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ENTREVISTA

Margaret LockI

Tradução de Luciana Vieira CalimanII; Rogério Gomes de AlmeidaIII

IMcGill University, Montreal, Canada

IIUniversidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil

IIIFUCAPE Business School, Vitória, Brasil

Durante o ano de 2007, a Canadian Broadcasting Corporation - CBC -, como parte do programa IDEAS, realizou uma série de 24 entrevistas, apresentadas por Paul Kennedy, com o intuito de refletir sobre uma questão intrigante: "How to Think About Science?" (como pensar a ciência), nome dado ao programa1 1 As entrevistas duram cerca de 40 minutos e podem ser ouvidas na íntegra no site http://www.cbc.ca/ideas/features/science/index.html. . No prefácio que introduz as entrevistas, David Cayley, entrevistador e idealizador do programa, esclarece que "How to Think About Science" começou com uma intuição que dizia que tanto a prática científica quanto sua recepção pública estão vivenciando mudanças dramáticas. Para Cayley, passamos a viver em um mundo que se assemelha cada vez mais a um experimento científico não-controlável, em um momento no qual questionamos o papel da ciência como fonte de certeza, predição e controle.

Por outro lado, como afirma Cayley, a ciência, como espaço de produção de conhecimento, tem sido cada vez mais desmistificada. As sociedades modernas acreditavam que a ciência era a forma mais verdadeira e legítima de conhecer, ordenar e controlar o mundo. Todas as coisas tornaram-se objeto da ciência, mas a ciência em si mesma escapou ao estudo científico. No entanto, nos últimos anos, esse panorama tem passado por grandes transformações. Uma nova área acadêmica denominada Science Studies que, desde a década de 70, reúne antropólogos, historiadores, sociólogos, filósofos e cientistas, tem se dedicado ao estudo das formas através das quais o conhecimento científico é produzido e institucionalizado.

As entrevistas realizadas por Cayley oferecem uma introdução fascinante sobre como a ciência tem sido repensada em nossos tempos, no âmbito dos Science Studies, pelos pesquisadores mais renomados dessa área de estudos. Dentre eles estão autores que, também no Brasil, têm sido importantes para repensar a psicologia e áreas afins, como a medicina e a psiquiatria.

Das 24 entrevistas realizadas, quatro foram traduzidas e serão publicadas na Revista Psicologia & Sociedade. Os autores Ian Hacking, Margaret Lock, Allan Young e Richard Lewontin foram escolhidos devido a sua importância internacional no campo dos Science Studies; pelas temáticas das entrevistas que são de interesse particular para a área da psicologia, da psiquiatria e das biomedicinas; e pela repercussão que os estudos de tais pensadores possuem no Brasil, influenciando o trabalho de muitos pesquisadores.

A entrevista a seguir, com Margaret Lock, é a terceira da série. Lock é antropóloga da medicina, professora do Departamento de Estudos Sociais da Medicina e do Departamento de Antropologia da Universidade de McGill, em Montreal. Internacionalmente reconhecida como uma das mais importantes antropólogas da medicina de sua geração, Lock passou 30 anos de sua carreira construindo pontes entre a medicina e as ciências sociais. Grande parte de seu trabalho destaca as relações entre o corpo, a cultura e a inovação tecnológica, na saúde e na doença.

Em dois números anteriores da Revista Psicologia & Sociedade, publicamos as entrevista de Allan Young e Ian Hacking. Young é professor de Antropologia no Departamento de Estudos Sociais da Medicina da Universidade de McGill, e seu trabalho concentra-se na etnografia da psiquiatria e especialmente na valorização de novos diagnósticos e tecnologias terapêuticas, em especial no estudo do Transtorno do Estresse Pós-Traumático - TEPT. Hacking é filósofo da ciência canadense e professor emérito da Universidade de Toronto e do College de France, autor de inúmeros livros e artigos e considerado um dos filósofos da ciência mais importantes de nossos tempos. Seu trabalho inicial sobre a emergência do pensamento probabilístico e estatístico no ocidente tornou-se referência para todos os estudiosos da sociedade do risco.

No próximo número da revista, teremos a entrevista de Richard Lewontin, o quarto entrevistado da série, que é professor de biologia em Harvard, biólogo evolucionista, geneticista e comentador social. Seu trabalho se contrapõe fortemente ao determinismo genético. No Brasil, encontramos traduzido o seu famoso livro A Tripla Hélice.

Assim, é com grande satisfação que agradecemos o apoio dado pela Revista Psicologia & Sociedade para publicação das quatro entrevistas.

Uma boa leitura a todos!

Entrevista com Margaret Lock2 2 © Transcrito de programa originalmente veiculado em rádio, na série IDEAS, adquirido pela Canadian Broadcasting Corporation. Agradecemos a Mark Thompson pelo auxílio na tradução das entrevistas.

Paul Kennedy

Em 1993, a antropóloga da medicina Margaret Lock publicou Enconters with Aging: Mythologies of Menopause in Japan and North America. O livro explora as diferenças dramáticas nas formas que as mulheres vivenciam a menopausa em cada país. Tais variações são usualmente vistas como meramente culturais, mas, em seu livro, Margaret Lock faz uma sugestão surpreendente. A autora propõe que elas sejam diferenças biológicas. A cultura não é apenas uma interpretação da biologia, diz Lock, ela também molda a biologia. Margaret Lock é professora do departamento de estudos sociais de medicina em McGill, e nossa convidada hoje em Ideas. Você irá conhecer suas reflexões atuais sobre o que ela chama de biologias locais. Iniciamos com a discussão de outro livro inovador e original chamado Twice dead: Organ Transplant and the reinvention of Death.

David Cayley

Margaret Lock trabalha em uma área nova para o nosso tempo - na intercessão entre natureza e cultura. As sociedades modernas, até recentemente, tentavam manter tais categorias separadas. Obviamente, todos os artefatos humanos misturam natureza e cultura de alguma forma - isso tem sido verdade desde que nossos ancestrais pintaram as paredes de suas cavernas - mas as duas ainda podiam ser distinguidas. Tal fronteira não se sustenta mais. Seres humanos produzem hoje o seu próprio clima, alteram livremente a constituição genética de plantas e animais, saturam o ar com vozes invisíveis. Qual é natureza e qual é cultura? A proporção na qual elas estão misturadas não pode mais ser classificada. Estamos rodeados pelo que o filosofo francês Bruno Latour denomina de híbridos. Neles, natureza e cultura, biologia e política estão unidas - o buraco na camada de ozônio, ratos de laboratório geneticamente modificados, o bebê de proveta. Margaret Lock se interessa em pesquisar como as pessoas vivem nesta natureza recriada e híbrida. Eu seu livro Twice Dead: Organ Transplant and the Reinvention of Death, publicado em 2002, Lock estuda as diferentes formas através das quais a cultura japonesa e a cultura ocidental responderam a uma nova forma de morte -que hoje corriqueiramente chamamos de morte cerebral - e a remoção de órgãos de corpos aparentemente vivos que foram declarados mortos cerebralmente. Essa nova realidade foi aceita no ocidente com relativa facilidade, mas no Japão, onde Lock realizou suas pesquisas ao longo dos anos, isso criou escândalo e rejeição. Nós falamos sobre o seu livro Twice Dead quando a entrevistei em sua casa em Montreal, e ela me contou que por trás da redefinição da morte reside uma tecnologia médica: o respirador mecânico.

Margaret Lock

O ventilador ou respirador mecânico começou a ser utilizado na primeira metade do século XX, mas se tornou amplamente difundido com a epidemia de pólio, porque as pessoas que haviam contraído a doença normalmente precisavam de auxílio para respirar. Os primeiros respiradores eram máquinas grandes, pouco eficientes e muito diferentes daqueles que vemos hoje em dia nos hospitais.

David Cayley

Falava-se de "pulmão de ferro". Esse era um modelo anterior?

Margaret Lock

Sim, esse foi um dos primeiros respiradores, e eles começaram a ser amplamente produzidos e utilizados em centros médicos de emergência, hoje chamados de unidade de tratamento intensivo, para todos aqueles que, por uma razão ou outra, tinham dificuldade em respirar. Tornou-se claro que certas pessoas estavam morrendo ou pelo menos entrando em um estado irreversível de perda da consciência quando usavam os respiradores, e havia uma preocupação a respeito de quando você poderia chamá-las de mortas o suficiente para remover o respirador. Quando é que você pode desligar da tomada essas pessoas que estavam entre a vida e morte? Elas ocupavam muito espaço nas UTIs, e as pessoas estavam perdidas, sem saber como lidar com esse problema. Assim, foi acordado que haveria uma condição inicialmente chamada de perda irreversível da consciência, que seria reconhecida como a condição que, depois de ser diagnosticada, permitiria a remoção do respirador.

David Cayley

Os avanços na tecnologia do respirador mecânico, que criaram este novo tipo de mortos vivos, coincidiram, durante os anos 60, com o primeiro transplante de órgãos internos bem-sucedido. No final de 1977 houve uma ampla cobertura jornalística quando um médico sul-africano, chamado Christian Barnard, realizou o primeiro transplante de coração. Medicamentos que poderiam suprimir a reação corporal a tecidos estranhos tornaram-se disponíveis logo em seguida. O palco estava montado para a realização de um sonho médico antigo, mas havia um problema: órgãos vivos só poderiam ser obtidos de corpos vivos. A solução foi redefinir as pessoas em coma irreversível, que estavam sendo mantidas vivas nos respiradores, como mortas. Morte Cerebral. E foi esta nova categoria, diz Margaret Lock, que os japoneses acharam difícil de engolir.

Margaret Lock

Você precisa concordar que essa pessoa híbrida, que não é mais uma pessoa, está ao mesmo tempo viva e morta. Isto foi aceito na América do Norte e praticamente em toda a Europa, e essas pessoas podiam ser vistas como mortas, elas não existiam mais. Dessa forma, você podia "comercializar" esse corpo. Você podia, obviamente com permissão, retirar órgãos dele.

No Japão, por muitos anos, não foi possível chegar a essa conclusão. E, ainda hoje, para muitos japoneses, essa não é uma decisão confortável. Muitos irão concordar que essa condição é sem dúvida irreversível, mas, para eles, alguém deitado respirando com um ventilador e com o corpo quente - a pele está com a temperatura de alguém vivo, a pessoa está rosada, parecendo viva -, para muitos, isso não pode ser considerado o fim da vida humana. Para eles, você deveria esperar, esperar até ter uma evidência de que não haverá recuperação, uma evidência que satisfaça todos os membros da família. Isso frequentemente acontece - não sempre, mas frequentemente - quatro, cinco ou seis dias após o diagnóstico de morte cerebral. Nesse momento, os órgãos não estarão mais aptos para transplante, talvez um rim, mas certamente nada mais.

Esse debate aconteceu no Japão de 1960 até 1997, e se tornou o maior problema ético do país - muito maior do que algo como o aborto, que nunca foi uma grande questão ética por lá. A Associação Legal se opôs ao reconhecimento de morte cerebral. Eles estavam seguros de que haveria todos os tipos de casos jurídicos e problemas com relação ao seu reconhecimento. Eles também tendiam a competir com a profissão médica em muitos assuntos. Todos reconhecem que a família japonesa, mesmo com o avanço da medicina e com os grandes hospitais, tende a tomar a decisão final a respeito de quando a morte acontece, ao invés do médico. O médico irá convocar e explicar, mas depois deixará a família chegar a uma conclusão entre eles. Assim, eles têm uma pressão muito menor dos operadores das UTIs no Japão do que teriam aqui, e eles também perguntariam a respeito da doação de órgãos apenas de forma hesitante.

Existe, além disso, uma tradição de longa data no Japão que considera a vida como sendo difundida por todo o corpo - esse não é um país onde as ideias cartesianas estão muito sedimentadas. O centro do corpo não reside no cérebro, como muitos de nós acreditamos hoje. Isso torna, para muitas pessoas, contraintuitivo pensar que não há mais pessoa existindo depois do diagnóstico de morte cerebral.

David Cayley

Morte cerebral e doação de órgãos são instâncias de surpreendente novidade, criadas pela tecnociência. A condição humana é colocada sob permanente redefinição. As pessoas sabiam, sempre e em todos os lugares, como reconhecer e responder à morte. Mas agora a morte perdeu as suas fronteiras definidas e precisa ser certificada e declarada legalmente por especialistas. As fronteiras do corpo se tornaram também mais incertas. Nesse processo, Margaret Lock afirma, são criadas realidades sociais e espirituais completamente novas.

Margaret Lock

Receber um novo órgão é uma experiência transformadora. Você tem consciência que, no caso de um doador morto, a generosidade de um desconhecido salvou a sua vida. Algumas pessoas aceitam isso como um fato dado. Poderíamos fazer uma análise psicológica da situação afirmando que a pessoa está reprimindo os aspectos sociais da situação e seguindo em frente: "tenho o meu novo órgão e irei voltar ao trabalho". Talvez alguns ajam dessa forma, mas quando entrevistei pessoas naAmérica do Norte e no Japão percebi que para muitos as coisas não acontecem dessa forma. Eles continuam a perguntar sobre o doador, quem ele era, e que tipo de personalidade tinha. Algumas pessoas sentem que passaram a ter uma nova personalidade. Outras descobrem que começaram a gostar de comidas das quais não gostavam antes do transplante. Muitas pessoas conversam com seu novo órgão tentando fazer com que ele se sinta confortável em seu novo corpo, fazendo pequenos comentários do tipo "teremos um bom dia hoje", "isso é o que vamos fazer hoje", e assim por diante.

Existe uma quantidade enorme de animismo ligada à atividade de transplante de órgãos, embora o mundo médico normalmente não queira falar sobre isso, e na maior parte das vezes restrinja esse debate. Mas até mesmo alguns médicos têm esse sentimento. Você provavelmente leu o caso que relatei no livro sobre um cirurgião cardíaco que entrevistei. Nós estávamos conversando sobre o debate existente no momento, que dizia respeito à possibilidade de conseguir mais órgãos para transplante nos EUA, oferecendo a oportunidade a condenados à pena de morte de doarem os seus órgãos antes de serem eletrocutados. Nós pensávamos sobre essa situação com um certo horror, e, obviamente, existem muitas questões éticas sobre o sentimento de coerção que essas pessoas poderiam sentir para fazer esse tipo de coisa. Porém rapidamente fomos além, percebi que havia outras questões para ele, e perguntei o que o incomodava. Ele respondeu que não gostaria de ter o coração de um assassino em seu corpo. Em seguida ele olhou para o meu gravador, percebeu que estava sendo gravado e ficou preocupado e tentou disfarçar um pouco. Porém, ele claramente sentia que, até certo ponto, algumas coisas são transmitidas através de órgãos corporais. No seu trabalho diário ele não pensa dessa forma, mas acredito que todos nós possuímos um pouco desse sentimento místico. Ou pelo menos muitos de nós. O mundo do transplante de órgãos está completamente envolvido nesse tipo de sentimento, embora isso seja reprimido.

David Cayley

O transplante de órgãos provoca sentimentos contraditórios e poderosos, como a história de Margaret Lock sobre o cirurgião cardíaco nos mostra. Nos países ocidentais esse sentimento tem sido, como diz Lock, reprimido, abafado, enquanto no Japão essa questão continua a causar desconforto. De acordo com números mais recentes, órgãos só foram obtidos de 47 doadores com morte cerebral no ano passado no Japão. No Canadá esse número se aproxima de 2.000, e nos EUAde 25.000. Margaret Lock já comentou algumas das razões para essas diferenças: a separação menos pronunciada entre o corpo e a mente na cultura japonesa, maior autoridade da família, repulsão à tentativa de bloquear a reação natural que se tem quando o corpo de uma pessoa amada é tomado e redistribuído. Também sabemos que houve uma repulsão inicial nos países ocidentais.

Margaret Lock

Diferenças culturais são ainda extremamente importantes, o que Veena Das tem chamado de "a persistência do local" tem ainda uma importância enorme, e não é simplesmente devido ao fato das pessoas não serem sofisticadas, cultas ou não terem acesso à educação superior. É algo muito mais profundo e persistente do que isso, do qual o mundo médico também participa, querendo ou não. Muitos médicos japoneses nunca desejariam ter que "procurar" órgãos. Para eles, isso seria absolutamente contraintuitivo, mesmo se soubessem perfeitamente que pessoas iriam morrer se não conseguissem um órgão. E os japoneses têm trabalhado duro para conseguir realizar transplantes com doadores vivos. Eles foram pioneiros em transplantes de fígado com doador vivo, em que apenas uma parte do fígado é retirada e transplantada para uma criança, por exemplo. Foram pioneiros nessa área e continuam a trabalhar muito para que ela se desenvolva, porque acreditam que um doador totalmente consciente do que está fazendo seria muito mais apropriado. Enfim, esse é apenas um pequeno exemplo de como diferenças culturais persistem e penetram em tudo que fazemos.

David Cayley

O livro de Margaret Lock, Twice Dead, analisa, entre outras coisas, as resistências culturais à inovação tecnológica. Seu primeiro trabalho, também realizado no Japão, fala sobre as formas através das quais a cultura molda a natureza. Lock foi primeiramente para o Japão em 1964, acompanhando seu marido que estava treinando para as Olimpíadas de Tókio. Ele era o capitão do time de Judô de Oxford, representando a Grã-Bretanha. Com o seu interesse crescente pela cultura japonesa, a pesquisadora fez seu doutorado na área de Antropologia, estudando sobre o renascimento da medicina tradicional no Japão. Mais tarde, estimulada pela atenção que o tema de seu trabalho recebeu na América do Norte, Lock começou a pesquisar sobre como as mulheres japonesas experienciavam a menopausa. Este último estudo culminou na publicação do livro chamado Encounters with Aging: Mythologies of Menopause in Japan and North América. Uma das primeiras coisas que Lock descobriu foi que a definição ocidental mais atual de menopausa é muito limitada.

Margaret Lock

Ao longo dos anos, particularmente na Europa nos últimos 50 anos, menopausa passou a significar final da menstruação. No entanto, talvez, por ser homem, você não se lembre, as pessoas da geração da minha mãe não pensavam dessa forma. Elas falavam da menopausa como sendo uma experiência característica da meia idade que era desprazerosa e desagradável, mas não focavam tanto na menstruação em si e nos sintomas que apareciam como resultado da menopausa, mesmo que, obviamente, as pessoas experimentassem tais sintomas.

Quando fui para o Japão e comecei a falar em japonês sobre esse assunto, várias coisas aconteceram de imediato. Primeiramente, já que eu queria entrevistar mulheres que trabalhavam em uma fábrica, tinha que falar com os gerentes da fábrica. Eles eram homens. E, claro, todos riram e perguntaram por que eu queria estudar esse assunto. Eles perguntaram também por que eu estava estudando apenas mulheres. Devo ter olhado para eles um pouco surpresa. Eles disseram "homem também têm kônenki", a palavra japonesa para menopausa. E eu disse "Sério?! Eles têm?!". E eles continuaram, "sim, nós também passamos por tempos ruins na meia idade".

Obviamente, havia alguma coisa fundamentalmente diferente nesse período de transição que homens e mulheres passavam. Mas quando comecei a falar mais seriamente com as mulheres, com o objetivo de desenvolver um questionário apropriado, ficou claro que, para a maioria delas, kônenki não significava simplesmente o final da menstruação. O final da menstruação era apenas parte de um conceito muito mais amplo que se aproximava do significado europeu inicial. É parte de uma mudança da vida que também envolve modificações físicas e sintomas como problemas de visão, perda de cabelo e aparecimento de cabelos brancos, etc., todas essas coisas ou o início delas. Há um número grande de sintomas: rigidez muscular dos ombros, que é um sintoma japonês muito característico, alguns tipos especiais de dor de cabeça, formigamento nas mãos e pés, um sentimento de peso na cabeça, uma variedade de sintomas japoneses que são bem especiais. É esse tipo de coisa que as pessoas associam à kônenki. Quando eu trouxe o exemplo dos "calores" (hot flash), que todo mundo no Ocidente relaciona especificamente com o final da menstruação, percebi que não existia uma palavra em japonês específica para descrever este sintoma. Temos aqui uma língua que é extraordinariamente sensível às mudanças nos estados corporais -a tal ponto que as mulheres japonesas poderiam olhar para mim e dizer "nossa, a língua Inglesa é tão pobre", porque ela não tem esta variedade de palavras para expressar todas essas mudanças. E então, quando eu perguntava sobre os "calores", percebia que não existia uma palavra que representasse esse fenômeno de forma tão específica como há na língua inglesa. Bem, este é um grande sinal para um antropólogo: o fato desse não ser um sintoma que está incomodando a maioria das pessoas. Caso contrário, eles teriam uma palavra que de forma clara e inequívoca pudesse descrever tal estado.

Assim, quando estava construindo o questionário, percebi rapidamente que teria que usar várias palavras para descrever o que eram os "calores", pra que as pessoas pudessem realmente ler e entender. Também tive que admitir que não poderia traduzir diretamente kônenki como sendo a mesma coisa que menopausa. Outra coisa que descobrimos no início, quando as pessoas estavam respondendo o questionário, foi que muitas mulheres - na verdade, cerca de 25% - que haviam parado de menstruar por mais de um ano disseram que elas não tinham sinal nenhum de kônenki, embora elas não estivessem menstruando. Essas eram mulheres com 50 a 55 anos. Parece estranho, mas isso também confirma o fato de elas não estarem focadas no final da menstruação. Enfim... uma experiência bem diferente.

David Cayley

Os diferentes sintomas vivenciados pelas mulheres japoneses foi uma das mais intrigantes descobertas de Margaret Lock, o que também foi confirmado pelas entrevistas com os médicos japoneses.

Margaret Lock

Se eu pedisse para que enumerassem os sintomas da kônenki, eles (os médicos) citariam rigidez muscular dos ombros, formigamento das mãos e pés, dor de cabeça. Falariam talvez de depressão e ansiedade. No final da lista, talvez, algum dissesse "bem... talvez nobose", ou uma certa experiência de calor ou quentura. Esse não seria o primeiro sintoma da lista deles e nem sudorese noturna. E essas são as duas características que nós no ocidente associamos com a menopausa: calores e sudorese noturna, o que você raramente encontra na lista de tais médicos. Esses homens são treinados, vão para congressos internacionais, leem publicações internacionais. Mesmo assim, quando pergunto sobre o que seus pacientes relatam, tais sintomas são os últimos da lista.

Esse trabalho foi realizado em 1980, e obviamente muita coisa mudou de lá pra cá. A menopausa se tornou muito mais medicalizada no Japão. Os ginecologistas japoneses costumavam ganhar muito dinheiro fazendo abortos, o que agora não é mais tão comum, porque as pessoas estão usando métodos contraceptivos com mais frequência. Muitos desses médicos quase não têm mais o que fazer. Não é o caso de quem trabalha em hospitais, mas é a realidade dos médicos que possuem clínicas particulares. Bom, eles começaram a pensar sobre como poderiam expandir sua prática e chegaram à conclusão que a menopausa era uma área na qual poderiam expandir sua atuação. Boa parte deles começou a demonstrar interesse por essa fase da vida pela primeira vez e passou a incentivar as mulheres a fazerem check-ups regulares, o que não era nada comum até aquele momento. Bom, ao longo desses anos, tem havido muito mais publicidade e divulgação na mídia sobre a menopausa. O sintoma dos calores tem recebido muito mais atenção pública, as pessoas começaram a pensar sobre isso, médicos estão falando sobre. Mas um dado muito interessante é que uma jovem antropóloga bióloga, Melissa Melby, que tem trabalhado no Japão nos últimos quatro ou cinco anos, leu meu trabalho e o replicou em uma escala menor. E ela percebeu que, embora tenha ocorrido um aumento no relato dos sintomas dos calores, esse aumento está ainda estatisticamente abaixo do nível dos relatos das mulheres canadenses e americanas. Enfim, ainda há alguma coisa muito interessante acontecendo por lá.

David Cayley

Como esta diferença pode ser explicada? A medicalização não parece ser totalmente responsável por isso, já que as diferenças persistem mesmo com seu aumento no Japão. Margaret Lock também afirma que a sintomatologia europeia característica existia mesmo antes dos médicos estarem envolvidos e interessados no fenômeno.

Margaret Lock

No ocidente, quando a profissão de ginecologista começou a surgir, quando o interesse pelas doenças femininas foi incorporado e transformado no início do século XIX, havia um ou dois médicos que se interessaram pela menopausa. O homem que inventou o termo foi um médico francês chamado G danne. Antes disso, todo mundo falava de climatério. Ele inventou o termo deliberadamente, com a intenção de transformá-lo em um assunto médico e de eliminar todos os sintomas difusos, que ele pensava não serem apropriados, e concentrar-se no final da menstruação, no que isso significava e na necessidade de monitoramente médico.

Enfim, eu não investiguei em outras línguas, mas em inglês, antes dessa época, já havia uma palavra usada entre as mulheres que era "hot blooms". Obviamente, essa era a palavra que descrevia os calores antes que o mundo médico se aproximasse dessa experiência. Em japonês, não há nenhum termo equivalente. Muitos japoneses fizeram essa pesquisa histórica para mim. Tudo isso indica que havia um interesse, uma preocupação, uma sensibilidade e uma sensitividade com relação a esse tipo de sintoma, ao menos na Inglaterra, e se poderia dizer que em muitas outras partes da Europa, na América e no Canadá, como há hoje em dia.

David Cayley

Quanto mais Margaret Lock refletia sobre as diferenças persistentes entre a experiência física de mulheres ocidentais e japonesas, mais ela se perguntava se essas não poderiam ser diferenças biológicas, e não somente culturais. Mas pensar dessa forma seria ofender uma crença central de sua comunidade profissional, e mesmo de toda ciência moderna. "Natureza", como Espinosa afirmou, "é sempre a mesma, em qualquer lugar, para qualquer um", e o corpo pertence à natureza.

Margaret Lock

É um anátema para a maioria dos antropólogos culturais apenas pensar em reconhecer diferenças biológicas. Durante os últimos cem anos, de uma maneira ou de outra, podemos dizer que existe essa coisa chamada de debate entre os traços biológicos e os que resultam de uma construção. Antropólogos culturais tendem a acreditar que existe um corpo universal, ou que seja próximo o suficiente do universal. De qualquer forma, essa não é a área para um antropólogo cultural investigar. Assim, colocamos o corpo humano em uma caixa preta, deixado para os biólogos. Nós começamos a investigar as diferenças em diferentes partes do mundo e dentro da América do Norte e da Europa e fizemos isso com base na linguagem, nas expectativas, nas ideias culturais, políticas, nas formas que os profissionais médicos fazem as coisas e nas práticas médicas alternativas. Todas essas coisas fascinam os antropólogos culturais, em particular os antropólogos médicos.

Então, para que eu pudesse dar um passo adiante e pensar a respeito de diferenças biológicas.... sabia que isso seria arriscado, e potencialmente difícil fazer com que meus colegas mais próximos aceitassem. Mas eu sentia que precisava fazer isso. Eu não fiz pesquisas somente no Japão. Conversei com mais de 100 mulheres japonesas, provavelmente quase 200, a respeito disso e também, como disse, com médicos e feministas e eu estava absolutamente convencida de que havia uma diferença realmente biológica acontecendo aqui. A diferença não era apenas na forma através da qual as coisas estavam sendo expressas. Nesse sentido, criei o conceito de "biologias locais", no qual defendo que existem variações biológicas significantes entre diferentes populações humanas.

David Cayley

Ao falar em biologias locais, Margaret Lock está indicando que há uma troca muito mais viva entre biologia e cultura do que tanto a antropologia cultural quanto a biologia evolucionária sugeriram inicialmente. Para Lock, a biologia não é uma constante universal, e sim algo ativamente moldado pelos estilos de vida.

Margaret Lock

Não somente mudanças originalmente evolucionárias exercem impacto no corpo físico, como também fatores ambientais e históricos. Hábitos alimentares, normas reprodutivas e matrimoniais etc. produzem mudanças no corpo físico, e tais mudanças são acumuladas em populações que, por sua vez, tendem a se relacionarem e se casarem. Elas não são estáticas e variam, até certo ponto, de uma parte do mundo à outra. Quando japoneses vêm viver no Havaí, nos Estados Unidos ou no Canadá então, sem dúvidas, devido a diferenças em seus comportamentos e hábitos alimentares, ocorrem mudanças importantes em seus corpos. Em outras palavras, minha hipótese fundamental, compartilhada com muitas, muitas pessoas, é que o ambiente influencia a biologia. A biologia não é uma entidade estática. Ela é móvel e mutável. Mudanças sociais e ambientais exercem um impacto profundo na biologia.

Enfim, eu acredito que todas essas questões nos ajudam a começar a pensar na biologia e na cultura como relacionadas de tal forma que se torna difícil separá-las. Não se pode somente medir as mudanças biológicas ou apenas conversar com as pessoas. Nenhuma dessas opções isoladas será satisfatória. É preciso unir e integrar tais estratégias da melhor forma possível se você deseja uma imagem mais rica e completa do que está acontecendo.

David Cayley

Essa nova visao, na qual cultura e biologia estão interligadas, tem recebido muito apoio desde que Margaret Lock decidiu desafiar a ortodoxia predominante. Estudos subsequentes na China, Índia, no sudeste Asiático e no México confirmaram a grande variação nos sintomas que Margaret Lock encontrou no seu estudo comparativo do Japão e da América do Norte. A biologia deu origem a um novo campo de estudos chamado de Epigenética, que estuda a interação de genes com o ambiente. Pesquisas nessa área, diz Margaret Lock, têm cada vez mais enfraquecido nossas ideias anteriores a respeito dos genes.

Margaret Lock

Uma grande parte da nova biologia, a nova biologia molecular, chegando pelo pipe-line, está começando a entender que a forma com a qual nós temos compreendido os genes e o seu funcionamento tem profundas limitações. Essa forma nos ajudou e forneceu muitos insights, mas tem limitações profundas. Na verdade, parece que muitas coisas que acontecem durante as nossas vidas podem, na verdade, ser transmitidas para a próxima geração. É claro que elas são transmitidas através da cultura, como as práticas alimentares, por exemplo, mas existem também - nós estamos começando a perceber -algumas coisas que podemos transmitir através da biologia.

David Cayley

As pessoas familiarizadas com a historia da biologia podem reconhecer, no que Margaret Lock está dizendo, a sombra de uma antiga heresia chamada Lamarckismo. Escrevendo em torno do final do século 19, Jean Baptiste Lamarck, apresentou a primeira teoria coerente da evolução. No entanto, ele dizia que características adquiridas poderiam ser herdadas, uma ideia que foi posteriormente rejeitada, algumas vezes violentamente, pela biologia evolutiva moderna. Afirma ainda que nossa constituição genética pode mudar apenas por acaso, com os acasos felizes proporcionando avanço na luta pela existência. A visão de Lamarck se tornou um escândalo do ponto de vista dos evolucionistas ortodoxos.

Margaret Lock

O estudo é holandês e tem a ver com o que eles chamaram de "Fome Holandesa" (Dutch famine), no final da Segunda Guerra Mundial. O país havia sido ocupado pelos nazistas e, no que diz respeito a plantações, o ano tinha sido muito ruim. Assim, naquela época, um grande número de pessoas passou por privação de comida na Holanda. Graças à admirável visão de futuro de alguém, eles tomaram notas e registraram informações sobre as mulheres grávidas daquela época e seus filhos recém-nascidos. Percebeu-se que as mulheres, futuramente, além de sucumbirem mais do que se ha-via previsto a várias doenças, apresentaram taxas mais altas de doenças cardiovasculares e outros problemas, e isso também ocorreu com seus filhos quando estes cresceram. Agora eles têm uma terceira geração, na qual os netos começam a apresentar os mesmos problemas, sinais de uma incidência muito maior dessas doenças de surgimento tardio. Os pesquisadores relacionam isso com as privações que essas mulheres grávidas passaram. Eles têm a hipótese de que certos genes não foram ativados na hora necessária, ou que os seus produtos foram produzidos em excesso para compensar a falta no ambiente, e isso afetou não apenas essas mulheres, mas foi transmitido para as próximas gerações.

Esse é o início de algumas pesquisas realmente instigantes que estão surgindo em Epigenética sobre as quais eu não sou competente o suficiente para explicar pra você, mas você percebe a ideia do que está acontecendo por aqui. Esses serão estudos epidemiológicos e de ciência básica que darão alguns lampejos em um quadro muito mais complexo e no qual precisamos prestar atenção. Em termos do ensino de genética, a primeira mudança é no sentido de reconhecer que os genes sempre precisam ser ativados. Eles precisam ser ligados. E algumas vezes eles são desligados. Além disso, focar no desenvolvimento normal e no que acontece no processo de desenvolvimento normal com relação à genética ajudaria muito mais e seria mais apropriado do que focar no tipo de genes mutantes que produzem doenças realmente pouco usuais. Obviamente, essas doenças raras causam muito sofrimento, e nós precisamos continuar a trabalhar nelas, mas isso é o que costuma acontecer na medicina. Você utiliza um exemplo patológico para ilustrar ao invés de utilizar crescimento e desenvolvimento normal como exemplo ilustrativo.

David Cayley

Margaret Lock fala aqui de genes que atuam apenas depois de terem sido primeiro, em suas palavras, ativados. Essa é uma ideia central na nova genética. Quando a palavra gene foi cunhada pelo biologista Wilhelm Johannsen em 1909, ela era apenas uma especulação. A hereditariedade precisava ter uma causa, e essa causa foi chamada de gene. Era uma versão biológica do átomo. O início irredutível que precisa estar na base de tudo mais. Até 1930 não havia consenso entre os geneticistas se os genes eram reais, ou, como um geneticista eminente disse, apenas pura ficção. Posteriormente, surgiu o modelo do DNA, o roteiro chefe no qual tudo está escrito. O determinismo genético atingiu o ponto alto. Genes eram pequenos ditadores, impermeáveis ao ambiente, dando ordens, mas nunca as aceitando. Muito pouco, ou nada, resta desse quadro hoje, como você acabou de ler. Pesquisas mais recentes mostraram que os genes são, como um dos pioneiros em biologia molecular coloca, maravilhosamente comunicativos. Eles não são pequenos ditadores e na verdade vivem em troca dinâmica com o resto da célula, dando e recebendo, algumas vezes com expressão, outras vezes não. Todas essas novas desco bertas se encaixam perfeitamente com a pesquisa da Margaret Lock e dão apoio a sua ideia de que as pessoas variam biologicamente assim como culturalmente.

O conceito da Margaret Lock de biologia local tem implicações importantes para um campo vasto e complexo da ciência biológica e da prática médica que ela chama de biomedicina. A biomedicina, na sua forma de ver, assume que seu conhecimento é válido universalmente, quando na verdade é apenas parcial. Lock defende o reconhecimento da diversidade. Corpos variam de indíviduo para indivíduo e de cultura para cultura, mas a biomedicina continua afirmando que eles são os mesmos em todos os lugares. Como resultado, a diversidade é suprimida e obscurecida.

Margaret Lock

A biomedicina universaliza. Ela assume que há um corpo universal e que os resultados dos testes clínicos que fazemos devem ser válidos e úteis em qualquer lugar, que nossas metodologias e abordagens são aplicáveis em todo canto. Essa ideia de uniformização tem sido disseminada ao redor do mundo, mesmo nos lugares onde, por causa da pobreza, os equipamentos são péssimos, os médicos não conseguem nem mesmo fazer o que eles foram treinados para fazer, etc. Mesmo nesses lugares, se começa a ver pacientes cujas ideias vêm sendo rapidamente transformadas - não profundamente pelo conhecimento biomédico, mas por uma nova forma de se compreender o corpo. O corpo é descontextualizado de seu ambiente social.

Em todos os tipos de sistemas médicos tradicionais os indivíduos são reconhecidos, acima de tudo, como fazendo parte de um meio social que exerce um impacto central na saúde, na doença e no bem-estar. No entanto, em geral, na biomedicina, o contexto social tem sido excluído, negligenciado, e o corpo em si torna-se o alvo, embora haja ainda exceções na saúde pública e em algumas partes da psiquiatria. A crença, de forma geral, é que o corpo é universal.

David Cayley

O efeito de tal crença, diz Margaret Lock, é fazer com que as pessoas ignorem sua própria experiência. O que eles sabem sobre si mesmos deixa de ser relevante para o tratamento. Assim, os pacientes perdem sua voz e aprendem a se dirigir à biomedicina da forma que ela compreende.

Margaret Lock

A história do paciente se torna irrelevante, porque tudo é definido através de medidas, imagens e padronizações. Assim, a narrativa pessoal do paciente torna-se inútil. E os pacientes, quando procuram tratamento ou ajuda por causa do HIV, ou ainda por causa de uma criança recém-nascida - todos os motivos pelos quais as pessoas procuram ajuda - começam a aprender a forma através da qual se espera que eles entendam seus corpos, reconhecendo o que está acontecendo com eles. Não se pergunta mais a respeito da sua vida social. Elas são interrogadas em detalhes sobre os seus sintomas. As pessoas aprendem como ser pacientes. Elas aprendem a relatar o que se espera que elas relatem, e aprendem o que não devem dizer. Meu colega, Vinh-Kim Nguyen, que trabalha no oeste africano, seria um dos primeiros a dizer que em partes da África as pessoas apreenderam que você não deve falar para o biomédico a respeito de coisas como bruxarias ou outras formas de problemas sociais. Essas questões são inapropriadas, mas você, com certeza, fala sobre seus sintomas e espera que esses sejam tratados.

Muitas medicinas alternativas - chinesa, japonesa, Ayurvédica e muitas "medicinas complementares", como essas são chamadas - também incorporaram esse tipo de pensamento biomédico. Elas não necessariamente aceitam a ideia de um corpo universal de forma tão uniforme, mas acreditam que o relato dos sintomas e a atenção ao que ocorre no interior do corpo são absolutamente cruciais. A dinâmica social e os determinantes sociais da saúde e da doença, como diriam os epidemiologistas, tendem a ser deixados de lado. Grande parte do trabalho dos antropólogos da medicina consiste em analisar os processos de individualização e medicalização de condições que acreditamos serem produzidas social, cultural e politicamente. Todos os aspectos sociais são descartados e abandonados quando o foco é o corpo. O Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade seria um exemplo atual desse tipo de processo. Não quero dizer com isso que não existam crianças com problemas reais, mas focar totalmente na medicação é assumir que tudo que se passa com a criança resulta de um problema corporal interno e que o que quer que aconteça no ambiente não afeta tanto o corpo.

David Cayley

Para Margaret Lock, é função dos antropólogos da medicina e de outros cientistas sociais introduzir a perspectiva social na abordagem biomédica. E, para Lock, há na medicina uma abertura maior às perspectivas das ciências sociais do que havia antigamente. O Departamento de Estudos Sociais em Medicina, do qual Lock faz parte, é um exemplo. Ele faz parte da faculdade de medicina de McGill, mas também está conectado à antropologia, história e sociologia. Para Lock, a relação mais apropriada entre as ciências médicas e sociais deve ser pautada no diálogo. O local e o universal precisam entrar em diálogo. Em sua opinião, afirmar que não existem princípios gerais seria tão ruim quanto dizer que só existem princípios gerais.

Margaret Lock

Parece-me que uma perna quebrada é uma perna quebrada e que um grande número de outras condições médicas podem ser gerenciadas com os mesmos procedimentos, não importa onde você está. Isso se aplica para traumatismos, traumatismos físicos, e algumas doenças fundamentais, mas não para todas as doenças infecciosas. Nós estamos descobrindo com o HIV e com a tuberculose que as coisas são mais complicadas do que nós pensávamos anteriormente. Sicke Cell Anemia não parece ser uma questão com apenas uma abordagem direta. Pessoas em diferentes partes da África experimentam essa condição de formas diversas e, aparentemente, têm sintomas diferentes. Existem muitas coisas interessantes que precisamos aprender e a respeito das quais não estamos procurando informações. Nós jogamos para debaixo do tapete.

Mas, tendo dito isso, obviamente existem muitas coisas para as quais a biomedicina pode ser introduzida e utilizada de forma efetiva. Não há dúvidas com relação a isso, e existem muitas situações nas quais o corpo deve ser entendido como uniforme e padrão. Antropólogos tendem a atuar na margem, trabalhar com a exceção, mas o tipo de problemas a respeito do qual estou falando são mais do que apenas exceções raras. Essa é uma área grande, que inclui todas as doenças psiquiátricas e problemas de saúde mental, muitas mudanças de ciclo de vida e condições crônicas. Nelas, você encontra grandes diferenças que são, na verdade, significativas.

David Cayley

Honrar essas diferenças, na visão da Margaret Lock, requer uma grande revisão do nosso conhecimento. A ciência terá que se preocupar menos com semelhança e regularidade e mais com variação. Velhas dicotomias entre a sociedade e a natureza, a cultura e a biologia deverão ser deixadas de lado. A antropologia cultural, diz Lock, tem tratado a diferença como uma questão da cultura apenas, deixando a natureza intocada, mas agora essas categorias foram colocadas em questão.

Margaret Lock

A história anterior foi aquela da construção cultural. O pressuposto era que as pessoas pensavam de formas diferentes a respeito de coisas muito fundamentais - a respeito do mundo, da natureza e do corpo humano - e que era importante registrar como isso se revelava. Isso é verdade. É necessário prestar atenção na construção cultural do corpo humano, mas também é preciso estar atento ao corpo biológico e reconhecer que esse corpo - que nós, antropólogos, que crescemos em um ambiente ocidental, tendemos a assumir como essencialmente universal, que é a ideologia dominante do sistema biomédico - apresenta na verdade algumas variações realmente importantes e interessantes.

Obviamente, ao menos até certo ponto, a medicina sempre considerou a existência de variações. Qualquer clínico decente sabe perfeitamente que as pessoas respondem diferentemente à medicação. Todo mundo sabe disso. Mas eles acreditam que essa seria uma variação apenas individual. No entanto, acredito ser importante considerar que, embora muitas dessas variações ocorram em um nível individual, elas também se dão em escalas maiores, em populações biológicas. Essas coisas precisam ser pensadas em conjunto. É um desafio enorme, porque, em certo sentido, é preciso sacrificar a linguagem científica ou modificá-la e utilizá-la de um modo que não esteja atado aos resultados dos testes clínicos e da medicina baseada em evidências.

Notas

Margaret Lock é antropóloga da medicina, professora do Departamento de Estudos Sociais da Medicina e do Departamento de Antropologia da Universidade de McGill, em Montreal. Endereço: 3647 Peel St., Room 103. McGill University. Montreal, Canadá. Email: margaret.lock@mcgill.ca

Luciana Vieira Caliman é professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre e doutora em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e pós-doutora em psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email: calimanluciana@gmail.com

Rogério Gomes de Almeida é físico e mestre em Física pela Universidade de Campinas e mestrando em Ciências contábeis e finanças na Faculdade FUCAPE, Vitória. Endereço: Rua Petrolino Cesar de Moraes, 210/ 25. Mata da Praia, Vitória/ES, Brasil. CEP 29066-230. Email: rogerio.morar@googlemail.com

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    As entrevistas duram cerca de 40 minutos e podem ser ouvidas na íntegra no site
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    © Transcrito de programa originalmente veiculado em rádio, na série IDEAS, adquirido pela Canadian Broadcasting Corporation. Agradecemos a Mark Thompson pelo auxílio na tradução das entrevistas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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