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Clínica e virtualidade: encontros com o impessoal

Clínica e virtualidade: encontros com o impessoal

Patrícia Beatriz Argôllo Gomes Kirst

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

Resenha: ARAGON, L. E. P. (2007). O impensável na clínica: virtualidades nos encontros clínicos. Porto Alegre: Sulina/UFRGS.

O livro de Luis Eduardo Aragon propõe um encontro com o leitor que vai se desdobrando em vários encontros. É através da apreciação de alguns casos clínicos que a afecção vai se construindo com uma intensidade de variações que caminham para pensar a clínica contemporânea como inclinação para entradas, para além do inconsciente: entradas no campo do impessoal. A possibilidade da inauguração de momentos nas virtualidades e potências criativas do impessoal são indicadas pela sensação no encontro clínico: tal é o território da invenção, pois nele tudo foge de determinação e Lei. E o livro é assim, é nascedouro de sensações no compartilhamento de cartografias clínicas que vão sendo apresentadas inteligentemente em rizoma e desmesura.

Produzir, uma clínica principalmente, pelo prazer do jogo e por desfrutar a presença do outro que deixará um rastro e, portanto, algo do impessoal. Esse conceito nos transporta para um tema importante do pensamento de Deleuze, o impessoal no qual expressa a ideia do sujeito em dispersão, fazendo-nos migrar da vida do individuo para o espaço molecular de onde proliferam singularidades no acesso do pré-individual e do pré-subjetivo. É o plano do "se": pensa-se, faz-se, morre-se na indicação de uma quarta pessoa do singular que está no campo de indeterminação entre uma imagem e outra, entre um pensamento e outro. Esta voz da quarta pessoa do singular da qual ninguém fala e que insiste em cada ato de criação não se transforma em expressão porque, quando expressão, já não pertence mais ao interstício ou "intermezzo" dos sentidos.

A análise das formas de diagnóstico contemporâneas relacionadas com platôs tecnológicos que desterritorializam o olhar e o fazem ver através do corpo podem trazer molecularidades de falência de sentidos anteriores a qualquer sensação de doença. A ordem é inversa: primeiro o diagnóstico, depois a doença. Então, como lidar com um virtual que se atualiza primeiro no olho blindado de uma máquina em seus avessos hiperespecializados? A produção de "seres imagéticos", segundo as palavras do autor, pode variar, desde ver a face do bebê no útero, seu sexo, até doenças que virão a se manifestar e mostrar certa entrada no trágico em um tempo que virá. Portanto, ao lidar com este olhar tecnológico hiperpenetrante, o próprio estatuto da clinica adentra em fronteiras da dimensão do sentido de vida e morte. Agonias impensáveis advêm hoje de uma esfera virtual do corpo que se apresenta como desafio e fonte de sentido para o corpo-pensamento. A tentativa de constituição de cenários e afecções nestas fronteiras complexas e atravessadas por agenciamentos do sofrer e do viver são os focos éticos e políticos da obra de Aragon e suas possibilidades férteis enquanto analista, médico, técnico, cidadão, pensador e um de nós na aventura de transcender certos sentidos da vida em agonia e reinvenção no contemporâneo.

Estamos tratando de sair dos meandros do paciente e do cuidador universais para afirmar que, nesse encontro, ambos os papéis se misturam e interpelam, tentando dar passagem à novidade de habitar o tempo do instantâneo e da velocidade. Vê-se a dobra do corpo com uma nitidez jamais experimentada e, é claro, tal fato redimensiona a anamnese, a escuta e relação clínica de forma definitiva. O barco da clínica é tensionado pelas ondas de um olho afirmativo e irrefutável e um olho nômade e repleto de sensações indizíveis e pregnantes de imagens que transbordam também de silêncios. Sabe-se tanto de tantas instâncias que um diagnóstico vai transitando em compartimentos oncológicos, cardiológicos, ecocardiológicos, fisiológicos, psicológicos e em tantos lógicos quanto o corpo puder ser aberto e circunscrito.

Os profissionais da clínica carregam o tempo da velocidade com várias frentes de trabalho, vários pacientes, várias famílias buscando respostas e saídas, e cronologia exígua para dar conta de corpos em pedaços. Entretanto, o que a doença pode sugerir é um espaço de retomada da reinvenção existencial: é o momento de ter de lidar com o impensado, o não saber, a raiva, o medo e a marca de um acontecimento. Aqui o conceito de acontecimento é entendido segundo Foucault (1984), sempre uma ruptura evidente – a emergência de uma singularidade – e, ao mesmo tempo, uma ruptura de evidências. Falamos, pois, de uma clínica-acontecimento que, irrevogavelmente, remete-nos a uma problematização. Ou ainda, em Foucault (1992, p. 28), o acontecimento pode ser compreendido como

(...) não uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças que se inverte. As forças que se encontram em jogo na história não obedecem uma destinação, nem a uma mecânica, mas são ao acaso desta luta. É preciso entender este acaso não como um simples sorteio, mas como o risco sempre renovado da vontade de potência que a todo surgimento do caso opõe, para controlá-lo, o risco de um acaso ainda maior.

Assim, para além da produção de resultados objetivos, nossas práticas podem indicar em que direção estamos orientando o nosso desejo de transformação, enfim, nelas se explicitam em que nos estamos tornando.

Acreditamos que a clínica corresponde a fazer renascer o objeto, vida-morte, saúde-doença, livrando-o sutilmente dos discursos anteriores e inaugurando-o através de nova estética argumentativa. É preciso criar acoplamentos e diálogos entre linguagens, inventar e ativar conexões, enfim, constituir uma rede de múltiplas reverberações. O livro promove e é testemunho dessa aposta.

Recebido em: 22/04/2008

Revisão em: 20/10/2008

Aceite final em: 3/11/2008

Patrícia Beatriz Argôllo Gomes Kirst é Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e Institucional/UFRGS, Docente e Membro da Equipe de Coordenação do curso de Pós-Graduação/ Especilização em Psicologia Social e Institucional/ ESADE, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Informática na Educação/UFRGS. Endereço para correspondência: R. Aurélio Bittencourt,150/302. Bairro Rio Branco. CEP 90430-080. POA/RS. Email: pgomes.voy@terra.com.br

  • Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição Rio de Janeiro: Ed. 34.
  • Deleuze, G. (1991). A dobra. Leibniz e o barroco Campinas, SP: Ed. Papirus.
  • Deleuze, G. (1992). O que é filosofia? São Paulo: Ed. 34.
  • Deleuze, G. (1997). Crítica e clínica São Paulo: Ed. 34.
  • Deleuze, G. (1999). Bergsonismo São Paulo: Ed. 34.
  • Foucault, M. (1992). As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas São Paulo: Martins Fontes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2009
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