvia Lane não fazia concessões quando se tratava de analisar o homem em sociedade e por isso, criticava a visão fragmentada, cristalizada e descolada do social. Para ela, o individuo está situado historicamente e, conseqüentemente, é multideterminado. E a Psicologia Social por sua vez, não pode ser descomprometida, ficar a margem da realidade, como se fosse extra-social.

O poder de suas idéias teve ressonância em muitos psicólogos brasileiros e entre eles: Bader Sawaia, Antonio Ciampa, Ana Bock, Odair Furtado, Suely Terezinha Ferreira, Wanderley Codo, Maria de Fátima Quintal e tantos outros, dentro e fora do nosso país.

Enquanto sua aluna e profissional de outro campo do conhecimento, Sílvia Lane foi referencial que incentivava a todos nós de forma gentil. Era capaz de perceber em nossas dúvidas, um potencial transformador que nos animava e afetava, nos comprometendo com o fazer e agir em atos.

Arrisco afirmar que, é impossível pensar a história da Psicologia Social no Brasil e na América Latina sem trazer a identidade viva, doce, humana, persistente, combativa e critica intransigente das idéias positivistas e conservadoras. Por sua ação constante, Bader Sawaia a cita como "psicóloga da ação política" . Sílvia Lane construiu bons encontros a moda espinosana: alegres e éticos. E plantou sonhos possíveis em todos nós. Foi uma mulher em movimento. Certamente, ela habitará para sempre, nossos corações de estudantes, pesquisadores, professores e leitores. Professora Sílvia Lane, para sempre, você estará PRESENTE.

Notas

Margarida Barreto é médica e doutora em Psicologia Social. Atualmente trabalha no Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas e Plásticas de São Paulo. Endereço para correspondência: Rua Tamandaré, 348, 3º andar, Liberdade, São Paulo, SP. megbarreto@uol.com.br

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    Termo usado por marx, cujo significado é: "Animal político" . Marx, K. Textos escolhidos e anotados. Do Homem Alienada à Sociedade Comunista. Lisboa: Editorial notícias, 1978.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Out 2007
    • Data do Fascículo
      2007
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