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A estética da delicadeza nas roças de Minas: sobre a memória e a fotografia como estratégia de pesquisa-intervenção

The politeness of aesthetics in the country side of Minas: aboutthe memoryand the photographyas a device for the interventional researc

Resumos

Este artigo relata um recorte de uma pesquisa-intervenção mais ampla realizada em um pequeno povoado situado na região leste de Minas Gerais, Brasil. O objetivo é apresentar a estratégia metodológica que, ao se beneficiar do uso da fotografia, traz à tona o tema da memória como dispositivo estratégico para a construção de uma educação estética do olhar, calcada no diálogo entre as gerações.

Memória; linguagem; fotografia; pesquisa-intervenção


This article describes part of a major intervention research that took place in a small town located in the eastern part of the state of Minas Gerais, Brazil. This paper aims to present the methodological strategy, benefiting from the use of photography, that brings up the subject of memory as a strategical dispositif for constructing an aesthetic education for visual perception, based on the dialogue between generations.

Memory; language; fotography; intervention research


A estética da delicadeza nas roças de Minas: sobre a memória e a fotografia como estratégia de pesquisa-intervenção

The politeness of aesthetics in the country side of Minas: aboutthe memoryand the photographyas a device for the interventional researc

Denise Sampaio Gusmão; Solange Jobim e Souza

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

RESUMO

Este artigo relata um recorte de uma pesquisa-intervenção mais ampla realizada em um pequeno povoado situado na região leste de Minas Gerais, Brasil. O objetivo é apresentar a estratégia metodológica que, ao se beneficiar do uso da fotografia, traz à tona o tema da memória como dispositivo estratégico para a construção de uma educação estética do olhar, calcada no diálogo entre as gerações.

Palavras-chave: Memória; linguagem; fotografia; pesquisa-intervenção.

ABSTRACT

This article describes part of a major intervention research that took place in a small town located in the eastern part of the state of Minas Gerais, Brazil. This paper aims to present the methodological strategy, benefiting from the use of photography, that brings up the subject of memory as a strategical dispositif for constructing an aesthetic education for visual perception, based on the dialogue between generations.

Keywords: Memory; language; fotography; intervention research.

Janela sobre a memória (ll)

Um refúgio?

Uma barriga?

Um abrigo para se esconder quando estiver se afogando

na chuva,

ou sendo quebrado pelo frio,

ou sendo revirado pelo vento?

Temos um esplêndido passado pela frente? Para os navegantes com vontade de vento, a memória é

um porto de partida.

Eduardo Galeano (1994)

O tema deste artigo tem como cenário uma pesquisa1 1 . Esta pesquisa resultou na dissertação de mestrado "Por uma estética da delicadeza: Ressignificando contos e imagens nas rocas de Minas", de Denise Sampaio Gusmão (2004), Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Estamos dando continuidade a este projeto, desde 2005, a nível de doutorado, com o objetivo de construção de uma casa-museu para abrigar o acervo cultural local, mas especialmente um espaço de convivência e encontro das pessoas da localidade com as múltiplas possibilidades de narrativas que ali se revelaram, como a fotografia, a história escrita, a história contada, a sanfona, os violeiros, as brincadeiras, o teatro, etc. O objetivo é construir um espaço que se constitua não só como lugar onde se reverencia a memória mas, também, como abrigo da capacidade humana de narrar, tecida no intercâmbio de experiências, no diálogo entre as gerações. realizada em um pequeno povoado situado na região leste de Minas Gerais. Tudo se inicia com o desejo de Maria de Lourdes Souza2 2 . Maria de Lourdes Souza (1998) é autora do livro Dicionário de lembranças. Rio de Janeiro, RJ: Contemporânea. Seus contos são inspirados em sua infância e adolescência vividas no Córrego dos Januários. Sua angústia e preocupação com o desaparecimento da memória do povoado nos levaram até lá. , a Toquinha, em registrar casas, histórias e costumes ameaçados de desaparecer no lugarejo onde nasceu e viveu a maior parte de sua vida, e que se constitui na fonte de sua inspiração como escritora: o Córrego dos Januários. Desse encontro nasce a possibilidade de juntos recuperarmos a história dos Januários, uma comunidade onde vivem os descendentes de Joaquim Januário de Souza, que fundou o povoado em 1867. A chegada da luz elétrica e da televisão, por volta de 1980, provocou mudanças que afetaram a convivência e a troca de experiências dos habitantes deste vale no interior das Gerais. Com isso a memória foi se perdendo...

As escavações que norteiam a estratégia teórico-metodológica deste percurso trazem no seu bojo uma perspectiva sócio-histórica e crítica da cultura, tendo em Walter Benjamin uma referência fundamental, como podemos explicitar no fragmento destacado a seguir:

Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois 'fatos' nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. (Benjamin, 1995, p. 239).

Ao revolver "os fatos" do Córrego dos Januários, buscamos encontrar as histórias do lugar, mas, isso só foi possível, porque nos dispomos a um trabalho de intervenção que contou com a colaboração dos habitantes deste povoado. Construímos coletivamente o desejo de resgatar o sentido de contar nossas histórias e provocar um encontro entre gerações através do uso das imagens fotográficas. Através das "Oficinas da Memória" 3 3 . Denominamos "Oficinas da Memória" as diversas atividades criadas com os residentes do Córrego dos Januários, como estratégias metodológicas de pesquisa e intervenção, desenvolvidas ao longo do trabalho de campo. fomos abrindo espaço para um trabalho que envolvia pessoas de diferentes segmentos de idade e o encontro e o diálogo entre as diferentes gerações foi acontecendo naturalmente.

Vamos privilegiar mostrar neste texto a construção de uma metodologia específica, pautada especialmente em Walter Benjamin (1994, 1995) e Mikhail Bakhtin (2003). Caracterizamos a estratégia metodológica utilizada como uma modalidade de pesquisa-intervenção, utilizou a linguagem fotográfica para abordar o tema da memória em um contexto particular - o Córrego dos Januários, e retratar seus moradores e suas histórias.

Na medida em que a linguagem fotográfica foi um recurso fundamental em nossa estratégia metodológica cabe ao pesquisador se indagar sobre o tipo de olhar que o leva ao campo e como ele se coloca diante do outro. Com base em nossos autores situamos a presença do pesquisador no campo como sujeito da experiência (Larrosa, 1998). Isto significa dizer, que embora haja o reconhecimento de que os conceitos teóricos que o pesquisador carrega consigo estejam sempre presentes na orientação do seu olhar sobre o objeto de pesquisa, estes não devem impedir o encontro com o enigma, com a surpresa, com o inesperado. O sujeito da experiência é aquele que se deixa afetar pelo encontro com o outro, buscando não só compreendê-lo, mas também aprender com ele. Portanto, nosso trabalho se dá no entrelaçamento de imagens e narrativas. E é na interação imagem-palavra e palavra-imagem que buscamos romper com a busca de um sentido fixo para o que vemos, propondo uma metodologia que, ao contemplar as perspectivas dialógicas e alteritária, se da conta, permanentemente, de que o sentido é construído com o outro e não sobre o outro.

A Grafia do Olhar - O Uso da Fotografia como Estratégia Metodológica

Buscar em crianças, jovens, adultos e mais velhos a memória do Córrego dos Januários é possibilitar o alargamento desse universo, abrindo-se para outras compreensões. A fotografia é uma forma de linguagem que possibilita diversas interpretações e compõe, junto com as narrativas, uma forma de se contar a história desse lugar. Portanto, há nas imagens fotográficas uma forte relação com a memória, como nos diz Boris Kossoy (2001):

Fotografia é memória e com ela se confunde. Fonte inesgotável de informação e emoção. Memória visual do mundo físico e natural, da vida individual e social. Registro que cristaliza, enquanto dura, a imagem - escolhida e refletida - de uma ínfima porção de espaço do mundo exterior. É também a paralisação súbita do incontestável avanço dos ponteiros do relógio: é, pois, o documento que retém a imagem fugidia de um instante de vida que flui ininterruptamente. (p. 156).

As escavações desse solo mineiro chegam por meio da escuta da palavra dita, da história oral narrada por seus habitantes. Chegam também por meio da palavra escrita, das pesquisas feitas no Museu da Cidade de Inhapim e nos contos literários de Toquinha, habitante deste lugarejo. E chegam ainda por meio da fotografia, da grafia do olhar.

As fotos revelam escolhas diante de um universo infinito de imagens possíveis. E é aí que técnica e subjetividade se entrelaçam. A fotografia não é um registro mecânico da realidade. Muito mais que isso, a foto traz grafada a subjetividade do fotógrafo.

Para Kossoy (2001) a fotografia é um duplo testemunho, tanto pelo que nos mostra da cena passada como pelo que nos revela do seu autor. Além disso, ele nos lembra que o processo de fotografar está vinculado ao momento histórico, definindo a atuação do fotógrafo enquanto filtro cultural.

Contudo, naquele pequeno povoado de Minas Gerais o pesquisador não foi o único a fotografar. Nosso objetivo foi também o de possibilitar a escuta das imagens produzidas pelos próprios moradores, deixando que revelassem seu olhar diante do próprio cotidiano, expressando a crítica, a estética e a poética de seus olhos.

Para isso realizamos as "Oficinas de Memória", utilizando a fotografia como um dispositivo de diálogo entre crianças, adultos e os mais velhos, buscando construir com eles uma relação - com a câmera e com o ato fotográfico - que rompesse com o automatismo e a dispersão, tão presentes no "consumo" de imagens no mundo atual. Mais do que um aprendizado técnico, que só seria possível com mais tempo e com a ajuda de um fotógrafo profissional, procuramos, nessas oficinas, estabelecer um ritmo que facilitasse o aprendizado de caminhar com os olhos despertos diante da vida.

Nosso propósito foi mostrar como a fotografia pode se constituir como uma grande aliada na educação estética do olhar, possibilitando a construção de um olhar crítico e desperto, em vez de passivo e disperso, em face do uso abusivo de imagens no nosso tempo.

Fotografar, aqui neste contexto, significou reverenciar o momento, dizer com a foto como é importante valorizar aquele instante. Significou também estar presente e ter consciência disso. Entender que o passado, o presente e o futuro se entrecruzam e que não é possível retomar o fio da história sem compreender que ela também está se dando neste instante, no aqui e agora. A fotografia ajudou os habitantes dos Januários a compreenderem que é preciso tomar o curso do próprio Córrego, saberem-se sujeito da e na história.

Vale mencionar que as narrativas dos habitantes do povoado revelaram a cisão entre progresso e felicidade, relacionada com o surgimento da luz elétrica e da televisão. A rotina comum da vida, antes baseada na convivência entre os pares, dá lugar ao isolamento. O cotidiano mediado pelas imagens televisivas diminui sensivelmente o espaço para o diálogo entre as pessoas. No entanto, a fotografia, sendo também uma outra forma de uso da tecnologia, se coloca aqui exatamente como uma mediação técnica interessada no elo entre os tempos e os seres. O conceito de exotopia em Bakhtin (2003), exprime com precisão o quanto cada um de nós precisa do outro para se ver a si próprio:

Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar - a cabeça, o rosto, a expressão do rosto -, o mundo ao qual ele dá as costas, toda uma série de objetos e de relações que, em função da respectiva relação em que podemos situar-nos, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando estamos nos olhando, dois mundos diferentes se refletem na pupila dos nossos olhos. (p. 43).

Bakhtin (2003) permite compreender que ao fotografar crianças, adultos e mais velhos, o próprio ato fotográfico devolve, na imagem revelada, a consciência daquilo que antes só era visível a uma única pessoa. Assim, o excedente de visão de cada um é possível de ser retomado através do ato fotográfico. Apostamos neste trabalho essencial do olhar através e por meio das imagens capturadas pelos diferentes enquadramentos da câmara, em um modo de desenvolver um diálogo que construísse histórias, imagens do pensamento, que se não fossem estimuladas continuariam na desmemoria.

Escavar o solo da história do Córrego dos Januários exige cuidado, pois o terreno da memória é fértil, mas também delicado. Fomos ao encontro do passado sabendo que aquilo que emerge das escavações só é possível pela experiência do presente. Para além de dados e informações, as escavações nos remetem ao encontro com a linguagem, possibilitando a construção de uma perspectiva crítica e o ressignificar de um passado que, ao dialogar com o presente, o ilumina e o faz transformar, "entregando aquilo que recompensa as escavações" (Benjamin, 1995).

Em todas as viagens que fizemos a Minas sempre caminhávamos pelo Januário com uma máquina fotográfica, um gravador e um bloco. Escrevíamos mais com a câmera do que com a caneta, e logo compreendemos que caminhar naquela roça significava ficar em permanente estado de escuta.

Vejamos então o que emergiu dessas escavações ao longo da "Oficina de Memória" que realizamos. Todos os narradores que participaram desta pesquisa nasceram e viveram no Córrego dos Januários, e é nessa narrativa de contos e imagens que nos deteremos a seguir.

Olhar e Entre-Olhar: Fatos, Paisagens, Pessoas e Narrativas

Comecemos com as palavras de Ecléa Bosi (2003), autora que foi uma fonte de inspiração fundamental neste trabalho de "escavações" no Córrego dos Januários:

É do cotidiano que brota a magia, a brincadeira que vai transformando uma coisa em outra... Abra os olhos e apure os ouvidos. É só prestar atenção. Ao pintor que, do alto da escada, com seu gorro de jornal, vai colorir as paredes da casa, ao padeiro que hoje se inspirou e fez pães em forma de dragão e tartaruga (não passe indiferente pela vitrine). Você testemunha grandes e pequenos episódios que estão acontecendo à sua volta. Um dia será chamado a contar também. Então verá que o tecido das vidas mais comuns é atravessado por um fio dourado: esse fio é a história. (p. 10).

Nosso primeiro encontro teve como participantes Brenda, Gilzane e Fabiane, todas com 10 anos, e Regiane, com 12. Leidiane e Gleisiane, primas de Brenda, caminharam conosco pelo Córrego, mas não fotografaram, pois moram em Ipatinga e estavam apenas passando uns dias ali. Pedi às duas que ajudassem às fotógrafas, anotando num bloquinho as fotos e os títulos das imagens que seriam produzidas na oficina. Brenda e Regiane dividiram uma câmera, enquanto a outra dupla foi composta por Gilzane e Fabiane.

Nossa proposta era criarmos um cesto da memória com imagens. Fabiane e Regiane nunca tinham fotografado; Gilzane havia experimentado poucas vezes, na câmera de uma tia, e Brenda fez sua primeira foto com nossa máquina em abril de 2001.

A oficina teve três momentos: fotografar (em abril de 2003), analisar e conversar sobre as fotografias, nomeando-as e trazendo dados das paisagens e pessoas, assim como explicar o porquê da escolha daquela imagem para o cesto de memória (junho de 2003). A última etapa era dar um retorno para as pessoas fotografadas, mostrando-lhes as imagens (também em junho de 2003). Vamos entrelaçar estes três momentos na tentativa de revelar algo do olhar das nossas jovens fotógrafas e dos temas que através de suas lentes ficaram mais em foco.

Nosso objetivo era caminhar fotografando, e a pergunta que guiava o olhar e os "cliques" das câmeras era: que imagens queremos deixar para a história do Córrego dos Januários?

Denise: - "Oi, Leandro. A gente tá aqui fazendo umas fotos do Córrego dos Januários pra depois fazer uma exposição. Então as meninas estão tirando fotos do que elas acham importante, e elas escolheram você."

Leandro fica contente e faz uma pose:

O grupo dá à foto o título "Leandro puxando a mula com café", e Regiane nos conta um pouco dele, e o porquê de sua escolha.

Ele é tipo um lavrador. Trabalha com a apanhação de café. Ele vigia a casa da D. Nega, ele que cuida das vacas. Tem 24 anos, por aí. Eu acho ele uma pessoa muito legal. Ele gosta de brincar com a gente.

Seguimos caminhando.

Gilzane: - "Getúlio espalhando café. Getúlio tá numa pose."

Denise: - "Alguém pediu pra ele fazer essa pose?"

Fabiane: - "Não."

Brenda: - "Eu não, ninguém."

Denise: - "Eu acho que foi assim, que a gente falou assim, a gente precisa pedir permissão pra ele tirar a foto, lembra?"

Regiane: - "Foi a Gilzane ali que falou."

Denise: - "E aí ele se preparou para a foto. Eu achei muito legal ele ter feito essa pose aí. Gilzane, por que você tirou essa foto?"

Gilzane: - Ah, eu acho assim, importante, porque eu acho que o café é uma das coisas mais importantes aqui no Januário. Porque a maioria das pessoas tem bastante café. Eu acho diferente porque eu fico assim pensando, o café dá, aí apanha o café, depois põe pra secar, aí depois limpa, aí que vai fazer o pó. Diferente, eu acho. Eu fico pensando, como é que Deus faz uma coisa tão importante.

Brenda: - Porque ele está espalhando, mexendo o café, que é muito importante. Ele apanha o café, seca e depois limpa ele e faz o pó. Pó pra fazer café. Às vezes a gente que tem uma lavourinha, igual o Tio Tota [Nestor]. Uma lavourinha ele pode pegar, cuidar dele, ficar espalhando ele e limpando ele. Pode até formar um café. E dá pra gente até vender o café. Então é importante aqui no Januário.

Gilzane traz o tema da lavoura de café e Regiane também, mas sua escolha vem tramada pelo afeto por Leandro, que brinca com as crianças. Enquanto isso, Fabiane fotografa as crianças brincando...

Brenda: - "Olha essa foto, Vítor e Marco Aurélio soltando pipa. Quem tirou essa foto foi você, não foi, Fabiane?"

Fabiane: - "Ah, é porque eles estavam se divertindo."

Gilzane: -Ficou bonito. Achei interessante, porque os meninos estavam divertindo. Eles fizeram a pipa, depois soltaram a pipa, brincando. É, pipa tem muito tempo que os meninos já fazem assim. Já tem muito tempo, porque eu acho que até meu tio já fazia.

Regiane: - "É, que aí mostra a brincadeira dos meninos que eles gostam mais de brincar."

Uma cena que vale destacar nessa andança fotográfica com as meninas foi a imagem de Gilzane fotografando D. Nega. Estava distraída, e quando nos demos conta vimos Gilzane trabalhando, concentrada e silenciosa, no registro de D. Nega. A imagem transbordava poesia, e tratamos imediatamente de registrá-la para que a foto nos ajudasse a dizer o que entendemos por uma estética da delicadeza.

A pesquisadora e Gilzane, cada uma com sua câmera, estavam em diferentes ângulos de visão, podendo grafar com nosso olhar distintos pontos de vista de uma mesma cena: a casa de D. Nega. Do meu ângulo de visão, vejo Gilzane, a casa, a janela e D. Nega, mas Gilzane não vê o que eu vejo: a menina exercitando a arte de fotografar. E o que vê Gilzane a partir de sua perspectiva?

Denise: -É incrível essa foto aqui! A casa, a janela é pequenininha e aqui na foto parece enorme. Porque isso em fotografia se chama enquadramento. Ela fez um recorte da cena. Ela escolheu e enquadrou só aquela janela e ela tomou toda a cena. Muito legal. Gilzane, por que que você tirou essa foto dela?

Gilzane: - "Ah, porque é uma pessoa mais velha, ela é uma biblioteca como a minha mãe falava."

Fabiane: - "Ah, ela também é minha tia, é irmã da minha vó, mãe do meu pai."

Denise: - O que eu tô entendendo é que com essas fotos vocês estão contando alguma coisa aqui que eu acho importante. Então eu não sabia, por exemplo, eu não lembrava que esse cafezal era daqui. Então vamos lembrar aqui dessa história aqui. Então vamos lá: D. Nega mora nessa casa.

Fabiane: - "E é dona daquele terreno [da foto do Leandro com a mula]."

Gilzane: - "Que tem café."

Brenda: - "E o Getúlio cuida."

Denise: - "Entendi. Agora vamos lá na casa dela mostrar as fotos."

Tanto Brenda como Gilzane com a outra máquina fotografaram Toquinha e Denise. Além do afeto manifestado por todas, e totalmente recíproco, as meninas fazem comentários sobre a foto, explicando por que ela deve estar no acervo.

Gilzane: - "Ah, é porque a gente sempre faz uma coisa todo dia, por exemplo, vai na escola todo dia, tudo a mesma coisa, aí quando vocês vêm é diferente assim, porque aí a gente faz uma coisa diferente. Mais divertido."

Fabiane: - "E também porque vocês que estão buscando as coisas mais antigas, tirando fotos... Aprofundando na história do Januário."

Gilzane: - "Porque aí as crianças, o que elas não sabem vão ficar sabendo."

Fabiane: - "E nós também."

Gilzane: - "A gente também. Elas vão saber coisas diferentes."

As meninas fizeram ao todo 48 fotos, cerca de 12 cada uma, e se entusiasmaram com o resultado. Praticamente inaugurando o exercício de fotografar, mostravam orgulhosas as fotos para os adultos, surpreendidos com a beleza das imagens ao se verem em um ou outro registro. As fotos apresentadas aqui foram as escolhidas para compor o acervo fotográfico do Córrego dos Januários. Os temas se repetiram nas outras fotos e destaco o afeto como um dos eixos centrais. As crianças fotografaram crianças, brincadeiras, divertimento, e também aqueles que amam (tios, bisavô, amigos, irmã...). O tema do café também emerge, e é bonito perceber nas imagens e no que elas nos contam o valor do cultivo e da terra.

Denise: - "Eu quero que vocês falem uma frase ou palavra que defina, pra vocês, como é que foi essa experiência de ter fotografado o Córrego dos Januários."

Brenda: - "Paisagem, não? Porque a gente tirou foto do café com o Getúlio, do Leandro carregando café dentro do balaio..."

Fabiane: - "De várias paisagens."

Gilzane: - "Da natureza, das pessoas..."

Denise: - "Que bonito, isso. As imagens que vocês produziram trazem paisagens humanas, naturais e da cultura daqui, né?"

Brenda, Gilzane, Regiane e Fabiane mostraram, através das lentes de suas câmeras, paisagens humanas, naturais e culturais do Córrego dos Januários, criando com suas belas imagens uma estética da delicadeza.

Por uma Estética da Delicadeza

Em nossa metodologia de pesquisa, optamos em escavar a história em busca da memória do Córrego dos Januários no encontro com os seus habitantes. A rememoração para Benjamin (1994, 1995) possibilita não só um diálogo com o passado, mas também com o presente, pois "não se trata somente de não esquecer o passado, mas também de agir sobre o presente" (Gagnebin, 2006, p. 55).

A experiência das escavações no levou ao encontro com a linguagem. A produção de narrativas, com nossos interlocutores, trouxe um ritmo: singular, poético, estético, político, crítico. Vejo na delicadeza dois sentidos essenciais para a nossa reflexão. Um fala de uma percepção poética do mundo, revelada tantas vezes pela grafia do olhar de crianças e adultos do Córrego. O outro nos leva ao cuidado e à humildade. O terreno da memória é delicado nele mesmo, por isso exige também delicadeza da parte daquele que se aventura a escavá-lo.

O tempo da delicadeza talvez seja este tempo em que vislumbramos o futuro no presente, de olhos dados com o passado. Um tempo em que pensamos naqueles que ainda vão nascer e nos comprometemos com os vindouros aqui e agora. O tempo da delicadeza é também um tempo de escuta, ou melhor, de sermos testemunhas de experiências que se não forem ouvidas poderão ficar para sempre emudecidas.

Foi no confronto entre o eu e outro que essas narrativas foram se construindo e o encontro entre as crianças, os adultos e os mais velhos foi sendo entremeado pelas experiências grafadas pelo olhar. Ao fotografarem, as diferentes gerações se re-encontraram, construindo uma subjetividade permeada pelo intercâmbio de seus diferentes olhares e saberes. Ao se depararem com as imagens, os fotógrafos(as) construíam sentidos, contavam suas histórias. Nossa tarefa foi organizar, com os fotógrafos(as) e moradores do Córrego dos Januários, uma narrativa de imagens e palavras, buscando trazer para um público mais amplo uma determinada concepção de estética que foi ali produzida. Esta concepção nos implica com a ação, com a ética, com a responsabilidade de estar no mundo. Compromisso de que também nos fala Bakhtin (2003), lembrando que ciência, arte e vida cobram uma unidade.

Os três campos da cultura humana - a ciência, a arte e a vida - só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade. . . O que garante o nexo interno entre os elementos do indivíduo? Só a unidade da responsabilidade. Pelo que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com a minha vida pra que todo o vivenciado e compreendido nela não permaneçam inativos. . . Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade. (p. 1-2).

Walter Benjamin, Mikhail Bakhtin, Boris Kossoy, Ecléa Bosi e Eduardo Galeano são alguns dos autores, que nos acompanharam neste texto e nos convencem com suas palavras belas e precisas que nosso destino é viver as histórias e depois transformá-las em narrativas, criar palavras e imagens para que as histórias possam ser contadas e re-contadas através dos tempos. Buscar o fio do sentido para aprendermos a tecer lições sobre a vida, que, mesmo como repetição, é sempre o eterno retorno do novo nas gerações seguintes (Jobim & Souza, 2003).

As belas fotografias produzidas pelas crianças, moradoras do Januário, colocam em foco a criança produtora de cultura, capaz de revelar através das lentes de uma câmara uma outra perspectiva da roça e de seus habitantes.

A visão crítica compõe uma das faces da estética da delicadeza, que possibilita a renúncia ao assujeitamento, ao conformismo diante do risco do desaparecimento da memória do povoado. Em contraponto a uma existência que separa o progresso da convivência, a tecnologia da sensibilidade, a criança do adulto, buscamos, coletivamente (os moradores do Córrego dos Januários, os professores e as pesquisadoras), libertar a história dos habitantes daquele povoado da sina da mesmice e ousar inventar novas relações com a vida que engendrem formas de existir conjugadas às dimensões ética e poética. Ao vivermos em conjunto esta experiência sentimos necessidade de dar um nome àquilo que, tendo sido vivido no contexto desta pesquisa intervenção, seguramente ultrapassa todas as nossas tentativas de descrição. Nomear é sempre um desejo de dar sentido ao que muitas vezes não precisa necessariamente de nome para existir. Ainda assim, insistimos aqui em dar um nome ao que foi vivido e relatado sobre os acontecimentos que provocamos nas roças de Minas, e daí surgiu o que chamamos de estética da delicadeza. Ao criarmos um nome nos sentimos ainda mais responsáveis por seus desdobramentos posteriores na vida, nos modos como a partir da nomeação inventamos maneiras para agir no mundo. E o nosso desejo é de que tudo isto que teve início como uma pesquisa intervenção, e que aqui foi narrado com palavras e imagens, possa também existir para além das roças de Minas.

Notas

Recebido: 31/07/2007

1ª revisão: 04/10/2007

Aceite final: 27/11/2007

Denise Sampaio Gusmão é psicóloga, mestre e doutoranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Endereço para correspondência: PUC-Rio, Departamento de Psicologia, Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea, Rio de Janeiro, RJ, 22453-900. Tel.: (21) 3527 1185 denisegusmao@globo.com

Solange Jobim e Souza é doutora. Professora Associada do Departamento de Psicologia, PUC-Rio. Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista de Produtividade do CNPq. Coordenadora do Grupo Interdisciplinar de Psicologia (GIPS) do Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Endereço para correspondência: PUC-Rio, Departamento de Psicologia, Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea, Rio de Janeiro, RJ, 22453-900. Tel.: (21) 3527 1185 soljobim@uol.com.br

  • Bakhtin, M. (2003). Estética da criação verbal São Paulo, SP: Martins Fontes.
  • Benjamin, W. (1994). Magia e Técnica, Arte e Política: Vol. 1. Obras Escolhidas São Paulo, SP: Brasiliense.
  • Benjamin, W. (1995). Rua de mão única: Vol. 2. Obras Escolhidas São Paulo, SP: Brasiliense.
  • Bosi, E. (2003). Velhos amigos. São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Gagnebin, J. M. (2006). Lembrar escrever esquecer.São Paulo, SP: Ed. 34.
  • Galeano, E. (1994). As palavras andantes Porto Alegre, RS: L&PM.
  • Gusmão, D. (2004). Por uma estética da delicadeza: Ressignificando contos e imagens nas roças de Minas. Dissertação de Mestrado não-publicada, Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, RJ.
  • Jobim, S., & Souza, S. (2003). O menino Kirikou, a Feiticeira Kabará e o Sábio da Montanha. In S. Jobim & S. Souza (Eds.), Educação @ pós-modernidade: Ficções científicas e crônicas do cotidiano Rio de Janeiro, RJ: Letras.
  • Kossoy, B. (2001). Fotografia e História. São Paulo, SP: Ateliê Editorial.
  • Larrosa, J. (1998). O enigma da infância ou o que vai do impossível ao verdadeiro. In J. Larrosa & N. De Lara (Eds.), Imagens do outro. Petrópolis, RJ: Vozes.
  • 1
    . Esta pesquisa resultou na dissertação de mestrado
    "Por uma estética da delicadeza: Ressignificando contos e imagens nas rocas de Minas", de Denise Sampaio Gusmão (2004), Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Estamos dando continuidade a este projeto, desde 2005, a nível de doutorado, com o objetivo de construção de uma casa-museu para abrigar o acervo cultural local, mas especialmente um espaço de convivência e encontro das pessoas da localidade com as múltiplas possibilidades de narrativas que ali se revelaram, como a fotografia, a história escrita, a história contada, a sanfona, os violeiros, as brincadeiras, o teatro, etc. O objetivo é construir um espaço que se constitua não só como lugar onde se reverencia a memória mas, também, como abrigo da capacidade humana de narrar, tecida no intercâmbio de experiências, no diálogo entre as gerações.
  • 2
    . Maria de Lourdes Souza (1998) é autora do livro
    Dicionário de lembranças. Rio de Janeiro, RJ: Contemporânea. Seus contos são inspirados em sua infância e adolescência vividas no Córrego dos Januários. Sua angústia e preocupação com o desaparecimento da memória do povoado nos levaram até lá.
  • 3
    . Denominamos "Oficinas da Memória" as diversas atividades criadas com os residentes do Córrego dos Januários, como estratégias metodológicas de pesquisa e intervenção, desenvolvidas ao longo do trabalho de campo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      2008

    Histórico

    • Aceito
      27 Nov 2007
    • Revisado
      04 Out 2007
    • Recebido
      31 Jul 2007
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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