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Movimentos sociais e produção de subjetividade: o MST em perspectiva

Social movements and production of subjectivity: the MST in perspective

Resumos

O presente artigo pretende apresentar uma discussão a respeito de como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) se configura enquanto um importante ator social no cenário das lutas políticas empreendidas pelos movimentos sociais na atualidade. Tal discussão ancora-se numa perspectiva crítica e que visa contribuir com o campo da Psicologia Social. Assim, propomos uma compreensão dos movimentos sociais a partir dos processos de subjetivação, por entendermos exatamente que as subjetividades são empreendidas nas relações de poder/saber que atravessam uma dada realidade histórico-social.

movimentos sociais; produção de subjetividade; militância política


This article presents a discussion regarding the Landless Workers Movement - LWM (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, in portuguese) and how it acts as an important social agent in the political struggle currently underway in society. This discussion is based on critical perspective and aims to contribute to the Social Psychological field. Thus, we propose an understanding of the social movements beginning from the creation of subjectivity, as we understand that subjectivities are active in relationships of power/knowledge that cross a given historical/social reality.

social movements; subjectivity production; political militancy


Movimentos sociais e produção de subjetividade: o MST em perspectiva

Social movements and production of subjectivity: the MST in perspective

Jáder Ferreira Leite; Magda Dimenstein

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, Brasil

RESUMO

O presente artigo pretende apresentar uma discussão a respeito de como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) se configura enquanto um importante ator social no cenário das lutas políticas empreendidas pelos movimentos sociais na atualidade. Tal discussão ancora-se numa perspectiva crítica e que visa contribuir com o campo da Psicologia Social. Assim, propomos uma compreensão dos movimentos sociais a partir dos processos de subjetivação, por entendermos exatamente que as subjetividades são empreendidas nas relações de poder/saber que atravessam uma dada realidade histórico-social.

Palavras-chave: movimentos sociais; produção de subjetividade; militância política.

ABSTRACT

This article presents a discussion regarding the Landless Workers Movement - LWM (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, in portuguese) and how it acts as an important social agent in the political struggle currently underway in society. This discussion is based on critical perspective and aims to contribute to the Social Psychological field. Thus, we propose an understanding of the social movements beginning from the creation of subjectivity, as we understand that subjectivities are active in relationships of power/knowledge that cross a given historical/social reality.

Keywords: social movements; subjectivity production; political militancy.

1. O MST no cenário das lutas atuais

O presente artigo pretende apresentar uma discussão a respeito de como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) se configura um importante ator social no cenário das lutas políticas empreendidas pelos movimentos sociais na atualidade. Tal discussão ancora-se numa perspectiva crítica e que visa a contribuir com o campo da Psicologia Social. Assim, propomos uma compreensão dos movimentos sociais a partir dos processos de subjetivação, por entendermos exatamente que as subjetividades são empreendidas nas relações de poder/saber que atravessam uma dada realidade histórico-social.

O surgimento do MST pode ser contextualizando a partir de três elementos, quais sejam:

• O primeiro, com nuances socioeconômicas, relaciona-se com as transformações ocorridas no campo, especialmente na década de 1970, com o chamado processo de modernização da agricultura, promovido pelo avanço do capitalismo no meio rural brasileiro e incentivado pelos governos militares;

• O segundo refere-se à atuação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) que assegurou, junto aos trabalhadores do campo, o desenvolvimento de uma prática de reflexão sobre sua condição social e a possibilidade de organização desses trabalhadores vítimas da modernização, de norte a sul do país (Stédile & Fernandes, 1999);

• E um terceiro elemento, ligado ao espaço de abertura política após o período da ditadura militar, levando o MST a constituir-se como movimento social pelo apoio de diversas entidades da sociedade civil, surgindo, assim, com uma forte base de apoio.

Palhano Silva (2004) aborda o MST como um movimento social que atua em rede, tendo se expandido por praticamente todos os estados brasileiros (apenas os estados do Acre, Amazônia e Amapá não têm representação do movimento) e se mantido articulado a outros movimentos e instituições como partidos políticos, Igrejas, bem como organizações não-governamentais e entidades dentro e fora do Brasil, a exemplo da Via Campesina1 1 Movimento internacional de pequenos e médios camponeses de mais de cinquenta países e que congrega centenas de organizações, entidades e movimentos de lutas sociais. Para mais detalhes, ver: http://viacampesina.org. .

O avanço do MST é guiado pela superação de um isolamento "para uma fase de atuação ampliada" (Palhano Silva, 2004, p. 18), já que em sua pauta de reivindicações são visíveis a integração e conexão com questões que extrapolam interesses de lutas localizadas para uma dimensão em escala planetária (combate às sementes geneticamente modificadas e a incorporação de uma agenda de lutas em torno do desenvolvimento sustentável, da agroecologia, da biodiversidade, da educação, saúde, produção, luta contra o aquecimento global etc.).

Podemos assim dizer que o MST encontra-se numa nova fase de luta, já que mudou alguns de seus objetivos em relação a quando se constituiu movimento social, ou seja, a luta pela terra. Na avaliação de alguns teóricos do movimento, tal mudança tornou-se necessária pela alteração da natureza da reforma agrária (MST, 2007).

Entendida em termos clássicos, a reforma agrária convoca a uma alteração na estrutura da propriedade de terra com vistas a democratizar o seu acesso e, desse modo, tornar os camponeses consumidores internos e, assim, alavancar o desenvolvimento industrial do país (MST, 2007). Foi o caso de alguns países como França, Estados Unidos e Inglaterra.

Já o caso brasileiro mostra historicamente como a questão agrária deu-se num caminho oposto, ou seja, as políticas implantadas facilitaram ainda mais a concentração de terras em mãos de uma elite agrária - especialmente no regime ditatorial - e a terra passou a ser vista como mercadoria de especulação (Martins, 2000).

Ademais, uma nova versão do capitalismo sustentada no processo de acumulação de riquezas a partir das empresas multinacionais e do sistema financeiro passou a não necessitar mais da figura do camponês para continuar acumulando riquezas.

Desse modo, os principais dirigentes e teóricos do MST entendem que a luta pela reforma agrária passa pela luta contra um modelo econômico e político. Afirmam:

Nosso debate em torno dos desafios da reforma agrária, que foi debatido ao longo dos últimos dois anos, revela que agora, para a reforma agrária avançar é necessário, em primeiro lugar, derrotarmos o modelo econômico neoliberal e o imperialismo. Ou seja, nossos inimigos não são apenas os latifúndios atrasados. (MST, 2007, p. 90)

Esse aspecto de ampliação da luta contra não mais um só "inimigo", mas todo um modo de gestão e condução da vida pelo capital levou o MST a agregar-se a outros importantes atores sociais de luta que viram também esse modelo econômico como adversário.

Ademais, com as conquistas dos assentamentos, novas demandas surgiram para o próprio MST: escolas e estradas de qualidade, serviços de saúde, saneamento, acesso a créditos para condução dos lotes e aquisição de equipamentos e insumos. Provocado por tais questões, o movimento concluiu da necessidade de ampliar sua luta para além do acesso à terra.

O surgimento dessas demandas levou o MST a ir criando paulatinamente uma estrutura organizativa em que uma série de atividades que vinham sendo realizadas por sua militância nos âmbitos municipal, estadual e nacional foram institucionalizadas. Daí a criação dos chamados setores que respondem por um conjunto de ações e atividades realizadas por grupos de pessoas e que apresentam demandas específicas. De acordo com Fernandes (2000):

Na construção da forma de organização do MST, o termo setor tornou-se uma denominação final, num processo de nomeação das atividades que se utilizou de termos como: comissão, núcleo, equipe, coletivo etc. Desse modo, foram nomeando as atividades na construção da forma de organização do Movimento. Geradas pela necessidade da luta, foram sendo modificadas até se estabelecerem. (p. 173)

Há os setores de Frente de Massas, de Formação, Educação, Saúde, Produção, setor de Gênero, entre outros.

Encontramos no documento produzido pelo MST para discussão durante o V Congresso Nacional realizado em junho de 2007, na capital federal, os principais desafios ligados não só à luta pela terra, mas a uma luta política maior. São eles: acabar com o modelo neoliberal; situar a reforma agrária como uma conquista que beneficiará não só os trabalhadores rurais, mas toda sociedade; fortalecer a formação de sua militância como condutora de uma luta necessária; produzir veículos de comunicação que sejam administrados pelas organizações populares a fim de acabar o monopólio dos meios de comunicação; costurar uma unidade com inúmeras organizações populares nos níveis municipal, estadual e nacional e a disseminação de um debate que proponha um novo modelo de sociedade pautada nos interesses populares (MST, 2007).

Uma frente de luta do movimento que vem ganhando proporções, inclusive internacionais, trata-se do combate ao agronegócio. Para o MST, essa forma de inserção do capital no meio rural é extremamente danosa para uma agricultura sustentável e põe em risco a soberania alimentar dos países vítimas desse modelo de desenvolvimento agrícola.

O agronegócio surge quando empresas transnacionais financiadas pelo sistema financeiro (bancos em especial) passaram a operar na agricultura, tornando as diversas empresas do setor um conglomerado que passou a interferir numa série de processos de produção agrícola (MST, 2007). Assim, os processos de produção e comercialização de alimentos, de fabricação de insumos agrícolas, de desenvolvimento de produtos químicos para as lavouras, de modificação genética de alimentos foram concentrados em um número reduzido ou mesmo em uma única empresa. Com isso, há um profundo controle nos processos de produção agrícola por parte dessas empresas, tornando muitas vezes inviáveis formas outras de produção agrícola que são sufocadas por esse modelo, como a agricultura familiar.

Essa forma de domínio da agricultura pelo agronegócio, resume o documento do MST (2007), dá-se pela internacionalização das ações dessas empresas, pelo controle de preços de produtos, serviços e do mercado consumidor, controle das sementes transgênicas que traz em si domínio tecnológico e leis de patentes para comercialização do produto, padronização dos alimentos, controle da biodiversidade, exploração em forma de monocultivo, entre outros.

Como a expansão do agronegócio obedece escala planetária, diversos movimentos sociais de luta passaram a se articular para que a forma de combate também pudesse se dar nessa mesma escala. Essa parece ser uma bandeira de luta bastante atual do movimento, fato que inclusive o coloca num novo lugar social ao levantar questões que extrapolam o universo clássico de sua gênese: a luta pela terra e a reforma agrária.

Tais transformações em torno do expediente de luta dos movimentos sociais em geral e do MST especificamente podem ser compreendidas em função das particularidades históricas que vão se configurando social e politicamente e, com isso, convocando esses mesmos movimentos a um reordenamento de suas ações coletivas.

Há um conjunto de autores que empreenderam uma série de análises acerca da atual configuração do capitalismo, dando destaque para as sucessivas mutações que tal modelo econômico incorporou, bem como acentuando as suas atuais características. Concomitantemente, pensaram as transformações que os movimentos sociais vêm sofrendo em função da necessidade de se atualizarem no enfrentamento às forças capitalistas.

Com o intuito de situar que formas de luta se compõem diante de uma ordem econômica e política globalizada, Castells (2006) faz um mapeamento de alguns movimentos sociais, dentre eles o Movimento Zapatista mexicano, o Movimento Patriótico nos Estados Unidos2 2 Tal movimento, que se desenvolveu na década de 1990, apresenta como principal objetivo combater uma ordem global que seria responsável pela perda da soberania dos Estados Unidos, já que este país teria sucumbido a interesses mundiais de ordem econômica e política e, com isso, comprometido suas instituições religiosas e sua liberdade (Castells, 2006). ; movimentos ambientalistas em várias partes do mundo e movimentos de minorias sexuais que apresentam oposição a um inimigo comum: os protagonistas de uma ordem global que, ao impor uma mundialização das formas de governo, promove a perda da soberania de culturas, povos e nações.

No entanto, o autor atenta para o fato de que tais movimentos podem representar ideologias e projetos políticos bastante diversos e contrastantes, a depender do seu contexto cultural, econômico e institucional. Desse modo, nem todos esses movimentos podem ser considerados emancipadores ou revolucionários, já que alguns operam por uma lógica muitas vezes conservadora, reacionária e violenta, como é o caso do Movimento Patriótico.

Castells (2006) destaca que, diante dessa nova ordem de dominação, formas de resistência se inauguram em várias partes do planeta com características que oscilam em função de suas especificidades históricas, políticas e culturais, portanto dotadas de heterogeneidade.

Tal pensamento considera que os movimentos sociais que emergem em tais recortes podem, assim, apresentar aspectos ora conservadores, ora revolucionários, que se conformam em determinadas identidades.

O autor chega a propor uma terminologia para designar os componentes que marcam a identidade de alguns movimentos sociais da atualidade. São eles: Identidade legitimadora (que visa expandir sua dominação ao conjunto dos atores sociais e culmina na formação da sociedade civil); Identidade de resistência (posição de determinadas ações coletivas que se opõem ou propõem princípios outros ou mesmo contrários aos dominantes na condução da vida social e institucional) e Identidade de projeto (criação, através de artefatos culturais, de novas identidades que redefinem seu lugar social).

Nesses termos, a identidade coletiva parece uma categoria potente para um entendimento da ação dos movimentos sociais numa nova ordem mundial, exatamente em que as noções de referência e estabilidade são profundamente ameaçadas pelo avanço da máquina capitalista.

Melucci (2001) também empreende uma reflexão a respeito dos movimentos sociais na atualidade em função do que nomeia sociedades complexas ou contemporâneas. Assim resume:

De uma parte, as sociedades contemporâneas, fundadas na informação, produzem recursos crescentes de autonomia para os atores individuais e coletivos. Os sistemas complexos podem funcionar somente se a informação produzida circula no seu interior e se seus atores estão em condição de recebê-la, interpretá-la, transmiti-la. De outra, os sistemas complexos exigem formas de poder e de controle que asseguram a sua integração e devem avançar ao nível mais íntimo no qual se forma o sentido do agir individual e coletivo. Não é suficiente controlar a ação manifesta, mas interferir nas suas raízes motivacionais, cognitivas, afetivas; é preciso manipular a estrutura profunda da personalidade e da própria estrutura biológica. (p. 9)

Nessa ótica, compreende que as ações dos movimentos sociais se orientam por uma apropriação, por parte de seus integrantes, das suas formas de agir, pensar e desejar, já que é nesse âmbito que os sistemas de controle atuais operam. Como tais redes de informações ou fluxos se dissipam por todo o planeta, a heterogeneidade desses movimentos sociais torna-se marcante, daí afirmar o autor que essas formas vigentes de luta são "múltiplas, variáveis e atingem diversos níveis do sistema social" (Melucci, 2001, p. 23).

O autor destaca os conteúdos culturais e as redes de solidariedade como fortes componentes dos movimentos sociais atuais, bem como uma efetiva participação em diversas esferas do sistema social. Por essa via, podemos acompanhar como o MST vem, passo a passo, adentrando em tais esferas, na medida em que avança sua luta para temas além do acesso à terra, conforme apontado anteriormente. A esse respeito, Chaves (2000) resume o processo de evolução da luta do MST: " da luta por terra à luta por reforma agrária, desta à luta por transformação social" (p. 128).

Desse modo, a possibilidade de pensar o MST por meio de sua atuação expandida ou em rede diz respeito à própria atualidade dos movimentos sociais (especialmente dos movimentos de trabalhadores do campo em diversos países reunidos pela Via Campesina, movimento de educadores, ecológicos) em função de um contexto em que profundas mudanças vividas na ordem mundial (avanço do capital sobre o campo, integração dos mercados, avanços tecnológicos, criação e difusão de novas redes de comunicação, aproximações e dominações de ordem cultural, política e econômica) acabam por convocar ou provocar novos arranjos nas formas de luta social.

Felix Guattari (1999, 2000) apresentou uma importante contribuição para refletirmos a atualidade das lutas dos movimentos sociais por ver uma incidência marcante dos processos de subjetivação nesse contexto. Dedicou-se a pensar uma face atualizada do capital, por meio do que denominou de Capitalismo Mundial Integrado, forma de desenvolvimento e sustentação do capitalismo contemporâneo que se apoia num profundo avanço das máquinas tecnológicas e atua em duas frentes: uma de ordem extensiva, porque seu modelo de organização econômica disseminou-se por todo o planeta, atingindo territórios e culturas até então não açambarcados pelo capital (a exemplo do agronegócio, como citado anteriormente), e outra de ordem intensiva, exatamente por esse modelo econômico buscar atingir o plano das subjetividades, dos desejos, operando um movimento de conversão dessas mesmas subjetividades a fim de torná-las mercadorias prontas para serem postas em circulação, distribuição e consumo. Ressalta a homogeneidade e a modelização como características importantes dessa subjetividade-mercadoria. Comenta:

A esse respeito, convém, particularmente situar a incidência concreta da subjetividade capitalística atualmente, subjetividade do equivaler generalizado, no contexto de desenvolvimento contínuo do mass mídia, dos Equipamentos Coletivos, da revolução informática que parece chamada a recobrir com sua cinzenta monotonia os mínimos gestos, os últimos recantos de mistério do planeta. (Guattari, 2000, pp. 34-35)

Esse parece ser um aspecto fundamental no pensamento do autor: vislumbrar uma indissociabilidade entre uma economia política e uma economia subjetiva. Ambas as forças se entrelaçam, pois, na produção da vida social.

Alinhada ao pensamento acima, Rolnik (1997, p. 19) afirma:

A globalização da economia e os avanços tecnológicos especialmente a mídia eletrônica, aproximam universos de toda espécie, situados em qualquer ponto do planeta, numa variabilidade e numa densificação cada vez maiores. As subjetividades independentemente de sua morada, tendem a ser provocadas por afetos dessa profusão cambiante de universos; uma constante mestiçagem de forças delineia cartografias mutáveis e coloca em cheque seus habituais contornos.

A autora adverte que, no entanto, esse processo não implica necessariamente a irrupção de universos subjetivos singulares, mas pode, do contrário, emergir modos subjetivos circunscritos ao plano dessa ordem planetária, e cita como exemplo a criação e disseminação de formas subjetivas laminadas pelo capital, o que nomeia "kits de perfis-padrão" (Rolnik, 1997, p. 20), espécie de subjetividades-produtos prontas para serem consumidas pelos indivíduos e grupos, independente do contexto que estejam. A fabricação e o consumo desses perfis subjetivos passam a ser, nesses termos, uma poderosa forma de controle da vida.

Desse modo, movimentos de natureza popular, de inspiração ecológica, de princípios religiosos, movimentos de luta por reconhecimento das identidades de gênero, étnicas, por educação, moradia e pelos direitos humanos surgem e se articulam para combater a tentativa desterritorializante e massificadora do projeto neoliberal sobre as mais variadas partes do planeta.

Um exemplo paradigmático desses movimentos de contrafluxo às investidas do capital financeiro trata-se do Fórum Social Mundial (FSM), do qual o MST faz parte. O FSM é composto por inúmeras entidades, organizações não-governamentais e movimentos sociais integrantes de vários países que discutem temas ligados aos mecanismos da globalização e seus efeitos, possibilitando a criação de canais de comunicação entre atores de luta e gerando propostas alternativas a tal modelo econômico.

O FSM apresenta, assim, uma característica importante no cenário atual: apontar uma convergência de embate, embora suas singularidades sejam muitas, diante da totalização do capital, convergência essa que alça escala também global.

2. O MST e suas investidas de subjetivação

Considerada uma importante pensadora do MST no campo da educação, Caldart (2000) propõe uma leitura do movimento a partir de sua dimensão cultural, destacando exatamente a força que elementos de ordem simbólica ocupam na sua formação e consolidação. Sugere o que chama de três "ideias-força":

• A constituição histórica do MST "pela força de seus gestos, pela postura de seus militantes e pela riqueza de seus símbolos" (Caldart, 2000, p. 31).

Esse elemento, segundo a autora, valoriza a trajetória do movimento na composição de novas identidades que vão sendo incorporadas pelos sem-terra no transcorrer da luta, e seus elementos simbólicos têm uma participação marcante nesse processo, uma vez que carregam marcas da história de seus integrantes ao mesmo tempo em que vão sendo ressignificados pelos valores que vão surgindo no decorrer da luta.

• A abertura do MST para uma maior visibilidade perante a sociedade nacional e mesmo internacional.

Conforme a autora, um novo olhar da sociedade passou a identificar a importância do MST e suas lutas carregadas de símbolos, a despeito das imagens construídas pela mídia, em que se identifica claramente uma postura ofensiva ao movimento. Caldart (2000) advoga que, em função da consolidação de uma identidade cultural, o MST pôde, então, tornar-se mais público e compreensível para a sociedade.

• Um olhar do próprio MST para sua dimensão cultural, através de uma reflexão em torno da valorização da memória e da mística da luta social, de uma melhor compreensão de sua base e um investimento na formação dos valores e posturas pessoais dos sem-terra.

A escolha de determinados símbolos seria uma forma de dialogar com a base do movimento e de contribuir na sua formação, uma vez que tais símbolos e místicas carregam elementos do universo sociocultural dos seus integrantes, em especial da base do movimento.

Juntamente com outros pensadores do movimento, Cadart (2000) aposta numa investida cultural como forma de fortalecer a luta do MST. Bogo (2003), por exemplo, fala de uma revolução cultural ou nova cultura a ser semeada entre os sem-terra. Tal revolução passa pela incorporação de novos padrões culturais, da aquisição de novos valores e hábitos diante da sociedade. Defendem, assim, o caráter profundamente pedagógico e formador que o movimento empresta aos seus integrantes. Caldart (2000) destaca:

Observando mais atentamente a dinâmica interna deste Movimento, é possível identificar algumas ações ou vivências que, pela força de atuação sobre as pessoas que delas participam, podem ser compreendidas como processos socioculturais que possuem componentes educativos ou formadores na constituição da identidade dos sem-terra do MST, mesmo que por vezes sejam até negadas nas escolhas morais cotidianas que cada trabalhador ou trabalhadora sem-terra tenha de fazer ao longo de sua vida, seja na condição de acampado, assentado ou militante da organização. (p. 65)

Bogo (2005a) e Pizetta (2005), a propósito, alertam a militância para alguns desvios e vícios históricos (personalismo, individualismo, autoritarismo) presentes na formação cultural e nas relações travadas pelos integrantes do movimento e da necessidade de, ao compreendê-los, tornarem-se vigilantes e buscarem formas de superá-los por novas condutas condizentes com os princípios coletivistas do movimento.

A partir desse ponto, gostaríamos de retomar uma proposição que foi feita por nós anteriormente (Leite, 2003; Leite & Dimenstein, 2006, 2007), qual seja, tratar o MST enquanto um potente regime de subjetivação. Tal entendimento pressupõe que as suas ações coletivas e o processo de formação postos em curso desemboquem num modo de subjetivação militante que atinja tanto os seus quadros3 3 Lideranças, dirigentes, coordenadores e seus setores de trabalho: educação, gênero, produção, saúde etc. quanto sua base social4 4 O impacto desse processo de subjetivação junto à base social do MST foi por nós investigado em dissertação de mestrado (Leite, 2003), por meio de um estudo realizado em um acampamento do MST no município de Pureza/RN. .

Esse modo destaca-se por empreender um processo de produção subjetiva militante, o Sem Terra, figura-chave que condiciona seu projeto de vida pessoal ao de seu grupo, portador de valores de coletividade e solidariedade (Gaiger, 1994), politicamente formado e dedicado ao movimento, uma subjetividade outra que vai de encontro ao modelo de indivíduo produzido pelo capitalismo.

O que os teóricos do MST entendem por investida cultural ou por busca de superação de padrões de comportamentos nocivos à luta é por nós compreendido como um modo de produção subjetiva que visa a engendrar sujeitos consoantes como seu programa político-ideológico.

Nesses termos, adotamos uma concepção de subjetividade que a insere no âmbito de sua produção ou de sua fabricação social e histórica, na qual diversas instâncias postas em conexão (relações de saber/poder, institucionais, linguísticas, culturais, econômicas, tecnológicas) se articulam para gestar diversas formas subjetivas, que tanto podem se exprimir numa escala pessoal quanto coletiva (Guattari, 2000), em constante processualidade.

Na tradição do pensamento moderno, o tema da subjetividade e do sujeito tem comparecido, especialmente no campo da psicologia e das ciências humanas em geral, atrelado a uma concepção que os relaciona com uma noção substancializada, idealizada, universal, a-histórica. Doel (2001), a esse respeito, comenta que "convencionalmente, supõe-se que o sujeito é idêntico a si mesmo; ele é o ponto - o lugar no mapa - que perdura. Ele é o centro da identidade, estável e inabalável" (p. 86).

Para o autor, essa concepção decorre em duas funções para o sujeito: a universalização, já que o mesmo é tomado por sua abstração e por onde se inicia sua humanização; e a individuação, na medida em que essa mesma universalização da experiência subjetiva necessita de uma materialidade para sua expressão, um corpo e um rosto:

O sujeito só existe em seus efeitos, na subtração de seus efeitos; sem um corpo ou um rosto através dos quais passar, o sujeito não pode cumprir sua função de universalização. Daí a complementaridade e o paradoxo: o sujeito exige a individuação a fim de expressar a universalização. (Doel, 2001, p. 87).

Podemos afirmar que o processo de individuação a que o autor se refere tem sido produzido como objeto de preocupação de algumas correntes da ciência psicológica, a exemplo da Psicologia Social americana, de modo a se converter num plano de interioridade do humano em oposição à sua vida social, expressa na exterioridade de suas relações. Domènech, Tirado e Gómez (2001) apontam que essa dicotomia entre uma realidade interior e outra exterior - onde na primeira coexistem pensamentos, ideias e conteúdos mentais autônomos em relação à segunda, lugar da matéria e da mecânica - tem profundas raízes tanto em concepções cristãs quanto no pensamento de Descartes e é marcante nas teorias modernas do sujeito e da subjetividade.

Desse modo, aportar uma versão crítica a esse referencial permite destacar como as subjetividades vão se engendrando em conformações sociais e políticas específicas, possibilitando vislumbrar sua força processual e cambiante.

Nesses termos, reconhecemos na figura da militância do MST um processo de produção subjetiva ancorado num determinado contexto histórico, social, cultural e político, fazendo com que se apresente enquanto um ator social ligado a seu tempo, a seu espaço, representando uma síntese dos jogos de poder que o atravessam enquanto um modo provisório de subjetivação.

Tal pensamento é inspirado numa corrente de autores nomeados de pós-estruturalistas e pós-modernos, que tiveram importante papel no descentramento do sujeito moderno, dotando-o de uma ininterrupta processualidade e fazendo do mesmo um empreendimento gestado nas malhas das relações de poder e saber de uma dada formação social.

Ao propormos uma perspectiva de entendimento das subjetividades pela via de sua produção, damos destaque para o seu caráter polifônico, processual e maquínico. Assim, autores como Gilles Deleuze, Félix Guattari e Michel Foucault apresentam uma concepção radicalmente crítica às visões deterministas e essencialistas da experiência subjetiva.

Inspirado nos autores acima descritos, Moraes (2002) apresenta o seguinte entendimento para o termo subjetividade:

Trata-se de um conceito que busca articular o universo semiótico humano em seu agenciamento maquínico com as tecnologias produtivas, artísticas, cognitivas, temporais e os mecanismos de poder de determinado período histórico. Através do agenciamento entre códigos lingüísticos [sic], tecnologias produtivas e de mecanismos de poder as subjetividades e os desejos são produzidos. Subjetividade inclui, então, não apenas o modo de pensar das pessoas, mas também o seu modo de agir, se portar, desejar, fazer, sonhar, revoltar. Além disso, a subjetividade não está dentro da pessoa, mas as atravessa, visto que não é produzido nas pessoas, mas nos encontros entre elas e delas com os aparelhos de poder (p. 14).

Guattari (Guattari & Rolnik, 1986) destaca que, diante do processo maquínico e produtivo das subjetividades no âmbito do capitalismo contemporâneo, é possível identificar duas importantes variações da experiência subjetiva: a singularidade e a identidade. Enquanto a primeira ressalta a fabricação social de um território existencial ou de modos de vida que tanto podem se expressar numa escala pessoal quanto coletiva, com destaque para a produção singular desses modos, a segunda é destacada enquanto uma permanência das subjetividades em determinado território, como que congelando a experiência subjetiva num padrão identitário (Guattari, 1999, 2000; Guattari & Rolnik, 1986).

Por essa perspectiva, a fabricação de territórios existenciais implica uma superação da dicotomia interioridade-exterioridade, ou seja, de um lado, um mundo psicológico, com seus conteúdos tanto de natureza consciente quanto inconsciente e, de outro, uma realidade externa que subjuga o sujeito e o conforma por constrangimentos sociais e/ou ambientais.

A partir dessas reflexões, podemos compreender o MST como um agenciamento coletivo de enunciação (Guattari & Rolnik, 1986), expressão utilizada por Guattari para descentralizar a subjetividade de uma noção individualizada ou de um sujeito abstrato, ou mesmo de uma interioridade psicológica cercada em si mesma. Para o autor, "o agenciamento coletivo não corresponde nem a uma entidade individuada nem a uma entidade social predeterminada" (Guattari & Rolnik, 1986, p. 39). Ele apresenta a possibilidade de pôr em ligação diversas instâncias (de natureza extrapessoal e extraindividual e de natureza infrapessoal e infrapsíquica) que se arranjam para a produção das subjetividades.

De acordo com Gaulthier (2004), um agenciamento coletivo de enunciação tem por característica ser portador de uma profusão de discursos e falas com potencial para orientar na produção de determinadas subjetividades, possibilitando a conexão de signos de diferentes ordens. Tais regimes de signos podem se configurar para a criação de existências bastante territorializadas ou sobrecodificadas, operando uma formação identitária para essa subjetividade, mas podem também operar por uma desterritorialização ou desestabilização na conformação de determinados signos, levando a modos subjetivos singulares, que pode se dar na forma de resistência ou de criação de territórios existenciais heterogêneos.

Assim posto, os processos de resistência não se restringem ao que classicamente é apontado pelos grupos de esquerda como mudança da consciência, ou melhor, não se resume a uma egologia, para dizer com Guattari e Rolnik (1986), mas convocam ou mobilizam instâncias outras (afetivas, sociais, políticas, inconscientes) que promovem um redimensionamento nos modos de agir, sentir, relacionar-se. Nesse sentido, a profusão de elementos de enunciação que atravessam o MST, como a denominada matriz religiosa e sua simbologia, a sua origem camponesa e sua oposição ao neoliberalismo, complexifica seu modo de atuação junto aos seus integrantes.

Ademais, a própria expansão da luta do MST para além do argumento-terra constrói relações mais complexas internas ao movimento, bem como dinamiza e torna mais heterogêneos seus integrantes. Essa expansão da luta por terra por um projeto de transformação social mais amplo acaba acessando diversos indivíduos ou grupos portadores de uma dimensão subjetiva também de resistência ou contestação, que veem no MST um intercessor capaz de acolhê-los.

A esse respeito, Caldart (2000) argumenta:

Quanto mais o MST avança em sua trajetória de organização social, mais é possível perceber como a entrada de pessoas no Movimento não pode ser compreendida apenas pelo motivo da busca de um pedaço de terra. As pessoas, em especialmente as mais jovens, estão em busca de um sentido para sua vida, um espaço social que lhe tire a angústia da desorientação e da falta de pressentimentos de futuro. Talvez seja por isso que também outras pessoas que não os trabalhadores e trabalhadoras sem-terra busquem fazer parte do MST. (p. 130)

Desse modo, um aspecto digno de nota na busca de efetivação do modelo de uma subjetivação Sem Terra obriga-nos a indagar como esse modelo ou essas proposições coletivistas atravessam os corpos (Rolnik, 2006) dos seus integrantes ou que aspectos de suas vidas são atingidos e afetados com tais vivências.

Assim sendo, torna-se imprescindível compreender o MST como um campo que atua em dois regimes: extensivo e intensivo. Explicitando melhor: entendemos que, ao operar pelos discursos e práticas que visualizam um personagem embebido na identidade do Sem Terra, os referidos teóricos do MST privilegiam uma ligação com um regime extensivo, molar, já que dão destaque para os momentos de pausa das forças que pululam no próprio movimento (forças essas advindas de sua heterogeneidade), pausas que se materializam na criação de territórios delimitados, identificados em "formas" (militante, Sem Terra, dirigente), "segmentos" (Setores de educação, de gênero, de saúde, formação etc.), de "séries causais" 5 5 Os elementos forma, segmento e série causal são apontados por Neves (2004) como modos de atualização de um acontecimento de natureza intensiva. (acampados, assentados), designando lugares, dizeres e fazeres para cada identidade forjada.

Neves (2004) argumenta que essas pausas identitárias podem ter um objetivo programático para certas lutas sociais. No entanto, adverte para o fato de que:

Estas pausas, que constituímos ao longo de nossa existência, podem ser capturadas em armadilhas que, afastando-nos dos movimentos de variação contínua da vida e do socius levam-nos a lidar com eles com base em uma mega programação disciplinada e convergente de interferências a seres aplicadas "sobre"; por outro lado, essas pausas também podem funcionar para novas proposições e outros modos de existência, caso em que podemos pensá-las como pausas tensas. A diferença entre as pausas disciplinadoras e as pausas tensas é que a primeira prende o movimento em uma configuração ou programa arborescente, fazendo saltar um transcendente (programa partidário, manuais de auto-ajuda [sic], bíblias etc.), enquanto a segunda está aberta e porosa às potências de virtualização que estes movimentos portam. (p. 7)

Por sua vez, há uma forte heterogeneidade presente nos integrantes do MST que redesenha essa tentativa de definição de lugares sociais para seus participantes. Essa heterogeneidade é pensada pelo fato de que vêm de universos subjetivos diferentes, participando com investimentos singulares de desejo na composição do movimento. Tal diversidade de modos de participação na luta pela terra e, consequentemente, de inserção do MST, foi por nós identificada (Leite & Dimenstein, 2006), na medida em que a força que orientava a resistência no acampamento advinha de ligações variadas do desejo com a conquista da terra: para alguns trabalhadores, liberdade de uma histórica forma de exploração pelo trabalho, conquista da autonomia e de um pedaço de chão para trabalhar e morar e, no caso de algumas mulheres, pela superação de relações de gênero marcadas por violência e dominação masculina.

Além disso, essa diversidade pode ser expressa pelas relações de trabalho (trabalhadores assalariados rurais e urbanos, trabalhadores de aluguel, arrendatários, meeiros, pequenos agricultores, moradores, boias-frias), pelas relações de gênero (maior participação de mulheres e, em menor escala, de homossexuais), pelo nível de escolaridade e de idade (inclusão de crianças e jovens), de orientação religiosa (católicos, protestantes e de cultos afrodescendentes). Com isso, a diversidade de integrantes do MST lança ao próprio movimento demandas de luta que até então não vislumbrava, fazendo dele um intercessor para pô-las em marcha.

Tanto Caldart (2000) quanto Bogo (2003, 2005a) descrevem um processo em que a diversidade de formas de inserção no MST vai se configurando num sujeito unificado, portador de um novo regime identitário, forjado num processo de tomada de consciência em que vai substituindo paulatinamente seus modos de subjetivação anteriores pela subjetivação nascente de Sem Terra. Tal subjetivação nascente encontra, pois, ancoragem nessa matriz modelizadora, programática e laminadora, inscrevendo o MST enquanto um regime de subjetivação que opera de modo extensivo.

Assim sendo, podemos concordar com críticas dirigidas ao MST em alguns modos de condução de sua luta. Martins (2000), por exemplo, aponta para uma ideologização e uma partidarização que o movimento sofreu, na medida em que imprimiu um formato de luta que, de movimento social, se converteu numa organização política, com quadros definidos, estrutura hierarquizada, muito mais próxima dos aparelhos partidários, criando uma espécie de funcionários da reforma agrária.

Percebemos como esse aspecto compromete, portanto, uma valorização dos diversos modos de expressão que possam se integrar ao MST e nele ganhar legitimidade, a menos que tais expressões sejam redirecionadas para uma captura institucional.

Um dos aspectos que geralmente gera choque entre integrantes e dirigentes do MST diz respeito ao âmbito da organização da produção no espaço do assentamento. Como o movimento opera por uma matriz coletivista, acaba por insistir num modelo de produção baseado em princípios cooperativistas que, muitas vezes, não corresponde ao ideário do agricultor familiar.

Dentre as matrizes orientadoras dos princípios organizativos do MST, destacamos os denominados autores clássicos do pensamento materialista histórico e dialético que, segundo Bogo (2005c), tiveram papel preponderante para a organização das classes trabalhadoras, bem como dotaram os partidos políticos de natureza revolucionária. Pensadores como Karl Marx, Friedrich Engels, Rosa Luxemburgo e Vladimir Lênin são citados pelo autor como expoentes que criaram bases teóricas e metodológicas de composição de uma classe trabalhadora que se fazia representada por um partido político revolucionário, organizado e estruturado em instâncias, comitês, assembleias, com profundas divisões de tarefas. Cita, por exemplo, Lênin, uma das principais fontes de orientação do modelo de organização política do MST e afirma:

Lênin é, de certa forma, quem representa o marco divisório entre a teoria política da organização e sua vinculação com a prática. Ele próprio desenvolveu a teoria do partido político da classe trabalhadora, dando-lhes a definição de 'forma superior de organização'. É através dele que a classe trabalhadora tem o poder de autodeterminar o seu destino; para isso, precisa formular um programa, estratégias e táticas para chegar ao objetivo final. (Bogo, 2005c, p. 16)

Vemos operar, aqui, um pensamento que trata de processos de natureza macropolítica, portanto de inscrição de um regime extensivo em que estruturas molares são convocadas para reduzir a complexidade do socius: classe social e luta de classes, partido político, organizações político-partidárias, de programas políticos com fins preconcebidos.

Tais empreendimentos pedem, de acordo com Gaião (2001), uma concepção de sujeito histórico total, portador de ação consciente e revolucionária, que luta por uma sociedade de iguais, sem opressores e oprimidos, conquistas essas alcançadas pela organização política que guia as massas para a direção necessária, insinuando uma ação militante pautada especialmente pelo nível da racionalidade e da consciência, concepção central no pensamento moderno ocidental de supervalorização da razão, de um discurso da consciência como ferramenta imprescindível de inteligibilidade do real.

3. Considerações finais

Indagamos se a insistência numa ordem macroestrutural consegue captar a complexidade e a heterogeneidade na qual está imersa o MST, bem como se consegue contemplar as variações e as forças cambiantes que para ele são arrastadas em função dos regimes intensivos que a ele se conectam.

Apostamos, pois, que, para além desse aspecto extensivo, molar, faz-se necessário destacar as interferências de natureza intensiva (Neves, 2004) da qual o MST é portador. São essas possibilidades de incorporação de uma variabilidade de formas de luta que são atraídas pelo MST (saúde, educação, questões de gênero, trabalho, lutas ecológicas) que possibilitaram sua atuação ampliada e conectada com questões de ordem planetária e que permitiram se produzir gestos de concordância com sua luta, de ações de apoio aos seus integrantes, que fazem do MST um acontecimento inaugurador de contágios, que atrai demandas variadas e permite, portanto:

Fazer o acontecimento ressoar sua potência disruptora, cintilando um conjunto indeterminado de perspectivas que não o esgotam, mas se dispersam e nos lançam em uma miríade de problemas, de sentidos, de transrelações desestabilizadoras que agitam partes do estado de coisas, arrastando-o para novos acontecimentos e composições, (Neves, 2004, p. 7)

Obviamente, tratar o MST pelo atravessamento de regimes macro e micropolítico convoca-nos a superar uma concepção de sujeito político e militante totalizado por determinismos ou categorias de pertencimento a classe social, ancorado em projetos utópicos de longa duração no tempo da história, evoluindo de uma subjetivação alienada a uma subjetivação revolucionária, como que acumulando ganhos históricos e uma nova consciência, como o querem seus teóricos.

Aqui, a dimensão processual e produtiva das subjetividades faz pleno sentido e ganha força teórica na medida em que comparece para exatamente apontar como o MST engendra seus discursos e práticas sociais com vistas a atingir seus objetivos.

Se se tratam de sujeitos históricos, não o são por razão de que cumprem uma longa trajetória revolucionária pela aquisição de uma "síntese cultural" ou pela libertação de "antigos vícios" que os impregnavam e os impossibilitavam de uma evolução, como defendem Caldart (2000) e Bogo (2005a, 2005b), mas sua historicidade reside no fato que são subjetivações circunscritas a um regime de verdades6 6 Foucault (1979/2007) define o regime de verdades como um conjunto de discursos que uma sociedade adota, tomando-os por legítimos e que servem tanto para explicar a realidade, como para justificar ações, apresentam uma dimensão moral, em termos de destacar o que é certo e errado, desejável ou não para cada corpo social. O autor destaca alguns modos históricos de circulação de um regime de verdades: através das instituições científicas e econômicas, bem como é alvo de debates no campo político e social. É nesse campo que se dão, por exemplo, os embates entre movimentos sociais e Estado. que infligem certa identidade a um conjunto heterogêneo de desejos e devires.

O caráter integrador do MST e sua potência de "acumular" conquistas sociais (assentamentos, projetos de desenvolvimento em diversas áreas como educação, saúde, produção, rompimento com certas formas de assujeitamento, seja pelo trabalho, pelas relações de gênero, pelo campo da sexualidade, pela vivência dos afetos) não estão unicamente na construção de sua unidade, mas por mobilizar elementos de natureza intensiva em seus integrantes e demais grupos sociais que o apoiam, especialmente num contexto em que as lutas sociais parecem ter sofrido uma espécie de desencantamento (Neves, 2004).

A força política do MST está, em grande medida, pelo que lhe escapa enquanto ordem identitária, pelo que nele se produz pela via das singularidades.

É nesse sentido que o contexto da contemporaneidade ou pós-modernidade tem sido desafiador para um movimento que opera com matrizes modernas. Segundo Gaião (2001), essa modalidade de sujeito empreendido pelo MST entra em dissonância com as formas subjetivas pós-modernas, não identitárias, fragmentadas, não estruturadas em componentes de classe, gênero ou religião. Nesse caso, torna-se problemático reivindicar identidades ou modelos estruturantes em tempos que pontos de ancoragem essencialistas desmancham-se cotidianamente.

Pelbart (2003), ao destacar o pensamento de autores como Jameson, Guattari e Foucault acerca da contemporaneidade, resume a pós-modernidade com as seguintes características:

Descontextualização dos objetos, privilégio da superfície, império do simulacro, fim das hermenêuticas de profundidade, sejam da essência e da aparência, do latente e manifesto, e com isso, da própria idéia [sic] de repressão, sejam dos pares autenticidade e inautenticidade, alienação e desalienação - categorias que orientaram nossa cultura marxista, freudiana, existencialista e suas diversas hibridações. Ao mesmo tempo, fim do sujeito centrado, ou do ego burguês, bem como das psicopatologias desse ego, esmaecimento dos afetos, desbotamento da grande temática do tempo, da memória, e do passado, irrupção de um eterno presente de fascinação com seu efeito alucinógeno, desistoricização generalizada etc. (p. 31)

O autor sintetiza um conjunto de balizadores que foram, e ainda são, em escala menor, cruciais na condução de nossas existências, tanto em matéria de vida cotidiana quanto em termos de compreensão científica das subjetividades ocidentais. Desse modo, resta pouco para uma concepção de sujeito a priori, na medida em que categorias unitárias definidoras de sua condição como classe social, religião, inconsciente, já não alcançam o caráter eminentemente produtivo e desconstrutivo da experiência subjetiva.

Notas

Recebido em: 11/02/2009

1ª. Revisão em: 23/11/2009

2ª. Revisão em: 31/01/2010

Aceite final em: 03/03/2010

Jáder Ferreira Leite é doutor em Psicologia Social pela UFRN, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Endereço: Avenida Ayrton Senna, 16, casa 28, Capim Macio. Natal/RN, Brasil. CEP 59080-100. Email: jaderfleite@hotmail.com

Magda Dimenstein é doutora em Saúde Mental pela UFRJ, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia - mestrado e doutorado - da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pesquisadora do CNPq. Email: magdad@uol.com.br

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  • 1
    Movimento internacional de pequenos e médios camponeses de mais de cinquenta países e que congrega centenas de organizações, entidades e movimentos de lutas sociais. Para mais detalhes, ver:
  • 2
    Tal movimento, que se desenvolveu na década de 1990, apresenta como principal objetivo combater uma ordem global que seria responsável pela perda da soberania dos Estados Unidos, já que este país teria sucumbido a interesses mundiais de ordem econômica e política e, com isso, comprometido suas instituições religiosas e sua liberdade (Castells, 2006).
  • 3
    Lideranças, dirigentes, coordenadores e seus setores de trabalho: educação, gênero, produção, saúde etc.
  • 4
    O impacto desse processo de subjetivação junto à base social do MST foi por nós investigado em dissertação de mestrado (Leite, 2003), por meio de um estudo realizado em um acampamento do MST no município de Pureza/RN.
  • 5
    Os elementos forma, segmento e série causal são apontados por Neves (2004) como modos de atualização de um acontecimento de natureza intensiva.
  • 6
    Foucault (1979/2007) define o regime de verdades como um conjunto de discursos que uma sociedade adota, tomando-os por legítimos e que servem tanto para explicar a realidade, como para justificar ações, apresentam uma dimensão moral, em termos de destacar o que é certo e errado, desejável ou não para cada corpo social. O autor destaca alguns modos históricos de circulação de um regime de verdades: através das instituições científicas e econômicas, bem como é alvo de debates no campo político e social. É nesse campo que se dão, por exemplo, os embates entre movimentos sociais e Estado.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010

    Histórico

    • Aceito
      03 Mar 2010
    • Revisado
      31 Jan 2010
    • Recebido
      11 Fev 2009
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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