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Gênero e os sentidos do trabalho social

Gender and the meanings of social work

Resumos

A partir de pesquisa realizada com profissionais do Programa de Inclusão Social (PIS), do Estado Mato Grosso do Sul, gestão 2003-2006, este artigo discute os sentidos do trabalho social, ressaltando sentidos da relação gênero e trabalho e da naturalização da participação da mulher no trabalho social. A pesquisa pautou-se por aportes da Psicologia Social, em diálogo com teorias de gênero e literatura sobre trabalho social. Apresentamos cinco conjuntos de sentidos do trabalho social, a saber: ajuda; promoção de direitos e transformação social; mercado profissional e gestão social; estratégia político-eleitoral e assistencialista. O quinto conjunto agrega sentidos das relações de gênero e incluem o afeto como instrumento de trabalho, o desapego financeiro e o não-profissionalismo. Apesar de positividades, esses sentidos alimentam a desvalorização, a invisibilidade e a feminização dessa atividade.

trabalho social; gênero; psicologia social; produção de sentidos


Based upon a research done with professionals of the Program for Social Inclusion (PIS), of Mato Grosso do Sul, Brazil, during 2003-2006, the article discusses the meanings of social work, highlighting meanings of gender and work relationship and the naturalization of women's participation in the territory of social work. The research was developed under the perspective of Social Psychology, including dialogues with theories of gender and literature on social work. We present five sets of meanings assigned to this activity: social work as an aid, as an element of social change and rights promotion, as a professional category and social management, as a vote-seeking and aid-oriented strategy. The fifth set includes meanings produced within gender relationships such as: kindness as a work tool, lack of financial attachment and lack of professional skills. Although the positive aspects of this net, it also feeds a process of devaluation, invisibility and feminization of the social work.

social work; gender; social psychology; production of meanings


Gênero e os sentidos do trabalho social

Gender and the meanings of social work

Jacy Corrêa CuradoI; Vera Sonia Mincoff MenegonII

IUniversidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, Brasil

IIUniversidade Autônoma de Barcelona, Barcelona, Espanha

RESUMO

A partir de pesquisa realizada com profissionais do Programa de Inclusão Social (PIS), do Estado Mato Grosso do Sul, gestão 2003-2006, este artigo discute os sentidos do trabalho social, ressaltando sentidos da relação gênero e trabalho e da naturalização da participação da mulher no trabalho social. A pesquisa pautou-se por aportes da Psicologia Social, em diálogo com teorias de gênero e literatura sobre trabalho social. Apresentamos cinco conjuntos de sentidos do trabalho social, a saber: ajuda; promoção de direitos e transformação social; mercado profissional e gestão social; estratégia político-eleitoral e assistencialista. O quinto conjunto agrega sentidos das relações de gênero e incluem o afeto como instrumento de trabalho, o desapego financeiro e o não-profissionalismo. Apesar de positividades, esses sentidos alimentam a desvalorização, a invisibilidade e a feminização dessa atividade.

Palavras-chave: trabalho social; gênero; psicologia social; produção de sentidos.

ABSTRACT

Based upon a research done with professionals of the Program for Social Inclusion (PIS), of Mato Grosso do Sul, Brazil, during 2003-2006, the article discusses the meanings of social work, highlighting meanings of gender and work relationship and the naturalization of women's participation in the territory of social work. The research was developed under the perspective of Social Psychology, including dialogues with theories of gender and literature on social work. We present five sets of meanings assigned to this activity: social work as an aid, as an element of social change and rights promotion, as a professional category and social management, as a vote-seeking and aid-oriented strategy. The fifth set includes meanings produced within gender relationships such as: kindness as a work tool, lack of financial attachment and lack of professional skills. Although the positive aspects of this net, it also feeds a process of devaluation, invisibility and feminization of the social work.

Keywords: social work; gender; social psychology; production of meanings.

Introdução

A problematização da relação entre gênero e trabalho e seu impacto no sistema de produção e sustentabilidade da vida humana apenas recentemente entrou na agenda de debates. O tempo longo da história mostra a subordinação da esfera da reprodução à produção e o consequente desequilíbrio das relações entre homens e mulheres, tendo em vista a atribuição de valores desiguais, se compararmos a produção e o mercado de bens com a reprodução da vida.

No que se refere à caracterização ocupacional, 50% das mulheres atuam em ocupações consideradas femininas (Yannoulas, 2002) e, apesar do deslocamento entre as fronteiras do masculino e feminino, permanece a hierarquia social que confere superioridade ao primeiro (Hirata & Maruani, 2003). Assim, a integração da mulher ao mercado de trabalho formal continua atravessada por discriminações salariais, com uma média de ganho 40% menor do que a dos homens (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2005).

Em avaliação mais recente, o relatório O progresso das mulheres no Brasil, publicado pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem, 2006), reconhece a ampliação da participação feminina no mercado de trabalho, mas reconhece que houve pouca alteração em sua composição estrutural nos últimos 30 anos. Um exemplo é a massiva presença de mulheres nos chamados tradicionais guetos femininos, como as áreas de Enfermagem, Nutrição, Assistência Social, Psicologia, Magistério e Secretariado. Esses dados são corroborados pela PNAD/2005 no quesito composição da População Ocupada no Brasil (IBGE, 2005).

O fato de um grande contingente de trabalhadoras do sexo feminino atuar na produção da vida contribui para o entendimento de que esse trabalho é uma extensão da natureza reprodutiva feminina, concepção essa criticada em estudos feministas (Curado, 2000; Kergoat, 2000). Mais recentemente, entretanto, está sendo incorporada ao conceito de Divisão Sexual do Trabalho a discussão da produção social da vida, entendida como um processo dinâmico de reprodução em várias dimensões: da vida biológica, dos bens de consumo e das relações de produção.

Assim, alinhando-nos aos estudos que se dedicam à problemática acima, com este artigo esperamos fornecer material para uma reflexão crítica sobre os sentidos do trabalho social, com destaque para a relação entre gênero e trabalho. Para tanto, apresentamos uma parte dos resultados obtidos com a pesquisa Gênero e os sentidos do trabalho social (Curado, 2007), que consideramos relevante para esse debate.

O objetivo geral da pesquisa foi compreender os sentidos atribuídos ao trabalho social, na perspectiva de profissionais que atuam nessa área, usando como estudo de caso o Programa de Inclusão Social (PIS), do Governo do Estado, gestão 2003-2006, em que se enfatiza a dimensão gênero, problematizando a noção de empoderamento, incluída na agenda de trabalho social.

Conforme detalhamos mais adiante, no item caminhos da pesquisa, o delineamento metodológico pautou-se por princípios qualitativos, tendo como fonte geradora de informação a realização de quatro oficinas, com 37 profissionais integrantes do Programa de Inclusão Social (PIS), do Governo do Estado. Os profissionais que atuam nesse programa possuem formações e escolaridades variadas, não se restringindo à categoria de assistente social.

Desenvolvida na perspectiva da Psicologia Social, a pesquisa foi orientada pela abordagem teórico-metodológica de práticas discursivas e produção de sentidos (Spink, 2004) e pressupostos do construcionismo social em pesquisa (Ibáñez, 1994; Íñiguez, 2004). Articulamos, ainda, o diálogo com algumas teorias de gênero e com a literatura sobre trabalho social. A interlocução com aportes de gênero foi vital, não porque as mulheres constituem a maioria no trabalho social, tampouco por ser um trabalho considerado como naturalmente feminino, mas sim pelo seu instrumental de análise das relações sociais, que possibilita problematizar as relações de poder, no caso, as relações desiguais de gênero no trabalho.

Para fins deste texto, primeiro discutimos aspectos de nosso diálogo entre Psicologia Social, gênero e trabalho, que nos guiou no desenvolvimento da pesquisa. Na sequência, fazemos uma síntese dos procedimentos metodológicos e, com base nos resultados de nossa análise, apresentamos os sentidos do trabalho social que foram discutidos pelos(as) participantes da pesquisa.

Diálogo entre Psicologia Social, gênero e trabalho

Nosso diálogo parte de uma Psicologia Social caracterizada por pressupostos do movimento construcionista social, representado por pesquisadores como Ibañez (1994, 2004), Íñiguez (2004), Nogueira (2001), Spink (2004) e Spink e Spink (2005).

O construcionismo social não consiste em mais uma corrente da Psicologia Social, mas em uma perspectiva que busca entender como as pessoas compreendem o mundo e a si mesmas, questionando e problematizando ideias, valores, conceitos e verdades estabelecidas na história da humanidade (Íñiguez, 2004). O movimento construcionista é marcado pela dinâmica de mudanças que ocorrem desde o século passado em vários domínios de saber. Uma dessas mudanças é a importância que a linguagem passou a ter na compreensão dos processos de produção de conhecimentos e de realidades (Ibañez, 2004). Nessa perspectiva, conhecimento é posicionado como um processo coletivo, em que nossas ações e intercâmbios cotidianos constroem nossas concepções de mundo.

Na Psicologia Social, a centralidade na linguagem decorre do deslocamento do foco de interesse, em que se passa a privilegiar as inter-relações sociais. Fazer essa opção, segundo Spink e Medrado (2004), implica considerar a interface entre os aspectos performáticos da linguagem em uso e das condições de produção, enfatizando os contextos dos campos relacionais. Ou seja, dar centralidade à linguagem não significa desprezar outras materialidades que compõem os processos de produção de sentidos. Em suma, os processos de produção de sentidos, para os autores, são compreendidos como construções sociais, coletivas e interativas, por meio dos quais as pessoas, "na dinâmica das relações sociais, historicamente datadas e culturalmente localizadas, constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações a sua volta" (Spink & Medrado, 2004, p. 41).

É com essa compreensão de sentidos que buscaremos dialogar com aportes de gênero e a literatura sobre trabalho social, primando pela reflexão crítica sobre os modos como as pessoas explicam e compreendem o mundo e a si mesmas. Alguns autores da Psicologia Social têm reiterado que essa postura crítica pode ser enriquecida pelo diálogo com aportes feministas, tendo em vista suas propostas de abertura e efervescência epistemológica, com vistas a uma ação política transformadora (Íñiguez, 2004; Spink & Spink, 2005).

Os diferentes usos do conceito de gênero

O conceito de gênero adquire status acadêmico no Brasil a partir de 1990. Todavia, os usos desse conceito se diferenciam conforme a concepção teórico-metodológica e política adotada. Em algumas abordagens, o uso do conceito de gênero alinha-se aos pressupostos do construcionismo social, particularmente no que diz respeito à importância das trocas simbólicas, da linguagem em uso e da formulação de poder (Nogueira, 2001b). Para Scott (1991), é nas teorias feministas pós-estruturalistas que a linguagem ganha destaque, pois passa a ser chave para a compreensão da construção identitária de gênero.

Contribuindo para esse debate, Nogueira (2001a) argumenta que as abordagens psicológicas sobre gênero são referendadas por paradigmas da Psicologia, que dependem do desenvolvimento histórico, político e social, que embasam a compreensão sobre gênero. Para a autora, a abordagem essencialista influenciou fortemente o conceito de gênero na Psicologia na primeira metade do século XX, postulando que as diferenças entre sexos são inatas, estáveis, bipolares e de caráter determinista. No outro polo, a autora posiciona a socialização, que dominou a Psicologia Social durante as décadas de 1960 e 1970, que concebe gênero não como algo inato, mas como resultado de forças sociais e culturais: masculinidade e feminilidade são aprendidas socialmente pelo desenvolvimento cognitivo e emocional.

Uma terceira perspectiva, segundo Nogueira (2001a), emerge como alternativa ao dualismo essencialista ou socializante, que avança ao questionar e recusar discursos universais sobre as mulheres. Com essa compreensão, a abordagem construcionista postula que não são identidades individuais que são construídas, mas formas de dar sentidos às relações sociais. Esses processos são constituídos por meio da linguagem em uso nas inter-relações cotidianas. Para a autora, essa linguagem em uso é fundamental para o estudo das relações de gênero, pois seus sentidos estão intrinsecamente relacionados aos repertórios linguísticos de cada grupo social, e não somente às condições materiais. Isso não significa subtrair as materialidades e socialidades que compõem os processos de produção de sentidos.

Em suma, o conceito construcionista de gênero ajuda a reconciliar resultados empíricos de que mulheres e homens são mais similares que diferentes, na maioria dos traços e das competências. Todavia, como veremos nos dois próximos tópicos, as matrizes da trajetória do trabalho social são fortemente marcadas por relações desiguais de gênero.

As matrizes do trabalho social

Em que pese sua herança milenar, a noção de trabalho social e questão social são fenômenos recentes na humanidade. As ideias, diz Hacking (2000), não surgem no vazio, mas se constituem em matrizes compostas por materialidades e socialidades variadas (práticas discursivas, teorias, sistemas de governo, arquitetura, etc.), que se interconectam em determinados campos relacionais. É com essa compreensão que buscamos entender as matrizes do trabalho social.

Para Castel (1999), o fato de existir pobreza e exclusão social nem sempre incomodou a sociedade, por exemplo, antes do ano mil, os andarilhos e as pessoas pobres e excluídas constituíam cenários que integravam distintos modos de sociabilidade, mas não significavam desestabilização e risco à manutenção da ordem social.

Nesse particular, o cristianismo exerceu forte impacto na estruturação da questão social na sociedade ocidental: a caridade é constitutiva das chamadas virtudes cristãs e a pobreza é reconhecida como meio para obter o reino de Deus. Na pastoral cristã, a imagem da pobreza era expressa por pessoa magra, cega, chagada, coxa e pedindo esmola. Os espaços das práticas assistenciais eram os conventos, hospitais, confrarias e paróquias que deveriam cuidar dos pobres como um pai de família de seus filhos. Em suma, a Igreja desempenhou papel central na gestão da assistência social até meados do século XV (Castel, 1999).

A influência do Estado na constituição da questão social começa no século XVII e se consolida no XIX, com a Revolução Industrial e o regime capitalista. A passagem da caridade cristã aos pobres e mendigos para a assistência ao trabalhador assalariado, realizada pelo estado laico, deve ser entendida como uma continuidade de colaborações e encaminhamentos entre pluralidades eclesiásticas e laicas. Ou seja, não houve rupturas, apesar das tensões entre orientação cristã, inspirada na caridade, e a economia laica na assistência, comandada por exigências administrativas (Castel,1999).

Assim, em termos oficiais, o trabalho social se configura na sociedade industrial assalariada, com a articulação entre serviço público e setor privado, já contando com a atuação feminina. Verdès-Leroux (1986) apresenta dois campos de intervenção do trabalho social: um é exercido pelas superintendentes das fábricas, constituindo o serviço social de empresas, para velar pelo bem-estar físico e moral de seus operários; o outro é caracterizado pelas visitadoras sociais, que promoviam uma rede de proteção sanitária e social visando à reintegração e readaptação de "seres antissociais".

Atualmente, as práticas do trabalhador social estão agrupadas em três categorias: trabalho voluntário, militante e profissional, cujos sentidos se associam ao vínculo empregatício, ao comportamento social e ao compartilhamento ideológico.

O trabalho voluntário fundamenta-se na solidariedade, participação, cooperação, complementaridade, gratuidade, responsabilidade e convergência (Pereira, 2002). Oficializado pela Lei do Voluntariado, n. 9.608, de 18 de fevereiro de 1998, esse trabalho caracteriza-se como atividade não remunerada, prestada por pessoa física às entidades públicas ou privadas, sem fins lucrativos e com objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social. Apesar da recente regulamentação, o primeiro registro desse tipo de trabalho no Brasil data de 1543 (Casa de Misericórdia de Santos), sendo caracterizado por práticas de caridade e de benemerência religiosa. Para Landin (1993), o voluntariado e a militância política são definidos por seu desapego e gratuidade, que remontam às práticas de caridade e, mais recentemente, às organizações sociais do terceiro setor e políticas públicas.

Dentre os valores que fundamentam a prática militante, destacamos a convicção e a paixão por uma causa, com capacidade de doar a vida, se necessário. Segundo Goldenberg (2004), para uma mulher ser considerada uma boa militante é indispensável que tenha coragem, espírito de sacrifício, dedicação e abnegação.

Por fim, o trabalho social profissional nos remete aos sentidos da palavra profissão: "atividade ou ocupação especializada, e que supõe determinado preparo" (Ferreira, 1999, p. 1.644). Profissional é a pessoa que exerce uma atividade por profissão ou ofício, opondo-se ao trabalho não-profissional, voluntário e militante.

Landin (1993) problematiza o profissional da área social, identificando-o como um ser anfíbio, como uma dupla presença, de duplo trânsito, sempre em jogo nessas trajetórias de equacionar o problema de ter que ganhar a vida e levar adiante um projeto de vida. Todavia, assim como o militante e o voluntário, o ethos desse profissional agrega valores como seriedade, trabalho, dedicação e esforço. No Brasil, com a redemocratização e eleição de governos populares, muitos desses novos profissionais sociais encontram-se na gestão de políticas públicas voltadas à inclusão social, como é o caso dos participantes da pesquisa "Gênero e os sentidos do trabalho social", que discutimos neste artigo.

No próximo item, articulamos algumas inter-relações entre gênero e sentidos do trabalho social, que mostram o entrelaçamento das diferentes dimensões de atuação: militante, voluntário e profissional.

Gênero e Trabalho Social

Na introdução, afirmamos que a problematização entre gênero e trabalho é recente na pauta de debates sobre Produção e Sustentabilidade da Vida Humana e Economia Solidária (Carrasco, 2003; Guerin, 2005; Kergoat, 2000). A subordinação da esfera da reprodução à produção ocorre há séculos, e ao atribuir valor desigual à produção e ao mercado de bens e à reprodução da vida, desequilibra as relações entre homens e mulheres,

Pelo fato do trabalho social ser, majoritariamente, desenvolvido por trabalhadoras do sexo feminino, reafirma-se o sentido de que essa atividade seja extensão de sua natureza reprodutiva (Curado, 2000). Essa compreensão é reiteradamente criticada e contestada pelas teorias feministas, que problematizam o conceito de Divisão Sexual do Trabalho (Kergoat, 2000), por entenderem que as práticas sexuadas são construções sociais, sendo essa divisão resultado das relações sociais e não de essência biológica.

Como resultado de estudos de gênero, recentemente incorporou-se ao conceito da Divisão Sexual do Trabalho a noção de produção social da vida, que é entendida como um processo dinâmico, com implicações em diferentes dimensões. A crítica está na dicotomia entre produção e reprodução das teorias econômicas clássicas.

Entretanto, mesmo com as transformações da posição da mulher na família, da sua crescente inserção no mercado de trabalho, além do alto índice de desemprego entre a população masculina, ainda vigora a ideologia da domesticidade, que cria e recria a força de trabalho feminino como algo sem valor financeiro e de baixo status social (Curado, 1991). Segundo Carrasco (2003), a mulher continua assumindo as funções de cuidado das crianças, das pessoas idosas, dos doentes e também dos homens, que permanecem como provedores da família, cidadãos e trabalhadores assalariados.

Nesse particular, Araújo e Scalon (2005, p. 22) apontam as limitações das políticas sociais no que se refere à falta de redes de apoio social no cuidado de crianças, enfermos e idosos, e seu impacto nas mulheres. Criticam também os sentidos atribuídos ao cuidar, argumentando que a definição de cuidado como "provisão diária de atenção social, física, psíquica e emocional às pessoas", reforça a feminização dessa atividade, posicionando-a como valor moral das mulheres.

Considerando esse contexto, entendemos que o campo das políticas públicas é um lócus privilegiado para se trabalhar a transversalidade de gênero. Um exemplo é o Plano Nacional de Políticas para Mulheres (Brasil, 2005), cuja proposta desencadeou um processo amplo e complexo de parcerias, atuações intersetoriais e participação social, para maximizar os recursos disponíveis e garantir sua aplicação em políticas mais efetivas para as mulheres (Bandeira, 2005). A transversalidade em gênero como gender mainstreaming é aceita pelos governos signatários da 4ª Conferência Mundial de Mulheres em Beijing, realizada em 1995.

Em suma, essas considerações teóricas e conceituais sintetizam o diálogo que realizamos a partir de uma Psicologia Social, pautada por pressupostos do construcionismo social, trazendo posicionamentos sobre relações de gênero que enriquecem essa perspectiva, e articulando-os com a trajetória do que hoje compreendemos como trabalho social. Foi com base nesse diálogo que delineamos os procedimentos observados na coleta e na análise do material discursivo, produzido por 37 profissionais integrantes do Programa de Inclusão Social (PIS), que detalhamos no próximo item.

Sintetizando os caminhos da pesquisa

Por que é importante enfocar os sentidos atribuídos ao trabalho social? Spink (2004) nos diz que conhecer é dar sentido ao mundo; nessa mesma direção, Davies e Harré (1990, p. 3) complementam que "conhecer alguma coisa é conhecer em termos de um ou mais discursos". Dar sentido não é algo intraindividual, mas sim uma construção social, um empreendimento coletivo e interativo, cuja constituição e reconstituição ocorrem nas inter-relações cotidianas, reunindo materialidades e socialidades de tempos e espaços distintos.

E, como veremos na síntese analítica sobre os sentidos do trabalho social, nós herdamos sentidos associados ao trabalho social ao longo de sua trajetória histórica, dentre eles a subordinação da esfera da reprodução à produção e seu impacto nas relações de gênero. Mas, veremos também que esse processo interativo traz a possibilidade de ruptura com sentidos cristalizados, assim como a produção de outras maneiras de compreender o mundo do trabalho social e as relações aí implicadas.

Para compreender os sentidos atribuídos ao trabalho social, na perspectiva de profissionais que atuam na área, utilizamos como estudo de caso o Programa de Inclusão Social (PIS). Criado em 2003 pelo Governo do Estado de Mato Grosso do Sul, o PIS insere-se nas Políticas de Transferência de Renda, visando atender famílias em situação de vulnerabilidade e risco social, por meio da concessão de benefícios e mediação no desenvolvimento de capacidades humanas e sociais (Pochmann, Blanes, &Amorim, 2006). O PIS é uma versão Estadual do Programa Bolsa-Família, que é considerado pela ONU como o mais bem sucedido programa de enfrentamento à pobreza do mundo: até novembro de 2006 havia atendido onze milhões e meio de famílias no Brasil (Banco Mundial, 2006).

A equipe do PIS é formada por profissionais de formações variadas, não se limitando à área de Serviço Social e, no período da pesquisa (gestão 2003-06), totalizava 512 gestores públicos (73,2% mulheres e 26,8% homens), o que demonstra a prevalência do sexo feminino entre os gestores do Programa. Nessa gestão a equipe atendia 69.840 famílias, cujos titulares do benefício eram 75% (52.520) mulheres e 25% (17.320) homens.

Tendo em vista o objetivo da pesquisa e a opção de utilizar oficinas como instrumento de coleta de material discursivo, convidamos para participar da pesquisa os profissionais mais diretamente envolvidos com o trabalho social, que atuam em Campo Grande, município sede do Programa. Primeiramente, realizamos reuniões com a equipe de coordenação do programa e gerentes regionais para apresentar o objetivo da pesquisa e convidá-los a participar das Oficinas. Posteriormente, em reunião geral do Programa, convidamos os agentes comunitários de acompanhamento familiar (N=87) nesse caso, os interessados preencheram a ficha de inscrição, observando o número de três vagas por regional, totalizando 21 vagas.

Participaram da pesquisa 37 trabalhadores sociais, 32 (86,5%) do sexo feminino e 5 (13,5%) do masculino, apresentando a seguinte configuração: 21(24,1%) agentes de acompanhamento familiar, que realizam visitas domiciliares e reuniões socioeducativas; 7 (100%) gerentes regionais, pois o município está dividido em sete regionais para fins de políticas públicas; 9 profissionais da equipe de coordenação e capacitação (coordenação geral, administrativa, financeira, de gestão, de capacitação). Essas pessoas aceitaram o convite, de forma voluntária, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Realizamos quatro oficinas com a temática Sentidos do Trabalho Social, duas com agentes de acompanhamento familiar, uma com os gerentes e uma com a equipe de coordenadores e capacitadores do Programa. No planejamento das oficinas, adaptamos a metodologia de oficina desenvolvida para fins de pesquisa (Spink, 2004), cuja proposta já fornece o roteiro de análise discursiva do material obtido. Nesse enquadre teórico-metodológico, as oficinas são posicionadas como espaços de trocas simbólicas com potencial crítico de ressignificação do cotidiano.

Na realização das oficinas, após a apresentação e registro de informações sobre os participantes, desenvolvemos três atividades, que incluíam relatos escritos e discussões que foram gravadas, com a devida autorização. A primeira consistiu na associação de repertórios com a palavra social, cuja sistematização resultou em um glossário de 150 palavras, que foram agregadas em dez subgrupos (ajuda, autoajuda, direitos sociais, transformação social, mercado profissional, assistencialista, político eleitoral, não profissional, desapego ao dinheiro, risco à saúde).

Na segunda atividade, trabalhamos com relatos escritos, discutindo vivências do trabalho social e sua classificação, pelos participantes, em militante, voluntário e profissional. O resultado dessa classificação foram 73 situações reconhecidas como trabalho profissional, 16 como voluntário e 10 como militante. Após essas atividades, os grupos discutiram os sentidos do trabalho social e estratégias de empoderamento, que apresentamos a seguir.

Os sentidos do trabalho social

Tomando como base as duas primeiras atividades, a discussão sobre os sentidos do trabalho social foi desencadeada a partir das seguintes proposições: 1) diante das situações discutidas, alguém gostaria de falar sobre os sentidos que atribui ao trabalho social?; 2) quais são os sentidos que vocês acham que as outras pessoas/sociedade atribuem ao trabalho social?; 3) alguém gostaria de compartilhar as estratégias que utiliza para enfrentar as dificuldades decorrentes do trabalho social?

A síntese analítica dessa última atividade da oficina resultou no agrupamento de cinco conjuntos de sentidos, atribuídos ao trabalho social pelos participantes das oficinas. Os três primeiros referem-se aos sentidos dados pelos participantes da pesquisa, a saber: 1) trabalho social como ajuda; 2) trabalho social como promotor de direitos e transformação social; 3) trabalho social como mercado profissional e gestão social. Já o quarto conjunto de sentidos, trabalho social como estratégia político-eleitoral e assistencialista, segundo os participantes, são atribuições advindas de diferentes vozes da sociedade. Finalmente, o quinto conjunto agrega sentidos engendrados nas relações de gênero, que se mostraram transversais ao trabalho social: afeto como instrumento de trabalho; desapego financeiro e o não-profissionalismo no trabalho social.

O trabalho social como ajuda

A noção de ajuda remete às matrizes das práticas socioassistenciais, caracterizadas por discursos e práticas de ajuda ao próximo de origem religiosa (Castel, 1999). Segundo a literatura, nessa tradição, ajuda normalmente é endereçada às pessoas categorizadas como andarilhos, suplicantes, indigentes, paralíticos, humildes, pobres, vagabundos, carentes, cegos, mutilados, mendigos, retardados.

Em nossa pesquisa, na análise das associações com a palavra social, dos 150 repertórios associados ao termo social, 40 (26,6%) remetem ao sentido de trabalho social como ajuda. Esse sentido foi reforçado tanto nas dezesseis situações de trabalho social, que foram categorizadas como trabalho voluntário, como na discussão dos sentidos do trabalho social, como exemplifica a fala abaixo.

Sabendo a necessidade que uma família estava passando, resolvi junto com minha esposa levar sacolão para suprir as necessidades do momento, com isso esta família agradece até hoje por este gesto de caridade. (Oficina 3)

No que se refere às pessoas que precisam de ajuda, a população mais referida são pessoas doentes, sejam questões físicas (câncer, pneumonia, AIDS, paralisia), sejam psicológicas (depressão, distúrbios mentais). Outro aspecto recorrente é a expressão pessoa carente, que está associada às práticas de caridade. No caso da família, na maioria das vezes, ajuda é associada a pessoas doentes ou a portadores de alguma necessidade especial.

[uma ajuda] quando visitei uma senhora de 85 anos que tem 2 filhos especiais com mais ou menos 60 anos que não andam e não falam. Até hoje ela cuida deles como se fossem crianças (Oficina 01).

Como apontam Araújo e Scalon (2005), essa fala mostra a falta de rede pública de apoio social e também a necessidade de redimensionar a noção de cuidado, que está associado ao sentido de ajuda ao próximo. Além disso, a associação entre o feminino e o cuidado de pessoas da família fortalece a ideologia da domesticidade, criando e recriando a lógica de um trabalho invisível (Carrasco, 2003).

Da prática do trabalho como ajuda social, destacamos a importância dada aos atributos físicos e corporais como instrumento de trabalho: dar o ombro, chorar junto, abraçar, que indica a necessidade de contato e proximidade, aspectos esses que estão na origem do trabalho social, segundo Castel (1999). Na discussão dos participantes da pesquisa esse aspecto fica evidente, pois relatam que para ajudar "é preciso se envolver emocionalmente", "tem que gostar", demonstrando que as necessidades sociais não são apenas materiais, mas também psicológicas, emocionais e espirituais. Essa prática é voluntária, estando para além do prescrito à função do trabalho social, sendo caracterizada como algo emergencial, que pode trazer auxílio, amparo, socorro, e não processual e permanente, aspectos esses mais associados ao próximo conjunto de sentidos.

Trabalho social como promotor de direitos e transformação social

Neste conjunto de sentidos do trabalho social, identificamos como matriz de sentidos a era dos direitos, com a mediação do Estado, tendo como discurso nuclear a prioridade dos direitos do cidadão (Bobbio, 1992). Destacam-se aqui os direitos sociais, classificados pelo autor como direitos de segunda geração: "proteção ao trabalho contra o desemprego, os primeiros rudimentos de instrução contra o analfabetismo, depois a assistência para invalidez e a velhice". Um exemplo disso, é a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), pois a noção de Estado de Direito é central, consistindo no mais recente ordenamento público das políticas sociais brasileiras.

Em nossa análise, dos 150 repertórios associados ao termo social, 67 (44,6%) referem-se aos sentidos de direito e transformação social, consistindo no maior número de associações, com destaque para repertórios como cidadania, justiça, desigualdade e compromisso, que remetem aos sentidos formatados na matriz do regime de Estado de Direito. Dentre os tipos de direitos, os sociais são os mais enfatizados nas situações discutidas nas oficinas e, dentre estes, a educação é considerada questão chave, seguida por saúde e trabalho.

Assim, a conscientização, o enxergar, o ampliar a visão são relatadas como prioritárias para as estratégias de ação, como explicitam as falas abaixo.

nós vamos morrer e as sementes do Che Guevara vão germinar ainda aqui ... é infinito, nós não vamos ver, mas é uma coisa que vai ficar. (Oficina 4).

Outra experiência relevante é acreditar que o ser humano é capaz de ser sujeito de sua história; mesmo em situação de pobreza; agradecer não pelo programa; mas em saber que tem direitos e olhar em seus olhos com lágrimas, dizer hoje eu aprendi ler e escrever meu nome através do BB educar, obrigada pela atenção. (Oficina 4)

Os repertórios com sentidos de transformação social, que têm como núcleo a noção de conscientização, estão associados às estratégias de ação que envolvem luta, despertar e participação, remetendo aos discursos de educação popular com base freiriana e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) (Pereira, 2002). Na Psicologia esses repertórios são centrais nas propostas de pesquisas-ação, pesquisa participante. O pressuposto é que o agente de conscientização tem que ter sido ou estar sendo conscientizado, para levar consciência ao outro, como relatam os participantes das Oficinas em seu processo de formação:

fui ao Fórum Social Mundial: grupos de trabalho, discussões, quantidade de pessoas, realidades relatadas. (Oficina 1)

muitas vezes as famílias não sabem os direitos que têm em relação à associação de bairro ao posto de saúde essas coisas... você leva isso, você está passando o que aprendeu para frente. (Oficina 4)

Ao compararmos as estratégias que caracterizam os sentidos e as propostas associadas à matriz do Estado de Direito com as discutidas no trabalho social como ajuda, observamos que o cidadão é o principal sujeito da ação social, não mais o mendigo e o carente, personagens centrais no sentido da ajuda; observamos ainda a primazia dos fenômenos ideológicos e da consciência sobre as ações vinculadas ao corpo, como o abraçar, dar o ombro e chorar junto. Assim, para promover a conscientização, privilegiam reuniões, discussão e os encontros, como afirma esta participante:

As reuniões socioeducativas foram um avanço, tanto para o programa que ganhou uma credibilidade, assim como para os agentes que gostam e acreditam na emancipação da família. (Oficina 1)

Trabalho social como mercado profissional e gestão social

Nomeamos de mercado profissional e gestão social a recente abordagem do trabalho social como prática profissional, que se pauta pela racionalidade do mercado, agregando termos e concepções de gerência administrativa e gestão de produção (Ávila, 2001). Segundo o autor, a gestão social vincula-se à gestão das ações sociais públicas. Todavia, esse sentido de mercado e gestão social é mais presente no Terceiro Setor da economia (e não no Estado), sendo representado por organizações da sociedade civil e de fundações empresariais sem fins lucrativos. Em suma, a noção de mercado e gestão social pauta-se pela racionalidade do mercado, com seus repertórios e sentidos (Ávila, 2001).

Na pesquisa, dos 150 repertórios associados ao social, 32 (21%) estão associados aos sentidos típicos do mercado profissional e gestão social, particularmente do Terceiro Setor. Assim, os repertórios que reunimos nesse conjunto de sentidos são: benefícios, potencial, protagonismo, seriedade, qualidade de vida, sustentabilidade, capacidade, desenvolvimento, parceria, formação, pertencimento, conhecimento da realidade, e outros correlatos.

Então, a minha opção da área social dentro da Psicologia é para me colocar à disposição de um maior número de pessoas, de colocar os conhecimentos científicos, a minha capacidade profissional à serviço do cidadão. (Oficina 04)

Nesse conjunto de práticas discursivas, muda também a forma de nomear a pessoa da ação social: ele é o beneficiário e o usuário, e a população prioritária é a de baixa renda.

Há uma maior autossuficiência dos beneficiários após mudança do beneficio para o cartão. (Oficina 01).

No que se refere aos Programas do Governo do Estado de MS, algo que me chamou a atenção é a pessoa mudar de atitude; isto é após ser incluída num cadastro é através do acompanhamento, realmente ser identificado que a pessoa, isto é o usuário, mudou de vida; significa adquirir consciência crítica, autoestima. (Oficina 4)

Em suma, são esses os sentidos que também compõem os atuais manuais de gestão social, sendo compreendidos como ingredientes necessários para obter resultados e sucesso na execução de uma política de programa social.

Trabalho social como estratégia político-eleitoral e assistencialista

O assistencialismo, diferente da assistência social, caracteriza-se como prática de dominação, expresso na relação de favor aos desfavorecidos, que devem retribuir com gratidão, submissão e dependência, principalmente em períodos eleitorais (Faleiros, 1997).

O assistencialismo foi discutido pelos participantes da pesquisa, não como expressão de sua prática profissional, mas como um sentido que circula por diferentes esferas sociais, conforme exemplo abaixo:

Se você pegar, a maioria vai achar que é assistencialismo, é coisa para dar voto ... a grande maioria, como eu também no passado já pensei assim, não tenho vergonha de falar ... agora, a mídia e a grande imprensa e a grande sociedade, vê como assistencialismo: [eles falam] eu não consigo mais achar capataz, o povo ganha sacolão, não consigo mais arrumar doméstica, porque ganha sacolão, o povo não quer mais trabalhar... não tem mais doméstica, eles dizem em coro. (Oficina 3)

Diante da generalização do sentido negativo atribuído ao assistencialismo, os trabalhadores sociais criticam esse uso demagógico do trabalho social, mas ressaltam a importância da assistência na construção da cidadania. Ou seja, criticam o posicionamento generalizado das práticas sociais como assistencialistas, todavia diferenciam a necessidade de assistência como um direito do cidadão.

Sentidos transversais do trabalho social: uma perspectiva de gênero.

Ao introduzirmos o recorte de gênero na análise, identificamos sentidos que aparecem como transversais ao trabalho social, com destaque para o afeto como instrumento de trabalho, o desapego ao valor financeiro e a não profissionalização do trabalho.

O afeto como instrumento de trabalho emergiu em vários momentos das Oficinas, perpassando com maior ou menor intensidade as diferentes características do trabalho social (militante, voluntário e profissional), assim como os sentidos a ele atribuídos, como de ajuda, de direitos, de mercado profissional e de assistencialismo.

quando houve a união dos dois Programas, vieram junto novas famílias com problemas maiores e meu coração teve que aumentar para caber mais preocupações. (Oficina 01)

eu era muito considerada uma Mãezona do Programa, pois me doía na alma ver a situação familiar, econômica, social de cada família atendida. (Oficina 1)

A dimensão afeto centra-se em práticas de cuidado, sendo o afeto, emoção e doação características desse trabalho. E, como a presença feminina na prática do cuidado é majoritária, o afeto é associado como sendo uma característica feminina. Esses posicionamentos essencialistas e naturalizantes de uma condição que é socialmente construída são criticados por vários autores (Nogueira, 2001b), ganhando maior expressão nos debates sobre produção, sustentabilidade e economia solidária (Carrasco, 2003; Guerin, 2005).

Para Guerín (2005, p. 41), é na formação identitária que encontramos explicação para essa diferença, pois "a identidade de si" dos homens se oporia a uma identidade de ser mulher, construída por meio "da relação com outro". Ou seja, do "ocupar-se do outro nasceria a solicitude". Porém, as mulheres são as únicas capazes de solidariedade e entrega social? Um homem participante da pesquisa responde a essa pergunta com sua fala:

acho que nesta função que nós trabalhamos, quem não for voluntário não consegue chegar a um nível legal... porque você se entrega mesmo. (Oficina, 1)

Com relação ao desapego financeiro, de forma consensual, os participantes afirmaram que o valor do trabalho social não é financeiro, ressaltando ser um trabalho de grande valor subjetivo: religioso, emocional, psicológico, político, humanitário.

ser apegado a dinheiro, nem pensar ... então vai ser fiscal de renda! (Oficina 3)

o trabalho social que a gente faz, acho que a gente ganha muito mais do que a gente doa. Eu evoluo muito mais espiritualmente como pessoa do que você ajudar a eles. (Oficina 3)

No capitalismo, o valor serve para classificar o trabalho como produtivo ou reprodutivo. Assim, há um paradoxo no valor do trabalho social, pois se por um lado tem valor de uso (social), por outro não tem valor de troca (mercado). Nesse contrato, as mulheres assumem maior responsabilidade no trabalho junto às crianças, às pessoas idosas e doentes e aos homens (Faria & Nobre, 2002; Kergoat, 2000).

Finalmente, a análise das práticas discursivas sobre a não profissionalização do trabalho social mostrou que quanto maior a especialização, maior o poder de decisão e prestígio profissional; em contrapartida, maior é o distanciamento da ação e menor o envolvimento afetivo e a compreensão dos anseios da população. Segundo os participantes, destacando a distinção entre conhecimento científico e prática empírica, para realizar um trabalho social não basta ser profissional: é preciso vivenciar e conhecer a realidade. Entretanto, ao posicionarem o trabalho social como não-profissional, imprimem sentidos da esfera da natureza e dos instintos, no caso feminino. Reafirmam, assim, o discurso do uso da emoção, da proximidade e contato, em detrimento da técnica e do método, pois estes levariam a uma prática desumana e, portanto, inadequada ao fazer social. Por exemplo:

nós estamos na ponta, sabemos o que está acontecendo, quando subo para falar com a coordenação eu peço, pelo amor de Deus, converse antes com os agentes antes de qualquer coisa, porque nós sabemos o que realmente acontece. Infelizmente tem pessoa que faz um trabalho técnico, que não enxerga muito, não sabe, não se envolve... sempre tem gente assim. (Oficina 03)

Em nossa análise, observamos que essa rede de sentidos aqui discutida serve como fundamento para determinadas estratégias de empoderamento por parte dos trabalhadores sociais, que exibem características não-institucionalizadas e situadas no campo das relações afetivas e pessoais. Nesse caso, a família, o colega ou um amigo são utilizados como estratégias de empoderamento pessoal e como forma de repor energias para voltar ao trabalho:

Eu acho que a minha família é essencial no apoio a mim, ao meu trabalho... sabe, é onde eu busco forças para continuar. (Oficina 04)

Contudo, ao pensarmos o empoderamento como ampliação de oportunidades de acesso aos recursos econômicos e poder político, essas estratégias afetivas não servem para alterar o valor salarial e aumentar o poder político dessa categoria de trabalho, mas são usadas em época de eleições e na divulgação de realizações e resultados do governo.

A ressignificação dessa rede de sentidos e práticas depende de uma melhor compreensão por parte dos profissionais da área social sobre as formas de operação da divisão sexual do trabalho, pois apontam para as discriminações salariais e ocupacionais, que alimentam tanto o processo de desvalorização e invisibilidade da categoria, como a feminização dessa força de trabalho.

Considerações finais

Na pesquisa "Gênero e os sentidos do trabalho social", procuramos compreender os sentidos sobre o trabalho social, na perspectiva daqueles que dedicam sua vida ao "outro", à solidariedade e à transformação social, seja como voluntário, militante, ou profissional. A pergunta que buscávamos responder era se essas práticas poderiam estar relacionadas a novas formas de desigualdades de gênero em relação ao trabalho, ou se estávamos diante de algum tipo de altruísmo feminino.

O conjunto de sentidos chave sobre o trabalho social, que identificamos na análise das práticas discursivas de trabalhadores sociais, nos aponta que o trabalho carrega valores éticos e morais de solidariedade, de respeito humano e de justiça social, seja nas suas formas ancestrais de ajuda ao próximo de cunho religioso, seja nas estratégias de transformação social e luta pelos direitos humanos, seja nos valores presentes nas novas formas de gestão social.

No entanto, para compreender o trabalho social em uma perspectiva de gênero e a massiva presença de mulheres, não basta apenas reconhecer o caráter sociocultural dessas relações. Concordamos que o trabalho social resguarda, sim, características do altruísmo, do uso do afeto, da preservação de redes de laços humanos e envolvimento emocional, mas isso não significa legitimar a exclusividade das mulheres como detentoras desses posicionamentos. Nesse particular, os cinco homens (13.5%) que participaram da pesquisa são indicativos da pequena parcela que exerce trabalho social, mas sua presença nessa atividade, mesmo numericamente pequena, mostra que ao realizarem seu trabalho exercitam sua afetividade e dedicação a um trabalho que mescla sentidos de voluntariado, de militância e de profissionalismo, atualizando atributos ainda cristalizados como exclusividade da mulher.

Para desnaturalizar o feminino do trabalho social e questionar formas identitárias cristalizadas, precisamos formular outra compreensão de gênero, concebendo-o como processo em construção e reconhecendo as distinções entre homens e mulheres como ativamente criadas, o tempo todo, e não como identidades individuais e consistentes, mas como algo que se processa mediante peças discursivas, organizadas num sistema de sentidos disponíveis às pessoas para darem sentidos as suas posições.

A partir dos relatos e discussão dos participantes da pesquisa, observamos que suas estratégias de empoderamento estão mais ancoradas em laços afetivos (família, amigos, colegas) e, em que pese sua positividade, não alteram o valor salarial e nem aumentam o poder político dessa atividade. Ou seja, não se trata de um empoderamento com ampliação de oportunidades de acesso aos bens e serviços. Ao compreender que as relações de gênero são formas de dar sentidos às relações de poder, observamos que a naturalização do feminino no trabalho social está relacionada à desvalorização, à não-monetarização e à não-profissionalização existente nesse trabalho. Considerá-lo como extensão da mulher e de sua função reprodutiva é retirar o que há de humano e cultural dessa atividade, posicionando-a na esfera da natureza, que dispensa valor social, e por isso não é considerada moeda de troca.

Ora, se consideramos os valores embutidos no trabalho social como sendo os mais elevados da trajetória da humanidade, que figuram entre os necessários para a sobrevivência de um mundo ecologicamente sustentável, por que então esses valores são desvalorizados e invisíveis, gozando de menor remuneração, infraestrutura e prestígio entre os outros trabalhos e ocupações atuais? Tudo indica que é nesse campo de tensão que se mantêm e se reproduzem desigualdades de gênero e a divisão sexual do trabalho.

Recebido em: 26/10/2008

1ª. Revisão em: 08/04/2009

2ª. Revisão em: 01/06/2009

Aceite final em: 23/11/2009

Jacy Corrêa Curado é Doutoranda em Psicologia Social pela PUC/SP e Mestre em Psicologia pela UCDB/MS. É professora e supervisora de Psicologia Social e Comunitária da Universidade Católica Dom Bosco, integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Práticas Discursivas e Produção de Sentidos, da Pós-graduação em Psicologia Social da PUC/SP. Endereço para correspondência: Rua Castro Faria, 345. Monte Castelo. Campo Grande/MS. CEP. 79.011.030. Email: jacycc@terra.com.br

Vera Sonia Mincoff Menegon é Doutora em Psicologia Social, pela PUC de São Paulo, com bolsa sanduíche na Lancaster University, Inglaterra. Desenvolve projeto de Pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, da Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha. É pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Práticas Discursivas e Produção de Sentidos, da Pós-graduação em Psicologia Social da PUC/SP. Email: mincoff@uol.com.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2009

Histórico

  • Revisado
    08 Abr 2009
  • Recebido
    26 Out 2008
  • Aceito
    23 Nov 2009
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