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Privatização, especialização e individualização: um outro mundo (acadêmico) é possível?

Privatization, especialization and individualization: is another (academic) world possible?

Resumos

Este trabalho discute a conjuntura de políticas científicas para a pós-graduação no contexto brasileiro, tendo em vista os modos de subjetivação que engendram para os pesquisadores/docentes nas universidades. Privatização, especialização e individualização parecem constituir três dimensões prevalentes dessas políticas, estabelecendo identificações e ações coletivas propensas a uma aceitação ao que está posto e a uma atitude de "reconciliação" com o sistema de desenvolvimento científico do país. A análise evoca a figura do intelectual, tal como visto por Russell Jacoby e Edward Said, como o contraponto necessário ao trabalho acadêmico atualmente engolfado pelas políticas de boa gestão. Dois aspectos são trazidos para a análise, ao final, como ilustração do argumento: a relação da pós-graduação com a graduação e a internacionalização da pós-graduação.

políticas de pós-graduação; individualização; privatização; especialização


The present work discusses the framework of scientific policies for graduate education in the Brazilian context in view of the modes of subjectivization engendered for university researchers/lecturers. Privatization, specialization and individualization seem to constitute three main dimensions of these policies establishing collective identifications and actions conducive to an acceptance of the status quo, and to an attitude of 'reconciliation' with the system of scientific development in the country. The paper evokes the place of the intellectual, as seen by Russell Jacoby and Edward Said, as a necessary counterpoint to the academic task which has become engulfed today by policies of good management. Two issues are brought forward to illustrate the argument: the relation of graduate with undergraduate courses and the internationalization of graduate education.

scientific policies; individualization; privatization; specialization


CONVITE AO DEBATE

Privatização, especialização e individualização: um outro mundo (acadêmico) é possível?* * Esta é a versão ligeiramente modificada da comunicação "Políticas Científicas e Modos de Subjetivação do Pesquisador: um outro mundo (acadêmico) é possível?", apresentada na Mesa-Redonda "Políticas Científicas", no XIII Encontro NacionaldaANPEPP,Fortaleza,6-9junho,2010. Agradeço ao CNPQ e à FAPERJ pela bolsa e auxílio, respectivamente, na elaboração deste trabalho.

Privatization, especialization and individualization: is another (academic) world possible?

Lucia Rabello de Castro

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

RESUMO

Este trabalho discute a conjuntura de políticas científicas para a pós-graduação no contexto brasileiro, tendo em vista os modos de subjetivação que engendram para os pesquisadores/docentes nas universidades. Privatização, especialização e individualização parecem constituir três dimensões prevalentes dessas políticas, estabelecendo identificações e ações coletivas propensas a uma aceitação ao que está posto e a uma atitude de "reconciliação" com o sistema de desenvolvimento científico do país. A análise evoca a figura do intelectual, tal como visto por Russell Jacoby e Edward Said, como o contraponto necessário ao trabalho acadêmico atualmente engolfado pelas políticas de boa gestão. Dois aspectos são trazidos para a análise, ao final, como ilustração do argumento: a relação da pós-graduação com a graduação e a internacionalização da pós-graduação.

Palavras-chave: políticas de pós-graduação; individualização; privatização; especialização.

ABSTRACT

The present work discusses the framework of scientific policies for graduate education in the Brazilian context in view of the modes of subjectivization engendered for university researchers/lecturers. Privatization, specialization and individualization seem to constitute three main dimensions of these policies establishing collective identifications and actions conducive to an acceptance of the status quo, and to an attitude of 'reconciliation' with the system of scientific development in the country. The paper evokes the place of the intellectual, as seen by Russell Jacoby and Edward Said, as a necessary counterpoint to the academic task which has become engulfed today by policies of good management. Two issues are brought forward to illustrate the argument: the relation of graduate with undergraduate courses and the internationalization of graduate education.

Keywords: scientific policies; individualization; privatization; specialization.

Este trabalho apresenta uma reflexão crítica no âmbito da temática das "Políticas Científicas" no Brasil, a partir de uma análise de seu impacto sobre os modos de subjetivação do pesquisador e o funcionamento dos cursos de pós-graduação. Em primeiro lugar, coloca-se a pergunta a respeito de qual lugar se pretende abordar esse assunto, já que a discussão dessa temática pode ser conduzida de perspectivas bem diferenciadas, moldadas a partir de interesses, identificações e motivações díspares e, até, antagônicos. Um disparador interessante para esta reflexão poderia ser a maneira como cada área da ciência no Brasil tem organizado sua discussão sobre os impasses e as dificuldades da atuação do pesquisador e do professor no atual momento da sociedade brasileira. No entanto, no caso da Psicologia, essa discussão coletiva tem estado esvaziada, em que pesem as oportunidades, bastante restritas, de discutir as "políticas científicas" em encontros promovidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) com coordenadores de cursos de pós-graduação, e também em Simpósios anteriores da Associação Nacional de Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP). Portanto, cabe a pergunta: onde foi exatamente que "paramos", como área (Psicologia), no debate sobre políticas científicas? Quais foram, e quais são as reivindicações, as lutas e os antagonismos que se fizeram presentes que se poderiam retomar aqui para dar continuidade à discussão? Com que pluralidade de ideias - e de ideais - temos podido ampliar a compreensão de um fazer na universidade hoje? Que controvérsias e discordâncias têm sido trazidas e debatidas nas ANPEPPs para se construir um sentido mais coletivo do trabalho acadêmico frente a exigências que são cada vez mais numerosas, mais pesadas e, algumas vezes, absurdas?

Esse esvaziamento da discussão coletiva se traduz na intangibilidade de uma memória que possa ser resgatada para fornecer pistas quanto a como dar continuidade e avançar no debate. Na ausência dessas pistas, sem dúvida estamos expostos aos riscos de delinear alguns pontos de partida que podem parecer plausíveis, mas que estabelecem pontos arbitrários para o engate dessa reflexão.

Ciente dessas dificuldades, gostaria de estabelecer a hipótese inicial com que pretendo trabalhar neste texto: o momento que vivemos hoje na universidade tem marcado nossa posição coletiva como cada vez mais conformada com aquilo que se espera de nós, como professores e pesquisadores, posição que é pouco propensa ao questionamento do que está posto. A conformidade pode ser compreendida como impossibilidade de se colocar à margem de um sistema inclusivo em que o trabalho intelectual é concebido e arregimentado pelos dispositivos das políticas de governo. Utilizando-me da terminologia de Adorno e Horkheimer (1986), creio que nossa posição tem se marcado pela reconciliação. Como deixa entrever o termo, se estamos reconciliados, deixamos passar a negatividade, nos esquecemos da distância crítica, aderimos ao que está estabelecido. A reconciliação também conduz a um sentimento de otimismo frente aos dilemas, como se nós tivéssemos, enfim, alcançado alguma garantia a respeito dos caminhos que tomamos e das decisões que escolhemos. Quero, então, aprofundar esta reflexão, supondo que a reconciliação tem qualificado nossa adesão coletiva ao desenvolvimento científico e suas políticas neste país.

A despeito da reconciliação, como modo de responder às demandas postas pelas políticas científicas, estão vivos no cotidiano o sofrimento e a perplexidade frente ao que se impõe "como o pacto inquestionavelmente assumido"; ao longo do trabalho de todo dia, temos que dar conta das incoerências, das pequenas e grandes injustiças, da homogeneidade de perspectivas e de caminhos que minam profundamente o gosto e o prazer pela transmissão e pelo trabalho de pesquisa. Fazemos disso assunto de reuniões locais a portas fechadas, de alguns manifestos tímidos aqui e ali, de queixumes e choramingos com amigos chegados, enfim, privatizamos aquilo que poderia, e talvez, deveria se publicizar, não apenas no sentido de ganhar visibilidade, mas, basicamente, como uma questão coletiva que suscita litígio, discordância, e que, por isso, deveria ser ponto recorrente de discussão pública.

Gostaria, então, de potencializar essa encruzilhada, ou melhor, a aparente desconexão entre esses dois cenários, onde estamos e atuamos: um, hegemônico, em que a adesão às expectativas e a reconciliação com as exigências consolidam as condições para que o trabalho seja realizado; e outro, em que pese o dever cumprido, o da privatização e da individualização dos efeitos dessas condições sociais de opressão. Aí, nesse cenário privatizado, ficam mitigadas as questões de origem e finalidade do nosso trabalho, que surgem, imprevisivelmente, nas indagações: aonde é mesmo que pretendemos chegar? De onde é mesmo que partimos? Mas, lamentavelmente, essas indagações se dispersam como sofrimentos individuais coagulados sob forma de inconformismos passageiros, insuficientes para constituir uma força pública, ou contrapública.

Queria levantar a questão de que essa aparente desconexão - entre a reconciliação no público e o inconformismo no privado -nos é útil, porque ela favorece justamente um processo avassalador de individualização de modo que a cada um caiba assegurar um lugar neste sistema fora do qual não parece haver possibilidade de existência, como professor e pesquisador. Isso é o que somos levados a crer. No entanto, cabe indagar sobre os efeitos subjetivos que se produzem ao longo desse processo de inclusão, sobretudo, que identificações são possíveis quando, possivelmente, o "público", assim constituído, se manifesta exclusivamente pelo consenso e tem repulsa pelos antagonismos e pelos conflitos que são cada vez mais privatizados.

Tais práticas inclusivas parecem gerar efeitos subjetivos da ordem de que estamos constrangidos por esse único horizonte normativo que determina "fazer o que deve ser feito". Isolados nos afazeres, individualizados no sofrimento, cada vez menos nos dispomos a questionar sobre o lugar que o pesquisador e o professor podem e devem ocupar na sociedade... e, principalmente, na sociedade brasileira. Russell Jacoby, no seu livro The Last Intellectuals, publicado em1987, afirma, de forma pessimista, e tomando os Estados Unidos como referência, que nós, acadêmicos e pesquisadores, nos tornamos os "profissionais do pensamento", comprometidos com comissões acadêmicas, patrocinadores privados e agências governamentais, mais interessados em estabelecer nossas próprias reputações através de rituais de títulos, trajetórias acadêmicas e credenciamentos do que em lutar pela liberdade de pensar. A imagem do intelectual trazida por Jacoby pode não fazer sentido para muitos de nós. Afinal, não somos intelectuais, ou pelo menos, não do tipo que Jacoby descreve. Somos, talvez, profissionais e especialistas comprometidos com o rigor do conhecimento que divulgamos, sua objetividade e cientificidade, concernidos em conseguir que o conhecimento que pesquisamos seja publicado em periódicos bem avaliados. Nessa perspectiva, aderimos a essa identificação coletiva de profissionalismo e especialização, sem dar importância aos seus efeitos sociais e políticos, porque, weberianos que somos, ainda que inadvertidamente, ciência não deve ser misturada com política (Weber, 2008).

A identificação coletiva legitimada de especialista e profissional que demanda que o pesquisador cuide de suas publicações, seja lido por seus pares, seja bem avaliado e cumpra a trajetória acadêmica esperada parece ter tornado supérflua a pergunta de para quem e para que trabalhamos. Tais questões soam fora de propósito no momento em que as energias devem ser focalizadas na conquista daquilo que mantém as condições de trabalho do pesquisador especialista nas universidades: a conquista de recursos para a pesquisa, seja sob a forma de editais, grants ou convênios com o setor privado e a atenção aos credenciamentos sucessivos dentro da trajetória acadêmica. De um lado, então, a busca e a obtenção de recursos para manter as atividades de pesquisa constituem o crivo fundamental que avalia quão bons pesquisadores nós estamos conseguindo ser. De outro lado, a rotina dos relatórios para se dar conta dos recursos obtidos metaforiza a quem, em última instância, devemos creditar a avaliação do que fazemos.

Todos nós sabemos que o grande "frisson" que nos mobiliza a todos e todas não reside em nenhuma avaliação que no âmbito das nossas próprias universidades pode ser levada a cabo, mas no Coleta Capes, que constitui, quase que exclusivamente, o dispositivo de como e por quem nossas atividades de pós, e também da graduação, são avaliadas, reguladas e parametrizadas. Ou seja, o sistema nacional de pós-graduação deslocou, inexorável e avassaladoramente, o eixo da autonomia universitária para o epicentro dos órgãos nacionais de fomento à pós-graduação; assim como esvaziou a relevância de qualquer dispositivo de avaliação local ou regional que nos leve a debater o sentido, a razão e os objetivos do nosso trabalho tendo em vista as peculiaridades da universidade onde trabalhamos, sua história, sua vocação, sua composição discente e docente, enfim, tudo aquilo que a particulariza e que pode ser importante para estabelecermos outros parâmetros que devem regular o trabalho docente.

Desse modo, qualquer iniciativa que tente recolocar e indagar para quem e para que trabalhamos se torna, de pronto, inócua, porque essa pergunta já está respondida. Nas universidades públicas, de modo especial, das quais posso falar com base na minha experiência pessoal, a carreira universitária se banalizou, e perdeu completamente seu sentido de credenciamento. De um lado, ela se "cnpq-nizou": mais vale estar no sistema CNPQ e credenciar-se sucessivamente nos diversos degraus como pesquisador do que aspirar aos degraus de progressão funcional universitária que nem recompensam financeiramente, nem tampouco, o que é pior, significam alguma coisa no imaginário coletivo da academia hoje, a não ser que o professor associado IV se distingue do adjunto I, porque é mais velho e está há mais tempo na universidade. Sabemos todos como esse achatamento destrói também qualquer sentido de legitimidade da própria instituição universitária. De outro lado, são as agências de desenvolvimento à pesquisa que passam a gerir o que fazemos, por que fazemos e o que devemos querer fazer, porque é aí onde não somente estão os recursos para a complementação salarial quanto para prover as condições de realização da pesquisa. É também aí onde se visibiliza, e parece se legitimar, hoje, a carreira do pesquisador e do professor. Daí, a pergunta de para quem ou para que trabalhamos soar como um arcaísmo, porque o que está posto demanda nossa adesão, engolfando toda a imaginação do possível, do desejável e do crível.

Enquanto cuidamos das nossas pesquisas, o mundo tem que cuidar de si, e daí, as identificações possíveis e desejáveis com um espectro mais amplo de problemas e questões do mundo em que vivemos são lamentavelmente suprimidas. O ideal de profissionalismo e especialização que alimenta o modo de subjetivação do pesquisador concorre para a atitude de realismo político em que se aceita o existente como o limite do possível.

No seu livro Representações do Intelectual, Edward Said (1994) nos traz algum material para pensarmos a condição do intelectual hoje, justamente no momento em que seguir a opinião pública, estar politicamente correto, ou o desejo de estar bem com os poderosos silenciam as vozes dissidentes. Para Said, existe uma grande escolha que o intelectual deve fazer: ou, aliar-se à estabilidade dos vencedores e governantes ou - o caminho mais difícil - considerar essa estabilidade um estado que ameaça os menos afortunados com o perigo da extinção completa. Nessa escolha, continua Said, o exílio seria a metáfora mais adequada para descrever o lugar do intelectual, como aquele está na margem, e não no lugar das honrarias, das recompensas e da acomodação. No entanto, se estar na margem traz a liberdade, ou como diz Said, o prazer único de ser o próprio exemplo, também traz o risco de se ver rejeitado como romântico, aventureiro ou, até mesmo, incompetente, assim como de ser visto como aquele que causa embaraço e é do contra.

De um lado, o risco da inconveniência no espaço público, o ostracismo melancólico, a liberdade do pensar; de outro, a conformidade com a opinião estabelecida, a adesão aos limites impostos pelos governos e pela institucionalidade vigente. Said descreve dois modos de subjetivação irreconciliáveis, o do intelectual e aquele do profissional, que ensejam percursos subjetivos diferentes. Mas não é somente do ponto de vista das biografias individuais, das identificações assumidas por cada um de nós que a reflexão sobre esses modos distintos de subjetivação podem nos valer. Gostaria de tomá-los, também, como preferências e movimentos coletivos que se constroem no âmbito dos grupos sociais.

Disse anteriormente que somos conduzidos a privatizar o que vai mal, de modo que qualquer contradição do sistema é encoberta como desvio e desajuste de indivíduos. O que significa isso, do ponto de vista do movimento coletivo que instaura? Primeiro, um desempoderamento em relação à necessidade de construção coletiva de um ethos de trabalho. Ao longo das décadas de 60 a 80, alguns motes ainda nos interpelavam, como a defesa da universidade pública, as demandas de melhoria salarial, a luta pela autonomia universitária, dentre outros, criando sentidos coletivos para nossas práticas. Hoje, mesmo que essas questões não tenham sido resolvidas, nem mesmo encaminhadas, não figuram mais na pauta das nossas ações coletivas, embora até, incrivelmente, elas ainda continuem a fazer sentido para os jovens (aqueles tidos talvez como anacrônicos porque ainda fazem movimento estudantil!). Essa falta de pautas coletivas conduz facilmente à adesão a uma perspectiva individualizada de trabalhar.

Em segundo lugar, a individualização como modo de subjetivação no espaço acadêmico corrobora, como não poderia deixar de ser, a relação que se estabeleceu entre política distributiva de recursos e mérito, não importem os critérios utilizados para avaliar este último. Significa que cada vez mais cada um vai lutar para assegurar seu quinhão no bolo de recursos. Do ponto de vista das identificações coletivas, o aspecto mais lamentável é que tal política distributiva de recursos instaura a luta de todos contra todos, a pujança hobesiana dos grupos imantados pela conquista do seu próprio mérito, quase uma "guerra santa": santa porque mais do que justificada pelo mérito, e silenciosa porque desarticula resistências e possibilidades de construção de caminhos alternativos. Daí, se consolidam algumas vocações, tais como a do pesquisador solo, que se credencia solitariamente nos degraus da carreira, a dos institutos e ilhas de excelência, que aglutinam a nata dos produtivos, a dos Programas devotados a alcançar a nota 7. É claro que a carreira dos insiders exige a carreira dos outsiders: os "fora do sistema", os "Programas mal avaliados", os "improdutivos", contra quem os bem-sucedidos se destacam, constituem a periferia que não apenas fornece os contornos necessários à excelência, mas a sustenta, até porque os "fora do sistema" é quem produzem a mais-valia para a "nucleação", para os Doutorados e Mestrados Dinter/Minter e, também, por que não, para as atividades de "inserção social". Lembro a esse propósito uma frase, que muito me fez pensar, de um colega, amigo estimado, que dizia que "não podemos socializar a miséria"; em outras palavras, não adianta dividir o pequeno bolo em migalhinhas, seria melhor alimentarmos uns, e deixarmos os outros esperando pelo momento em que houver mais recursos... Só que socializar a miséria, no meu entender, seria exatamente poder enfrentar as contradições deste país, pródigo para uns e hediondo para outros, e não naturalizar as vantagens de uns sobre as desvantagens dos outros. Afinal, em cima de quais insofismáveis méritos será distribuída a riqueza? Ou até qual o mérito, seja ele qual for, deverá orientar a distribuição dos recursos?

Penso que deixamos há muito tais questões para trás, ainda que elas estejam vivas nas marolas ou nas grandes ondas que provocam surfe para uns, tsunami para outros, na aventura de ser pesquisador/professor em programas de pós-graduação no país. Ao discutir políticas científicas, corremos o risco de nos atermos somente às questões que temos que resolver para executar o dever de casa. Ou melhor, questões que temos que resolver para melhor adequar nossas atividades aos produtos e tecnologias demandados pelos governos que se insiram na lógica de reprodução do capital. Nesse processo, perdemos a capacidade de totalizar, ou seja, de apreender as políticas dos governos no âmbito das contradições que elas ocultam. Porém, o desvelar das contradições não se enxerga a olho nu, por assim dizer, mas se pudermos olhar para além das tarefas a serem realizadas e, justamente, pudermos questionar por que tais tarefas, e não outras, por que tais direções, e não outras, enfim, por que tais políticas, e não outras. A instauração de um campo de discussão, de conflitos e problematização acerca do existente marca a própria noção de política, e se a expressão "políticas científicas" faz algum sentido é porque estamos transitando no domínio de tudo aquilo que não pode ser tomado como certo ou verdadeiro, e, portanto, é passível de instaurar litígios no seio dos grupos sociais. Abrir mão desses movimentos coletivos de subjetivação significa renunciar a possibilidades de transformação da realidade, que, mais do que nunca, se tornaram subservientes ao controle gerencial dos governos para inflar suas estatísticas de boa gestão.

A perspectiva de totalização, ou seja, de tentar articular aspectos da realidade em uma compreensão mais ampla, o que radicalmente se diferencia do que entendo por globalização (como vou referir daqui a pouco), nos ajuda a rever os caminhos que parecem assumidos tacitamente a partir das políticas científicas para a pósgraduação. Quero mencionar apenas dois deles, dentre muitos que são, e apenas a título de ilustração do meu argumento. Queria trazer à discussão a questão dos cursos de graduação e a internacionalização da produção científica. O objetivo aqui é levantar algumas questões, sem a pretensão de esgotar a análise.

Em primeiro lugar, pode parecer estranho trazer à baila a questão dos cursos de graduação, mas a indagação é: será que as políticas científicas de desenvolvimento científico podem ignorar as políticas de formação profissional? As políticas científicas para a pós-graduação podem ser efetivas sem um total e radical compromisso com os cursos de graduação? Temos visto, a nossos olhos, a pauperização dos cursos de graduação: orientar, ensinar e atender esses alunos tem contado cada dia menos nas avaliações de mérito daqueles que se tornaram a elite dentro da própria carreira universitária. É notória a gangorra que se estabeleceu entre o atendimento às demandas de pesquisar e publicar e aquelas que advêm da formação dos alunos de graduação: quanto mais a primeira, menos a segunda. Creio que tal política fragmenta os problemas em relação a seu campo de determinação, fazendo com que a elite universitária esteja cada vez mais distante e indiferente a questões que não consideram como lhes concernindo. Para prover uma base de análise dessa questão, gostaria de mostrar os dados do quadro que traz um levantamento recente sobre o estado da arte da graduação no país:

Se olharmos esses números, podemos concluir que a nossa graduação vai mal. Por um lado, é um sistema que só consegue a terminalidade para 50% dos seus ingressantes, seja no sistema público ou privado; de outro, e o que parece pior, sua entrada - o total de jovens que conseguem chegar até lá (não o total dos jovens que deveriam ou gostariam de chegar lá) - só atende cerca de 13% da demanda para o sistema público; no sistema privado atende 50%, por razões compreensíveis. Isso sem pensar no significativo número de jovens excluídos ao longo de seu ensino fundamental e médio, que poderiam desejar cursar a universidade. De qualquer forma, tanto o sistema público como o privado parecem ser igualmente ineficientes em reter o alunado até que sua formação se complete. A questão aqui é que, como estamos cada vez mais especializados naquilo que nos concerne, os problemas que dizem respeito à formação do aluno de graduação e sua preparação para atuar na sociedade brasileira, com todas as suas desigualdades e injustiças, não são discutidos e inseridos como parte de um mesmo projeto de universidade que inclua pós-graduação e graduação. Por isso mesmo, tal fragmentação justifica nossa atuação especializada na pós-graduação que nos distancia das dificuldades da graduação como aspecto de um mesmo conjunto de problemas. Não creio que nossa pós-graduação possa ser tão boa, não creio que o Brasil possa estar tão bem no ranking de produção científica mundial, quando nossa graduação vai tão mal... Ou pode? Talvez até possa mesmo, e essa é a grande contradição do sistema, em que se consegue operacionalizar uma disjunção tão eficaz entre programas de pós, considerados excelentes, e, ao seu redor, um mar de medíocres ou sofríveis cursos de graduação (situação, por sinal, bem brasileira!). Sabemos que o sistema favorece essa disjunção e que, no plano individual, a dedicação mais exclusiva à pós em detrimento da graduação pode ser altamente vantajosa. Aqueles que se dedicam à graduação (não perfunctoriamente!) se veem sobrecarregados e sem saber como dar conta de tantas demandas, principalmente as da pós. No nível dos grupos, muitos são os exemplos dos programas de pós bem avaliados e que têm pouca, ou quase nenhuma, vinculação com a graduação.

Como venho argumentando nesta fala, a disjunção entre a graduação e a pós-graduação institui um estreitamento nas nossas identificações coletivas, reduzindo o campo de problemas que nos concerne. Concorre também para a perda de uma totalização enquanto compreensão mais abrangente de determinações estruturais, em que se despolitiza a posição do pesquisador/professor, fazendo com que enxergue de forma cada vez mais descontextualizada as questões do seu ofício e de seu lugar na sociedade.

O segundo ponto que gostaria de comentar se refere à internacionalização da produção científica. Creio que a demanda da internacionalização nos atingiu sem que tenhamos tido tempo suficiente para discutir e avaliar em que direções e para que devemos e queremos ser internacionalizados. A questão parece séria, na medida em que podemos estar apenas aderindo aos movimentos de globalização da ciência e da educação, em curso a partir da segunda metade do século XX, ou pior, de não reconhecermos em que extensão a internacionalização científica possa estar indissociavelmente vinculada à globalização, essa como a nova retórica que legitima a condição hegemônica de dominação entre centro e periferias. Penso que esta segunda hipótese parece mais plausível: uma definição esquemática de Barrie Axford (1995, 2000) que nos ajuda é que a globalização significa, precipuamente, deslocamentos e reordenações espaço-temporais em prol da formação de um sistema global interconectado. A globalização, como processo histórico que assistimos hoje, depende de tecnologias altamente sofisticadas que reconfiguram o comércio, as finanças, a comunicação. Em resumo, globalização, sofisticação tecnológica e concentração de recursos e capital andam juntas. Nesse sentido, e acompanhando teóricos que se debruçaram sobre a globalização a partir de uma perspectiva dos países periféricos, como o nosso Milton Santos (2000), ou Ashis Nandy (2003, 2007), intelectual indiano, a globalização, justamente por ser um processo que pressupõe recursos e tecnologia que se colocam como universais, reduz e homogeneíza todos os processos de vida e produção à lógica racionalizante do mercado, e torna irrelevantes ou desnecessários os grupos, as pessoas, os modos de vida e os modos de produção que não se conformem a tal lógica. A globalização trará, segundo esses teóricos, a extinção de parcelas enormes das sociedades, os ditos "sobrantes" que não conseguiram dar conta das demandas desse processo histórico. Em outras palavras, a globalização faz aumentar as desigualdades, ou ainda, coloca os desiguais em uma condição cada vez mais aviltante e brutalizada.

Ora, o princípio unificador dos processos de globalização - o mercado global - interfere também na institucionalização da ciência, principalmente ao legitimar a submissão dessa atividade a critérios de rentabilidade, aproveitamento mercadológico e tecnológico e à univocidade de visão de mundo e de racionalidade. Assim, a atividade científica se torna cada vez mais homogeneizada no mundo inteiro: suas finalidades, seus critérios de avaliação, seus procedimentos. A inserção internacional de programas de pós-graduação, caracterizada no documento da nossa área como "desempenho equivalente ao dos centros internacionais de excelência na área" (CAPES, 2009, p.10), aponta para uma petição de princípio em que se define internacionalização pelo que já é definido como internacionalizado, ou seja, o que é praticado nos centros internacionais. Mas, o que pode ser pior, para além da nebulosa de onde queremos chegar (se é a internacionalização, e como se a define), é a legitimação da ideia de "centro" contida nessa mesma frase, que reitera uma velha hegemonia só que agora muito mais avassaladora e com muito mais poder de produzir os seus "sobrantes". Os níveis de exigência crescentes que se tem estabelecido para a pesquisa/pesquisador, mas também, por outro lado, a quantidade crescente e fabulosa de recursos que é distribuída para aqueles que conseguem cumprir tais exigências parecem ser um prenúncio do que está se tornando a rationale do mundo acadêmico do século XXI: grupos seletos de excelentes e massas de sobrantes...

Termino sem concluir, já que apenas no esforço coletivo da discussão vamos poder compreender melhor os dilemas postos pelo nosso tempo para construir outras escolhas de viver e trabalhar. As últimas palavras, que dão um sentido ao título desta minha fala, são de um intelectual brasileiro, Darcy Ribeiro, que, em uma entrevista à Folha de São Paulo em 1983, observou: "Autopia não é projeto, é apenas um contraste para obrigar a pensar."1 1 Darcy Ribeiro, ver entrevista à Folha SP 01/10/1983.

Notas

Recebido em: 29/06/2010

Revisão em: 22/09/2010

Aceite final em: 30/10/2010

Lucia Rabello de Castro é Professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ph.D. em Psicologia pela Universidade de Londres. Endereço: Programa de Pós-graduação em Psicologia. Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Pasteur 250, 2º andar. Rio de Janeiro, Brasil. CEP 22290-902. Email: lrcastro@infolink.com.br

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  • *
    Esta é a versão ligeiramente modificada da comunicação "Políticas Científicas e Modos de Subjetivação do Pesquisador: um outro mundo (acadêmico) é possível?", apresentada na Mesa-Redonda "Políticas Científicas", no XIII Encontro NacionaldaANPEPP,Fortaleza,6-9junho,2010. Agradeço ao CNPQ e à FAPERJ pela bolsa e auxílio, respectivamente, na elaboração deste trabalho.
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    Darcy Ribeiro, ver entrevista à Folha SP 01/10/1983.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Revisado
      22 Set 2010
    • Recebido
      29 Jun 2010
    • Aceito
      30 Out 2010
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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