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Jovens em situação de rua: espaço, tempo, negociações de sentido

Street children: space, time, sense negotiations

Resumos

Trata-se de uma pesquisa etnográfica, realizada durante três meses, em Natal/RN, com grupo de pessoas em situação de rua (em torno de 11), predominantemente jovens entre 16-18 anos. Dois itens de investigação: as determinações (a) do ambiente físico e social das ruas e (b) da paisagem discursiva, construída em negociações de sentido com outros grupos, sobre as condições de existência desses jovens. Foram analisadas a construção sócio-histórica da condição social da rua e as práticas de espaço desses jovens e de outros grupos com quem interagem. As práticas de espaço de cada grupo são diferentes, produzindo o conflito entre eles. Essas duas análises se mostraram inseparáveis na compreensão dos modos de produção de sentido por e sobre esses jovens em práticas sociais com que estão implicados, pelas quais se esclarece também a produção de sentimentos de insegurança e hostilidade entre os jovens e os outros grupos estudados.

jovens; rua; etnografia; espaço; tempo


This is an ethnographic research, conducted over three months, in Natal/RN, with a homeless group (about 11), prevailingly young people between 16 and 18 years old. Two items of research: the determination a) of physical and social environment of streets and b) discursive landscape, built in sense negotiations with other groups, on these youths and their lives. The socio-historical construction of the social condition of street was analyzed, also the space practices of these youths and other groups with whom they interact. The space practices are different for each group, generating conflict among them. These two analyses are inseparable of the understanding of production of meaning by and about these youths, inside social practices that they are involved. Those analyses explain the production of insecurity and hostility feelings among these youths and other groups too.

street children; ethnography; space; time


Jovens em situação de rua: espaço, tempo, negociações de sentido

Street children: space, time, sense negotiations

Hugo Juliano Duarte Matias

Universidade de Brasília, Brasília-DF e Faculdade de Tecnologia e Ciências da Bahia, Feira de Santana, Brasil

RESUMO

Trata-se de uma pesquisa etnográfica, realizada durante três meses, em Natal/RN, com grupo de pessoas em situação de rua (em torno de 11), predominantemente jovens entre 16-18 anos. Dois itens de investigação: as determinações (a) do ambiente físico e social das ruas e (b) da paisagem discursiva, construída em negociações de sentido com outros grupos, sobre as condições de existência desses jovens. Foram analisadas a construção sócio-histórica da condição social da rua e as práticas de espaço desses jovens e de outros grupos com quem interagem. As práticas de espaço de cada grupo são diferentes, produzindo o conflito entre eles. Essas duas análises se mostraram inseparáveis na compreensão dos modos de produção de sentido por e sobre esses jovens em práticas sociais com que estão implicados, pelas quais se esclarece também a produção de sentimentos de insegurança e hostilidade entre os jovens e os outros grupos estudados.

Palavras-chave: jovens; rua; etnografia; espaço; tempo.

ABSTRACT

This is an ethnographic research, conducted over three months, in Natal/RN, with a homeless group (about 11), prevailingly young people between 16 and 18 years old. Two items of research: the determination a) of physical and social environment of streets and b) discursive landscape, built in sense negotiations with other groups, on these youths and their lives. The socio-historical construction of the social condition of street was analyzed, also the space practices of these youths and other groups with whom they interact. The space practices are different for each group, generating conflict among them. These two analyses are inseparable of the understanding of production of meaning by and about these youths, inside social practices that they are involved. Those analyses explain the production of insecurity and hostility feelings among these youths and other groups too.

Keywords: street children; ethnography; space; time.

Introdução

A literatura científica que trata das crianças e jovens em situação de rua toma o espaço das ruas, quase sempre, como fator de risco, aliás, fator central que concerne essa população. Toma-o como algo dado, em seu sentido naturalizado, inequívoco. Disso dá testemunho o rol de temas que é lugar-comum entre estudos que constituem essa literatura: (a) quanto tempo as crianças ou jovens passam na rua, se voltam para casa ao fim do dia, quais atividades na rua, se estão acompanhadas1 1 É preciso mencionar que, entre todos os temas, precisamente este conjunto fomentou uma longa discussão acerca da natureza da categoria "de rua". Tal discussão produziu, ainda no final da década de 80 – principalmente no Brasil –, uma dicotomia amplamente difundida, que diferenciava crianças e jovens "de rua" e "na rua". Essa dicotomia deu forma aos mais diversos programas de pesquisa com essa população no início da década de 90, mas, pelos diversos problemas a ela vinculados, foi logo abandonada e substituída pela expressão "em situação de rua". Os artigos de Aptekar e Abebe (1997) e de Koller e Hutz (1996) devem facilitar a compreensão deste debate. Para uma revisão mais abrangente, (Matias, 2008). ; (b) por que estão na rua, quão pobre é sua família, qual a composição da família, quantos filhos, se é a mãe chefe da família, a natureza de sua relação com a família; (c) como a rua desfavorece o desenvolvimento saudável. Trata-se sempre da pergunta sobre a natureza do vínculo à rua, especificamente, o que gera e como se configura a situação de risco.

Tal disposição científica tem sua história vinculada a uma herança de representações gestada no Brasil e no mundo (Matias, 2008). Este relato pretende que os sentidos que a rua assume hoje – risco, inclusive – também têm história, que o processo de sua construção está intrinsecamente relacionado à condição social da rua, como um espaço de negociação em que um grupo, num regime específico de ocupação do espaço, enfrenta dificuldades, também histórica e socialmente construídas, no esforço de produzir suas próprias formas de existência; o que, por sua vez, implica outras consequências sociais, psicológicas e físicas.

A rua sob nova ordem

Ora, a ideia que apresenta a rua associada ao conceito de risco pode ser compreendida como uma versão daquela imagem produzida na esteira das transformações sociais, políticas, culturais, econômicas e psicológicas que resultaram na modernidade; desde então reproduzida, multiplicada, numa cadeia de associações metonímicas de negativização e resistência que fizeram da rua um espaço completamente disponível ao mais polifônico imaginário urbano de nosso tempo. Ela comportava um regime de sociabilidade que punha em relação de continuidade diversos espaços e tempos da vida pública e privada (Revel, 1991). As necessidades e os rumos do reordenamento social produzidos pela modernização das instituições, no entanto, levaram à distinção e cisão desses espaços, identificando-os, cada um, a uma esfera da vida (Chartier, 1991). Com o surgimento da família nuclear burguesa e das demandas de um novo regime de subjetivação, a consequente necessidade de alocar-lhe espaço produziu a casa como a conhecemos, revestida de novo sentido, lugar da esfera privada, da intimidade, fechada sobre si mesma. A ideia da casa passou à de proteção no interior, radicalizou-se. Se antes existia o dentro e fora da cidade, no interior da cidade passou a existir o dentro e fora da casa, e na casa, o dentro e fora da cozinha, do quarto, etc. O fora, mais do que nunca, o representava a rua.

No pensamento iluminista, a casa se tornou signo da ordem, pois abrigava a família, que, por sua vez, deveria fazer mediação entre indivíduo e Estado (Hegel, 1821/1969) –, para integrá-lo à ordem do convívio social. As ruas, por outro lado, se tornaram signo da escuridão; sem o apoio de qualquer mediação, eram o caos e a desordem a serem subjugados pelo Estado. Para estar na rua, o cidadão deveria apresentar insígnias de sua resistência à desordem que ela infundia, um saber-agir sustentado no conhecimento da diferença entre todos os espaços: a civilidade (Chartier, 1991). Ela respondia às exigências de coordenação de comportamento entre pessoas, tão mais rígida em suas regras e prescrições quanto mais impessoal a situação, quanto mais no interior da esfera pública estivesse inscrita. Por isso, se opõe à intimidade e é tão própria do espaço da rua, fora, onde está o outro, pois o outro é aquele de quem não se sabe o que esperar.

Tão sinuosas quanto a vida nas ruas eram as próprias ruas. Seu desenho fora herdado do tempo em que acolhiam pessoas, seus encontros, e atendiam à necessidade de permanência; quando seu traçado era função de ajuntamentos, e não o contrário (Mumford, 1961/2004). No processo de submissão das ruas à nova ordem, ela foi racionalizada e retificada. Somente com o advento e agravamento do capitalismo industrial, com o planejamento urbanístico, a rua se tornou outra, cujo sentido se orientava pela ideia de tráfego e sua eficácia, e a circulação nas cidades passou a ser tratada como fluxo, segundo a racionalidade do transporte e também do deslocamento (Lillebye, 1996). Apenas assim a rua, que se tornava obra da classe dominante, passou a ser também utilizada por ela (Cabral, 2005).

No Brasil, essa dialética assume seus contornos próprios. A oposição entre casa e rua localiza "categorias" diferentes de pessoas, personagens. Para DaMatta (1997a), constituem duas classes sociológicas complexamente opostas, com regras próprias, possibilidades de ação, gestos, roupas, visões de mundo, éticas particulares. Se "a história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro" (Freyre, 1933/2003, p. 44), por outro lado, DaMatta (1997b) aponta para o fato de que expressões como "olho da rua" e "rua da amargura" dizem do isolamento, impessoalidade, desaconchego que a rua representa, em oposição ao "sinta-se em casa", com o qual sossegamos. A rua, ao contrário da casa, é lugar da individualização, em que cada um zela por si, e ainda, onde se pratica a subversão de valores e política dominantes. A individualização e a subversão constroem o imaginário sobre a rua no Brasil. A tal ideia se associam o imprevisto, o acidente e a paixão (DaMatta, 1997a), enquanto a casa associa-se à ordem, onde tudo está em seu lugar. Na casa, as associações definem-se pelo parentesco, mas na rua, pela escolha, pois demarca o espaço público, não controlado. "Os grupos sociais que ocupam a casa são radicalmente diversos daqueles da rua" (DaMatta, 1997a, p. 91).

A rua, espaço de exposição para os pobres, suas condições de vida, tornou-se também uma vitrine para o crime, comportamentos marginais e para a "questão social", com o avanço da modernidade. Também o discurso social dominante sobre ela justifica sua imagem de escola do vício (Moura, 1999). E, sob essa condição, a rua acaba compondo um processo complexo, para cuja descrição Sarti (1995) oferece outra dimensão. Segundo ela, a rede de sociabilidade em que crianças e jovens de famílias pobres são inseridos integra diversas pessoas em relações variadas de parentesco, companheirismo e vizinhança, num espaço mais amplo que a casa, e cria as condições para sua circulação pela comunidade, estabelecendo continuidade entre casa, bairro e rua. Os processos psicossociais que envolvem essa família a diferenciam e distanciam do modelo idealizado de família nuclear, cuja comparação desfavorece a família pobre e lhe imprime a aparência de desestruturação e desorganização. Tal caráter da socialização de crianças e jovens, aliado ao valor da reciprocidade entre eles, seus pais e cuidadores, e ao valor pedagógico do trabalho – são premidos à busca de atividades remuneradas na rua para compor a renda familiar –, determina uma forma particular e subversiva de experienciar a rua. Assim, a rua faz parte da vida das crianças e jovens de famílias pobres de modo tal – e num processo historicamente construído – que não pode ser compreendida senão nos próprios termos de uma cultura própria: a cultura da rua2 2 Aptekar (1996), por exemplo, chama a atenção para o fenômeno cultural como um fator negligenciado pela maior parte das pesquisas realizadas com essa população. Do mesmo modo, Lucchini (2002) chama a atenção para a importância da socialização em uma subcultura de rua, para a compreensão do fenômeno da saída e permanência na rua dessas crianças e jovens e Gregori (2000) apresenta evidência empírica disso em um estudo interessantíssimo. . Torna-se parte de sua socialização e, eventualmente, exerce também fascínio e se torna em descaminho (Vogel & Mello, 1996).

Questão de método

Uma vez na rua, essas crianças e jovens se integram a complexos interacionais cujo sentido se esclarece pela forma nova e particular dessa dinâmica de ocupação espacial. Nesta pesquisa, de natureza etnográfica, estudou-se a relação entre jovens em situação de rua, essas formas de ocupação espacial – com que produzem seu espaço de vida – e as novas condições de sociabilidade decorrentes. Participou da pesquisa um grupo de pessoas em situação de rua, da cidade de Natal/RN, cujo número variou em torno de 11 pessoas, a maioria de jovens (com exceção de três deles, todos os outros tinham entre 16 e 18 anos). Três mulheres entre eles; uma delas, mãe de dois meninos e tia de uma menina. Não havia outras relações de parentesco. A descrição dos detalhes metodológicos, do processo de entrada em campo, de aceitação de minha presença junto ao grupo, a construção de minha participação entre eles, assim como o referencial teórico e interpretativo para a investigação das negociações de sentido já foram descritos noutro trabalho (Matias & Francischini, 2010). Passo ao relato dessa experiência.

Fenomenologia do cruzamento

O modo como cheguei a saber da existência desse grupo diz da imagem pela qual é tomado. Sabendo de meu interesse de pesquisa, amigos e colegas de trabalho me traziam rumores da existência dos "meninos" que moravam num cruzamento conhecido da cidade, que eram perigosos, usavam drogas. Caso eu fosse até eles, deveria tomar cuidado. De fato, fui munido de algum receio. Chegando ao lugar onde estavam, senti uma forte sensação de insegurança e medo. Mas, à medida que me deixava estar ali, alguns dias, passei a perceber que esses sentimentos constituíam o primeiro item de investigação. Chamou minha atenção a relação entre (a) a paisagem de sua localização (um cruzamento), (b) a paisagem discursiva que os situava (alteridade, risco) e (c) meus sentimentos de medo e insegurança.

Embora já dispusesse de certo conhecimento sobre pessoas que vivem na rua, esta foi minha primeira experiência concreta de relação com o mundo desses jovens, o contato com essa paisagem discursiva, mas não apenas de ouvir falar, como acontece à maioria das pessoas. Ela me afetou conforme seu objetivo de prevenir, preparar, precaver acerca do desconhecido. Se o conhecimento acadêmico era uma mediação a um objeto abstrato, essa outra mediação foi a primeira entre mim e a alteridade real, material e mundana que os jovens representavam.

O lugar, espaço intersticial, suporta grande fluxo de veículos, sem equipamentos para o tráfego de pedestres, desestimula a passagem e repele a permanência das pessoas (ver Figura 1). Uma das avenidas desse cruzamento situa um fim-de-bairro, sem marcar, no entanto, o início de outro, uma fronteira com o nada. É via de entrada por um caminho longo e vasto, ponto de passagem por excelência, onde as pessoas não se demoram pela simples falta de acolhida. Parecia sempre muito deserto, silencioso; era, por isso, estranho e inóspito. E eu tinha a constante impressão de que somente aqueles jovens é que sabiam estar ali.


Eu os observava fazerem nada por algum tempo, conversarem, voltarem a dormir durante a manhã, sentarem à beira da calçada, numa esquina onde sempre ficavam e passavam a noite. Na esquina oposta àquela, vestígios de sua presença. Sob o toldo ali, embalagens e sobras de comida, um pequeno espaço gramado com uma falha, cujas dimensões envolveriam uma ou duas pessoas deitadas onde poderiam se abrigar do sol ou da chuva. Perguntava-me sobre diversos elementos desse espaço e tempo que compõem o ambiente do cruzamento, via as transformações que sofre ao longo do dia e da noite, quando chove ou faz sol, quando faz frio ou muito calor, como são estruturados os diversos programas comportamentais que o lugar sustenta. Pois as atividades deles se repetiam diariamente, sem alterações. Como rotina. Acordavam amontoados, já sujos, pois dormiam sobre o chão ou colchões recolhidos do lixo. Caso não tivessem guardado alguma comida, levantavam e iam pedir o "café da manhã" na vizinhança. Somente no meio da manhã começavam sua atividade entre os carros, limpando-os em troca de "ajuda" (não era, de fato, um pagamento), ou pedindo, simplesmente. Faziam-no até ter dinheiro para o almoço, ou até que alguém lhes desse o que comer. Sob o sol do dia inteiro, sobre o asfalto quente, e até à noite, tarde da noite. Constantemente, saíam daquele espaço para pegar água, para lavar carros. Iam e vinham como se fosse do seu lugar.

As práticas de espaço naquele ambiente eram completamente diversas entre esses jovens, o grupo dos moradores (pessoas que têm suas casas no entorno desse cruzamento), e o grupo dos passantes (todos que passam ali de motocicleta, bicicleta, carro, ônibus). Refiro-me às práticas de espaço em sua propriedade transformadora, a ação que convoca o lugar ao seu serviço. Ao mesmo tempo em que essa ação toma o lugar para enunciá-lo como espaço, para torná-lo em espaço de existência, essa mesma ação reproduz o lugar, tornando-o novidade. Numa acepção aqui derivada e modificada de Certeau (1994), para quem "o espaço é o lugar praticado" (p. 202), essas práticas de espaço realizam e promovem o lugar. Falo do espaço experienciado, não do geométrico, mas do espaço antropológico descrito por Merleau-Ponty (1945/1994). Por fim, essa descrição não diz respeito somente à relação dos grupos com o ambiente físico do cruzamento. Faz parte das práticas sociais que constituem a realidade em que esses grupos estão imersos, estruturam o cotidiano e circunscrevem identidades sociais, distinguem formas de interação e apreensão mútua entre pessoas e entre grupos.

As primeiras práticas de espaço cuja consistência registrei foram as dos moradores. Eles saíam à rua para varrer a calçada, para o trabalho, às vezes sentavam à porta a olhar o movimento, quando se encontravam para conversas; recebiam outras pessoas à sua porta, mas sempre à distância dos meninos. Algumas vezes, saíam para lhes oferecer comida, ou trazer água, se eram solicitados. De fato, a rua é parte de seu cotidiano. Construída pela rotinização de modos de estar, tem a forma do cotidiano, e constitui aquela parte que é estruturada em função do estar-fora-de casa – particularmente, aquelas ruas dos arredores. É preciso lembrar, uma vez mais, a importância da distinção entre casa e rua. A rua, como já sugerido, representa a negatividade em relação à casa e, no entanto, elas se orientam mutuamente como referência. Em função disso, aquelas ruas se constituem, imaginária e simbolicamente, como elementos significativos e identitários: a rua do lado, de trás, sua rua. Localizam lembranças, afetos, partida e chegada de todos os percursos. Portanto, são lugar, à medida que as define e lhes confere significado. Em experiências ligadas à casa, que compõem o cotidiano em seu exterior.

Para Tuan (1983), a organização e fixação semântica de um espaço, no interior da experiência, é o que o transforma em lugar: são espaços de origem e fim, de permanência e de referência (Certeau, 1994). Assim, as ruas são alheias à experiência até serem apropriadas, espaços tornados lugares. Somente depois de serem refeitas como referência do cotidiano, são praticadas novamente como espaço. Contudo, a rua não se torna lugar da mesma forma que as casas, pela relação dialética entre elas. Ela separa territórios de existência, formas de existir, instaura lugares, mas diversamente. É por isso que casa e rua não podem constituir referência uma para outra de modo completamente reversível. A casa é referência para a rua dum modo que a rua não pode repetir. A casa representa o interior. Por conseguinte, todos que têm a casa como referência territorial estão inseridos em práticas de espaço diferentes dos que não a têm. Quando as pessoas se encontram na rua, as mesmas determinações territoriais se infundem sobre todos os que estão sob efeito dessa dialética, em função do modo como nela se inserem. Os meninos que vivem na rua estão sempre no exterior, tudo fazem no exterior, em tudo dependem do exterior, não têm uma referência no interior. Segundo Bachelard (1957/1993), "o exterior e o interior formam uma dialética do esquartejamento ... Ela tem a nitidez crucial da dialética do sim e do não, que tudo decide" (p. 215). Ora, aqui, uma comunidade foi esquartejada, pois os meninos foram apartados do laço social que liga as pessoas nos espaços da cidade, assim como os espaços foram apartados imaginariamente. Os meninos representam negatividade por seu vínculo ao exterior. Sua participação na vida social é assim construída; representam o descontrole da falta da casa: "são da rua; não se sabe o que podem fazer".

A rua não é a mesma para os passantes. Obviamente, também estão inseridos naquela dialética, no entanto, aquelas ruas não são tomadas pelos passantes em suas particularidades, como acontece aos moradores. Aqueles estão passando, em algum veículo, no caminho para o trabalho, para casa, para algum lugar onde desejam chegar ou de onde desejam sair. Quando são obrigados a parar no semáforo do cruzamento, o que fazem é esperar: motociclistas põem os pés no chão, motoristas e caronas põem o braço na janela, batucam o painel do carro, nos ônibus, passageiros se ocupam com o que lhes é possível; mas todos olham à frente. E quando olham de lado, se distraem, como que relaxando do percurso que têm diante de si.

As ruas são parte do itinerário. O semáforo, equipamento organizador e disciplinador do tráfego, marca um ponto de espera no percurso: motoristas e passageiros são interrompidos em sua passagem. É também um equipamento da tecnologia da movimentação que gera um outro ideal, dos contratos de tráfego, simbólico, que sustenta as regras de coordenação do comportamento no tráfego, com o qual as pessoas nos veículos se relacionam. Isso cria especificidades no espaço vital dos passantes no interior dos veículos. O fato de estarem num percurso, compondo o fluxo, remetidos ao outro ideal que regula a passagem, reduz as possibilidades de interação com pessoas concretas. As possibilidades identitárias que esses "lugares" poderiam oferecer também são reduzidas. Por fim, o tempo do tráfego – inscrito na experiência do passante como urgência de passar, urgência de chegar – gera no interior da experiência do passante o tempo-lixo, a cada vez em que essa passagem é interrompida.

A dinâmica relacional da rua prioriza a passagem em detrimento do encontro. Para Sennett (1974/2002), a modernidade transformou a vida íntima no vértice para onde confluem todos os interesses, acarretando o recrudescimento da dimensão social da vida. Consequência disso é que o espaço público está sendo rapidamente esvaziado, e lhe dá nitidez o conjunto de modificações por que passa o espaço público urbano, que, ao mesmo tempo em que oferece acolhimento desde a estética da visibilidade, promove isolamento social. Assim, esse espaço "se tornou uma derivação do movimento" (Sennett, 1974/2002, p. 28), de modo que as ruas, e mesmo outros equipamentos antes destinados à permanência, como as praças, só conseguem sustentar a passagem. Parte fundamental da ansiedade que esse espaço produz diz respeito ao eventual constrangimento da movimentação que os equipamentos disciplinadores do tráfego promovem – semáforo. Sob tais condições, "alguém pode se isolar num automóvel particular para ter liberdade de movimento ... deixa de acreditar que o que o circunda tenha qualquer significado além de ser um meio para chegar à finalidade da própria locomoção" (p. 29).

Podemos pensar, partindo do pensamento de Augé (1994), que a prática de espaço que extirpa aos lugares suas propriedades relacionais, indentitárias e históricas torna-os não-lugares. Porque o espaço dos não-lugares não pode produzir relação nem identidade, o que produz é "tensão solitária" (Augé, 1994, p. 87), "solidão e similitude" (p. 95). Entretanto, lugar e não-lugar são formas; não daquilo que os espaços são, mas de como são praticados. O mesmo espaço é lugar e não-lugar, o mesmo tempo é cotidiano e tempo-lixo, porque as experiências se multiplicam nesse ambiente.

As práticas de espaço dos meninos no cruzamento são, também, diversas das práticas dos dois outros grupos. O mesmo espaço cheio das significações já aludidas é ocupado e utilizado por eles para todas as suas atividades, as mais variadas. Essas práticas inusitadas subvertem os sentidos atribuídos às ruas à medida que dão sítio a todo o tempo vital do grupo, não obstante a rua não o acolha como outros espaços o poderiam acolher. Isso significa que, conquanto eles façam as suas refeições na rua, ela não acolhe o tempo do almoço ou do jantar, instrumentos, instituições que isso comporta: não há um horário certo ou faixa de horário provável, não há um espaço separado para isso, nem ajuntamento, não há além de uma pessoa comendo quando é oportuno. Isso também ao tempo de dormir e acordar, pois a rua não oferece a intimidade que compõe a instituição desse tempo. Mesmo seu trabalho dificilmente toma as feições de trabalho, porque lhe faltam os traços do ambiente adequado.

Mesmo assim, ao entardecer, quando um dos rapazes do grupo que estava correndo sobre as dunas, suando um pouco, volta ao cruzamento, vai tomar um banho no posto de gasolina, e chega à calçada de uma das avenidas, num dos cantos do cruzamento, para estar com os seus, conversar, pensando, ainda, em trabalhar até que se aproxime o fim da noite; quando eles estão esperando os carros no semáforo, como se os esperassem para recebê-los em seu espaço; e quando recebem amigos de outros cantos da cidade, pessoas que vivem como eles. Nesses momentos, o ambiente não parece hostil, se reveste, também ele, com o véu do cotidiano. O ambiente oferece pertença, mas uma pertença construída pela presença transformadora da colonização de todo dia, de toda hora, pelas suas práticas de espaço.

Esse ambiente resiste sempre à apropriação, pois o estilo de ocupação do seu espaço pelos meninos é comparável ao perambular, sob a forma definida por Certeau (1994), "é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio. A errância, multiplicada e reunida pela cidade, faz dela uma imensa experiência social de privação de lugar" (p. 183). A relação entre esse espaço e esse grupo negativiza a ambos, diante dos olhos alheios. Essa prática de espaço não inscreve, no cruzamento, os traços do lugar, tampouco do não-lugar. O ambiente assume as feições de um híbrido, as propriedade de um antilugar, que oportuniza relações sociais e pessoais, mas situadas num tempo particular, precipitação entre a falha no cotidiano dos moradores e o tempo-lixo dos passantes, rápido e sem propósito, cria relações adulteradas, estigmatizadas do viver na rua, e obstruídas em suas potencialidades de integração social. Como se pode ver na Figura 2, é na dimensão temporal a maior tensão entre meninos e passantes, pois aqueles se precipitam, em suas estratégias de sobrevivência, sobre o tempo que estes têm como desperdiçado, tempo de vulnerabilidade. Os meninos são ameaça em seu interior. E a maior tensão entre eles e os moradores é na dimensão espacial: a seguir.


Giddens (2003) propõe que as formas de interação que garantem o que chama de integração social são aquelas ocorridas em situações de copresença. Elas favorecem a reciprocidade de práticas entre atores sociais. No entanto, as formas de interação ocorridas no ambiente do cruzamento não configuram condições plenas de copresença, nem entre os meninos e os motoristas e, tampouco, entre aqueles e os moradores. A rua, de certo modo, desfavorece a interação social e as relações entre os meninos e os outros, especialmente, os moradores. Produz-se uma lacuna de convivência no cruzamento, entre os moradores e os meninos, que reduz suas possibilidades de ancoramento ao espaço. Toda história produzida ali é sempre pronta para ser esquecida, e as formações identitárias, assim disponíveis a eles, são aceitas enquanto não se podem rejeitar. Portanto, se suas práticas de espaço lhes dispõem relações sociais, história e identidade, também lhes privam disso.

Esquemas de negociação espacial e interacional

O espaço desse cruzamento tem servido como mediação pela qual os meninos e os moradores negociam os sentidos acerca de sua ocupação, segundo item de investigação para o qual a minha atenção foi convocada. Nas conversas com os moradores, suas falas trouxeram diversos índices de polifonia (Koch, 2001) que marcam seu vínculo a outras vozes. Teresa (nome fictício, como todos os outros citados aqui) me contava que os meninos do cruzamento incomodam bastante a vizinhança com a sua presença, que usam drogas, mas que não roubam, nem assaltam (ela trabalha num posto de gasolina local). Segundo as suas suposições, se os meninos fizessem isso, teriam sido retirados daquele lugar. Já para uma moradora,

Olga: eles são... a impressão que eu tenho é a seguinte: eles são pessoas humanas como nós somos... certo? só que eles não tiveram assim... vamos dizer... uma formação... que nós tivemos... uma educação... uma estrutura familiar que nós tivemos... aí... por essa razão é que eles estão aqui... se encontram aqui... mas na verdade eles são ta/ pessoas humanas como nós... como eu já falei né?

Para os dois casos, o mesmo índice de polifonia – "mas" – cria discursivamente duas realidades possíveis, duas possíveis conclusões acerca de quem são os meninos, entre as quais se escolhe uma. A afirmação de que os meninos não roubam nem assaltam – Teresa –, introduzida por um operador argumentativo que cria uma situação de adversidade, conta, para a construção de seus sentidos, com outra afirmação subjacente, subentendida, outra conclusão a seu respeito, a de que eles roubariam e assaltariam, suposta para que se lhe possa opor. Essa suposição é colhida, obviamente, de um Outro discurso que os acusa disso – a paisagem discursiva a que me referia –, que, portanto, os aprecia de uma forma diversa daquela feita por Teresa. Ainda mais interessante é o fato de que sua argumentação conta, para obter êxito, com outras premissas colhidas também desse Outro discurso, a de que roubo e assalto, se praticados pelos meninos, levariam à sua expulsão daquele cruzamento. Como a expulsão não aconteceu, ela decide pela conclusão de que eles não são ladrões e assaltantes. Algo semelhante acontece relativamente à fala de Olga, quando afirma que, na verdade, são pessoas humanas como nós. Se o "mas" cria discursivamente um outro mundo possível, ao qual a conclusão decidida se opõe, a expressão "na verdade" reforça a oposição. A conclusão de que eles não são seres humanos como nós é a conclusão possível. O seu contrário é uma ressalva e a conclusão decidida. Ora, se essa ressalva tem lugar em sua argumentação, é porque o cálculo feito acerca das minhas expectativas deveria atribuir a ela o pensamento rejeitado. No entanto, posso pensar que, no mesmo movimento de construção dessa ressalva, ela estaria denunciando os seus próprios preconceitos, ou a sua aquiescência aos sentidos colhidos da paisagem discursiva que situa os meninos.

Essa fala revela ainda outra dimensão da relação com o Outro discurso. A estratégia argumentativa de Olga para conduzir à conclusão de que os meninos são seres humanos como nós oferece tal afirmação a despeito de outra: não a despeito de que eles não tiveram educação, estrutura familiar, mas a despeito de que estão na rua. Trata-se de uma ressalva à sua situação de rua, e não a outra qualquer. Assim, a situação de rua vivida pelos meninos poderia levar a crer que eles são menos que humanos como nós. No entanto, quando essa situação se explica pelos outros fatores, anteriores à rua – falta de educação e estrutura familiar –, só então se lhes devolve à condição de humanidade, ou se lhes ameniza a condição alternativa – afinal de contas, a "culpa" por estar na rua não pode ser atribuída a eles. A questão que permanece é "por que a situação de rua reduziria os meninos em sua humanidade?".

O que identifica a fala e a posição das moradoras tem que ver com o fato de que suas impressões se sustentam sobre a lacuna de convivência, já aludida. Essa lacuna de convivência concerne justamente àquela tensão na dimensão especial, também já aludida na figura 2, entre o grupo de moradores e o grupo dos meninos. Os territórios existenciais em que cada grupo se situa – moradores e "gente de rua" (eles se referiam assim a si mesmos) – não se sobrepõem. Não há interseção entre espaço e tempo na rotina de cada grupo, por isso não há encontros entre eles, embora haja o que se pode chamar de proximidade. Ou seja, embora a interação entre grupos ocorra num mesmo tempo e espaço, não configura situações de copresença, pois eles a percebem quando não estão sendo percebidos. Há descompasso: um grupo não sabe quando sua presença faz-se notar pelo outro. Não se trata de interação face a face, porque ela não é percebida simultaneamente pelos dois grupos. Mesmo assim, cada grupo sabe do equívoco pelo qual o outro o apreende. E tudo isso veta qualquer possibilidade de coordenação da ação com o objetivo de controle das impressões.

No dia em que eu conversei com Regina pela primeira vez, me surpreendi quando vi a janela de sua casa aberta – que, até então, eu supunha estar abandonada, situada na esquina onde os meninos passavam a maior parte do tempo; também eu. Uma casa sempre fechada, sem sinais da presença de qualquer pessoa no interior. Da janela, eu via apenas o seu rosto, e foi assim nossa conversa nesse dia. Sônia, outra de porta fechada, disse somente sair de casa para o estritamente necessário, pois evita esse contato, e de modo ostensivo. O relato delas se confirma em minhas observações durante três meses, nos mais diversos horários. Registrei apenas três momentos de contato face a face com algum dos meninos, muito rápidos, quase sem palavras ou olhares. E, nesses relatos, a forma pela qual elas se referiam ao grupo dos que moram na rua era sempre como "eles", o pronome por excelência da relação a um objeto.

Uma conversa com Teresa, no entanto, marca uma diferença interessante. Teresa se referia aos meninos como seus clientes – ela trabalhava no posto de gasolina. Disse que eles frequentam a loja, fazem compras, e que muitas vezes já pediram a ela o favor de preparar alguma comida – alguma comida pré-pronta. Esse tipo de interação cria um espaço de convivência e, portanto, gera as condições plenas de copresença, pelas quais ela e os meninos coordenam mutuamente os signos que oferecem para a formação de impressões.

A quase inexistência de interação face a face entre a "gente de rua" e os moradores está no cerne de processos de produção de sentidos sobre o "outro", esta lacuna de convivência produz as singularidades na transmissão de informação social observáveis nesse contexto. Segundo Goffman (1975), a informação social "é uma informação sobre um indivíduo, sobre suas características mais ou menos permanentes, em oposição a estados de espírito, sentimentos ou intenções que ele poderia ter num certo momento" (pp. 52-53). Está ligada à identidade social e se transmite por meio de signos; é reflexiva e corporificada, "é transmitida pela própria pessoa a quem se refere, através da expressão corporal na presença imediata daqueles que a recebem" (Goffman, 1975, p. 53).

O que torna peculiar, ali, as situações de interação e transmissão de informação social é que, embora ainda seja reflexiva, sua propriedade corporificada se particulariza. Os signos que transmitem informação social sobre os meninos não são apenas expressão corporal, mas – e principalmente – os signos que se desprendem do seu corpo. Regina, por exemplo, contou que permanece com as janelas fechadas por causa da "bagunça" que o grupo faz na calçada. Eles brigam entre si, fazem barulho, jogam garrafas e outras coisas uns nos outros, as quais atingem também janelas das casas da vizinhança e chegam a entrar por elas. Segundo Teresa, os meninos fazem muita sujeira onde ficam e, por causa disso, uma clínica que funcionava na esquina oposta havia se mudado, deixando, até hoje, o prédio desocupado. Informei-me acerca disso com outras pessoas e confirmei a sua hipótese. A mesma hipótese poderia explicar também a desocupação de mais três prédios comerciais quase contíguos àquele. E essas não foram as únicas transformações do lugar: também prédios residenciais pareciam ter reagido à presença dos meninos, cheios de equipamentos de segurança e proteção.

Os signos produzidos pelos meninos parecem desgarrados, porque são incapazes de produzir confiança e familiaridade. Outra conversa com Sônia foi bastante difícil, pelo fato de que ela não se sentia segura para conversar comigo sobre os meninos. Primeiramente, ela me pediu para que essa conversa ocorresse em outro horário e em outro lugar, para que os meninos não soubessem que ela falava sobre eles. (Por sinal, nesse mesmo momento, passava por nós, enquanto conversávamos, um dos meninos, e ela me disse que ele passava ali somente para saber acerca do que nós conversávamos). Sônia contou que, fazia muito tempo, observa "o pessoal do cruzamento", mas nunca quis conversa com eles. Contou ter ficado surpresa outro dia, quando uma menina, novata no grupo, veio lhe pedir um pouco de água e lhe disse que era carioca, e que havia morado em Jacarepaguá. Ela se perguntava o porquê de alguém vir de tão longe para lá, e que isso a deixava muito apreensiva. Sônia não dispunha de esquemas interpretativos para situar essa informação, e os sentidos acionados pelo estigma das ruas completavam a configuração de uma situação ansiogênica. O mesmo ocorre no relato de Olga acerca de sua insegurança.

se sentem inseguros... que acham que eles... vamos dizer gritam... muitas vezes eu tô lá em casa... e isso mesmo que eu sinto... eles têm sentido... os vizinho né? então assobios... assobios alto... né? que eles dão uns assobios bem altos que eu não sei o que significa isso certo? esse assobio... e quando não é o assobio... é um gritando com outro... e essa vizinhança tem me falado tudo sobre eles... alguns telefonam... como uma Proteção Relâmpago... que tem aqui do lado sabe? uma... uma segurança... o nome deles é Proteção Relâmpago... e outros ligam para o cento e noventa...

A ansiedade é produzida por um assobio, um resíduo da presença dos meninos que se torna ansiogênico para os moradores. Esse assobio é um símbolo da forma como signos que representam os meninos, mediados pela imagem da rua, são recebidos pelos moradores, fora de situações de copresença, mas em proximidade . Esse símbolo transmite informação social acerca da diferença que são os meninos do cruzamento; é interpretado sob a incidência de um estigma, remetendo ao estranho. O assobio assusta os moradores pelo desconhecimento em seu significado, e justamente isso provoca sua insegurança, o horror de um significante. A mesma insegurança provocada em mim antes de chegar ao cruzamento, antes de estar entre as pessoas desse grupo, quando cada movimento, gesto e palavra poderiam significar muitas coisas, mas, por efeito do discurso sobre a vida nas ruas, significavam para mim, como para os moradores, hostilidade.

Mais uma vez, é essa mesma insegurança que também os meninos do cruzamento demonstram quanto às pessoas que figuram como estranhos para eles. Eles apreendem o sentimento de medo e insegurança que a sua imagem cria, e a hostilidade que a insegurança produz nas pessoas ao seu redor, por sua vez, provoca a insegurança dos próprios meninos, como o ilustra aquilo que disseram duas meninas do grupo.

Lúcia: aqui os povo xinga.... as pessoa homilham...

Eu: por que é que você acha que eles fazem isso?

Raquel: porque nós faz programa e somo de rua...

Eu: e qual o problema de ser de rua e fazer programa?

Raquel: é (o seguinte)...

Lúcia: é como se fo... a gente pra eles fosse um bicho... um bicho de mato ele tem medo... não sei se eles têm medo ou mas... no meu pensamento eles têm medo da gente... que a gente veve na rua... eles veve na sociedade... a gente já não somo... a gente somo de rua... eles não procura é: conhecer a gente...

O grupo ainda tinha receio também de mim quando eu fazia perguntas, por exemplo, acerca dos lugares onde eles se abrigavam para dormir. Uma vez, quando sutilmente insistia com Cosme para que me contasse acerca dos lugares, acerca de quantos e quem fazia parte do grupo, ele me respondeu um pouco constrangido que há coisas que eles não contam a ninguém. Havia pouco tempo, Cirilo sofrera violência de três rapazes. Estava dormindo num lugar não habitual, afastado dos demais, e foi acordado a socos e pontapés. Eu o vi bastante machucado. Presenciei sua insegurança em outros momentos, por exemplo, quando levei máquina fotográfica comigo. Eles não queriam ser fotografados, mas aceitaram depois que algumas pessoas do grupo atestaram a sua confiança em mim. Mesmo assim, uma vez em que eu fotografava um dos meninos – Ricardo, debaixo do semáforo, enquanto ele trabalhava –, ele me pediu que parasse. Segundo ele, "o povo vai pensar que eu tô fazendo coisa errada". O entendimento do cálculo feito por ele tem de levar em conta a sua suposição de que o meu ato de fotografá-lo provocaria suposições de terceiros acerca dele, pois ele se apreende alvo de suposições de hostilidade.

São dois, portanto, os principais fatores de insegurança para o grupo de pessoas que vivem no cruzamento: em primeiro lugar, a transformação do ambiente do cruzamento em espaço de vida os torna vulneráveis, pois os expõe pelo conhecimento de sua localização. O comportamento de outros grupos que vivem nas ruas é mais nômade justo para minimizar esse tipo de insegurança. Em segundo lugar, compõe o seu sentimento de insegurança esse modo de se apreender sendo apreendido pelo outro, como estrangeiros, "fora da sociedade", não integrados: para eles, a sua imagem é a de alguém na iminência de fazer "algo errado".

Os vestígios da presença dos meninos, os restos de sua existência ali, fazem mediação entre eles e a vizinhança, o que depende de sua proximidade, da mediação ambiental. Aos restos de sua existência naquele ambiente, a vizinhança tem reagido também expressando pelo ambiente a sua rejeição e insegurança. Por efeito daquilo que, do grupo, se deposita na rua (dejetos, restos de comida, lixo), dos signos de sua presença (roupa suja, colchões velhos sobre as calçadas), e do que, propriamente, se desprende de seu corpo (o barulho que fazem, o cheiro que provocam), o espaço vai sendo transformado, abandonado, ostensivamente protegido com muros, portões, grades de proteção (pega-ladrões), cercas elétricas e cartazes de empresas de segurança privada. Assim, embora de modo particular, a informação social transmitida por esses signos da presença dos meninos configura o estigma da vida nas ruas.

O ambiente do cruzamento vai se tornando palco da tensão gerada entre os grupos. Os resíduos da presença dos meninos resultam de suas práticas de espaço no ambiente; são depositados no espaço de proximidade, compartilhado por eles e pela vizinhança; tomados como signos, esses resíduos veiculam informação social sobre a gente de rua. Os moradores reagem pela produção de signos de hostilidade. Essa produção, sempre material e simbólica, transforma o ambiente (ver detalhes na Figura 1) e acirra a dialética interior-exterior, de modo a encerrar cada vez mais para dentro os moradores e cada vez mais para fora a "gente de rua". Ao passo que símbolos e materiais enchem o espaço compartilhado de proximidade, marcam a ocupação do ambiente pela "gente de rua" e levam à desocupação parcial do ambiente pelos moradores. As marcas de ocupação produzidas pela "gente de rua" lhes oferecem novas possibilidades de práticas de espaço, fazendo do ambiente um espaço de vida (dormir, comer, brincar, trabalhar); ao passo que a sua permanência no ambiente do cruzamento também altera as práticas de espaço dos moradores. Nesse caso, foram incrementadas de tecnologias de proteção (ver Figura 3).


As interações mediadas no interior dessa lacuna de convivência produzem não apenas a transformação do espaço e o consequente acirramento da dialética interior-exterior: também a insegurança. Conforme Giddens (2002, 2003), o sentimento de segurança depende do controle da vida pela rotina, pela previsibilidade que os esquemas de ação da vida cotidiana impõem aos agentes em encontros diários. A aptidão em discernir e reproduzir condições de confiança mútua – "em cujo âmbito podem ser canalizadas e administradas as tensões mais primitivas" (Giddens, 2002, p. 75) – dá fundamento à segurança. O que dá liga à integração social afasta de cada indivíduo a ansiedade surgida em situações críticas, em que não se sabe o que esperar de si mesmo e do próximo. São, portanto, rotinas engendradas por situações de interação em copresença que fazem sedimentar todos os sentidos concernentes à ação de todos os agentes com quem se tem contato ao longo do tempo de um dia no cotidiano.

Considerações finais

Como se pode notar, os itens dessa experiência de participação e pesquisa entre jovens em situação de rua aqui investigados – o ambiente físico-social, sua imagem, sentido e um discurso social que o transforma – somente puderam ser compreendidos pelo recurso a dois movimentos de reflexão: a reconstrução histórica da condição social da rua, e a reconstrução, nos contextos de interação, das práticas de espaço realizadas por grupos envolvidos em uma complexa dinâmica de ocupação da rua, que, por cada um deles, é "enunciado" de uma forma diferente. Esses dois movimentos são inseparáveis, pois essa é a história de práticas de espaço, assim como as práticas de espaço atuais são enunciados da história de ocupação, colonização e transformação da rua. A conclusão disso é que as condições de vida e as formas de existência, as práticas sociais e a identidade dos jovens em situação de rua se inserem, são condicionadas, no interior de um equívoco, um descompasso entre as diversas formas de enunciar o espaço das ruas, pelo que também é possível compreender sentimentos de hostilidade e insegurança que concernem a todos os grupos aqui tomados para estudo. A contribuição pretendida é a ênfase à rua como o espaço físico, social e simbólico que concerne à vida desses jovens.

Notas

* O autor agradece: à CAPES, pela bolsa de pesquisa; à professora Dra Rosângela Francischini pelo diálogo generoso e paciente durante o processo de realização da pesquisa de que esse relato é parte.

Recebido em: 20/07/2009

Revisão em: 12/01/2010

Aceite final em: 02/02/2010

Hugo Juliano Duarte Matias é Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília. Professor da Faculdade de Tecnologia e Ciências da Bahia, Feira de Santana/BA. Endereço: Rua Piracicaba, 10. Condomínio Parque Lagoa Grande, Quadra B, Bloco 11, Apto 04. Bairro CASEB. Feira de Santana/BA, Brasil. CEP 44052-076. Email: hugo_jdm@yahoo.com.br

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  • 1
    É preciso mencionar que, entre todos os temas, precisamente este conjunto fomentou uma longa discussão acerca da natureza da categoria "de rua". Tal discussão produziu, ainda no final da década de 80 – principalmente no Brasil –, uma dicotomia amplamente difundida, que diferenciava crianças e jovens "de rua" e "na rua". Essa dicotomia deu forma aos mais diversos programas de pesquisa com essa população no início da década de 90, mas, pelos diversos problemas a ela vinculados, foi logo abandonada e substituída pela expressão "em situação de rua". Os artigos de Aptekar e Abebe (1997) e de Koller e Hutz (1996) devem facilitar a compreensão deste debate. Para uma revisão mais abrangente, (Matias, 2008).
  • 2
    Aptekar (1996), por exemplo, chama a atenção para o fenômeno cultural como um fator negligenciado pela maior parte das pesquisas realizadas com essa população. Do mesmo modo, Lucchini (2002) chama a atenção para a importância da socialização em uma subcultura de rua, para a compreensão do fenômeno da saída e permanência na rua dessas crianças e jovens e Gregori (2000) apresenta evidência empírica disso em um estudo interessantíssimo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Recebido
      20 Jul 2009
    • Aceito
      02 Fev 2010
    • Revisado
      12 Jan 2010
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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