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Sentido do trabalho no discurso dos trabalhadores de uma ONG em Belo Horizonte

The meaning of the work in the discourse of workers in a NGO from Belo Horizonte

Resumos

Este artigo busca explicitar o discurso enunciado por trabalhadores do Comupra - Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu, uma ONG de Belo Horizonte, sobre a relação sentido positivo/prazer e negativo/sofrimento do trabalho. Além de fator de adoecimento ou saúde, o trabalho é central na vida dos indivíduos e da sociedade e é um dos campos de estudo atualmente em expansão. Porém, no Terceiro Setor, ainda é pouco estudado. Entrevistas semiestruturadas foram o principal instrumento de coleta de informações. O tratamento delas foi feito utilizando-se a análise do discurso. Seis trabalhadores do Comupra foram entrevistados. As análises revelaram que o sentido positivo do trabalho tem predominância sobre o negativo. As vivências que promovem o prazer são mais significativas do que aquelas que causam o sofrimento, mostrando que a escolha por trabalhar no Terceiro Setor está associada a uma expectativa de transformação pessoal e da comunidade.

trabalho; sentido; prazer; sofrimento; organizações não governamentais


The article's purpose is to reveal the discourse enunciated by the workers of the Comupra - Community Counsel United pro Ribeiro de Abreu, a NGO from Belo Horizonte, about the positive (pleasure) or negative (suffering) meaning they attribute to their work. Besides being a factor of illness and health, the work is central in individual and social lives and it is one of the fields of study presently in expansion. Yet, in the NGOs from the Third Sector, it is still not much studied. Semi-structured interviews were the main knowledge collection tool. The obtained information was treated by means of discourse analysis. Six workers from the Comupra were interviewed. The analyses revealed that the positive meaning of the work surpass the negative meaning. The situations in which pleasure occurs are taken as more important than those provoking suffering, showing that the choice for working in the third sector is associated to an expectation of individual and community changes.

work; meaning; pleasure; suffering; Non-governmental Organizations


Sentido do trabalho no discurso dos trabalhadores de uma ONG em Belo Horizonte

The meaning of the work in the discourse of workers in a NGO from Belo Horizonte

Eliete Augusta de Souza VianaI; Marília Novais da Mata MachadoII

IFaculdade Novos Horizontes e Centro Universitário de Belo Horizonte, Belo Horizonte, Brasil

IIUniversidade Federal de São João Del Rei, São João Del Rei e Faculdade Novos Horizontes, Belo Horizonte, Brasil

RESUMO

Este artigo busca explicitar o discurso enunciado por trabalhadores do Comupra - Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu, uma ONG de Belo Horizonte, sobre a relação sentido positivo/prazer e negativo/sofrimento do trabalho. Além de fator de adoecimento ou saúde, o trabalho é central na vida dos indivíduos e da sociedade e é um dos campos de estudo atualmente em expansão. Porém, no Terceiro Setor, ainda é pouco estudado. Entrevistas semiestruturadas foram o principal instrumento de coleta de informações. O tratamento delas foi feito utilizando-se a análise do discurso. Seis trabalhadores do Comupra foram entrevistados. As análises revelaram que o sentido positivo do trabalho tem predominância sobre o negativo. As vivências que promovem o prazer são mais significativas do que aquelas que causam o sofrimento, mostrando que a escolha por trabalhar no Terceiro Setor está associada a uma expectativa de transformação pessoal e da comunidade.

Palavras-chave: trabalho; sentido; prazer; sofrimento; organizações não governamentais.

ABSTRACT

The article's purpose is to reveal the discourse enunciated by the workers of the Comupra – Community Counsel United pro Ribeiro de Abreu, a NGO from Belo Horizonte, about the positive (pleasure) or negative (suffering) meaning they attribute to their work. Besides being a factor of illness and health, the work is central in individual and social lives and it is one of the fields of study presently in expansion. Yet, in the NGOs from the Third Sector, it is still not much studied. Semi-structured interviews were the main knowledge collection tool. The obtained information was treated by means of discourse analysis. Six workers from the Comupra were interviewed. The analyses revealed that the positive meaning of the work surpass the negative meaning. The situations in which pleasure occurs are taken as more important than those provoking suffering, showing that the choice for working in the third sector is associated to an expectation of individual and community changes.

Keywords: work; meaning; pleasure; suffering; Non-governmental Organizations.

Algumas considerações teóricas

Terceiro Setor, Organizações Não Governamentais e Trabalho Comunitário

O termo Terceiro Setor, no Brasil, é utilizado desde o início dos anos de 1990 para designar as organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, criadas e mantidas principalmente pela participação voluntária visando à solução de problemas sociais (Sour, 1999). Usualmente são organizações religiosas, associações de classe ou de assistência social, fundações ou entidades que se caracterizam por serem privadas quanto à sua constituição e públicas no que diz respeito aos seus objetivos. O uso do termo supõe a existência de um Primeiro Setor, que é o Estado, e um Segundo Setor, formado por organizações do mercado, pessoas físicas e jurídicas de direito privado que se encarregam de produção e comercialização de bens e serviços visando ao lucro (Ribeiro & Luz, 2010).

As organizações não governamentais (ONGs) estão inseridas, do ponto de vista formal, no Terceiro Setor. Juridicamente, toda ONG é uma associação civil ou uma fundação privada, isto é, elas não têm figura jurídica própria prevista em legislação; evidentemente, nem toda associação civil ou fundação é uma ONG (Associação Brasileira de organizações não governamentais [Abong], 2007). As ONGs caracterizam-se por serem grupos sociais organizados, com estrutura formal e sem fins lucrativos e por gozarem de autonomia grande no exercício de sua função sociopolítica voltada em especial para ações de solidariedade (Ribeiro & Luz, 2010). Surgiram pela primeira vez no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), logo após a Segunda Guerra Mundial, distinguindo-se então por serem supranacionais e internacionais.

Desde a década de 1970, no Brasil, o número de ONGs está em expansão, ligadas a movimentos sociais, a organizações populares e de base comunitária, promovendo cidadania e defendendo direitos democráticos (Abong, 2007). Assim como outras organizações do Terceiro Setor, cada vez mais se tornam uma opção de trabalho. Nelas convivem funcionários remunerados e voluntários. A média dos salários é cerca de 20% inferior à praticada no mercado, mas os profissionais que nelas atuam relatam prazer no trabalho e qualidade de vida boa (Ribeiro & Luz, 2010). Algumas visam a contribuir para um processo de desenvolvimento baseado em transformações estruturais da sociedade a fim de minimizar mazelas da humanidade como pobreza, violência, doenças, poluição ambiental, conflitos religiosos, étnicos, sociais e políticos, problemas que resultam do desenvolvimento capitalista (Hudson, 1999). Representam um espaço aberto para cidadãos que desejam se organizar e lutar pela construção diária do processo de cidadania.

No Brasil, particularmente, a origem das ONGs relaciona-se à luta da sociedade civil pela redemocratização do país nos anos 60 e 70. Nesse período, surgiram as primeiras ONGs, com a missão principal de reconstruir o tecido social que havia se rompido com a ditadura, defender os direitos humanos e praticar a educação popular (Haddad, 2002, p.1).

Esse movimento refletia os pressupostos da Teologia da Libertação utilizados pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), pautados nos princípios de educação popular proposta por Paulo Freire. A missão educativa das Cebs "não se realizava descolada de uma intencionalidade política, e a prática educativa era, ao mesmo tempo, um ato de organização e de mobilização da comunidade" (Haddad, 2002, p.1).

Nesta pesquisa, o termo comunidade refere-se à reunião de pessoas que se juntam, mantendo sua singularidade e diferenças, para ter voz e vez, e para lutar pelos seus direitos e deveres enquanto cidadãos(ãs). Assim, entende-se que o trabalho comunitário "é um aglomerado de saberes ou conjunto de ideias políticas e filosóficas que nasceram no bojo dos movimentos sociais sob a forma de resistência da Cultura Popular e da Educação Popular" (Pereira, 2001, p. 63) e pode ser considerado como:

o resultado de uma série de transformações políticas e culturais de um povo. Tem como premissa básica a valorização do que é orgânico aos interesses das classes menos favorecidas como processo dinâmico de organização e mobilização desses segmentos, visando a uma transformação do social, da singularidade em busca de novas e originais formas de subjetivação (Pereira, 2001, p. 61).

O trabalho comunitário de ONGs como o Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu (Comupra), aqui estudado, implica práticas transformadoras que partem de camadas populares e a elas são dirigidas. As atividades laborais realizadas pelo Comupra são diferentes daquelas praticadas em organizações do primeiro e segundo setores que, entretanto, atuam como financiadores e apoiadores da ONG, por meio de convênios, como o firmado como os Correios, órgão do Estado, e de parcerias com pessoas jurídicas de direito privado, como as firmadas com comerciantes vizinhos. Essas atividades visam a atingir objetivos sociais e não lucro e são orientadas por valores relacionados à cidadania, à justiça social e aos interesses coletivos.

O sentido do Trabalho

Vários estudos apontam que o trabalho é central na vida das pessoas, engajando toda a subjetividade do trabalhador. Segundo Dejours (2007a, p. 21), o trabalho "é e continuará central em face da construção da identidade e da saúde, da realização pessoal, da formação das relações entre homens e mulheres, da evolução da convivência e da cultura".

Freud (1974, p. 99) argumenta que o trabalho é a atividade que proporciona certa direção à vida, noção de realidade, e, também, representa uma possibilidade de vínculos entre as pessoas. Em sua teoria, podem-se identificar ideias que traduzem a importância do trabalho para a humanidade:

Quando numa pessoa não existe uma disposição especial que prescreva imperativamente a direção que seus interesses na vida tomarão, o trabalho profissional comum, aberto a todos, pode desempenhar o papel a ele atribuído ... Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão fortemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que se goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade. A atividade profissional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente escolhida.

Enriquez (2001, p. 58), de certa maneira, reforça a importância do trabalho como fator de equilíbrio psíquico na vida das pessoas, como se vê na seguinte afirmação:

o homem sem trabalho ou não reconhecido em seu trabalho, ou ainda não encontrando nenhum interesse em seu trabalho, está próximo da depressão e comumente chega a este ponto de ruptura. Pois o trabalho, em nossa sociedade, é o modo privilegiado de fazer uma obra (por menor que ela seja), de existir, de ter (ou de pensar ter) uma identidade. O trabalho é, atualmente, o melhor método para vencer a loucura.

Pela ótica do não trabalho, Enriquez (1999) chama atenção para as consequências sobre os indivíduos da falta de trabalho. Segundo ele, sabe-se que sua perda provoca uma ferida profunda na identidade das pessoas, concorrendo para a desagregação de suas personalidades. Trabalhar não é somente produzir; é também transformar a si mesmo.

Por outro lado, na perspectiva de sua psicopatologia do trabalho, Dejours (1996, p. 162) afirma que "a organização científica do trabalho cria entre os trabalhadores uma clivagem entre o corpo e o pensamento", influencia sobremaneira o equilíbrio psíquico e a saúde mental do trabalhador e pode ser causadora de sofrimento psíquico e físico na vida do profissional. Em função dessa clivagem, o sentido do trabalho pode ser negativo por estar associado ao sofrimento devido à falta de autonomia, à divisão do homem e ao menosprezo às habilidades e necessidades humanas por parte das organizações.

Ampliando essa visão, Dejours (2007b, p. 25), na perspectiva da psicodinâmica do trabalho, considera que prazer-sofrimento inscreve-se numa relação subjetiva da pessoa com seu trabalho: "se um trabalho permite a diminuição da carga psíquica, ele é equilibrante. Se ele se opõe a essa diminuição, ele é fatigante". Então, o trabalho pode ser uma forma de descarga psíquica para o sujeito e a maneira como ele irá lidar com o impasse psíquico gerado definirá se a vivência permanecerá como sofrimento ou se transformará em prazer.

Para Dejours e Abdoucheli (2007), o sofrimento resultante do conflito entre a organização do trabalho e o funcionamento psíquico suscita as estratégias defensivas que são "defesas elaboradas pelo trabalhador para lutar contra a doença, a loucura e a morte" (Dejours, 1992, p. 165), isto é, reações do trabalhador para lidar de forma equilibrante com as questões postas pelo trabalho. Por meio das estratégias defensivas, o trabalhador lida com as situações de desprazer e as transforma, de alguma maneira, em prazerosas.

Essas estratégias resultam do uso da inteligência astuciosa para criar alternativas diante dos obstáculos que surgem entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Relacionam-se com a autonomia da pessoa ao criar soluções para as questões que surgem entre o prescrito, o real e sua vida. Por isso, o sentido do trabalho é construído de maneira singular, sendo adoecedor quando a pessoa não encontra espaço para atuar criativamente e equilibrante quando a pessoa usa a liberdade para criar (Dejours & Abdoucheli, 2007).

Fortalecendo essa perspectiva, Mendes (2007, p. 43) afirma que o sentido do trabalho depende "da relação entre a subjetividade do trabalhador, do saber fazer e do coletivo do trabalho". Para ela, dependendo do seu contexto, trabalho pode ser fonte de patologias, de adoecimentos ou de saúde e estará sempre associado ao binômio prazer-sofrimento. Em todas essas situações, o trabalhador atribui novas significações às relações dinâmicas entre organização do trabalho e processo de subjetivação. Entende-se por subjetivação o "processo de atribuição de sentido com base na relação do trabalhador com sua realidade de trabalho, expresso em modos de pensar, sentir e agir individuais ou coletivos" (Mendes, 2007, p. 30). Sendo assim,

para transformar um trabalho que faz sofrer em um trabalho prazeroso, é necessário que a organização do trabalho propicie maior liberdade ao trabalhador para remanejar seu modo operatório, usar sua inteligência prática, engajar-se no coletivo, identificando ações capazes de promover vivências de prazer (Mendes, 2007, p. 34).

Logo, o sentido de prazer no trabalho emerge quando: "o trabalho cria identidade. Possibilita aprender sobre um fazer específico, criar, inovar e desenvolver novas formas para a execução da tarefa, bem como são oferecidas condições de interagir com os outros, de socialização e transformação do trabalho" (Mendes, 2007, p. 51).

E, ainda, as vivências de prazer se manifestam pelo:

reconhecimento social, pela satisfação em trabalhar numa área ... que permite aprendizagens constantes, pela autonomia para organizar o horário de trabalho e a relação saudável entre os colegas. Tais vivências constituem-se indicadores de saúde no trabalho, ao proporcionar a estruturação psíquica, a identidade e expressão da subjetividade no trabalho (Mendes, 2007, p. 172).

Portanto, com a psicodinâmica do trabalho, Dejours (2004), Dejours, Abdoucheli e Jayet (2007) e Mendes (2007) procuram compreender como o trabalhador preserva o equilíbrio psíquico diante das pressões no trabalho. Buscam descobrir, a partir do discurso do trabalhador, o sentido do trabalho e as estratégias defensivas suscitadas que possibilitam a transformação do sofrimento em prazer. Nessa ótica, o trabalho sempre passará pela dimensão sofrimento/prazer e o sentido será construído pelo trabalhador de acordo com as características das tarefas realizadas, a organização do trabalho e seus modos de subjetivação. Então, o trabalho pode ser uma forma de descarga psíquica para o sujeito e a maneira como ele irá lidar com o impasse psíquico gerado definirá se a vivência permanecerá como sofrimento ou se transformará em prazer.

Características gerais da organização pesquisada

O Comupra – Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu foi fundado em 2001. Sua sede, Casa da Cidadania, está localizada no bairro Ribeiro de Abreu. É gerenciado pelos seus próprios trabalhadores, que, em sua maioria, são moradores da região. Em dezembro de 2007, foi declarada Instituição de Utilidade Pública Municipal.

A missão do Comupra é atender às premissas básicas de melhoria das condições de vida da comunidade através de ações coletivas nas áreas de educação, trabalho, lazer, geração de renda, ecologia e consciência de cidadania. Portanto, o trabalho no Comupra é realizado através da gestão coletiva e busca desenvolver ações de melhoria na vida dos cidadãos moradores do bairro Ribeiro de Abreu e adjacências.

O bairro é cortado por um ribeirão, o Onça, que interfere em larga escala na vida dos moradores, sujeitos às suas enchentes e às suas condições sanitárias, frequentemente más, no passado recente.

A Casa da Cidadania é a sede do Comupra e o lugar onde acontece a maioria das ações voltadas para o planejamento e a tomada de decisão da ONG. É também local de funcionamento de algumas das atividades do Projeto Ribas (Ribeiro de Abreu Social). As seguintes ações, criadas a partir da demanda da comunidade, estão em andamento desde 2003: horta comunitária, inclusão digital, alfabetização, biblioteca comunitária, artesanato, arte educação, culinária e oficina de futebol.

O Comupra conta com a parceria de comerciantes vizinhos, instituições filantrópicas, órgãos públicos, instituições de ensino, ONGs e outras entidades para manter suas ações na comunidade e com o trabalho de seus membros participantes.

Método

A pesquisa realizada foi de natureza qualitativa e de tipo descritivo. Para coleta das informações, foram utilizados: questionário socioeconômico que permitiu, a partir de um número pequeno de questões, descrever a situação econômica e social de cada trabalhador; entrevista de pesquisa aberta semiestruturada na qual o foco foi o trabalho e os sentimentos de prazer e sofrimento por ele suscitados; consulta a jornais e a documentos da instituição, que ajudaram na descrição das características da organização pesquisada, oferecendo informações sobre o contexto de trabalho e de produção de discurso sobre ele; observações in loco e conversas informais sobre as condições e organização do trabalho na ONG, feitas no âmbito de uma intervenção psicossocial que antecede esta pesquisa e continua após a sua realização.

Neste trabalho são analisadas particularmente as entrevistas com seis trabalhadores do Comupra, pois a entrevista de pesquisa foi o instrumento utilizado para obter o discurso deles sobre a organização e o sentido do trabalho na ONG. As entrevistas foram gravadas, cuidadosamente transcritas e tratadas por meio da análise do discurso, que buscou articular a análise textual (isto é, a fala dos trabalhadores do Comupra transformada em corpus empírico, do qual foram extraídas sequências discursivas relativas ao sentido do trabalho) com a descrição das condições de produção do discurso (isto é, as informações de contexto relativas à história da organização, seus convênios e parcerias, às condições cotidianas de trabalho, psíquicas e físicas, aos relacionamentos entre trabalhadores, às suas expectativas, ganhos e desejos relativos ao trabalho na ONG e à situação de entrevista).

Entende-se por discurso qualquer fragmento de escrita ou fala; sua análise requer a consideração do contexto em que foi produzido: por que isso foi dito, a quem foi dirigido, que objetivos nortearam esse dito ou escrito, que pressupostos estão presentes (Trask, 2006). No caso, as entrevistas realizadas resultaram num tipo específico de discurso, dependente da interação pesquisadora/ entrevistados. Esse discurso coconstruído foi transformado em texto por meio de transcrições e articulado ao contexto de produção a partir de procedimentos analíticos: leitura cuidadosa das transcrições, retranscrições quando necessárias, busca de termos-pivô ou de expressões que apontaram o sentido (positivo / prazer ou negativo / sofrimento) atribuído ao trabalho pelos trabalhadores do Comupra, construção de quadros sumarizando essas expressões a partir da fala de cada entrevistado, consideração constante das condições em que a fala foi produzida. O referencial teórico adotado (Dejours, 1992, 2004, 2007a, 2007b; Dejours & Abdoucheli, 2007; Dejours, Abdoucheli, & Jayet, 2007; Mendes, 2007) apontou as expressões relativas ao sentido atribuído ao trabalho.

Seleção dos Sujeitos da Pesquisa

Os entrevistados foram os trabalhadores em atividade na instituição. O critério de acessibilidade foi adotado. O momento da negociação da pesquisa coincidiu com o término de uma parceria financeira com os Correios, órgão público que vinha custeando ações da ONG. Em consequência, pessoas que vinham trabalhando no cotidiano na entidade se afastaram temporária ou definitivamente. Poucos trabalhadores (em torno de dez) ficaram para dar continuidade aos projetos do Comupra, sem remuneração. Entre esses, seis concordaram em conceder entrevista.

Assim, foram entrevistadas seis pessoas que se encontravam em atividade na organização e que se disponibilizaram a participar de entrevista.

Procedimentos de Entrevista

Todos os entrevistados responderam ao questionário socioeconômico, que incluiu as seguintes variáveis: endereço, sexo, idade, local de nascimento, escolaridade, trabalho que realiza, documentos e eletrodomésticos que tem e características da casa em que mora. Um termo de consentimento livre e esclarecido autorizando a divulgação dos nomes dos entrevistados na pesquisa foi assinado. As entrevistas foram gravadas com o consentimento dos trabalhadores. A razão pela qual são mantidos os nomes reais dos entrevistados tem a ver com a natureza do documento produzido pela pesquisa: um extrato da história real do Comupra. Seus trabalhadores estão orgulhosos por terem participado da construção da ONG e, também, deste trabalho, que resultou inicialmente em uma dissertação de mestrado, resumida neste artigo. A participação nas entrevistas foi motivo de elevação de suas autoestimas e faz parte de suas histórias pessoais. Não se pode negar a eles o crédito por terem ajudado a coconstruir não só a história do Comupra, mas também este trabalho.

A entrevista semiestruturada, que se assemelha à não diretiva, foi escolhida com o objetivo de deixar o entrevistado mais livre para expressar-se em relação à sua vivência de trabalho no Comupra. Nela "cada sujeito entrevistado é tratado como único, central, porta-voz de uma determinada formação social-histórica" (Machado, 2002, p. 37).

A entrevistadora, que já conhecia a ONG há algum tempo e vinha realizando intervenção psicossocial nela, optou por deixar os entrevistados à vontade e abriu as entrevistas pedindo a cada trabalhador que falasse livremente sobre a sua história de vida e a relação com o trabalho no Comupra: como foi o ingresso na ONG, como esse trabalho era realizado e qual o sentido do trabalho executado. Cabe ressaltar que um roteiro serviu como norteador, sem que necessariamente as questões tivessem que ser respondidas numa ordem. Ele orientou o entrevistado sobre o que a entrevistadora desejava saber, mas a pessoa respondia livremente. Ao longo de cada entrevista, a entrevistadora interagia com o entrevistado fazendo outras perguntas para elucidar pontos de dúvidas ou clarear o entendimento sobre o que foi dito. Portanto, uma entrevista se diferenciou da outra. Postura semelhante de coleta de informações foi adotada por Bourdieu e sua equipe, em pesquisa sobre a construção social da realidade, com 60 sujeitos, deserdados da sociedade: imigrantes norte-africanos, microproprietários rurais, habitantes de conjuntos habitacionais, desempregados, estudantes com dificuldades escolares, doentes, etc. Para eliminar distorções produzidas pelos diferentes posicionamentos na estrutura social e reduzir a violência simbólica que atravessa a realização das entrevistas, Bourdieu (1998) optou por entrevistas com conhecidos, pressupondo que o conhecimento prévio, a proximidade social e a familiaridade assegurariam uma comunicação não violenta.

As entrevistas com os trabalhadores iniciaram-se em novembro de 2007 e terminaram em janeiro de 2008.

Características dos Entrevistados

A equipe responsável pelas ações do Comupra, no momento da entrevista, era formada por dez trabalhadores. Não eram contratados nem percebiam remuneração financeira estável pelo trabalho. Alguns não têm um emprego formal, vivem de "bicos" e recebem da ONG ajuda de custo variável, podendo ser em dinheiro ou em produtos como cesta básica e alimentos da horta. Essa ajuda só é repassada quando o Comupra dispõe de recurso para isso, o que é pouco frequente, pois a ONG não dispõe de montante financeiro fixo.

As pessoas, então, trabalham como voluntárias e organizam seus dias e horários de acordo com a disponibilidade de cada uma. Para elas, o trabalho comunitário que realizam não é uma ação de assistencialismo. Ao contrário, é a promoção do exercício da cidadania por meio de ações politizadas e contestatórias. Lembram que, em algumas situações, é importante também atender às necessidades básicas da população em situação de risco.

Foram entrevistados:

a) Itamar, o presidente, um dos idealizadores da organização, 49 anos, casado, pai de dois filhos, com primeiro grau incompleto e aposentado por invalidez (como metalúrgico), tem renda de dois salários mínimos;

b) Antônia, a professora idealizadora do Curso de Alfabetização de Adultos, 52 anos; casada, mãe de dois filhos, pedagoga (terceiro grau completo), com renda de dois salários mínimos;

c) Lucinéia, a secretária da organização, 31 anos, casada, mãe de um filho, tem segundo grau completo e trabalha também como confeiteira autônoma;

d) Fernando, um trabalhador da horta comunitária, 31 anos, casado, pai de três filhos, primeiro grau incompleto, no momento desempregado recebendo seguro desemprego equivalente a um salário mínimo;

e) Isabel, a auxiliar administrativa responsável pelo relatório das atividades da instituição, 47 anos, viúva, mãe de dois filhos, tem segundo grau incompleto e, no momento, está desempregada, sem renda;

f) Iolanda, uma instrutora da inclusão digital, 20 anos, solteira, sem filhos, tem segundo grau completo e trabalha como "oficineira do Fica Vivo", percebendo meio salário mínimo.

Todos os entrevistados têm carteira de identidade, certidão de nascimento e carteira de trabalho; cinco deles têm cartão de vacina. Todos têm água encanada e luz elétrica em casa; com exceção de um, usufruem dos serviços municipais de esgoto e coleta de lixo.

Eles moram no bairro Ribeiro de Abreu ou próximo e são afligidos diariamente pelos efeitos perversos da falta de investimento, por parte do município, em políticas públicas, situação comum nas periferias das cidades.

Tratamento das Entrevistas

A partir da gravação, foi feita a transcrição integral e minuciosa das falas dos trabalhadores (registrando, em detalhe, repetições, silêncios, pausas, risos, hesitações, exclamações, etc.). Cada entrevista transcrita foi considerada como uma unidade de análise ou um corpus, isto é, como dados linguísticos sobre os quais os tratamentos analíticos são realizados. O conjunto deles (corpora) forma o arquivo da pesquisa.

Efetuaram-se várias leituras do material transcrito, com constantes retornos às gravações, a fim de tentar compreender segmentos de falas inaudíveis e momentos mais densos da entrevista. Essas revisões levaram a numerosas correções da transcrição.

O tratamento das entrevistas se deu por meio de procedimentos de análise do discurso, tomando-se as entrevistas transcritas como discursos "produzidos a partir de lugares definidos na organização e estruturação sociais e endereçados a interlocutores que, supostamente, compartilham a mesma comunidade discursiva e uma mesma história coletiva" (Machado, 2005, p. 60).

A análise textual da fala dos trabalhadores do Comupra foi feita sobre cada corpus, isto é, sobre cada entrevista transcrita e transformada em unidade de análise. De cada uma, retirou-se um conjunto de sequências discursivas que apontam o sentido positivo (prazer) e negativo (sofrimento) do trabalho. O critério utilizado de seleção dessas sequências foi o referencial teórico escolhido, representados pelos trabalhos de Dejours (1992, 2004, 2007a, 2007b); Dejours e Abdoucheli (2007), Dejours, Abdoucheli e Jayet (2007) e Mendes (2007), revistos acima. Esses artigos teóricos sugeriram os termos-pivô e as expressões que permitiram selecionar as sequências discursivas pertinentes ao sentido do trabalho, como as especificadas nos resultados. Sobre o material vivo das entrevistas transformadas em texto, procurou-se entender o que cada entrevistado quis dizer, especialmente no que concerne ao trabalho realizado por ele no Comupra.

Paralelamente, foram consideradas as condições de produção do discurso: as informações relativas ao contexto e à situação do Comupra e de seus trabalhadores, obtidas com o questionário socioeconômico, consultas a jornais e documentos diversos da entidade como o detalhamento dos projetos Ribas/Correios, com informações sobre as diferentes frentes de atuação do Comupra, descrição do bairro e redondezas, histórico da entidade e outras informações que aparecem em anexos de Viana (2008), observação in loco e conversas informais que apontam as determinações sociais, econômicas, históricas e linguísticas que se apresentam imbricadas no discurso.

Assim, para analisar o discurso dos seis trabalhadores, levaram-se em consideração, simultaneamente, as sequências discursivas selecionadas teoricamente por meio da análise textual e as condições de sua produção, tanto no que diz respeito ao contexto de vida dos trabalhadores quanto à forma como as entrevistas foram coconstruídas.

Resultados

Os resultados da análise dos corpora revelam que o discurso enunciado pelos trabalhadores do Comupra enfatiza o predomínio do sentido positivo (prazer) do trabalho. O sentido negativo (sofrimento) aparece, porém com menos evidência. Como se verá, a principal informação de contexto que esclarece esses resultados diz respeito à organização flexível do trabalho.

No referencial teórico, encontra-se que, quando o trabalho representa oportunidade de aprender, adquirir conhecimento, transformar e criar, ele é positivo por ser gratificante e prazeroso. Essas situações de aprendizagem, criação e transformação encontram-se nas falas dos entrevistados, como exemplificadas nas sequências discursivas a seguir. Quando explícitos, os termos-pivô e expressões sugeridas pela teoria aparecem abaixo sublinhados, embora seu sentido só possa ser apreendido no contexto da sequência discursiva:

Eu digo que hoje aqui no Comupra, é um espaço muito rico, onde a gente aprende muito, a gente tem oportunidades para estar fazendo o que a gente acredita, né? Então, é um sentimento... muito gratificante, né? (Antônia)

A gente começou do início cavacando terra dura, fazendo um trabalho, um projeto com mais de trinta família na época. Todos nós organizamos e começamos aaa mexer. Então, a gente foi é... aprendendo. ... a horta não é só verdura, não é só planta medicinal; é conhecimento. Através da estrutura da horta nós nos transformou assim num ser humano para poder conversar com outras pessoas. ... [a horta] começou a me estruturar como pessoa cada dia aprendendo com cada família. ... uma coisa que aprendi demais na horta, o ouvir ... Então hoje eu cresci, nó! Demais, como pessoa! Igual hoje, hoje eu participo de reuniões, eu vou em qualquer lugar [Ele sabe, a partir da experiência na ONG, conversar e se relacionar com as pessoas em ambientes diversificados]. (Fernando)

uma das coisas que a gente começou a fazer foi de criar oportunidade em que a alegria pudesse fazer parte da vida das pessoas. Aí a gente usou aquela escola, fazendo eventos [reuniões, almoços, palestras e cursos, etc.] construindo, né, as coisas. ... nesses encontros, né, é que você vê e aprende muita coisa .... É legal que aí cê transforma também e cê sabe que cê fez parte daquela transformação. E isso é muito gratificante! ... é um trem assim, muito legal isso. É, é poder criar. ... e isso me ensinou demais, entendeu? (Itamar)

Observa-se nas sequências discursivas que a organização do trabalho mostra-se flexível, sem divisão fixa de tarefas. Essa informação é corroborada pelas observações in loco e pelas conversas informais. A pessoa tem liberdade de escolher participar dos projetos de que gosta. Tem liberdade para organizar seus horários, tarefas e tomar algumas decisões. Há uma diversidade de atividades que permite a interação do trabalhador com todas as questões tratadas pela ONG, e isso promove sua participação ampla. Há liberdade para criar e atuar de maneira dinâmica, característica associada ao sentido positivo, de prazer.

E... e aqui no caso, né, a minha atuação não restringe só ao alfabetizar. Enquanto educadora, é, eu, eu... assim, transito né (risos), um pouco em cada área [financeira, administrativa, contábil, horta, inclusão digital]. Na, na parte administrativa, na parte de das ações mesmo em relação a...a tudo. Então, a gente participa de uma forma assim mais ampla. (Antônia)

Várias vertente que a gente pega desde o começo é a [preservação da] mata, é a horta é a casa aqui mesmo. Então é o [ribeirão] Onça , então são várias lutas que passam por aqui, e a gente acaba participando de todas um pouquinho. (Iolanda)

[O trabalho no Comupra] te dá a liberdade de você trabalhar. Ele te dá a liberdade de você tentar. Coisas que o pessoal acha que não, mas ele te dá essa liberdade d'ocê dá com os burros n'água. Mas não tem problema, não, mas ocê vai tenta fazer. (Itamar)

Aqui não tem definido o que a gente faz. Aqui a gente faz assim, precisou, não tem outra pessoa pra fazer, você vai lá e faz. Eu que decido como vou fazer...[o trabalho]. [Ela adapta-se às demandas da comunidade e dos parceiros fazendo o que for necessário e o que estiver ao seu alcance para resolver as questões do dia-a-dia]. ... Continuo no financeiro, mando ofício, e agora quando precisa eu vou dar aula. (Lucinéia)

O fato de se tratar de trabalho coletivo, comunitário, traz igualmente o sentido de prazer ao permitir que as pessoas se juntem preservando suas diferenças e lutando por objetivos comuns:

questão do trabalho comunitário ... Você está realizando um trabalho que vai atingir pessoas que você nem conhece elas, entendeu? Aí seu grande ganho nisso vai ser a experiência, o aprendizado, o encontro com outras pessoas e a certeza de que você fez alguma coisa [para melhorar a situação], entendeu? Esse é que é o grande ganho. (Itamar)

[Sobre o sentido do trabalho na ONG] [...] tem um sentido muito grande. Pelo menos eu sou nascida e criada aqui na região no bairro. Então, eu conheço todo mundo. Quando você acaba podendo ajudar um pouquinho essas pessoas, que seja numa relação de cultura... né? Então, isso é uma satisfação muito grande. ... mas é mais por uma questão de gostar de fazer o que você gosta, de você sentir prazer naquilo que você faz e você vê resultado também, porque as lutas que a gente vem tendo desde 2001 a gente vai vendo resultado na comunidade. É o índice de violência que cai . É as lutas que a gente tem, é as coisas do [ribeirão] Onça, as coisas da mata [luta pela preservação da mata], a gente vê o progresso nisso e então isso deixa a gente muito feliz. (Iolanda)

Outras sequências discursivas mostram o trabalho como algo que dá sentido positivo à vida, que ajuda a ocupar a cabeça e o tempo, tem sentido de apoio, de equilíbrio, ajuda as pessoas a se estruturarem e a encontrarem outros caminhos e estrutura psiquicamente:

Comupra não é um acaso, Comupra pra mim é maktub .... [Algo predestinado e não ao acaso, segundo a entrevistada]. ... Há um ano atrás eu comecei inclusive a sonhar com uma instituição, com uma ONG ... Comupra pra mim foi um achado. (Izabel)

Na época pra mim quando eu vim pra cá... eu pensava que o problema é eu ir lá plantar mais eu não sabia que era eu mesmo que tava me reeducando a mim mesmo. Porque é... eu tenho problema de nervo né? Eu sou um rapaz um pouco nervoso. Então, já fiz tratamento, já tomei remédio controlado e... praticamente isso não funcionou. O remédio. É num funcionou até hoje e... quando eu passei por essa fase de dificuldade né! Então, é... aí eu fui e achei a horta como um apoio. Ela começou me estruturar como pessoa. ... mudei bastante né ... Funcionou e funcionou muito, eu espero que nunca mais eu precise beber um remédio,...né? ... isso que foi me estruturando. Porque a horta ela é uma coisa que... acontece com a horta é interessante, sabe? Ela... ela estrutura a pessoa pra trabalhar. ... Então, a horta é estruturar a pessoa pra viver em sociedade. ... isso me estruturou pra mim trabalhar. ... a horta pra mim é minha vida ..., a horta nos deu essa chance... de viver. É uma chance de viver viu! (Fernando)

E aí eu acho que hoje, por exemplo, o Comupra me ajuda muito nisso, entendeu? De me preencher, de de ter alguma coisa pra, pra fazer . ... eu acredito que eu não consigo ficar sem essa bagunça na minha cabeça. ... é um trem muito legal isso. (Itamar)

Acho que você consegue um equilíbrio. Você consegue fazer aquilo que você gosta que te dá prazer, você consegue ajudar os outros. Consegue ver resultado de si mesmo e ver resultado de seu trabalho. Onde não tinha um jardim, tem. (Iolanda)

É...Eu... sempre falo que quando a gente vem pensando que vai contribuir com o outro, aí a gente descobre que o maior beneficiado é a gente mesmo. Então aqui tem preocupação, mas tem muita coisa que dá prazer, e é como se fosse uma terapia. (Antônia)

O trabalho também promove a realização, o prazer, a satisfação e é gratificante:

tô desempregada, mas eu, uma coisa é você batalhar para sobrevivência, outra coisa é você batalhar para uma realização. ... tá sendo bem gratificante tudo isso que eu tô, que eu tô fazendo aqui. Eeee eu acabei entrando nesse projeto como instrutora da língua portuguesa. Eu estou amaaaando de paixão! Sua experiência não é nem de vanguarda; é jamais impensado ... [gargalhada]. Satisfação de realizar um sonho de ver uma criança sorrindo, de estar com um aluno que tá entendendo o que é ditongo crescente e decrescente é bom demais da conta! É isso aí. (Izabel)

encontrei o Comupra. Ah! Tinha tudo a ver com o que eu acreditava, essa proposta, né? De educação, participativa, a questão de cidadania, a luta por melhores condições de vida ... Então, é um sentimento... muito gratificante, né? Enquanto pessoa, enquanto profissional, eu só tenho satisfação... É muito prazeroso trabalhar aqui. (Antônia)

Estou no Comupra porque eu realmente gosto... do que eu faço aqui... né! (Lucinéia)

O trabalho possibilita a socialização e o estabelecimento de novos relacionamentos:

Quando cê traça um objetivo, quando cê quer chegar num lugar e vislumbra alguma coisa, é... e cê começa dividir isso com outras pessoas, aquilo que você pensa ... Então, a gente tem essa liberdade de, junto com os outros, construir aquilo que a gente acredita e fazer as coisas acontecerem, né ? (Itamar)

Então, a meu ver, no meu caso né. ? É um trabalho muito bom porque é uma maneira da gente... vivenciar novas amizades. (Antônia)

Quanto ao sentido negativo do trabalho, observa-se no referencial teórico e nas informações obtidas no Comupra que ele está relacionado com as condições precárias em que as pessoas trabalham, sem recursos financeiros e materiais para a realização das atividades. Alguns trabalhadores do Comupra se encontram excluídos do mercado formal de trabalho e das diversas formas de interação social pela sua própria imersão na pobreza. Ainda assim, lutam contra a falta de apoio dos políticos da região, das empresas privadas e do próprio governo. Além disso, fatos do tipo da não remuneração pelas longas horas de atividade dificultam o trabalho e geram sofrimento. Essas dificuldades podem ser identificadas nas sequências discursivas abaixo, algumas vezes de forma implícita, sem um marcador discursivo claro:

A gente entrava na horta, parece que a gente tava pagando pena fazendo aquele trabalho. As pessoas da escola tinha hora que olhava pra gente com indiferença. ... no início tudo é mais difícil. (Fernando)

Mas, dependendo da ação, nós chegamos a trabalhar 12 horas direto... (Antônia)

Aí, depois que virei tesoureiro... tô na luta até hoje, né? [...] na luta porque como o Conselho Comunitário é uma coisa voluntária, a gente tem que correr atrás, né? (Lucinéia)

as pessoas usam [exploram] o movimento comunitário. Esses caras aí usam, entendeu? Usaram! No dia da audiência pública lá, que teve, que aconteceu na escola, usou e caiu com a cara no chão junto com o político. ... os políticos tenta derrubá. (Itamar)

Lucinéia tá ficando 12 horas por dia no Comupra sem receber. (Itamar)

Considerações finais

Articulando as falas dos entrevistados e o contexto em que são produzidas, pode-se dizer que o discurso dos trabalhadores aponta que o trabalho no Comupra, para todos eles, caracteriza-se como uma atividade que dá orientação à vida, ajuda a estabelecer uma nova relação com a realidade, possibilita a formação de vínculos entre as pessoas e maior inserção social. Esses resultados corroboram a tese de Freud (1974), para quem o trabalho livremente escolhido é algo indispensável para a preservação da sociedade.

Além disso, a análise do texto e do contexto revela que para esse grupo o trabalho é um fator de equilíbrio psíquico em função do reconhecimento, da construção de uma identidade e do espaço promovido para que as pessoas possam sair da "margem" e se inserirem em processos que dão voz e vez a elas como pessoas e cidadãos, permitindo-lhes, tal como sugerido por Enriquez (2001), fazer algo, existir, ter uma identidade e vencer a loucura. Diante disso, ratifica-se que o trabalho constitui aspecto importante da subjetividade e é central na vida das pessoas (Dejours, 2004).

A análise do discurso permite identificar a existência de prazer e sofrimento no trabalho das pessoas que atuam no Comupra, confirmando os estudos de Dejours (2004), Dejours (2007a), Dejours (2007b), Dejours e Abdoucheli (2007), Dejours, Abdoucheli e Jayet (2007) e Mendes (2007). Esses autores afirmam ser o prazer-sofrimento um constructo único e dialético, resultado da relação entre os aspectos subjetivos do trabalhador, a organização do trabalho e o contexto no qual o sujeito está inserido. Reiteram que o sofrimento provocado pelas dificuldades vivenciadas no trabalho pode ser transformado pelo trabalhador em prazer quando a organização do trabalho é flexível.

No que se refere à construção da identidade de trabalhadores, a teoria de Dejours e Abdoucheli (2007, p. 143), que veem o trabalho não apenas como "um teatro aberto ao investimento subjetivo", mas também como "espaço de construção do sentido e, portanto, de conquista da identidade, da continuidade e historicização do sujeito", aplica-se muito bem a alguns trabalhadores do Comupra que conseguiram fortalecer sua identidade de trabalhador após a participação na ONG. Isso deu a eles a possibilidade de mudar a própria história a partir do trabalho.

De fato, os entrevistados relatam ter liberdade para escolher as atividades que querem desenvolver e para definir seus dias e horários de trabalho. Opinam quanto à forma de realização da tarefa e não há ênfase em hierarquia. Algumas decisões são tomadas de maneira compartilhada pelo grupo, outras são centradas no atual presidente, principalmente as questões estratégicas. Cada trabalhador é responsável pelas questões relacionadas ao projeto ou ação que escolheu desenvolver.

Quanto ao sentido negativo (sofrimento) do trabalho vivido pelos trabalhadores do Comupra, ele é pouco influenciado pela organização do trabalho, que, como se viu, é flexível e promotora de autonomia. A vivência de sofrimento se relaciona às contingências de um trabalho comunitário realizado sem recursos e apoio necessário, caracterizando a precarização do trabalho. São os fatores externos como falta de recursos financeiros para desenvolver as ações na comunidade e para remunerar os trabalhadores, falta de apoio das empresas privadas e instituições públicas e as rixas com os políticos e demais pessoas atuantes no bairro que causam insatisfação e sofrimento aos trabalhadores.

Resumindo, neste estudo, as vivências de prazer surgiram como predominantes sobre as de sofrimento. Manifestam-se no reconhecimento social, na satisfação em trabalhar numa área que permite aprendizagens constantes, na autonomia para organizar o horário de trabalho, nas relações saudáveis com os colegas e na possibilidade de transformação pessoal e da comunidade. Tais vivências são indicadores de saúde no trabalho, proporcionam estruturação psíquica e expressão da subjetividade (Dejours, 2004; Dejours & Abdoucheli, 2007).

Observou-se igualmente que todos os trabalhadores do Comupra se identificam com a causa do trabalho comunitário e acreditam que essa é a maneira que eles têm de mobilizar as pessoas e o Poder Público a tomar medidas para a melhoria das condições de vida da população excluída pela sociedade. Esses resultados revelam que o trabalho no Comupra para esses trabalhadores é um modo privilegiado de fazer algo para si mesmos, de fazer uma obra social, de ter uma identidade e de vencer o risco da loucura, como expõe Enriquez (2001), e de romper com uma vida esvaziada de alegria e de sentido, como revela Borsoi (2007).

Nota-se que o sentido do trabalho no Comupra, revelado no discurso dos trabalhadores, é positivo, prazeroso e fonte de equilíbrio psíquico, principalmente pelas características da organização do trabalho, que permite ao trabalhador lidar com sua angústia existencial de cidadão pobre ou que convive de perto com a pobreza e a exclusão social.

Então, conclui-se que o trabalho no Comupra ajuda a preservar a saúde mental dos trabalhadores por meio da mobilização da subjetividade das pessoas que transformam o sofrimento em prazer e com isso dão sentido à vida.

Recebido em: 01/03/2009

Revisão em: 26/06/2010

Aceite final em: 27/11/2010

Eliete Augusta de Souza Viana é Psicóloga, mestra em Administração pela Faculdade Novos Horizontes. É professora do Centro Universitário UNIBH e desenvolve projetos de pesquisa e extensão em Psicologia Comunitária e em Psicologia do Trabalho. Endereço: Rua Joaquim Francisco da Silveira, 447. B. Ipiranga. Belo Horizonte/MG, Brasil. CEP 31160 200. Email: elietepsi@yahoo.com.br

Marília Novais da Mata Machado é Doutora em Psicologia pela Universidade de Paris Norte (Paris XIII). Foi professora titular na Universidade Federal de Mins Gerais (UFMG) e na Faculdade Novos Horizontes (FNH). Atualmente é professora Visitante Nacional Sênior (Capes) na Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ), Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2011
  • Data do Fascículo
    Abr 2011

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2009
  • Aceito
    27 Nov 2010
  • Revisado
    26 Jun 2010
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