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Cidades-imagem: afirmações e enfrentamentos às políticas da subjetividade

Cities-image: affirmations and interrogations to subjectivity's politics

Resumos

Neste trabalho propomos articular subjetividades e espaços através de imagens, estas compreendidas no sentido que delas podemos apreender a partir dos escritos do filósofo alemão Walter Benjamin. Em Imagens do Pensamento, Benjamin nos convida a ler-ver imagens, não enquanto matéria a ser decifrada, tampouco como mera representação do mundo, mas como força que pode produzir estranhamento a partir de sentidos que não se completam, que não se encerram em si mesmos, não totalizam. Sentidos incompletos que saltam a partir de seus encontros, de suas montagens. Teceremos, assim, articulações entre subjetividades e espaços através de algumas imagens da Paris de Haussmann, das provocadoras cidades invisíveis de Ítalo Calvino e da porosidade de Nápoles, narrada por Walter Benjamin. As questões que permeiam este trabalho são: o que as cidades-imagem afirmam e como elas interpelam o campo de estudos da subjetividade.

subjetividades; espaços urbanos; imagem


In this essay we intend to articulate subjectivities and spaces through images, in the sense in which they may be apprehended based on the writings of Walter Benjamin. In Images of thought, Benjamin invites us to read-see images, not as matter to be deciphered, nor as mere representation of the world, but as a force that might produce an estrangement that emerge from senses that do not reach completeness, that are not enclosed in themselves, that do not constitute totalities. Incomplete senses that emerge from encounters, from collages. Therefore, we shall articulate subjectivities and spaces through images by Haussmann's Paris, the provoking invisible cities by Italo Calvino and by Naples' porosity, narrated by Walter Benjamin. The questions that permeate this work are: what do the cities-image affirm, and how do they interrogate the field of studies of subjectivity.

subjectivities; urban spaces; image


Cidades-imagem: afirmações e enfrentamentos às políticas da subjetividade

Cities-image: affirmations and interrogations to subjectivity's politics

Ana Cabral RodriguesI; Luis Antônio dos Santos BaptistaII

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

IIUniversidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil

RESUMO

Neste trabalho propomos articular subjetividades e espaços através de imagens, estas compreendidas no sentido que delas podemos apreender a partir dos escritos do filósofo alemão Walter Benjamin. Em Imagens do Pensamento, Benjamin nos convida a ler-ver imagens, não enquanto matéria a ser decifrada, tampouco como mera representação do mundo, mas como força que pode produzir estranhamento a partir de sentidos que não se completam, que não se encerram em si mesmos, não totalizam. Sentidos incompletos que saltam a partir de seus encontros, de suas montagens. Teceremos, assim, articulações entre subjetividades e espaços através de algumas imagens da Paris de Haussmann, das provocadoras cidades invisíveis de Ítalo Calvino e da porosidade de Nápoles, narrada por Walter Benjamin. As questões que permeiam este trabalho são: o que as cidades-imagem afirmam e como elas interpelam o campo de estudos da subjetividade.

Palavras-chave: subjetividades; espaços urbanos; imagem.

ABSTRACT

In this essay we intend to articulate subjectivities and spaces through images, in the sense in which they may be apprehended based on the writings of Walter Benjamin. In Images of thought, Benjamin invites us to read-see images, not as matter to be deciphered, nor as mere representation of the world, but as a force that might produce an estrangement that emerge from senses that do not reach completeness, that are not enclosed in themselves, that do not constitute totalities. Incomplete senses that emerge from encounters, from collages. Therefore, we shall articulate subjectivities and spaces through images by Haussmann's Paris, the provoking invisible cities by Italo Calvino and by Naples' porosity, narrated by Walter Benjamin. The questions that permeate this work are: what do the cities-image affirm, and how do they interrogate the field of studies of subjectivity..

Keywords: subjectivities; urban spaces; image.

Tessituras modernas

A derrubada das cidades medievais no século XVIII para a construção de um novo modelo de cidade ideal inaugura algo absolutamente novo na sociedade ocidental: o fenômeno urbano. As largas avenidas incitavam o movimento e a fluidez, as novas concepções estéticas inspiravam e davam corpo aos sonhos de modernidade, a cidade feita urbe, enfim, delineava-se enquanto um objeto do conhecimento positivo e racional. Essas profundas modificações nas cidades (e no que se constituirá uma cidade) não se limitaram a uma esfera meramente físico-espacial - isso não seria possível -, se articularam estreitamente a uma mudança nos modos de existência, no campo da subjetividade ou, mais especificamente, na construção da individualização da subjetividade.

Apontar para as articulações entre espaços e subjetividade instiga-nos a questionar qual a importância política de tal articulação para o campo dos estudos da subjetividade. Mais ainda, de que tipo de articulação estamos tratando? Não são escassos os trabalhos, tanto no campo da arquitetura e do urbanismo quanto em algumas linhas da psicologia, que apresentam tal articulação enquanto uma relação, geralmente marcada pela mútua influência entre duas realidades. De um lado, a subjetividade definida enquanto atributo eminentemente individual, e o indivíduo, por sua vez, compreendido enquanto sujeito racional, social, autônomo, livre, dotado de interioridade e capacidades e atributos que lhe seriam intrínsecos; e, do outro lado da dualidade, o espaço, compreendido enquanto realidade objetiva, dotado de uma racionalidade própria e constituinte e, ainda, como palco onde o indivíduo e a sociedade seriam alvos e agentes de modificações.

Diferentemente dessa perspectiva, propomos adentrar as questões que concernem às articulações entre subjetividade e espaço através de sua tessitura co-constitutiva, e não de modificações que se abatem sobre duas realidades epistemológica e ontologicamente distintas. Em outras palavras, propomos uma análise dos processos que narram as tramas e embates que constituem o indivíduo - enquanto suporte hegemônico da experiência moderna - e o espaço ordenado e racional das grandes cidades. Este encontro vem no sentido de colocar em discussão uma das principais questões dos Estudos da Subjetividade: a subjetividade como domínio da interioridade, que possui como desdobramento o entendimento dos espaços enquanto uma outra realidade, externa e objetiva.

Comecemos, pois, nos bulevares da Paris do Barão de Haussmann e Napoleão III, onde a amplitude, a retidão, a iluminação e a limpeza compõem a imagem de trânsito incessante das multidões. Esse megaprojeto de reconstrução da capital francesa fez das ruas, antes tortuosas e bifurcadas1 1 Ao redigirmos esta afirmativa, um questionamento sobre o caráter negativo atribuído ao termo "tortuoso", no que se refere ao traçado urbano, veio à tona. Perguntamo-nos: não seria pertinente pensarmos que essa tortuosidade das ruelas de um traçado ainda medieval de Paris é apenas colocada como um problema urbano no momento em que a circulação fluida - inspirada no corpo humano - é trazida como modelo de cidade ideal? Queremos, com essa questão, indicar que a necessidade de transformar o traçado urbano não se instaura a partir da tortuosidade como um problema que finalmente pôde ser resolvido através das técnicas e conhecimentos modernos, mas que, de acordo com o surgimento de novas concepções de cidade, novas necessidades e problemas são criados. , ruínas; "Haussmann reduziu a pó quarteirões inteiros, populosos habitados por gente de toda espécie" (Josephson, 1997, p. 146). Sobre as ruínas ergueram-se ruas imensamente amplas, construídas a partir dos princípios lineares usados pelos romanos. Esse novo traçado da cidade, que fora conclamado como verdadeiro modelo do urbanismo2 2 "O Rio de Janeiro também passou pelo mesmo tipo de experiência no início do século XX. O prefeito Pereira Passos, médico sanitarista, que presenciou a remodelação proposta por Haussmann, tomou Paris como modelo e propôs uma série de melhoramentos, com a abertura de ruas e avenidas, das quais a mais famosa foi a Avenida Rio Branco, que deveria ser margeada de ambos os lados por prédios elegantes e artísticos, segundo um padrão definido de construção." (Josephson, 1997, p. 146) , aliado às novas tecnologias do transporte, traziam a velocidade como uma das principais questões da época.

Observemos a seguinte indicação de Richard Sennett:

O cenário do boulevard de Sébastopol - um espaço exemplar do século XIX - destinava-se a um tipo de locomoção direcionada com tanta rapidez e sob tão forte pressão, que não permitia a ninguém dar-se conta do burburinho da vida. Dividindo politicamente a multidão, fez com que os indivíduos mergulhassem, em carruagens ou a pé, numa excitação quase frenética (Sennett, 1994, p. 271).

Espaços esquematizados e demarcados pelas grandes avenidas e bulevares foram apresentados no sentido de resolverem a mistura de uma população híbrida e crescente. "A heterogeneidade das ruas, a confusão reinante no espaço público foi solucionada pela exclusão das massas populares e pelo isolamento da burguesia em bairros homogêneos" (Josephson, 1997, p. 146).

Essa divisão nos chama a atenção de que não parece ser interessante compreender a reconstrução de Paris como um mero remodelamento urbanístico orientado por cânones estéticos que brotaram das al-mas de homens de boa vontade. Não é, porém o caso de recusar a importância de um referencial estético no trabalho realizado; todavia os ideais estéticos são indissociáveis do político. A concepção iluminista da cidade como veias e artérias, como um organismo que deveria funcionar bem em cada uma de suas unidades e em sua totalidade, ficará a serviço dos novos usos atribuídos no século XIX. Decerto, os bulevares cumpriam uma dupla função: "dar vazão aos fluxos mais intensos de tráfego através da cidade e servir de principais ruas de comércio e negócios" (Berman, 2003, p. 180).

Napoleão e Haussmann conceberam as novas vias e artérias como um sistema circulatório urbano ..., que permitiam ao tráfego fluir pelo centro da cidade e mover-se em linha reta, de um extremo ao outro ... Além disso, eles eliminariam as habitações miseráveis e abririam 'espaços livres' em meio a camadas de escuridão e apertado congestionamento. Estimulariam uma tremenda expansão de negócios locais, em todos os níveis, e ajudariam a custear imensas demolições municipais, indenizações e novas construções. Pacificariam as massas, empregando dezenas de milhares de trabalhadores ... em obras públicas de longo prazo ... Por fim, criariam longos e largos corredores através dos quais as tropas de artilharia poderiam mover-se eficazmente contra futuras barricadas e insurreições populares. (Berman, 2003, p. 171)

Assim, compreendemos que o novo desenho urbano tanto ensejou a circulação das massas de maneira ordenada quanto se apresentou como entrave aos grupos ameaçadores dessa ordem, surgidos na Revolução Francesa. Esse modelo de circulação incessante que em um momento permitiu a experiência do indivíduo na multidão agitada, promete agora - através do esquadrinhamento dos espaços, da retidão e da retirada daquilo que pudesse "sujar" a nova paisagem - a vivência da individualidade.

O movimento e o traçado das ruas, os pubs e cafés, as novas arquiteturas, os meios de transporte e as casas burguesas falavam ao indivíduo que ele estava protegido por espaços que lhe ofereciam tudo aquilo que ele poderia querer, tudo o que lhe seria necessário nos novos tempos. E isso era possível porque propiciavam a experiência da interioridade. Sennett, ao Analisar o advento do individualismo urbano nas cenas da reconstrução de Paris e de Londres, apresenta o conforto oferecido pela facilidade e rapidez de locomoção nas ruas das cidades modernas, seja pelos seus novos traçados, ou pelos meios de transporte como o trem e o metrô. Mas ele ainda nos chama a atenção de que essa facilidade de movimento transformou-se aos poucos em uma experiência de descanso e passividade: "O corpo em movimento, desfrutando de cada vez mais comodidade, viaja sozinho e em silêncio" (Sennett, 1994, p. 273). Com a alteração das técnicas de estofamento que se aliavam a uma preocupação com a necessidade de relaxamento do trabalhador fatigado, as poltronas das casas e escritórios propiciaram uma outra postura. Os transportes que levavam vários passageiros, como o vagão ferroviário ou os grandes coches puxados a cavalo, provocavam embaraço às pessoas, pois, com o surgimento dos transportes de massa, os viajantes eram obrigados a sentarem-se juntos durante longo tempo; com a disposição dos assentos um de frente para os outros, encaravam-se em silêncio. No entanto, a comodidade dos novos assentos também permitia que os passageiros desfrutassem da leitura e nela se refugiassem: "o silêncio passou a resguardar a privacidade. Mesmo nas ruas os transeuntes tornaram-se ciosos do direito de não sofrer a interpelação de estranhos; a conversa de um desconhecido foi encarada como uma violação" (Sennett, 1994, p. 277). Assim, um outro modelo de vagão sem cabinas foi adotado, cujas poltronas voltavam-se em único sentido. As paisagens, a leitura e as costas dos outros passageiros eram "escudos" para uma viagem sem maiores perturbações:

Atravessando distâncias imensas - pelos padrões europeus - e não obstante a inexistência de barreiras físicas, os visitantes do Velho Mundo sentiam-se intrigados com o fato de que se pudesse cruzar um continente inteiro sem dirigir palavras a quem quer que fosse. (Sennett, 1994, p. 277)

E o que mais o indivíduo burguês que estava sendo gestado como um sujeito impermeável, ou seja, autônomo, dotado de racionalidade e sensibilidade privatizadas, iria necessitar? Dentro de si havia um infinito de possibilidades, uma profundidade ao mesmo tempo lírica e perigosa. Este perigo poderia parecer uma contradição no que se refere à proteção e bem-estar prometidos ao indivíduo na busca de sua interioridade, não fosse pelo fato de que é exatamente pela introspecção, pela experiência do isolamento em si - conforme sugere o pensamento romântico de Jean-Jacques Rousseau - ou por um olhar estratégico de observador que se torna possível conhecerse, e conhecer a natureza humana. Assim, distanciar significava proteger-se do mistério oculto dos outros, do estranho, ou da estranheza do desmanchar dos sólidos - sejam eles os muros das antigas cidades medievais, as certezas de uma época e tradições implodidas pela força do progresso, ou mesmo a efemeridade do novo. Mais ainda, era a resposta dada ao medo da despersonalização, um perigo às potencialidades individuais.

De casa à fábrica, do mercado ao parque, de uma estação à outra, de um café ao teatro - os percursos constituíam-se como travessias solitárias (mesmo em meio à multidão), trajetos lineares, espaços a serem ultrapassados compostos por opacas imagens. A opacidade nos fala que os possíveis se encerram naquilo que pode ser percebido em sua funcionalidade, em sua retidão e contornos milimetricamente calculados para um uso correto, para um determinado contorno da experiência.

Perguntamo-nos: podem os estudos das articulações entre os processos de produção de subjetividades e dos espaços urbanos produzir outras visibilidades para os estudos da subjetividade?

Invisibilidades: enfrentamentos às políticas da inexorabilidade

No romance As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino (2003), Marco Polo, ao narrar suas incansáveis viagens pelo grande império de Kublai Khan, faz surgir de uma única cidade - Veneza - infinitas outras cidades. Trata-se de cidades com nomes de mulher, cidades desconhecidas e distantes, nas quais o viajante se perdia. E quando nelas se perdia, dizia ele, aí podia conhecer aquelas que havia atravessado anteriormente. Assim, a narrativa de Marco Polo, ao contar cidades que se entrelaçavam pela lembrança, despertava em Khan o fascínio, mas também a desconfiança - as viagens do explorador se dariam apenas no passado? Seus avanços seriam sempre dados com a cabeça voltada para trás? Seriam cidades apenas imaginadas, fabuladas? Eis que Marco Polo empenha-se em responder:

aquilo que ele procurava estava diante de si, e, mesmo que se tratasse do passado, era um passado que mudava à medida que ele prosseguia a sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, não o passado recente ao qual cada dia que passa acrescenta um dia, mas um passado mais remoto. Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir; a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos. (Calvino, 2003, p. 30)

Não se aposta, portanto, na hipótese de que Marco Polo esteja criando cidades imaginárias; o que salta das palavras desse personagem são cidades invisíveis. O que delas podemos apreender, portanto, não é um caráter fabulatório, mas seu caráter virtual. Isto é, a invisibilidade aponta para uma não inexorabilidade daquilo que existe - o viajante depara-se com aquilo que não é, mas que poderia ter sido. Dos lugares estranhos, dos avessos, ou, segundo Marco Polo, dos lugares como "espelhos em negativo", narrador e ouvinte são convidados a percorrer cidades que apontam para outras cidades nelas mesmas. "As descrições das cidades por Marco Polo tinham esse dom: era possível percorrê-las com o pensamento, era possível se perder, para tomar ar fresco ou ir embora rapidamente" (Calvino, 2003, p. 43). Errância, que longe de ressaltar a fruição das aventuras de um eu ou de um sujeito hermeneuta nas viagens do pensamento, coloca em questão as verdades dos mapas, lemes do percurso ou o próprio sujeito. Nas cidades invisíveis, nada estaria concluído nem pelas utopias ou pela barbárie das cidades. Ítalo Calvino, através do diálogo dos seus personagens, apresenta-nos políticas da narração: a tensão entre a veracidade do modelo e o inacabamento do perder-se.

Desse modo, pela narrativa, os desdobramentos de uma cidade em muitas indicam a compreensão de que no finito (em uma cidade apenas, em uma rua, em um objeto...) possa se dar o infinito. O que, é importante que se diga, é radicalmente diverso do pensamento romântico que credita um oceano no interior do indivíduo. Pois, como se pode compreender, o que está em questão não é o autorreconhecimento, não se trata de um mergulho em si mesmo - o percurso não é para dentro do indivíduo, tampouco para fora dele, conservando seus contornos.

Se em um momento vimos que a cidade ideal, em uma perspectiva racionalista, seria aquela que não permite ao indivíduo se perder, mas a todo tempo encontrar-se (no amplo entendimento do que seja isso), aqui nos deparamos com cidades que parecem transfigurar este eu soberano. Não porque as cidades narradas por Marco Polo fossem irracionais, mas porque elas não eram opacas; provocavam o olhar a fragmentar os sólidos, o absoluto.

Zoé, uma dessas cidades, é apresentada ao imperador da seguinte forma:

Quem viaja sem saber o que esperar da cidade que encontrará ao final do caminho, pergunta-se como será o palácio real, a caserna, o moinho, o teatro, o bazar. Em cada cidade do império, os edifícios são diferentes e dispostos de maneiras diversas; mas assim que o estrangeiro chega à cidade desconhecida lança o olhar em meio às cúpulas de pagode e clarabóias e celeiros, seguindo o traçado de canais, hortos, depósitos de lixo, logo distingue quais são os palácios dos príncipes, quais são os templos dos grandes sacerdotes, a taberna, a prisão, a zona. Assim - dizem alguns - confirma-se a hipótese de que cada pessoa tem em mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras e sem forma, preenchida pelas cidades particulares. Não é o que acontece em Zoé. Em todos os pontos da cidade, alternadamente, pode-se dormir, fabricar ferramentas, cozinhar, acumular moedas de ouro, despir-se, reinar, vender, consultar oráculos. Qualquer teto em forma de pirâmide pode abrigar tanto o lazareto dos leprosos quanto as termas das odaliscas. O viajante anda de um lado para outro e enche-se de dúvidas: incapaz de distinguir os pontos da cidade, os pontos que ele conserva distintos na mente se confundem. (Calvino, 2003, p. 36)

Compreendendo o que venha a ser a invisibilidade, decerto não leremos a peculiaridade de Zoé como uma apologia à desordem - mais uma vez, não se trata de uma dualidade entre racionalidade e irracionalidade. As múltiplas possibilidades de habitar, de usar e transitar nessa cidade nos falam que a cidade não se esgota em sua visibilidade, no esperado, nos discursos sobre ela, nem em uma ordem que se apresenta como única possível e, portanto, necessária. Marco Polo nos apresenta:

cidades que flutuam entre duas tendências confrontadas cotidianamente, [o que lhes confere] dois rostos. Um aparente, visível, de mecanismo funcional e funcionante, que tenta organizar o ritmo da vida de seus habitantes; o outro é o rosto da crise que rechaça o modelo urbano funcional. Duas realidades em fricção desestabilizadora que se enfrentam e põem em questão o ordenamento espacial da grande cidade. (Gomes, 1994, p. 54)

Assim sendo, podemos dizer que outras intensidades habitavam Veneza; outros funcionamentos teciam a Paris de Haussmann; e mais, é possível contar outras histórias nas cidades contemporâneas. Desde que o olhar não se constitua apenas de paisagens assépticas, desde que o percurso não seja mera fruição, as cidades podem agir sobre nossas questões, conforme indicam as seguintes palavras de Marco Polo: "de uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta maravilhas, mas a resposta que dá as nossas perguntas" (Gomes, 1994, p.46).

Indagamo-nos: que perguntas fazia-se Kublai Khan ao conhecer as cidades de seu império?

As cidades narradas eram feitas de fragmentos de uma única cidade, seus novos sentidos surgiam a cada vez que eles eram montados e remontados e nunca pareciam definitivos; por sua fragmentação e não totalização, perturbavam a escuta geometrizante do imperador. Khan perguntava ao marinheiro se, quando conhecesse cada detalhe, cada significado das cidades narradas, ele possuiria totalmente seu império. E Marco Polo lhe respondia: "Não creio: nesse dia, Vossa Alteza será um emblema entre outros emblemas" (Calvino, 2003, p. 28). Assim, "decifrar a cidade é cifrá-la novamente, é reconstruí-la com cacos, fragmentos, rasuras, vazios, jamais restaurando-a na íntegra" (Gomes, 1994, p. 37). As palavras do navegador veneziano traziam inquietantes cidades que se apresentavam como espaços insubmissos a uma forma catalogável, densos de contradições, estruturalmente inexatos, ou, na definição de Ítalo Calvino, traziam a cidade como lugar onde todo o possível é convocado (Calvino, 2003).

Dessa forma, dos encontros entre o explorador regresso de suas viagens e o imperador paradoxalmente embebido pelas histórias e sedento por esquadrinhar cada pedacinho de seu território conquistado, começase a compreender, pouco a pouco, aquilo que afirmam as cidades invisíveis e o que elas enfrentam.

Porosidades: afirmações do precioso

Em "Imagens do Pensamento" (Benjamin, 1987), Walter Benjamin apresenta a partir da cidade italiana de Nápoles um tempo de cesura, de interrupção de uma certa ordem que segmenta os corpos, tempos e espaços, que os dota de certezas inquestionáveis. Esse rompimento se torna possível através da força do percorrer histórias que se tornam porosas, que se interpenetram, legando-nos o vigor da invisibilidade. Em Nápoles, "construções e ações se entrelaçam uma à outra em pátios, arcadas e escadas. Em todos os lugares se preservam espaços capazes de se tornar cenário de novas e inéditas constelações de eventos" (Benjamin, 1987, p. 147). A porosidade nos dá a ideia de incompletude, de um inacabamento constitutivo, a partir do qual nenhum traçado das ruas, ou das sensibilidades na cidade de Nápoles aparecem como destinados a todo sempre, ao contrário, arriscam-se em uma paixão pela improvisação.

Benjamin não apresenta Nápoles como um ideal, como um novo modelo urbano; radicalmente oposto a isso, ele evoca a imagem de um tempo desestabilizador e de um espaço poroso. Assim também devemos entender que o termo "imagem" (em "Imagem do Pensamento") não é aqui usado como sinônimo de ilustração, de representação, mas como força possível de produzir estranhamento a modelos universais de se pensar as cidades ou o sujeito.

Vejamos como Benjamin apresenta a vida doméstica de Nápoles:

a casa é muito menos o asilo, no qual pessoas ingressam, do que o reservatório, do qual efluem. Não apenas de portas irrompe a vida. Não apenas para os átrios, onde, sentadas em cadeiras, as pessoas executam seus afazeres (pois tem a faculdade de transformar o corpo em mesa). Lides domésticas pendem das sacadas como plantas em vasos. Das janelas dos andares mais altos vêm cestas em cordas para correio, frutas e couve. Do mesmo modo como o quarto retorna à rua como cadeiras, fogão e altar, a rua peregrina quarto adentro, só que com muito mais rumor. Mesmo o mais pobre dos quartos está tão repleto de velas, santos de argila, tufos de fotografia na parede e beliches de ferro, quantoo está a rua de carretas, gente e luzes. ...

Como seria possível dormir em tais aposentos? Sem dúvida neles existem tantas camas quantas o espaço permita. ... Este sono [no entanto] não é o sono dos nórdicos. Aqui também há uma interpenetração do dia e da noite, do ruído e do silêncio, da luz de fora e da escuridão de dentro, da rua e do lar. (Benjamin, 1987, p. 153)

Os atravessamentos dos tempos e espaços, usos e sentidos na cidade de Nápoles impedem que se cunhe o definitivo; as inúmeras camadas, diferentes vitalidades que compõem seu cotidiano indicam a impossibilidade de se dizer definitivamente: "desta maneira, e não de outra". Das experimentações cotidianas inventam-se novos sabores, texturas e aromas que percorrerão suas ruas. Assim também a decoração dessas ruas possui estreito parentesco com a do teatro, afirmando a fragilidade e a finitude daquilo que há, mas acima de tudo sua plasticidade e possibilidade de se profanar o sagrado como território asséptico. Notemos que, em sua significação mais corrente, profanar significa fazer mau uso, macular ou sujar aquilo que é puro, sagrado e eterno. O sentido que aqui trazemos do termo talvez não se distancie totalmente desse, comumente utilizado; sim, pois profanar é sujar. Entretanto, não se trata de fazer uso incorreto, ou ainda, não se refere a uma afronta à religiosidade; profAnar é permitir que as histórias narradas sejam "sujas de mundo" (Baptista, 2005), marcadas por aquilo que acontece - sob o entendimento de que acontecimento é irrupção, jogo tenso das forças que apontam para incompletude como sinal de desligamento de qualquer eternidade ou teleologia.

E é principalmente através da provisoriedade que compreendemos tal desligamento ou enfrentamento:

Alguém se ajoelha no asfalto, ao seu lado uma caixinha, e a rua é uma das mais animadas. Com giz colorido desenha na pedra um Cristo, mais ou menos em baixo da cabeça da Madona. Entrementes, um círculo se fechou a sua volta; o artista se ergue, e, enquanto espera ao lado de sua obra durante quinze, trinta minutos, da roda caem escassas moedas contadas por sobre a cabeça, o tronco e os membros de sua figura. Até que ele as recolha, todos se dispersam, e, em poucos instantes, o desenho está pisoteado. (Benjamin, 1987, p. 149)

As narrativas - trazidas pelos riscos e borrões de giz no chão, pelas cestas que atravessam de casa a casa levando cartas e frutas, pelas brigas domésticas que pendem das janelas, pelas inúmeras camadas de histórias - enfrentam cotidianamente a assepsia das cidades "cartões-postais", que fazem crer que nelas nada está acontecendo, isto é, essas narrativas enfrentam a construção de um espaço uníssono, aplainado e geometrizado. Em Nápoles "ninguém se orienta pela numeração das casas. São lojas, fontes e igrejas que dão os pontos de referência" (Benjamin, 1987, p. 148); são seus traçados e arquiteturas que podem orientar, já que são esses que contam as vivas histórias da cidade.

Diferentemente do que possa parecer em uma leitura apressada, a imagem de Nápoles não evoca uma apologia à novidade; o que está em questão é, na verdade, este jogo vivo das histórias, dos acontecimentos. O elogio ao novo - não nos esqueçamos - é um dos grandes lemas do capitalismo, no qual aquilo que passou pode ser esquecido, torna-se lixo, e que por fim serve para dar não somente espaço para o novo, mas também para lhe conferir maior brilho.

Uma das cidades mais curiosas narradas no livro As Cidades Invisíveis de Calvino nos remete a essa questão. A cidade de Leônia vive do refazer-se diário, do contínuo frescor dos lençóis novos, dos sabonetes recém-tirados das embalagens, dos mais avançados utensílios, das novíssimas roupas... Assim, sua riqueza

mede-se pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para dar lugar às novas. Tanto que se pergunta se a verdadeira paixão de Leônia é de fato, como dizem, o prazer das coisas novas e diferentes, e não o ato de expelir, de afastar de si, expurgar uma impureza recorrente. (Calvino, 2003, p. 109)

As imensas montanhas de lixo, ou melhor, a imundície de seu passado se amontoa ao redor da cidade e cresce a cada dia. E, quanto mais crescem essas montanhas, mais ameaçam desmoronar; para tanto, é preciso aplainá-las, é preciso impedir qualquer vestígio do passado da metrópole. Em Leônia o tempo não passa, ou, ao menos, não se sente o tempo passar - as coisas não envelhecem, os livros não têm cheiro, os objetos não são gastos ou reaproveitados com novos usos: caixas vazias não se tornam "porta-trecos", retalhos jamais serão roupas de boneca, folhas usadas não terão seus avessos como rascunho, porque simplesmente eles deixam de existir. Assim como nessa cidade semprenova, os habitantes da utopia racional do século XX que inventa cidades pretensamente neutras também não conseguem catar os cacos das histórias cotidianas, porque elas foram apenas pontes para se avançar mais alguns passos na conquista de um ideal.

Dessa forma, a história de Leônia é a história do homem contemporâneo fixado em um presente eterno, que vive de um aqui e agora, no qual tudo fica obsoleto frente à promessa de uma felicidade plena e atemporal acessível no usufruto do novo. Nesses moldes, o novo inscreve-se como negação do passado decretando-lhe o status de superado, de esgotado, de onde não se pode mais tirar qualquer proveito ou força. Eis a ironia de uma sociedade onde o que se promete são apenas ganhos, ou seja, o estado de completude oferecido a um indivíduo fixado no presente, fixado em si mesmo. Pois sua liberdade é regida por uma lógica do consumo das mais diferentes sensações; no entanto, sob o peso de sua carência, não pode recusar aquilo que é, não pode ultrapassar os desígnios do atual. Mais ainda, aquilo que lhe é oferecido para ser vivido sob o imperativo do presente está, ironicamente, sempre apontando para o futuro. Abundância e escassez atrelam este consumidor de novas subjetividades ao desprezo da inconclusividade da história. Objetos, modos de existência, desejos farão parte do lixo urbano no qual as coisas fenecem antes de morrer ou viver. Para os limites das cidades visíveis as formas de objetos ou das almas desprezam o desenho intempestivo do tempo.

Da Nápoles de Benjamin à Veneza de Marco Polo, da porosidade das cidades às cidades invisíveis, o que tem direcionado este percurso são duas questões fundamentais: o que essas cidades-imagem afirmam, e o que elas enfrentam? E é no sentido de conferir maior tensão a essas questões que trazemos uma outra compreensão da vida domiciliar apresentada no século XVIII, mas, extremamente viva, sob novas modulações, no pensamento contemporâneo, nas interpenetrações entre as micro e macropolíticas do cotidiano.

A casa, o domicílio, é a única barreira contra o horror do caos, da noite e da origem obscura ...; opõe-se à evasão, à perda, à ausência, pois organiza sua ordem interna, sua civilidade, sua paixão ... A identidade do homem é portanto domiciliar; eis porque o revolucionário, aquele que não possui nem eira nem beira, e, portanto, nem fé, nem lei, condensa em si toda a angústia da vagabundagem ... O homem de lugar nenhum é um criminoso em potencial (Kant, citado por Perrot, 1991, p. 307)

A morada é o lugar de onde a "alma burguesa" não sai, ou não se deve sair, assim como tudo que está fora dela deve permanecer fora ou, ao menos, não deve bagunçar sua ordem. Mesmo no movimento, no transitar pelas ruas, o indivíduo deve fixar-se para não se perder, para não se esquecer quem de fato ele é. O espaço doméstico - como um refúgio aveludado onde se encontram as marcas da individualidade, vestígios que preenchem cada canto; ou como um diário trancado no qual se escrevem as histórias que realmente interessam: histórias de si mesmo - oferece à existência repouso e eternidade.

A impermeabilidade trazida pelas palavras de Immanuel Kant não nos falam de um sujeito que nada percebe, sobre o qual nada se abate - ao contrário, a morada em sua impermeabilidade nos fala de um interior a ser preservado frente às coisas que ocorrem à volta, que incomodam ou mesmo que são prazerosas; fala de uma intimidade a ser resguardada, pois é ela "um eficiente valor de defesa e construção da identidade" (Baptista, 1999, p.125 ).

As subjetividades e espaços impermeáveis não são aqueles que impedem que as coisas do mundo nele penetrem, ou internalizem, mas aqueles cujo interior solidificado pelas certezas atemporais não permitem a passagem. Ou, ainda, não permitem que a experiência seja algo diferente de um acúmulo de sensações visando confortáveis ratificações de si. Pois negam que aquilo que acontece seja matéria-prima de sua tessitura - tessitura de seus corpos, inclusive da própria dimensão de interioridade, de suas razões, sensibilidades e sonhos.

Lançamos, então, a seguinte questão: como o percurso do homem de lugar nenhum pode enfrentar o homem de identidade domiciliar? Eis uma resposta possível: "o motivo pelo qual o colono teme o nômade não é tanto porque este pode destruir sua idéia [sic] de casa, sua vida, mas porque o nômade compromete sua idéia [sic] de horizonte" (Brodsky, citado por Salles, 1989, p.26).

E não seria o horizonte imagem tão distante, tão utópica, mas ao mesmo tempo tão próxima, tão própria, como nos contam os sonhos românticos, os sonhos de sucesso, plenitude e eternidade?

Assim, temos a imagem do sonhador, figura trazida por Benjamin, daquele que se distancia3 3 O termo distanciamento não se refere àquele cunhado por Bertold Brecht, cujo sentido indica o sobressalto, ou quebra da continuidade que, por sua vez, contrapõe-se à empatia. Essa noção de empatia estaria próxima do ideal burguês de fazer-se sempre em casa, aconchegado em suas emoções e hábitos. Sobre o conceito de distanciamento em Brecht, conferir Jameson (1999. das imagens e enxerga apenas paisagens imóveis, realidades em blocos: "o mar está em sua baía, liso como um espelho; bosques sobem até o cume da montanha como massas imóveis e mudas; em cima, ruínas abandonadas de castelo, como se encontram há séculos" (Benjamin, 1987, p. 266).

Reformulemos, portanto, nossa última pergunta: como o jogo das histórias, como a porosidade pode enfrentar este mundo do definitivo, das imobilidades, da sacralização do eu e da inexorabilidade das formas? Benjamin nos indica, em oposição ao pensamento do sonhador, que:

esse mar se ergue e se afunda em bilhões, mas bilhões, de ondas; que os bosques estremecem a cada novo instante desde as raízes até a última folha; que, nas pedras das ruínas dos castelos, reinam um desmoronar e um esfarelar contínuos; que no céu, antes que se formem nuvens, gases fervem em lutas invisíveis (Benjamin, 1987, p. 266).

Onde os olhos do sonhador enxergam a fixidez das certezas incólumes, a voz do narrador faz saltar a tensão de muitas histórias; onde os diários contam histórias de vida, as cidades porosas narram histórias das vidas; e onde utopias traçam os contornos de um homem que um dia algo será, a incompletude, como uma aposta ético-estético-política, fala de um homem histórico que pode se surpreender com o que há de vir, com o que acontece.

Em um texto intitulado "Espaço para o precioso", em contraste com o espaço aludido por Kant, Benjamin fala das casas nas pequenas aldeias do Sul da Espanha, através de cujas "portas abertas, em frente das quais estão recolhidas cortinas de pérolas ..., o olhar penetra os interiores" (Benjamin, 1987, p. 242). Trazendo os detalhes de suas sombras, de suas paredes brancas, caiadas anualmente, a forma despojada das cadeiras nos fundos da casa, ou o sombrero pendurado que muda de função em um piscar de olhos, Benjamin indica a existência de espaços que permitem que esses detalhes narrem histórias:

Assim podem se encontrar a rede de pesca e o tacho, remos e ânfora de barro, e cem vezes ao dia, por conta da necessidade, estarão prontos a mudar de lugar, a se reunir novamente. Todos eles são mais ou menos preciosos. E o segredo de seu valor é a sobriedade - aquela parcimônia do espaço vital no qual não ocupam apenas o local visível que ocupam, mas também os espaços sempre novos para os quais são criados. ... Mas em nossas casas bem providas não há espaço para o precioso porque não há folga para os seus serviços. (Benjamin, 1987, p. 243)

O que seria esse "precioso", e por que ele precisaria desses de espaços de folga? Os interiores dessas casas não se apresentam como redutos de suas próprias histórias fiéis a seus lugares - o precioso é a própria força da passagem, do atrevimento e da virtualidade. Por isso a dinâmica que tece seus interiores-exteriores é protagonizada por ferramentas que "não ocupam apenas o lugar visível que ocupam". Sua sobriedade - ou seja, a ausência de pretensão desses objetos de enraizarem-se em um lugar para sempre seu, sob o fardo monumental de suas utilidades e funções - permitia-lhes serem leves e sensíveis mesmo às mais banais necessidades cotidianas. Sensibilidade essa que não é comoção com a pequenez ou precariedade do que poderia ser desprezado, mas que se permite ganhar movimento, dobrar-se ou habitar outros lugares pela potência que pode ter o ínfimo. Mas como isso se torna possível? Haveria então uma "deficiência" nos móveis das casas burguesas por não perceberem tal potência?

Nossas análises nos chamam a atenção de que a crítica incisiva trazida por Benjamin ao modelo de existência burguês não quer indicar que no cotidiano da burguesia não existem outras vitalidades, de que em seus detalhes não se poderiam ver escapes a essa ordem. A crítica incide sobre uma utopia, sobre um modo que se apresenta como a via de plena realização do humano (e que tece o próprio humano). Dessa forma, trazemos estas imagens das cidades, sejam elas narradas por Marco Polo ou por Benjamin, não para apontarmos a beleza da diferença que ao longe acena aquilo que não somos, mas para fazer valer a força interpeladora de um cotidiano denso de narrativas que esfacelam a conclusividade do presente, que questionam os sonhos de completude e garantia, indicando, assim, que a vitória e o fracasso são dois impostores.

Concluindo: aberturas

Da incompletude, da porosidade e dos espaços para o precioso somos levados a um texto de Benjamin que, decerto, permeou as análises realizadas até aqui: "O caráter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; só uma atividade: despejar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte que todo ódio" (Benjamin, 1987, p. 236). Isto porque a destruição que permite não é feita em nome das ruínas, mas do espaço que elas abrem. Assim também o caráter destrutivo não almeja novos monumentos erigir, mas fazer com que os cacos, que os fragmentos narrem outras histórias - histórias abertas. Destruição que se inspira na insuportabilidade da barbárie incrustada na banalização da felicidade ou do horror.

Assim, nas imagens benjaminianas sobre a porosidade de Nápoles encontramos o convite para uma política do contemporâneo que possa interpelar um mundo sem saída. No viajante das Cidades Invisíveis, pelas imagens de Veneza, o enfrentamento ao inferno que nos fixa na falta de oxigênio fechando-nos na completude também é interpelado pelas imagens de Veneza. Para Calvino:

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço (Calvino, 2003, p. 158).

A atenção sugerida por Calvino exige-nos fôlego e o despojamento de qualquer redenção que possa nos ofertar o bálsamo da paz. Abrir espaço desaloja a subjetividade dos limites do sujeito e as cidades das bordas das suas margens. No espaço aberto, o mundo não terá a quietude do tédio e nem o lamuriento cenário das dores sem salvação. Algo precioso poderá acontecer, ou não, mas a palavra fim não encontrará alento.

Notas

Recebido em: 22/05/2009

Revisado em: 28/10/2009

Aceite final em: 25/03/2010

Ana Cabral Rodrigues é Doutoranda pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ. Mestre em Estudos da Subjetividade pela Universidade Federal Fluminense, bolsista CNPq. Endereço: Campus do Gragoatá, s/ nº, bloco O, 2º Andar, sala 218. Gragoatá. Niterói/RJ, Brasil. CEP: 24210-350. Email: anacro@gmail.com

Luis Antônio dos Santos Baptista é Doutor em Psicologia pela USP, professor titular do departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Email: baptista509@gmail.com

  • Baptista, L. A. (1999). A cidade dos sábios. Reflexões sobre a dinâmica social das grandes cidades. Rio de Janeiro: Summus editorial.
  • Baptista, L. A. (2005). Arte e subjetividade na experiência teatral: contribuições de Jurema da Pavuna. In D. Kupermann, A. Maciel, & S. Tedesco (Orgs.), Polifonias: clínica, política e criação (pp. 150-175). Rio de Janeiro: Contra Capa.
  • Benjamin, W. (1987). Obras escolhidas II - rua de mão única. São Paulo: Brasiliense.
  • Berman, M. (2003). Tudo que é sólido se desmancha no ar - a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras.
  • Calvino, I. (2003). As cidades invisíveis Rio de Janeiro: Ed. Globo.
  • Gomes, R. C. (1994). Todas as cidades, a cidade Rio de Janeiro: Rocco.
  • Jameson, F. (1999). O método Brecht Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Josephson, S. (1997). Espaços urbanos e estratégias de hierarquização. In A. Eirado et al. (Orgs.), Saúde Loucura VI (n. 6, pp. 143-154). São Paulo: Hucitec.
  • Perrot, M. (1991). Maneiras de morar. In M. Perrot (Org.), História da vida privada IV (pp. 307-324). São Paulo: Companhia das Letras.
  • Salles, J. M. & Peixoto, N. B. (Orgs.). (1989). América: depoimentos São Paulo: Companhia das Letras.
  • Sennett, R. (1994). Carne e pedra Rio de Janeiro: Record.
  • 1
    Ao redigirmos esta afirmativa, um questionamento sobre o caráter negativo atribuído ao termo "tortuoso", no que se refere ao traçado urbano, veio à tona. Perguntamo-nos: não seria pertinente pensarmos que essa tortuosidade das ruelas de um traçado ainda medieval de Paris é apenas colocada como um problema urbano no momento em que a circulação fluida - inspirada no corpo humano - é trazida como modelo de cidade ideal? Queremos, com essa questão, indicar que a necessidade de transformar o traçado urbano não se instaura a partir da tortuosidade como um problema que finalmente pôde ser resolvido através das técnicas e conhecimentos modernos, mas que, de acordo com o surgimento de novas concepções de cidade, novas necessidades e problemas são criados.
  • 2
    "O Rio de Janeiro também passou pelo mesmo tipo de experiência no início do século XX. O prefeito Pereira Passos, médico sanitarista, que presenciou a remodelação proposta por Haussmann, tomou Paris como modelo e propôs uma série de melhoramentos, com a abertura de ruas e avenidas, das quais a mais famosa foi a Avenida Rio Branco, que deveria ser margeada de ambos os lados por prédios elegantes e artísticos, segundo um padrão definido de construção." (Josephson, 1997, p. 146)
  • 3
    O termo distanciamento não se refere àquele cunhado por Bertold Brecht, cujo sentido indica o sobressalto, ou quebra da continuidade que, por sua vez, contrapõe-se à empatia. Essa noção de empatia estaria próxima do ideal burguês de fazer-se sempre em casa, aconchegado em suas emoções e hábitos. Sobre o conceito de distanciamento em Brecht, conferir Jameson (1999.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Revisado
      28 Out 2009
    • Recebido
      22 Maio 2009
    • Aceito
      25 Mar 2010
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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