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Juízo e ação moral: desafios teóricos em psicologia

Judgment and moral action: theoretic challenges in psychology

Resumos

O presente artigo apresenta e discute a polêmica, no campo da psicologia moral, sobre as relações entre juízo e ação. Teorias de tradição racionalista e estruturalista, como as de Piaget e Kohlberg, afirmam uma relação de continuidade entre juízo e ação moral e, ao mesmo tempo, lançam pontos de discussão sobre a complexidade envolvida no tema. Por outro lado, novas frentes de trabalho sugerem a integração de outros elementos (a cultura, a afetividade e o self), além das estruturas que podem compor um referencial com o qual se evidenciem as relações entre os aspectos envolvidos nas condutas morais. Por fim, apesar das críticas acenarem com caminhos promissores na pesquisa sobre o juízo e a ação moral, ainda existem limites na construção de referenciais teóricos e metodológicos que articulem diferentes perspectivas de análise psicológica da moralidade.

moral; psicologia; juízo moral; ação moral


The attending article presents and discusses the debate within the cognitive constructivist theories, which have as main representatives Jean Piaget and Lawrence Kohlberg. Such theories of rationalist and structuralist tradition maintain continuity between judgment and moral action and, at the same time, launch points of discussion on the complexity involved in the theme. New work fronts suggest the integration of other elements: culture, affectionateness, and the self, beyond the structures that may compound a referential that explains the relations between the aspects involved in moral behavior. Lastly, despite the criticism indicating a promising path in the search about judgment and moral action, considering its complex character, there are still limits in the making of the theoretical and methodological frameworks that articulate different perspectives of moral psychological analyses.

moral; psychology; moral judgment; moral action


Juízo e ação moral: desafios teóricos em psicologia* * Os autores agradecem à CAPES pela concessão de bolsa durante a elaboração do trabalho de pesquisa do qual se originou este texto.

Judgment and moral action: theoretic challenges in psychology

Leonardo Lemos de SouzaI; Mario Sergio VasconcelosII

IUniversidade Federal de Mato Grosso, Rondonópolis, Brasil

IIUniversidade do Estado de São Paulo, Assis, Brasil

RESUMO

O presente artigo apresenta e discute a polêmica, no campo da psicologia moral, sobre as relações entre juízo e ação. Teorias de tradição racionalista e estruturalista, como as de Piaget e Kohlberg, afirmam uma relação de continuidade entre juízo e ação moral e, ao mesmo tempo, lançam pontos de discussão sobre a complexidade envolvida no tema. Por outro lado, novas frentes de trabalho sugerem a integração de outros elementos (a cultura, a afetividade e o self), além das estruturas que podem compor um referencial com o qual se evidenciem as relações entre os aspectos envolvidos nas condutas morais. Por fim, apesar das críticas acenarem com caminhos promissores na pesquisa sobre o juízo e a ação moral, ainda existem limites na construção de referenciais teóricos e metodológicos que articulem diferentes perspectivas de análise psicológica da moralidade.

Palavras-chave: moral; psicologia; juízo moral; ação moral

ABSTRACT

The attending article presents and discusses the debate within the cognitive constructivist theories, which have as main representatives Jean Piaget and Lawrence Kohlberg. Such theories of rationalist and structuralist tradition maintain continuity between judgment and moral action and, at the same time, launch points of discussion on the complexity involved in the theme. New work fronts suggest the integration of other elements: culture, affectionateness, and the self, beyond the structures that may compound a referential that explains the relations between the aspects involved in moral behavior. Lastly, despite the criticism indicating a promising path in the search about judgment and moral action, considering its complex character, there are still limits in the making of the theoretical and methodological frameworks that articulate different perspectives of moral psychological analyses.

Keywords: moral; psychology; moral judgment; moral action

Introdução

O cenário contemporâneo das relações sociais revela um fenômeno chamado de crise de valores da sociedade. A violência parece ser o que melhor expressa essa crise, ainda mais quando as relações no espaço público são cada vez menos mediadas por valores universalmente desejáveis (solidariedade, justiça, equidade, democracia).

Sennet (1988) já mencionara esse cenário quando analisa como as dimensões pública e privada confundem-se ao longo da história, configurando um contexto atual como de supervalorização do privado sobre o público. As relações sociais são organizadas em torno da intimidade do mundo privado em detrimento do coletivo, embora seja este necessário para a tolerância e convivência entre os povos.

Diante de fenômenos como a violência, as reflexões sobre a moral passam a ser foco de atenção. Para Chauí (1999), os grupos sociais, para se conservarem, buscam a eliminação ou o controle da violência, através da regulação das condutas e de uma organização social. A busca dessas normas para a conservação do grupo social leva a questionamentos sobre os meios e os fins dos costumes (enquanto conjunto de regras, leis que compõem as relações interpessoais e intersubjetivas numa dada sociedade).

Autores como La Taille (1998a) e Freitag (1992) apontam para a necessidade de estudos sobre a moralidade humana diante desse contexto de crise. A busca de explicações sobre as condutas humanas, sobre os valores que as orientam e sobre a sua dinâmica são relevantes.

Sendo a moralidade um tema interdisciplinar, entendemos que a psicologia não abrange todas as suas nuances. No entanto, defendemos que a ciência psicológica é uma forma de conhecer dados de realidade sobre o fenômeno moral humano. Essa contribuição permite, segundo La Taille (1998a), a elaboração de uma ética condizente com a realidade do ser humano (suas motivações e necessidades), alcançando, assim, seu propósito, que é possibilitar "alguma forma de felicidade e harmonia para os seres humanos" (p. 8), as quais podem ter origens numa moral baseada no outro, como a kantiana, ou no eu (self), segundo a perspectiva de algumas virtudes, como propõe Aristóteles1 1 Para maior esclarecimento dessas perspectivas veja Kant, I. (1960). Fundamentação da metafísica dos costumes. Coimbra: Atlântida; Aristòteles. (2000). Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Clairet. .

Juízo e ação moral na perspectiva cognitivo-evolutiva

O interesse pelos estudos da moralidade eclode na década de 70 do século XX (Pérez-Delgado & Garcia-Ros, 1991). Dentre os trabalhos produzidos a partir de então, observamos a presença predominante das pesquisas psicológicas da moral, referenciadas em Jean Piaget e Lawrence Kohlberg.

Nelas aborda-se a moralidade em uma perspectiva cognitiva, sendo descritos os processos conscientes presentes no desenvolvimento do juízo moral e a análise da estrutura subjacente aos juízos formulados pelos sujeitos em vários experimentos que envolvem decisões morais. Esses estudos têm servido de marco interpretativo para diversos problemas educacionais e sociais da atualidade (ver, a esse respeito, La Taille, 1998b, 1994; Macedo, 1996; Puig, 1998; Araújo, 1996).

Propomos abordar essas teorias pelo fato de serem referências no campo da pesquisa sobre a moralidade humana. Elas vêm contribuindo para o debate, e seus pressupostos têm gerado paradigmas que deram origem a diversas vertentes de pesquisa, na busca de se ampliarem as investigações teóricas e metodológicas acerca da moralidade humana.

Jean Piaget e a psicogênese da moral

Podemos considerar que o estudo psicológico da moralidade humana é iniciado por Jean Piaget, a partir da publicação do livro O Juízo Moral na Criança (1932/1994), no qual se propõe a abordar cientificamente a moral, retirando-a do campo especulativo no qual até então se encontrava.

O autor inicia essa tarefa a partir do estudo dos jogos de regras, por considerá-los paradigmáticos da moralidade humana. Como ele afirmou na introdução da referida obra, "toda moral consiste num sistema de regras e a essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por estas regras" (Piaget, 1932/1994, p. 23). A moral é um sistema de regras que respeitamos. Sua preocupação foi a de descobrir o desenvolvimento do respeito a regras, ou o modo como a consciência se obriga a respeitá-las.

Piaget adverte que se propõe a investigar a consciência moral no que diz respeito ao juízo e não aos comportamentos ou sentimentos morais. Investigou o jogo de bolas de gude entre os meninos e, e entre as meninas, o de "pique". Mediante observação, entrevistas clínicas e mesmo jogando com as crianças, Piaget observou que existem mudanças na maneira como as crianças pensam e praticam as regras do jogo.

Existem dois níveis de análise propostos por Piaget sobre o juízo: o pensamento verbal teórico (sobre situações hipotéticas) e o pensamento moral efetivo (sobre situações reais). Piaget afirma que o pensamento verbal teórico, resultado das narrações de situações hipotéticas de conflito moral, está atrasado em relação ao pensamento moral efetivo, o qual o sujeito realiza diante de situações reais de conflito. O papel da ação é de ser fonte da reflexão moral na criança, pois ela age primeiro para depois compreender que as regras contêm possibilidades de serem modificadas e criadas. Além disso, ao agir a criança percebe também que as regras não são cristalizadas, nem muito menos são de origem divina ou de um adulto. Um exemplo disso é o jogo de bolinhas de gude descrito pelo autor (cf. Piaget, 1932/1934, p. 95).

Desse modo, Piaget considera necessário abordar as regras efetivamente morais, baseadas no dever, nas quais as crianças estão inseridas. Entretanto, a observação direta do comportamento das crianças em situações reais de conflito moral é difícil (devido às dificuldades de controle de variáveis), o que nos resta é a interrogação da criança sobre as obrigações morais em situações hipotéticas.

O pensamento moral verbal teórico seria uma tomada de consciência2 2 Para Piaget, tomada de consciência "é uma reconstrução, e, portanto, uma construção original sobrepondo-se às construções devidas à ação." (Piaget, 1932/1994, p.141). das reflexões do pensamento efetivo na vivência de situações de conflito pelo sujeito. Assim, o pensamento verbal teórico retoma fatos e elementos destacados pelo pensamento no decorrer da ação. A análise dos juízos morais não fica, dessa maneira, comprometida, pois considera que "a reflexão moral consiste numa tomada progressiva da atividade moral propriamente dita" (Piaget, 1932/1994, p. 140).

A filosofia moral kantiana influencia toda obra de Piaget, notadamente os elementos que elege no seu trabalho sobre a moral, tais como: a noção da justiça, os deveres e as obrigações morais e a razão como principal aspecto da moralidade. Assim como Kant, ele afirma a origem do respeito à regra como uma necessidade racional, lógica. A razão daria a liberdade (autonomia) em relação às pressões sociais e grupais. Liberdade esta necessária para o sujeito usar sua consciência moral.

Porém, Piaget opõe-se ao filósofo, quando considera que essa razão é construída na experiência, na ação e na interação do sujeito, e não a priori. Portanto, as normas e regras decorrentes da utilização da razão são oriundas da cooperação, da elaboração conjunta das mesmas pelos indivíduos, sendo válidas se todos as respeitarem.

O paralelismo entre o desenvolvimento moral e a cognição é afirmado na obra piagetiana através da sua fórmula: "a lógica é uma moral do pensamento assim como a moral é uma lógica da ação". Nesse sentido, segundo Freitag (1992), Piaget procura unir razão prática e razão teórica, cuja divisão foi realizada por Kant. Em sua posição, Piaget afirma a possibilidade do desenvolvimento do pensamento hipotético dedutivo orientar e esclarecer decisões no âmbito da moral.

O formalismo dessa teoria psicogenética da moral não nega o conteúdo como indispensável à construção da moralidade na criança. As relações sociais, polarizadas nos dois tipos - coação e cooperação -, agregam valores, sentimentos e outros fatores que são próprios à cultura e determinam a qualidade da experiência moral dos indivíduos.

Todavia, considerar essa diversidade não implica, conforme adverte La Taille (1994), deixar de procurar invariantes (universais) que sejam encontradas em todos os homens. Estamos de acordo com o fato de que a busca de invariantes psicológicas da moral é válida, mesmo diante da complexidade e da contradição humanas. Da mesma forma, o aspecto racional da moralidade não é descartado, já que não somos somente irracionais, a racionalidade nos permite tomar consciência de nossa própria irracionalidade, de nossas próprias contradições.

Nessa perspectiva, no enfrentamento dos problemas como a violência e os atos que ferem a sustentação da vida em sociedade, a inteligência é fator necessário, embora não seja suficiente, já que indivíduos intelectual e moralmente desenvolvidos, no plano dos juízos, podem utilizar essa inteligência para interesses próprios.

É inegável, portanto, mesmo para a abordagem de Piaget sobre a moralidade, que outros fatores como os valores, as crenças, os sentimentos também estão envolvidos no funcionamento psíquico que atua sobre os juízos e as ações morais. Embora ele afirme que a moral deva ser construída sobre os alicerces da racionalidade.

A teoria cognitivo-evolutiva da moral de Lawrence Kohlberg

As ideias piagetianas sobre a psicogênese da moralidade atravessaram décadas e foram retomadas por diversos pesquisadores, mas foi o psicólogo Lawrence Kohlberg que se tornou notório em suas investigações acerca da moralidade, ampliou e criou outra tipologia de tendências morais a partir das elaboradas por Piaget, consolidou perspectivas teóricas e práticas e influenciou diversos estudos subsequentes.

Kohlberg iniciou suas pesquisas sobre a moralidade a partir de sua tese de doutorado, publicada em 1958, na qual buscava verificar a continuidade do desenvolvimento do juízo moral na adolescência e idade adulta. Ele considera um pressuposto contido na tese piagetiana: a existência de uma evolução natural do pensamento moral que se dá em estágios invariantes. O fato intrigante era de que os estágios de autonomia eram dificilmente encontrados em idades posteriores aos descritos por Piaget, acreditando, portanto, que o trajeto até a autonomia deveria percorrer um caminho mais longo.

Ele utilizou em suas entrevistas dilemas morais hipotéticos nos quais solicitava do sujeito a resolução do conflito proposto e a justificativa de suas respostas. Um exemplo é o dilema de Heinz, no qual o personagem, com sua mulher doente, diante da impossibilidade de obter o único remédio que a curaria, é colocado em situação de conflito quando se vê na condição de ter que decidir entre dois valores: o direito à propriedade ou o direito à vida humana. A escolha do primeiro implica não roubar o remédio do farmacêutico que o possui e deixar de salvar a vida de sua mulher; a escolha do segundo salvaria sua mulher, embora tivesse de cometer uma ação considerada criminosa na sociedade em que vive.

Fiel à vertente estruturalista no campo da psicologia da moralidade, assim como Piaget, Kohlberg estava interessado no estudo do juízo moral de estrutura, e não de conteúdo. O juízo moral de conteúdo é revelado a partir da escolha da resposta ao dilema; o juízo moral enquanto estrutura, por sua vez, se refere à argumentação ou à justificativa para a escolha realizada. Como esclarece o próprio Kohlberg,

quando falamos da forma de um estágio nos referimos à estrutura de justiça, que se compõe de operações de justiça e do nível perspectiva social conquistada a partir da qual se fazem os juízos morais prescritivos. Definimos, portanto, como conteúdo, a eleição, as normas e os elementos utilizados nas respostas individuais. (1992, p. 254-255) [tradução nossa, grifos do autor].

A partir de suas pesquisas, ele formulou a tese de que eram seis os estágios pelos quais descreveu o juízo moral, da infância até a idade adulta. Num primeiro momento, definiu esses estágios como orientações do pensamento (Kohlberg, 1992, p. 35), considerando que era necessária a ampliação das amostras, dos estudos longitudinais e ainda das investigações interculturais. Empreendeu pesquisas sobre a moralidade do adolescente e do adulto durante mais de três décadas (60, 70 e 80), em conjunto com diversos colaboradores, que buscavam validar o caráter de universalidade e de sequencialidade dos seis estágios evolutivos. Este empreendimento resultou na elaboração de três níveis de moralidade, agrupando dois estágios cada um, num total de seis estágios que se sucedem evolutivamente, sendo o último mais complexo e mais adequado em relação ao primeiro.

Tais níveis e estágios são definidos segundo a perspectiva moral (o que é correto e as razões para agir corretamente) empregada pelo sujeito e a perspectiva social na qual se fundamenta sua argumentação (cf. Kohlberg, 1992, pp. 188-189 e 571-587). Na passagem de um nível para outro, bem como de cada estágio para outro, observam-se elementos de transição que apontam para a sequencialidade dos níveis que tendem a um progressivo equilíbrio entre o indivíduo e a sociedade.

Assim, o desenvolvimento moral para Kohlberg (1992) dá-se em estágios estruturados das noções de justiça, que são construídos em função das interações sociais, além de organizarem e serem organizados pela sociedade em que o sujeito vive. É na interação entre as condições internas (maturidade do sistema nervoso, níveis do desenvolvimento cognitivo) e externas (possibilidade de assumir papéis ou mudar de perspectiva) que o sujeito avança em cada estágio e torna-se capaz de construir modos de pensar e raciocínios morais mais avançados que os anteriores.

Kohlberg não exclui o desenvolvimento paralelo das estruturas cognitivas e as do desenvolvimento moral. Ele afirma que existe uma relação entre ambas, concordando com as proposições de Piaget, e transpondo a ideia piagetiana de hard stage sobre o desenvolvimento cognitivo para o desenvolvimento do juízo moral. A capacidade de formar juízos mais evoluídos necessita não só do conhecimento das regras e normas, mas também do desenvolvimento de estruturas cognitivas, o que possibilita a descentração e a coordenação de perspectivas, necessárias ao avanço no juízo moral, pois permite a comparação, o estabelecimento de relações, a hierarquização e a classificação dos elementos envolvidos. No entanto, o desenvolvimento cognitivo é necessário, porém não suficiente para o desenvolvimento moral.

Tais elementos servem para esclarecer a relação entre juízo e ação moral na teoria de Kohlberg. Como em toda teoria sobre a moralidade, o estudo do comportamento moral é necessário. Mesmo no caso em que a discussão central da teoria refira-se aos juízos, algum nível de predição ou de consideração sobre essa relação é válido e necessário para aplicações e intervenções do ponto de vista das práticas educativas. Diz-nos Kohlberg (1969, citado por Kohlberg, 1992, p. 1987, tradução nossa):

Agir de forma moralmente elevada requer um alto nível de raciocínio moral. Não se pode seguir os princípios morais (estágios 5 e 6) se não se entende ou não se acredita neles. Pode-se, no entanto, raciocinar em termos de tais princípios e não viver de acordo com eles. Há uma série de fatores que determinam se uma pessoa na realidade, em uma situação real, vive de acordo com seu estágio raciocínio moral, ainda que o estágio moral seja um bom prognosticador da ação em diversas situações experimentais e naturalistas.

As explicações de Kohlberg (assim como Piaget) sustentam que a ação moral é precedida pelo juízo, que dá condição e sentido a ela. Para testar sua hipótese, ele recorre a estudos como os de Blasi (1980, citado por Kohlberg, 1992) e de Milgram (1983), que reforçam a ideia de uma relação monotônica entre ação e juízo moral. Kohlberg (1992) sugere então que a probabilidade de um ato ter coerência com os níveis de juízo aumenta quanto maior for o estágio em que o indivíduo se encontra, porque nos estágios mais altos há maior probabilidade de estarem presentes, na avaliação, juízos de responsabilidade e de cuidado, conferindo maior importância às implicações das ações para os outros. Diverge assim de Piaget, que entende que a ação antecede o juízo, porque possibilita a tomada de consciência e o alcance de níveis de moralidade mais altos.

Críticas vêm sendo empreendidas acerca das teorias de Piaget e Kohlberg, tanto em relação aos seus pressupostos filosóficos quanto aos aspectos psicológicos eleitos por elas na investigação da moral, notadamente sobre quando discutem o juízo e a ação.

Desafios na explicitação das relações entre juízo e ação moral

Apresentaremos aqui algumas teorias que vêm discutindo os pressupostos das teorias de Piaget e Kohlberg, principalmente este último, sobre o desenvolvimento moral. Tais vertentes teóricas, de certo modo, buscam ampliar o conceito de moralidade, apontando para uma compreensão mais complexa, ao investigar outros aspectos envolvidos no funcionamento psicológico.

Ética do cuidado e do altruísmo

Com o intuito de revisar a teoria a respeito do desenvolvimento moral nas mulheres, Gilligan (1993) realizou entrevistas com mulheres e homens com idades que compreendiam a infância, a adolescência e a maturidade. Na mesma perspectiva genética e utilizando o método clínico, introduziu um aspecto diferencial em relação às entrevistas de Kohlberg, procedendo de modo que a discussão sobre os conflitos morais sugeridos fosse mais aberta que as entrevistas com dilemas, possibilitando às mulheres expressar livremente seu raciocínio sobre situações de conflito moral na forma de narrativas.

As contribuições de Gilligan (1993) para a discussão da relação entre juízo e ação moral referem-se às suas críticas sobre o papel do cuidado, da cultura e das necessidades pessoais do sujeito no funcionamento psicológico moral. Ele evidencia o fato de que Kohlberg, assim como Piaget, realizaram suas pesquisas sob a ótica da moralidade masculina (caracterizada pela moral a partir do ideal de justiça e regida pela racionalidade), desprezando particularidades de uma moral feminina baseada na ética do cuidado (care), que considera as necessidades afetivas. Essas duas orientações da moralidade humana não podem ser consideradas, segundo a autora, como divergentes, mas sim como complementares3 3 Kohlberg (1992), em resposta às críticas de Gilligan, considerou que a ética do cuidado é uma variante da ética da justiça, portanto, submetida a ela. . A moralidade estaria, na perspectiva de Gilligan, fortemente influenciada pela cultura que, ao estabelecer modelos de relações de gêneros, influenciaria a produção da representação de valores e de julgamentos baseados em princípios diferenciados entre homens e mulheres.

Autores como Campbell e Christopher (1996) consideram que Gilligan contribui para a rediscussão dos paradigmas que orientaram até então a moralidade, não só em relação à introdução da ética do cuidado, mas também ao considerar as necessidades do eu, ou self, apontadas pelas necessidades afetivas. O desenvolvimento moral, na perspectiva de Kohlberg e também na de Piaget, era explicado a partir dos interesses do outro. Uma moral baseada nos direitos (other-regarding), nas necessidades materiais e afetivas do outro é integrada por Gilligan a uma moral baseada no self (self-regarding).

As críticas de Campbell e Christopher apontam que, apesar de considerar que há uma tendência ao equilíbrio entre esses dois objetos da moral no decorrer do desenvolvimento, Gilligan inova ao eleger o eu (self) como objeto da moral. Todavia, tais autores, e também Araújo (1998), apontam que Gilligan não discute a base formalista da moralidade das ideias de Piaget e Kohlberg.

Outra perspectiva teórica importante no estudo em psicologia moral é a pró-social. Os estudos envolvendo a moral pró-social começam a ganhar notoriedade na investigação da moralidade humana na década de 70, com os estudos, principalmente, de Nancy Eisenberg (1976) sobre a evolução dos juízos de crianças e adolescentes em dilemas que envolviam ações pró-sociais.

De acordo com Araújo (1998), apesar de não podermos afirmar que essa vertente teórica é coesa, existe, de maneira geral, um consenso de que os juízos e comportamentos pró-sociais são os de caráter altruísta. São aqueles comportamentos e juízos que levam em consideração sempre as necessidades e bem-estar dos outros, em detrimento das necessidades e bem-estar do sujeito que resolve o dilema. As pesquisas dessa perspectiva utilizavam entrevistas sobre dilemas que envolviam os desejos e necessidades do potencial benfeitor e do potencial receptor da ajuda.

Segundo Koller (1997), essa corrente teórica, assim como a de Kohlberg, postula a evolução da moral pró-social em estágios e a influência do nível de desenvolvimento cognitivo (recursos operatórios) do indivíduo na elaboração de juízos pró-sociais. Entretanto, Kohlberg considera que indivíduos podem manifestar raciocínios de estágios adjacentes e que não utilizariam ou não teriam acesso a juízos de dois ou mais estágios acima de seu estágio dominante. Na leitura da moral pró-social, os indivíduos podem apresentar diversos níveis de juízo ao mesmo tempo, não enfatizando as restrições colocadas por Kohlberg.

De acordo com essa perspectiva teórica, os fatores envolvidos na tomada de decisão moral pró-social envolvem diversas variáveis. São destacados fatores biológicos evolutivos; valores culturais; valores e objetivos pessoais e situacionais (ambiente) que promovem o conflito entre objetivos e valores dos indivíduos.

O desenvolvimento pró-social qualifica de moral as ações e os juízos que se voltam para as necessidades e desejos do outro. Com isso, mantêm-se a coletividade e harmonia social. Pressupostos que se fundamentam na perspectiva kantiana sobre a moral, alicerçada nos deveres e na primazia da razão sobre as emoções no domínio moral. Entretanto, de acordo com Araújo (1998), essa posição não é unânime no conjunto de ideias que fazem parte da corrente teórica. Einseberg (1996) relativiza o papel das concepções kantianas sobre a moral nas teorias pró-sociais, pois ressalta a afetividade (como os sentimentos de empatia e simpatia) para a explicação de comportamentos e juízos altruístas.

Assim como Gilligan (1993), as teorias pró-sociais (Eisenberg, 1986) não rompem totalmente com as concepções kantianas. Campbell e Christopher (1996) criticam alguns aspectos fundamentais das teorias baseadas na moral kantiana: (a) a razão como único elemento que funciona efetivamente como regulador moral; (b) o formalismo, que se refere à investigação das estruturas na moralidade e (c) o altruísmo, que se refere a uma moral baseada no outro.

Gilligan (1993) desenvolve seus estudos, de certo modo, afirmando a base formalista da moralidade. Além de estarem de acordo com essa afirmação, as teorias morais pró-sociais também continuam a conceber a moral, sempre referendada no outro (other-regarding). Nesse sentido, os raciocínios e ações sempre vão estar orientados pelos interesses dos outros e não pelos do próprio sujeito (self-regarding) (ver críticas de: Araújo, 1998; Campbell & Christopher, 1996, sobre essas perspectivas).

O racionalismo e o formalismo kantiano deixariam em segundo plano os aspectos de conteúdo envolvidos nos juízos e nas ações morais, desconsiderando os fatores concretos envolvidos, como os afetos, os valores, os conceitos, as representações do sujeito e a cultura, no momento de decisões, justificativas morais e atribuições de valor aos comportamentos e aos pensamentos, o que, de certo modo, artificializa o conceito de moral.

Ética das virtudes e o papel da afetividade

O redimensionamento do objeto da moral é realizado no bojo de discussões empreendidas desde a década de 70, sobretudo no que diz respeito ao seu aspecto formalista ou universalista. No campo da moral, as contribuições de teorias como as de Carol Gilligan e das teorias pró-sociais, apesar de não romperem totalmente com a tradição kantiana, auxiliaram nesse redimensionamento.

Diante da abertura de espaço para a rediscussão da moral, Campbell e Christopher (1996) propõem uma volta à perspectiva aristotélica da moral (eudemonista), na qual a felicidade é a finalidade. O que amplia os aspectos envolvidos: a moral pode ser referendada na felicidade do outro, bem como na felicidade do eu.

Os questionamentos sobre a perspectiva kantiana, notadamente o racionalismo, levam esses autores a problematizarem também a redução do desenvolvimento moral a um setor do desenvolvimento cognitivo, tal como pode ser lido a partir da perspectiva cognitivo-evolutiva de Kohlberg. Introduzem a proposta de ampliação dos fatores psicológicos envolvidos na moralidade, como os afetos e o desenvolvimento de orientações morais que envolvem os objetivos e os ideais que as pessoas têm como importantes, bem como a de outros temas morais serem estudados, além da justiça.

Respaldados nessas críticas, autores como La Taille (1998ª, 2000a) e Silva (2002) propõem a realização de pesquisas que investigam a psicogênese de virtudes morais em crianças, como a fidelidade, a honestidade, a coragem, etc. Uma outra vertente de pesquisa que se abre a partir das críticas é a investigação da influência de sentimentos morais nos juízos e nas ações. Trabalhos como os de La Taille (2002a) e Araújo (1998) buscaram compreender como a vergonha, sentimento desprezado pela cultura ocidental, pode atuar como regulador das ações e dos juízos morais.

Outros autores como Arantes (2000), Sastre, Moreno e Fernandez (1994) e Sastre e Moreno (2000), partindo também dessas críticas, vêm produzindo pesquisas sobre a moralidade, voltando-se para a investigação do papel das emoções na elaboração de juízos morais e do raciocínio moral empregado em conflitos morais, a partir da perspectiva de gênero. Tais autoras partem de uma perspectiva teórica que vem sendo construída recentemente: a Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento4 4 O texto Conhecimento e mudança: os modelos organizadores na construção do conhecimento (Moreno et al., 2000) inaugura essa perspectiva de investigação. Nele que estão as bases dessa proposta, embora as investigações relatadas tratem dos conhecimentos de física e não dos sociais, como é o caso da moralidade. Mesmo assim, traz contribuições relevantes para avanços da pesquisa nesse campo. .

As investigações no campo da moral que partem dessa perspectiva buscam considerar os aspectos formais e de conteúdo na elaboração de juízos empregados na resolução de conflitos morais, como, por exemplo, os trabalhos de Trevisol (2002), que realizou um estudo de como crianças de diferentes idades representam um conteúdo social - os direitos das crianças –, e Pavón (2002), cuja pesquisa focou as representações sobre o sentimento de culpa na resolução de conflitos. Assim, em suas análises procuraram aproximar os aspectos estruturais (operatórios) e os conteúdos (valores, sentimentos e conceitos) envolvidos num conflito moral, que podem orientar o modo como o sujeito resolve esse conflito.

O estudo de Martins (2003) nos oferece contribuições sobre o papel da afetividade nas relações entre juízo e representação da ação. Seus dados apontam para uma diferença entre o modo dos sujeitos representarem a ação e os juízos emitidos segundo perspectivas diferentes (deôntica e cognitivo-afetiva). Já o trabalho de Lemos-de-Souza (2008) apontou que as representações de gênero de jovens é um conteúdo que tem papel relevante na forma de resolverem conflitos interpessoais. Nesse trabalho, o autor partiu de referenciais que buscam articular as representações de gênero como um componente do self, ou das representações de si, como uma construção afetiva, cognitiva e sociocultural.

Vislumbramos como promissora essa perspectiva de análise do funcionamento psicológico em situações de conflito moral, já que procura aproximar-se da complexidade que envolve a elaboração de juízos e ações morais. Há distinção entre os planos do dever fazer/agir e o pensar (como juízo de valor). Essa tarefa exige a revisão do conceito de moralidade e a aproximação da complexidade na explicação do funcionamento psicológico

Self e cultura na relação entre juízo e ação moral

O conceito de moral que sugerimos está de acordo com os pressupostos das críticas realizadas. A moral estaria além de deveres, obrigações e regras, e agregaria aspectos do eu (self) nas ações e nos juízos. No entanto, entendemos que uma moral referendada no outro no decorrer das relações interpessoais tende a produzir maior harmonia entre os seres humanos e possibilita a convivência social. Acreditamos que o aspecto racional da moral também não deve ser renegado, mesmo diante do emotivismo que interfere e, muitas vezes, pode ser regulador das ações e juízos morais. A moral elaborada a partir da razão é relevante também no equilíbrio das relações interpessoais, justamente por nos oferecer também a consciência de nossa própria irracionalidade. Os estudos psicológicos da moralidade deveriam buscar a integração de todos estes aspectos, já que sentir e pensar são ações indissociáveis.

Ao considerarmos a pertinência de tais críticas, especialmente sobre a ênfase na base formalista, buscamos contribuir para a ampliação da investigação dos aspectos psicológicos envolvidos na moralidade humana. Essa ampliação deve contemplar os conteúdos (valores, sentimentos, regras) na elaboração do raciocínio moral, e a relação entre esse raciocínio e a ação moral. Destacamos aqui a forma como indivíduos considerados com altos níveis de juízo moral não agem, muitas vezes, de acordo com esse juízo em seu cotidiano.

Kohlberg (1992) defende uma relação monotônica ou de continuidade entre juízo e ação moral. Como já destacamos sobre a perspectiva cognitivo-evolutiva de Kohlberg, o indivíduo que tem níveis de raciocínio moral elevados tem maior probabilidade de agir conforme esses raciocínios diante de situações que exijam a tomada de decisões, pois estas envolvem a utilização de princípios de cuidado e responsabilidade, próprios desses níveis. A razão aqui é fundamental e domina a ação moral, ela orienta a tomada de decisões nos raciocínios de níveis mais altos.

No entanto, essa relação é pouco observada, e o próprio Kohlberg (1992) sabia desse fato. As críticas a respeito dessa relação apontam para a interferência de vários fatores envolvidos na situação enfrentada pelo indivíduo em seu cotidiano. Mesmo assim, ele tem defensores, como Orlando Lourenço, um autor que vem rebatendo as críticas daqueles que não concordam com o universalismo da moral. Ele já realizara esse debate em um artigo com Armando Machado, sobre o trabalho de Piaget (Lourenço & Machado, 1991) e num outro (Lourenço, 1996) em que promove uma defesa da teoria de Kohlberg, respondendo às críticas dos pós-modernos os quais, segundo ele, direcionam-se para um relativismo cultural que neutraliza a moral. Para Lourenço, nesse campo de investigações não há como desconsiderar um estágio ou um valor como superior ao outro. Ainda mais, não há como considerar o trabalho com narrativas como superior ao modelo de investigação de Kohlberg. Dadas as propostas relativistas, seria um erro dos pós-modernos mencionarem critérios de superioridade de uma metodologia em relação à outra.

Em meio a esse debate, as contribuições dos trabalhos ditos pós-modernistas por Lourenço acrescentam um conceito relevante e que tem se tornado promissor na investigação da moralidade, que é a noção de self na tomada de decisões morais. A discussão em torno do self como um conceito integrador pode ser encontrada em autores de uma perspectiva culturalista como Shweder (1987) e Tappan (1997). Ambos, assim como Gilligan (1993), trabalham com narrativas como uma ferramenta de análise da relação entre juízos e ação moral em contexto.

Shweder (1987) realizou investigações interculturais nas quais indica um papel relevante dos contextos culturais como modeladores do self e das emoções e suas repercussões nas decisões morais dos indivíduos. A construção de significados pessoais (a elaboração de um self) sobre os elementos culturais que fazem parte do cotidiano e da sua história organiza os juízos e as ações. Assim, os estágios de Kohlberg não podem ser considerados como o único caminho do desenvolvimento moral. Para esse autor, as tomadas de decisão moral são construídas a partir da internalização dos significados da cultura em que vive o sujeito e reelaboradas por ele de acordo com suas experiências pessoais.

Tappan (1997) também considera o papel da cultura, ressaltando a investigação de narrativas sobre as experiências em situações morais. A partir da perspectiva dialógica de Bakhtin (2004), trabalha com a ideia de que a linguagem constitui o sujeito moral assim como ela é constituída nas práticas culturais desse sujeito. Nesses termos, a moralidade humana é co-construída nas interações, nas quais linguagem e cultura estão em constante movimento de transformação. De fato, sua proposta também rechaça as perspectivas estruturalistas de uma moral universal e estática.

Em outros trabalhos o self é definido como um conjunto de representações de si e também se torna uma ferramenta para integrar os aspectos afetivos, cognitivos e culturais envolvidos nos juízos e ações morais (Arantes, 2000; Araújo, 1998; La Taille, 2002b, 2006).

Araújo (1998) e La Taille (2002b) não atribuem uma relação de continuidade entre ação e raciocínio moral (com afirma Kohlberg), nem uma relação dicotômica radical entre esses, já que o mesmo sujeito pensa e age sobre o mundo. Esses autores salientam a integração de aspectos cognitivos e afetivos na maneira do sujeito pensar e agir sobre a realidade. Blasi (1995), La Taille (2000b) e Damon (1995) são autores que defendem essa hipótese, procurando compreender tal relação na complexidade que envolve a integração de vários aspectos da moralidade.

Segundo Araújo (1998) e La Taille (2000b), a proposta de Blasi coloca a motivação para agir moralmente como consequência do sistema de valores agregados ao autoconceito do indivíduo, portanto, quando estes valores são morais, a sua personalidade está investida de compreensão moral. Damon (1995) sugere, da mesma forma, que os valores morais estão agregados à concepção que o sujeito tem de si. Complementa, ainda, com uma explicação funcional, na qual existe a possibilidade de valores (morais ou não) serem centrais ou periféricos em relação à identidade do sujeito, ou seja, parte menos ou mais relevante na maneira como ele se define e se vê5 5 Araújo (1998, p. 42) esclarece que essa visão de que valores podem ser ou centrais ou periféricos parece ser estática, mas não é assim. Os sistemas de valores são organizados pelos sujeitos e o modo que eles atuam nas tomadas de decisões são bastante complexos, pois o sujeito interage com diversos conteúdos e pessoas em seu cotidiano. A proposta de Damon ainda assim é válida como método de análise dessas interações. .

Vamos tomar o exemplo dos adolescentes autores de infração. As perspectivas de Damon e Blasi nos permitem refletir sobre os diversos aspectos que estão implicados na produção da violência cometida por esses adolescentes ou nos seus atos infracionais. Aspectos esses que se referem a sua condição de socialização (diversidade e quantidade de pessoas e relações), que o colocam, muitas vezes, sob pressão (situações de conflitos) e acabam agregando valores a sua forma de pensar sobre si e a realidade. Consequentemente, tais valores, vinculados a sua identidade, atuam sobre como agir no seu cotidiano.

Assim, a relação entre a moralidade do adolescente e sua propensão a agir violentamente pode ser analisada sob essa perspectiva. Como aponta La Taille (2000b), existem formas de violência que não têm justificativa moral e formas de violência que são legítimas. Quer dizer que há violência moralmente justificável, podendo até mesmo não ser considerada ato violento, por exemplo, como o ato de defender-se (com violência física, até a morte) para salvar a própria vida.

La Taille (2000b), coerente com as proposições de Damon e Blasi, refletiu sobre a relação entre ação e raciocínio moral entre adolescentes autores de infração. No caso da violência que não tem justificativa moral, o autor parte de uma perspectiva em que a violência (ou a propensão a agir violentamente) não se localiza exclusivamente no contexto nem exclusivamente no indivíduo. Para La Taille: "quanto mais os valores morais estiverem associados à identidade de uma pessoa, mais ela estará propensa a agir coerentemente com eles" (La Taille, 2000b, p. 118). Com isso, ele afirma que aqueles que cometem ações que ferem seus próprios princípios éticos, agregados ao conjunto de representações de si (self), sentir-se-iam com vergonha diante deles mesmos e perderiam o autorrespeito.

Muitas vezes os valores agregados ao conjunto de representações de si são valores contrários aos morais. Se o indivíduo não respeita os valores agregados à sua identidade (conjunto de representações de si), atribui valor negativo à sua autoestima. La Taille sugere que os valores morais podem estar presentes ou ausentes na identidade dos adolescentes autores de infração. Se ausentes, agir por dever é inexistente; se presentes, podem ser centrais ou periféricos e, dependendo dessa posição, é mais frequente ou não a coerência entre juízo e ação moral.

Enfim, as contribuições das novas vertentes de pesquisa em psicologia moral trazem contribuições para se repensar os fenômenos presentes nos comportamentos e juízos morais. Elas têm um árduo caminho para organizar num todo coerente a explicação do funcionamento psíquico no campo da ética e da moralidade.

Considerações finais

As discussões realizadas a partir das vertentes teóricas apresentadas não tiveram a pretensão de definir um 'estado da arte' sobre o tema juízo e ação moral. Nosso esforço foi no sentido de delinear algumas construções teóricas que promovem o debate sobre o tema e, a partir daí, abrir outros caminhos possíveis de tratamento das lacunas apontadas pelos pesquisadores do campo.

As diferentes vertentes teóricas apresentadas são unânimes em afirmar a complexidade envolvida na investigação das relações entre juízos e ações morais. Os juízos passam a ser um dado probabilístico ou um indicador da possibilidade de agir, conforme os princípios e valores com os quais são orientados. Essa complexidade aponta para a inadequação dos modelos tradicionais de ciência psicológica no que está entre o juízo e a ação, abrindo espaço para a exploração de referenciais baseados nos paradigmas da complexidade (ver Morin, 2000) como um norte que deve ser considerado diante do objeto em questão.

As considerações acerca do self e a perspectiva narrativista de investigação também parecem promissoras e conectadas aos paradigmas contemporâneos de ciência. Os trabalhos de Angela Branco em conjunto com colaboradores (Barrios & Branco, 2008; Branco & Martins, 2001) estão entre essas propostas em que a linguagem e a cultura são elementos indispensáveis no funcionamento psicológico moral. Nesse sentido, sinalizam para uma integração das construções elaboradas pelos sujeitos e os elementos socioculturais na produção de significados sobre si e o mundo.

Um outro grupo de pesquisas são aquelas que trabalham com a Teoria dos Modelos Organizadores. Elas trazem o grande desafio de articular estruturas e conteúdos na análise do funcionamento psicológico. Metodologicamente essa perspectiva contribui destacando o trabalho com a linguagem como foco da análise da construção de significados sobre a realidade na resolução de problemas (Affonso, 2008; Lemos-de-Souza, 2008; Lemos-de-Souza &Vasconcelos, 2003).

Ressalta-se ainda que o trabalho também não se deteve nos aspectos metodológicos, por entendermos eles como consequência do debate das teorias. Trabalhos teóricos e experimentais posteriores podem explorar mais a dimensão do debate entre o narrativismo, que se aproxima da realidade concreta de experiências morais, e a metodologia tradicional, a partir dos testes e questionários de avaliação do desenvolvimento moral que tratam de uma dimensão abstrata do sujeito moral.

As dicotomias e os binarismos devem dar lugar a uma concepção de sujeito psicológico e de moral próxima da complexidade. Desse modo, as frentes de discussão e os modelos teóricos e metodológicos necessitam de uma aproximação dos novos paradigmas que problematizem as abordagens de investigação, uma vez que estas abordagens tratam como opostos e excludentes os temas da moralidade (razão e afetividade; justiça e virtudes; forma e conteúdo), impossibilitando novas articulações.

Notas

Recebido em: 25/06/2008

Revisão em: 20/10/2008

Aceite final em: 22/11/2008

Leonardo Lemos de Souza é Líder do Grupo de Pesquisa Infância, Juventude e Cultura Contemporânea e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT - Campus Rondonópolis. Endereço para correspondência: Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Campus de Rondonópolis, Universidade Federal de Mato Grosso. Rodovia Rondonópolis-Guiratinga, km 06. Jardim Atlântico, Rondonópolis/MT. CEP 78735-001. Email: llsouza@ufmt.br

Mario Sergio Vasconcelos é Líder do Grupo de Pesquisa Psicologia Construtivista e Educação e docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unesp – Campus de Assis. Endereço para correspondência: Faculdade de Ciências e Letras, Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar. Unesp - Campus de Assis. Av. Dom Antonio, 2100 Parque Universitário, Assis/SP. CEP 19806-900. Email: vascon@assis.unesp.br

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  • *
    Os autores agradecem à CAPES pela concessão de bolsa durante a elaboração do trabalho de pesquisa do qual se originou este texto.
  • 1
    Para maior esclarecimento dessas perspectivas veja Kant, I. (1960).
    Fundamentação da metafísica dos costumes. Coimbra: Atlântida; Aristòteles. (2000).
    Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Clairet.
  • 2
    Para Piaget, tomada de consciência "é uma reconstrução, e, portanto, uma construção original sobrepondo-se às construções devidas à ação." (Piaget, 1932/1994, p.141).
  • 3
    Kohlberg (1992), em resposta às críticas de Gilligan, considerou que a ética do cuidado é uma variante da ética da justiça, portanto, submetida a ela.
  • 4
    O texto
    Conhecimento e mudança: os modelos organizadores na construção do conhecimento (Moreno et al., 2000) inaugura essa perspectiva de investigação. Nele que estão as bases dessa proposta, embora as investigações relatadas tratem dos conhecimentos de física e não dos sociais, como é o caso da moralidade. Mesmo assim, traz contribuições relevantes para avanços da pesquisa nesse campo.
  • 5
    Araújo (1998, p. 42) esclarece que essa visão de que valores podem ser ou centrais ou periféricos parece ser estática, mas não é assim. Os sistemas de valores são organizados pelos sujeitos e o modo que eles atuam nas tomadas de decisões são bastante complexos, pois o sujeito interage com diversos conteúdos e pessoas em seu cotidiano. A proposta de Damon ainda assim é válida como método de análise dessas interações.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      22 Nov 2008
    • Revisado
      20 Out 2008
    • Recebido
      25 Jun 2008
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