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Infância e vulnerabilidade: repensando a proteção social

Childhood and vulnerability: rethinking social protection

Resumos

Datam do início do século XX preocupações com o destino da infância pobre e, na sequência, a necessidade de elaboração de políticas públicas para atendê-la. Num período que antecede a inserção formal do Estado na formulação dessas políticas, tomamos como exemplo a atuação do médico Arthur Moncorvo Filho (1871-1944), que fomentou, nas primeiras quatro décadas do século passado, um grande projeto de atendimento médico e assistencial às crianças nominadas "material e moralmente abandonadas". A proteção social à infância era apresentada como baluarte de inserção do Brasil no rol das nações modernas a despeito das contradições sociais que se acirravam. Voltando os olhos para o passado e resgatando a historicidade das políticas de atendimento, confirmamos a remota existência de uma infância desprotegida. Pretendemos com este resgate refletir sobre como tem sido recorrente a defesa da proteção social, cujos desdobramentos nas políticas atuais têm outorgado à psicologia um lugar de destaque.

infância; Moncorvo Filho; vulnerabilidade; proteção social; historicidade


Since the early 20th century, there has been concern with the future of the concept of poor childhood and the creation of public policies to assist it. In a period that precedes the formal insertion of the State in the formulation of these policies, we took as example the performance of Dr. Arthur Moncorvo Filho (1871-1944), who in the first four decades of last century promoted a great project of medical service and assistance to the children considered to be "materially and morally abandoned". Social protection to childhood was presented as a bastion of Brazil's insertion in the list of modern nations, in spite of the social contradictions that were becoming more extreme. Looking back at the past and rescuing the historicity of service policies, we confirmed the existence remote of an unprotected childhood. With this recollection, we intended to reflect upon how recurring has been the defense of social protection, whose unfolding in current policies have given psychology a prominence place.

childhood; Moncorvo Filho; vulnerability; social protection; historicity


Infância e vulnerabilidade: repensando a proteção social

Childhood and vulnerability: rethinking social protection

Ednéia José Martins Zaniani; Maria Lúcia Boarini

Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Brasil

RESUMO

Datam do início do século XX preocupações com o destino da infância pobre e, na sequência, a necessidade de elaboração de políticas públicas para atendê-la. Num período que antecede a inserção formal do Estado na formulação dessas políticas, tomamos como exemplo a atuação do médico Arthur Moncorvo Filho (1871-1944), que fomentou, nas primeiras quatro décadas do século passado, um grande projeto de atendimento médico e assistencial às crianças nominadas "material e moralmente abandonadas". A proteção social à infância era apresentada como baluarte de inserção do Brasil no rol das nações modernas a despeito das contradições sociais que se acirravam. Voltando os olhos para o passado e resgatando a historicidade das políticas de atendimento, confirmamos a remota existência de uma infância desprotegida. Pretendemos com este resgate refletir sobre como tem sido recorrente a defesa da proteção social, cujos desdobramentos nas políticas atuais têm outorgado à psicologia um lugar de destaque.

Palavras-chave: infância; Moncorvo Filho; vulnerabilidade; proteção social; historicidade.

ABSTRACT

Since the early 20th century, there has been concern with the future of the concept of poor childhood and the creation of public policies to assist it. In a period that precedes the formal insertion of the State in the formulation of these policies, we took as example the performance of Dr. Arthur Moncorvo Filho (1871-1944), who in the first four decades of last century promoted a great project of medical service and assistance to the children considered to be "materially and morally abandoned". Social protection to childhood was presented as a bastion of Brazil's insertion in the list of modern nations, in spite of the social contradictions that were becoming more extreme. Looking back at the past and rescuing the historicity of service policies, we confirmed the existence remote of an unprotected childhood. With this recollection, we intended to reflect upon how recurring has been the defense of social protection, whose unfolding in current policies have given psychology a prominence place.

Keywords: childhood; Moncorvo Filho; vulnerability; social protection; historicity.

Introdução

Diariamente, noticiários da TV adentram nossas casas e nos apresentam cenas nas quais crianças se tornam notícia por sofrerem as mais variadas formas de violência e negligência. Não raro, esses mesmos noticiários nos atordoam com cenas que revelam trajetórias de vidas envolvidas precocemente com a criminalidade, com o mundo dos vícios, a prática de furtos, o convívio com o submundo das ruas... São "infâncias" que desfiguram a imagem de inocência que resguardamos dessa fase do desenvolvimento humano. Anjos ou demônios? A despeito das muitas respostas, assistimos, no decurso do século XXI, o Estado ser compelido a criar políticas que impeçam ou ao menos reduzam os efeitos nefastos do desamparo e da negligência para com o público infanto-juvenil.

A instituição da Doutrina da Proteção Integral, respaldada no art. 227 da Constituição da República que embasa o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei n. 8 069, 1990), há mais de duas décadas, arrogou à assistência à infância um novo contorno. Ao Estado, foi delegada a função de assegurar à infância e à adolescência prioridade absoluta na elaboração das políticas públicas sociais. E, se proteção à infância – que deve ser pública, universal e gratuita – compõe as pautas políticas, as ações da política de assistência social alocam atenção redobrada àquelas consideradas em "situação de risco e vulnerabilidade social". E, por serem concebidas como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, mediante diferentes dispositivos (programas, projetos e serviços), o Estado deve primordialmente garantir os meios para que esse desenvolvimento se efetive de maneira saudável.

Em que pese a contemporaneidade dessa premissa, o argumento de que as políticas públicas sociais devem resguardar prioridade à infância começou a ser escrito no Brasil ainda no começo do século XX. Veementemente aludida por médicos, políticos, educadores e juristas, a situação em que se encontravam as crianças, especialmente, aquelas das camadas mais empobrecidas da população, inquietava os "homens de ciência" que conferiam à assistência a este público o mote para a inserção do Brasil no rol das nações modernas. Assim, a preocupação com o futuro do país justificava a criação de aparatos sociais e institucionais como forma de controlar os percalços que surgiam e não demoravam refletir também sobre a infância.

Interessa-nos, aqui, retornar ao período em que a proposta da proteção social apresenta-se como resposta para a superação das mazelas sociais. Conforme Viana e Levcovitz (2005, p. 17), "os sistemas de proteção social têm origem na necessidade imperativa de neutralizar ou reduzir o impacto de determinados riscos sobre o indivíduo e a sociedade". Destarte, a proteção social, que implica na distribuição ou redistribuição de recursos e serviços sociais para determinados grupos tidos como vulneráveis, ascendeu com o desenvolvimento do capitalismo e a consequente ampliação das desigualdades sociais. Viana e Levcovitz (2005) lembram que a institucionalização do sistema de proteção social nos países capitalistas toma suas formas concretas por meio das políticas de caráter social. Tais políticas seriam, efetivamente, introduzidas no Brasil somente após a década de 1930.

Recuperando parte da história da assistência à infância no Brasil, constatamos que, no período que antecede a inserção formal do Estado na formulação das políticas públicas sociais, o médico Arthur Moncorvo Filho (1871-1944)1 1 Moncorvo Filho foi um importante membro do Movimento Higienista no Brasil. Este movimento, iniciado no século XIX, esteve num primeiro momento ligado à busca por soluções aos problemas sanitários enfrentados pelos grandes centros urbanos. No século XX, desdobrou-se no Movimento de Higiene Mental, cuja ação mais expressiva foi a criação da Liga Brasileira de Higiene Mental em 1923. Outras informações sobre esses movimentos ver Machado, Loureiro, Luz, e Muricy (1978), Costa (1989), Boarini (2003), entre outros. fomentou um grande projeto de atendimento médico e assistencial às crianças a seu tempo nominadas "material e moralmente abandonadas" (Zaniani, 2008)2 2 As reflexões tecidas neste texto foram extraídas de uma pesquisa histórica e documental, cujo objetivo foi compreender a concepção de proteção à infância presente nas obras de Moncorvo Filho que datavam de 1899 a 1938 e sua relação com as proposições do Movimento Higienista. Essa pesquisa resultou na dissertação de Mestrado intitulada: Sob os auspícios da proteção: Moncorvo Filho e a higienização da infância, de Zaniani (2008). , que salvo erro de generalização, correspondem ao que hoje denominamos de crianças em "situação de risco e vulnerabilidade social". Neste trabalho, apresentamos reflexões sobre a proposta de proteção idealizada por Moncorvo Filho para esse segmento nas primeiras quatro décadas do século XX e esperamos com ele assinalar como tem sido recorrente a defesa de que da proteção a infância depende a transformação da sociedade. Uma defesa que comumente desconsidera que é no bojo das contradições inerentes a uma sociedade de classes, que uma dada infância, enquanto produção dessa mesma sociedade, se torna desprotegida para então se configurar digna de proteção social. Esperamos igualmente, questionar o presente e refletir sobre uma história que segue sendo escrita e que tem outorgado à psicologia, no contexto das políticas públicas de atendimento à infância vulnerável, um lugar de destaque. Embora não seja o foco desse trabalho discutir o papel do psicólogo, dado os limites do mesmo, desejamos sublinhar a importância da psicologia não se distanciar da materialidade das questões que produz a infância e suas necessidades.

A infância como construção histórica

Nas mais diferentes áreas e especialidades e sob múltiplos enfoques, a infância tem estimulado a ciência a compreendê-la, interpretá-la e promovê-la. Estudos, como os de Kramer (1982), Rizzini (1993), Freitas (1997), Kuhlmann Jr. (1998), Marcílio (1998), Del Priore (2000), dentre outros a confirmam como importante objeto de estudo de cientistas e intelectuais contemporâneos.

Reconhecida como uma construção histórica, social e cultural, a infância nas diferentes sociedades, períodos e lugares, assumiu significados singulares. Ariès (1981), em seus estudos aponta que, anterior ao século XVI e XVII, não existia, no mundo ocidental, o reconhecimento de crianças e adultos como seres diferentes. Foi no conjunto das transformações econômicas e sociais, ao se alterarem as relações de produção, que a representação social da infância se transformou e surgiu o que Ariès denominou de "sentimento de infância", que seria o reconhecimento de que existe uma particularidade infantil. A esse sentimento, pondera Ariés, correspondem duas atitudes do adulto: a paparicação e a moralização. A primeira revela a concepção de que a criança é ingênua e inocente, devendo ser preservada da corrupção do meio, e de modo simultâneo a essa, a moralização que a atribui imperfeição e incompletude, fortalecendo a certeza de que é preciso educá-la e moralizá-la se o desejo é torná-la no futuro uma pessoa honrada.

Aparentemente contraditórias, essas duas atitudes balizam, como elucida Kramer (1982), a concepção moderna de infância. Generalizada pelas classes hegemônicas, essa concepção direcionará práticas institucionais que revelam a ideia de um modelo abstrato de criança, que possui uma natureza infantil. E, se à criança estava demarcado um tempo chamado "infância", esse tempo seria compreendido em face a seus elementos e contornos, demandando para ele matizes peculiares. Logo, se a criança não é anistórica, como nos lembra a autora, reconhece-se que não existe um, mas vários significados a ela atribuídos.

Torna-se pertinente assinalar que, ainda que do ponto de vista biológico a infância seja reconhecida como fase universal do desenvolvimento humano, na perspectiva social não há como uniformizar seu significado porque ele não é único, mas construído a partir da relação estabelecida entre o adulto e a criança dentro da cultura, da classe social, do sistema político e econômico a que pertencem. Com efeito, várias infâncias podem então coexistir, num mesmo tempo e num mesmo lugar e, por isso, talvez fosse mais apropriado falar em condição social da criança, como observa Kuhlmann (1998).

Essa transitoriedade aponta-nos um duplo desafio: compreender a totalidade de algo que foi sendo socialmente construído e, simultaneamente, apreender como, a partir das relações estabelecidas, produziram-se determinados significados, fazendo emergir certas necessidades. Por reconhecer que muitas são as questões que perpassam ainda hoje os debates sobre a infância e que muitas são as arestas que desses debates procedem, como esforço para expressar que nos referimos a uma dada categoria histórica, assinalamos que neste estudo, limitamo-nos a refletir sobre como Moncorvo Filho, representante do movimento higienista, propunha no Brasil no início do século XX, proteger a infância3 3 Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é considerada "criança" a pessoa de até doze anos de idade incompletos e "adolescente" aquela entre doze e dezoito anos de idade. Os termos criança e infância são tomados neste estudo como genéricos para fazer referência à população infanto-juvenil da época, visto ser assim que eles aparecem nos textos consultados. "material e moralmente abandonada".

É fato que os problemas que afligem a infância no Brasil ou em qualquer parte do mundo possuem novas matizes porque os tempos são outros. Todavia, ao retornarmos ao passado, surpreendemo-nos com a recorrência de discursos e apelos que parecem não cair no desuso dada a naturalidade com que o tema da infância é habitualmente tratado.

A situação da infância no contexto do Brasil republicano

quem com olhos observadores percórre a capital da Republica vê apezarado que é nesse meio, peçonhento para o corpo e para a alma, que bôa parte de nossa infancia vive ás soltas, em liberdade incondicional, ao abandono, imbuindo-se de todos os desrespeitos, saturando-se de todos os vicios, apparelhando-se para todos os crimes. (Lopes Trovão, citado por Moncorvo Filho, 1926, p. 130)

Lopes Trovão, senador da República, em setembro de 1896, denunciava, em seu discurso, as condições a que estava exposta a infância empobrecida no Brasil em finais do século XIX. Mais do que uma tônica discursiva, as palavras daquele político ratificavam, para Moncorvo Filho, que a infância pobre na capital da República carecia de cuidados e a sociedade não poderia mais se manter indiferente a essa necessidade. A contemporaneidade de sua alocução afiança que, na transição do século XIX, tornara-se rotineiro, no Rio de Janeiro, encontrar crianças dormindo nas ruas, praticando mendicância, fumando, bebendo, envolvendo-se em jogatinas, prostituindo-se, sendo exploradas por adultos e, não raro, pelos próprios pais. Lopes Trovão afirmava que aquele cenário poderia ser tomado como o retrato fiel do que estava a ocorrer em todos os cantos do país e a Capital da República que deveria funcionar como modelo, envergonhava a nação pelo desprezo com que tratava a infância.

A triste realidade urbana servia de argumento para que, em seus discursos, Lopes Trovão demandasse ao Estado a tarefa de "lançar olhos protectores, de empregar cuidados correctivos para a salvação de pobres menores que vagueiam por não ter família ou que, si a teem, esta não lhes edifica o coração com os principios e os exemplos da moral". Deste modo, na tribuna do senado, ele bradava: "Temos uma pátria a reconstruir, uma nação a firmar, um povo a fazer... e para emprehender essa tarefa, que elemento mais dúctil e moldável a trabalhar do que a infancia?!" (Lopes Trovão, citado por Moncorvo Filho, 1926, pp. 132-133).

Aquela preleção tornara-se fonte de inspiração para Moncorvo Filho projetar um modelo de proteção que inscreveria seu nome na história da assistência à infância no Brasil. Foi naquele contexto, permeado de questionamentos a respeito do destino do país, que ele materializou uma luta que tinha a infância como escopo e a implementação da educação higiênica como caminho para a elevação do Brasil ao patamar de grande nação.

Lembramos que, no início do século XX, o Brasil era considerado um país em desenvolvimento. A multiplicidade dos fatos – a substituição da mão-de-obra escrava pelo trabalho livre e assalariado, a imigração europeia, a explosão demográfica, o processo de urbanização e industrialização das cidades, entre outros – evidenciavam transformações que ocorriam nas condições econômicas e sociais do país. Contudo, mesmo motivada pelo otimismo nacionalista republicano, a população dos grandes centros urbanos testemunhava a ascensão de conflitos resultantes da permanência dos resquícios de velhos hábitos e costumes.

As cidades, que ganhavam um novo formato a partir do processo de urbanização e industrialização, não contavam com infraestrutura para atender às necessidades básicas da população. Até a metade do século XVIII, as cidades brasileiras não dispunham das condições mínimas de moradia, saúde e alimentação e era comum a população ser dizimada por doenças como varíola, tuberculose, lepra, difteria, febre amarela, entre outras (Costa, 1999).

No decurso do século XIX, o quadro sanitário permanecia precário e as estatísticas atribuíam à mortalidade infantil o posto de "flagelo nacional e social" (Moncorvo Filho, 1917, p. 82). Os médicos haviam constatado que, entre 1845 e 1847, do total da mortalidade geral do país, 51,9% afetavam a população de um a dez anos de idade (Costa, 1999). A despeito do futuro promissor que se abria nos albores do Brasil republicano, a mortalidade infantil se firmava como obstáculo eminente à concretização dos ideais de ordem e de progresso.

As descobertas da microbiologia e da bacteriologia e o desenvolvimento das ciências médicas apontavam os hábitos e costumes tradicionais como foco evidente de contágio e proliferação das doenças. Atinentes à ameaça real do comportamento humano no processo saúde-doença, o movimento higienista firmar-se-ia com o propósito de solucionar o caos urbano que se instalara e, a partir desse, respaldar a construção da nova nação. Contudo, para reconstruir o país, os higienistas sabiam que não bastava erradicar as doenças. Para fazer do Brasil uma nação civilizada, era preciso ir além da saúde dos corpos e investindo na formação de uma nova mentalidade, mais sadia, mais normalizada.

Considerando a premissa de que a mente e a moralidade poderiam ser higienizadas pelas mesmas vias que os corpos, os higienistas focalizaram o indivíduo, prescreveram condutas e proferiram ensinamentos, especialmente sobre o trato com a infância. Fomentaram o movimento em prol da higiene mental, apostando que, ao laicizar os conhecimentos científicos às classes populares, encerrariam com os problemas sociais vividos pela coletividade. As mazelas sociais que afloravam, entre elas as que perpassavam a infância – as altas taxas de mortalidade, crianças vivendo abandonadas nas ruas, praticando mendicância, envolvendo-se com vícios, com a prostituição, etc. –, fortaleciam a defesa de que a salvação do país dependia do investimento na infância e, para tal, Moncorvo Filho asseverava que as formas de assistência até então dispensadas deveriam ser redefinidas.

Durante todo período colonial e o imperial no Brasil, somente as crianças que não contavam com o resguardo familiar recebiam das autoridades públicas algum tipo de assistência. O abandono mais comum era o de recém-nascido que, após a rejeição dos pais, poderia conhecer dois caminhos: ou ser acolhido por outra família ou por uma instituição de caridade. No primeiro caso, revela Marcílio (1998), sob o pretexto de criá-lo, a família adotante o submetia à condição semelhante dos escravos. Logo, recolher crianças abandonadas e criá-las como filhos representava para algumas famílias um acréscimo de mão-de-obra passiva e gratuita. No segundo caso, na saga do abandono em que milhares de crianças foram protagonistas, instituições como as Santas Casas de Misericórdia, prometiam o amparo que a família não oferecera. Conhecidas mais tarde por várias denominações – Casas dos Expostos, Casas dos Enjeitados, Roda dos Expostos ou simplesmente Roda – essas instituições eram citadas por Moncorvo Filho (1926, p. 32) como a primeira demonstração de "interesse público" pela proteção das crianças no Brasil.

A própria criação de dispositivos com vistas à proteção evidencia quão remota é o reconhecimento da existência de uma infância desprotegida. Data de 1693 o relato de uma autoridade pública que, na Capitania do Rio de Janeiro, indignou-se ao ver a cena de crianças abandonadas nas ruas, sendo devoradas por cachorros e ratos. Diante dessa situação, essa autoridade escreveu uma carta a Portugal solicitando o alvará para a criação da Casa para Expostos (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2001). Seguindo um modelo de assistência vigente na Europa, em 1726, nascia a primeira Casa dos Expostos na Bahia e, em 1738, outra no Rio de Janeiro.

Essas instituições, entretanto, antes de se constituírem um espaço de amparo, acabaram, pela precariedade de suas instalações, convertendo-se em berço de morte para a maioria das crianças que ali eram deixadas. O abandono era crescente e, conforme dados trazidos por Moncorvo Filho (1926), até 1817, a Casa dos Expostos recolheu 45 mil crianças aproximadamente. Ao se reportar a esse período, ele pontuava que "o que, todavia, se notava em todas essas creações era a preocupação exclusiva do espirito religioso e nenhuma orientação scientifica" (Moncorvo Filho, 1926, p. 115).

A criança deixada na Roda era entregue aos cuidados de uma ama-de-leite, que deveria permanecer com ela até a idade de três anos, sendo remunerada para isso. Ao alcançar essa idade, a ama poderia continuar com a criança, passando de ama-de-leite para ama de criação. O que ocorria, até meados do século XIX, era que o destino daquelas crianças cujas amas abdicavam de seus cuidados era de certa feita previsto: ou eram devolvidas à Misericórdia, que as encaminhava para um Colégio de Órfãos para aprender a ler e escrever, ou, simplesmente, passavam a viver abandonadas nas ruas.

Moncorvo Filho (1926) lembrava que a desobediência aos preceitos básicos de higiene era causa evidente da maioria das mortes e se estas instituições não primavam pela higiene, tampouco pela moral. Para se ter ideia da dimensão da calamidade, em treze anos, deu entrada nas Casas dos Expostos cerca de doze mil crianças e, destas, sobreviveram apenas mil. Para Moncorvo Filho (1926), gravidade maior circunscrevia o fato de a administração daquela instituição não saber ao certo onde as demais crianças se encontravam.

Em anos anteriores, Moncorvo Filho (1914, p. 50) já apregoava que, na "realidade, a existencia de cada individuo representa já o disse, uma unidade do capital social das nações e por isso se torna incalculável a perda occasionada com o desaparecimento diário de tantas creancianhas". Tal afirmação denota que, acrescido às implicações sanitárias e aos problemas de ordem moral, os "homens de ciência" coadunavam da concepção de que, para o Estado, a morte precoce de qualquer criança representava, nomeadamente, um prejuízo econômico. Assim, nos primórdios do Brasil republicano, a atenção da qual a infância passaria a ser merecedora anunciava que seu significado social vinha se modificando e que sua proteção não era em nada, desinteressada. À medida que se alterava a forma de produção da vida (o trabalho escravo sendo gradativamente substituído pelo assalariado), a criança assumia a representação de força potencial de trabalho e, enquanto elemento primordial para o progresso da nação, deveria ser protegida e preparada.

Mãos-de-obra em potencial poderiam se converter em benefícios para toda sociedade e isso, por si só, era comprovadamente motivo para protegê-las. É o que revela o discurso de abertura do Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, quando, em nome dos delegados oficiais do Brasil, o médico baiano Alfredo Ferreira de Magalhães (1923, p. 132) advertia que "uma creança que se perde, material ou moralmente, não significa sómente uma saudade para a família, uma vergonha para os paes; é, mais do que isto, uma força que se perde para a sociedade". Revestida de diferentes possibilidades futuras, a infância ganhava a ciência como aliada. Expressão dessa aliança é a realização desse evento ocorrido simultaneamente ao Terceiro Congresso Americano da Criança no Rio de Janeiro em 1922. Organizado por Moncorvo Filho, o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância congregou cientistas e autoridades que gozavam de distinta reputação social, recebendo 2632 inscrições de médicos, comerciantes, políticos, educadores, juristas e muitos outros.

A ideologia caritativa não era mais resposta suficiente para os problemas que se avolumavam. Marcílio (1998) observa que, frente à demanda que se abria, a filantropia científica se tornava a pedra angular das ações de proteção à infância no início do novo século, porque, diferentemente da caridade, apregoava que, com a aplicabilidade dos conhecimentos científicos, garantiria mais que a sobrevivência das crianças. Ao atuar preventivamente, zelaria pela saúde física e mental das mesmas e não somente pela salvação de sua alma. Moncorvo Filho foi exímio representante desse novo modelo de atuação.

Proteção à infância como encargo da ciência

Idealizando ser norteador da assistência à infância no Brasil, Moncorvo Filho fundou, em 1899, o Instituto de Proteção e Assistência à Infância – IPAI – no Rio de Janeiro. Tratava-se de uma entidade filantrópica e assistencialista, cujas metas eram, sobremaneira, ambiciosas. Entre outras coisas, previa a proteção contra o abuso e a negligência das crianças "material e moralmente abandonadas", o combate à mendicância, o fomento à criação de maternidades, creches e jardins de infância. Propunha, do mesmo modo, o monitoramento das demais instituições de atendimento à infância, a inspeção médico-higiênica nas escolas e nas fábricas, a inspeção das amas-de-leite e o estudo das condições de vida das crianças pobres.

Moncorvo Filho (1915) asseverava que proteção à infância era uma tarefa científica e que sua base era a higiene mental. Foi pioneiro em muitas iniciativas que elevavam a proteção à infância, em geral, ao patamar de prioridade. Contudo, sua preferência era assistir crianças que padeciam pela ignorância e negligência dos pais, bem como pela pobreza material e moral do seu lar porque, segundo ele enquanto "os degenerados dos vértices acabam muitas vezes por cahir nos abysmos; os inferiores da plebe não chegam muitas vezes a sahir delles". Neste sentido, ele entendia que o rico supria a necessidade de cuidados ao dar aos filhos "uma especie de protecção social continua", já os pais pobres nada podiam fazer e, por isso, tornava-se "absolutamente necessario ir em seu auxilio" (Moncorvo Filho,1914, p. 6).

A solução alvitrada por ele era a educação das famílias das classes populares pois acreditava que, se doutrinadas nos preceitos da higiene, saberiam como proteger e educar seus filhos. Ele compartilhava da concepção de que uma intervenção precoce, mais que salvar a criança da morte, favoreceria a formação e moldaria o caráter. Destarte, com o atendimento prestado pelo IPAI, ele esperava que os usuários compreendessem que "uma bôa moral é, por vezes, a melhor hygiene do corpo" (Moncorvo Filho, 1926, p. 146).

Uma proposta que, em sua época, apresentava-se inovadora foi a de que, ao serem atendidas pelo IPAI, as mães eram convidadas a participar das conferências sobre as necessidades da infância e tinham, sob esta condição, a garantia da assistência gratuitamente prestada. Um extenso programa compunha o que ele chamou de "Curso Popular", no qual, utilizando a exposição de vários trabalhos já escritos por ele4 4 Entre os inúmeros trabalhos escritos por Moncorvo Filho, citamos três importantes livros, referência para a área da infância naquele período: Hygiene Infantil (1917), Formulário de Doenças das Creanças (1918) e Histórico da Protecção á Infância no Brasil (1926). , ministrava ensinamentos sobre os fatores de degeneração humana (sífilis, álcool e tuberculose), noções de puericultura, aleitamento infantil, higiene escolar e informações sobre o imperativo problema da infância "material e moralmente abandonada". Acirrou a luta pela implantação do exame pré-nupcial, a inspeção médico-higiênica nas escolas e nas fábricas e encabeçou inúmeras campanhas de combate ao alcoolismo. Dispondo de quadros, gráficos, dados estatísticos e procurando usar uma linguagem simples e acessível, ele afirmava que

Uma das partes mais importantes e mais utilitárias do programma do Instituto é, sem duvida alguma, a que se refere a extensa, a pertinaz campanha de hygiene infantil junto as mães pobres e cuja maioria é ignorante. Essa missão é levada a effeito pela palavra fallada e escripta. (Moncorvo Filho, 1914, p. 46).

Moncorvo Filho considerava lamentável que, no Rio de Janeiro, 41% das mães pobres fossem analfabetas, já que a ignorância era, para ele, causa não só da mortalidade, mas de todos os males que massacravam a infância. A constatação da condição em que vivia as mães da classe trabalhadora, não encerrava com seu projeto de higienizar a infância. Partindo da premissa que as falhas individuais prejudicavam a coletividade, atribuía à falta de instrução especializada a responsabilidade pelo destino das crianças e, consequentemente, da nação.

Optando pela intervenção preventiva, orgulhava-se em registrar que até 1929 o IPAI já havia distribuído mais de um milhão de impressos com conselhos de higiene às mães pobres do Rio de Janeiro (Moncorvo Filho, 1931). Tal iniciativa, embora promulgasse seu esforço particular, era sobrepujada pelas condições a que estava exposta, certamente, aquela população: sem acesso à escolarização, sem saneamento básico, sem condições mínimas de moradia, habitando em grandes cortiços... Desarraigar os hábitos insalubres das famílias das classes populares, de fato, era um desafio que suplantava qualquer iniciativa privada.

Revestindo a filantropia da insígnia de dever patriótico, registrou, no vitral da entrada do novo prédio do IPAI, inaugurado em 1929, o lema: "Infantes tuendo, pro Pátria Laboramus", traduzindo: amparando a infância, pela pátria trabalhamos (Moncorvo Filho, 1931, p. 27). A confiança na efetividade da perspectiva filantrópica fez com que aquele modelo de atendimento se espalhasse por todo território brasileiro e trinta anos após o início de sua cruzada, as instituições congêneres ao IPAI, instaladas e funcionando regularmente, já somavam vinte e duas.

Em 1919, fundou o "Departamento da Creança no Brasil", almejando que suas ideias fossem incorporadas pelo poder público na criação de um sistema nacional de amparo à infância. Para tanto, sugeria que seu Departamento fosse uma central de informações a qual o governo pudesse recorrer na busca de respostas sobre os "factores negativos de nosso progresso e da nossa civilisação". (Moncorvo Filho, 1926, p. 284). Contudo, a parceria que ele aspirava firmar com o Estado, inclusive para o custeio das despesas do IPAI, nunca se efetivou formalmente.

A organização do Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância noticia que novos e velhos problemas compunham o rol de discussões acerca da infância, especialmente aquela que respondia sob a insígnia de "material e moralmente abandonada". Constatamos que, já naquele cenário – primeiras décadas do século XX –, havia questionamentos acerca dos trágicos contornos que, paulatinamente, caracterizavam a infância pobre no Brasil: a prostituição, a violência, a negligência e, notadamente, o fenômeno da criminalidade.

A defesa de tratamentos diferenciados para os denominados 'menores' aparece nas teses de Evaristo Moraes (1924a e 1924b) "Criminalidade na infância e na adolescência" e "Prostituição e infância", bem como na de Franco Vaz (1924) "As Escolas de Reforma e sua necessidade no Brasil' e na tese de Baltazar Silveira (1924) "Criminalidade infantil", de modo similar. Observa-se a demanda por uma intervenção efetiva para aquela que era reconhecida como a mais grave enfermidade social – a criminalidade infantil. A implementação de cuidados por parte do poder público era urgente, porque a criminalidade estaria minando

os alicerces da sociedade civil, destinando cerebros que uma educação pratica teria, vantajosamente, apparelhado para se defender das sugestões do meio, e inutilizando robustos braços, que se poderiam aproveitar no desenvolvimento de misteres mais uteis á subsistencia, a criminalidade infantil é uma das mais traiçoeiras endemias, que grassam e se propagam nos centros, onde reinam a indifferença e o desanimo que, reunidos, facilitam a escravisação dos menores, moral e materialmente abandonados, e fomentam o crescimento das causas, que empolgam e fascinam a imaginação da creança. (Silveira, 1924, p. 189)

Os alicerces de uma sociedade em construção passavam a ser demarcados por médicos e juristas que reconheciam na desassistência a esfinge do país que aspirava civilização. A inserção do poder público na formulação das políticas era reivindicada, especialmente, porque essa "endemia" tomava o feitio de perigo pela velocidade com que se propagava. Paradoxalmente, a infância passava de objeto de esperança para sinal eminente de risco. Da condição de vítima passava a ser vista como ameaça à manutenção da ordem social.

Alfredo Ferreira de Magalhães, também na sessão inaugural do Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, indicava que a preocupação com a infância empobrecida era justificável, porque, segundo ele, a "protecção dos meninos infelizes é ao mesmo tempo a protecção dos nossos filhos; devemos ter o máximo interesse em alcançar para os meninos desgraçados uma certa dose de moralidade e felicidade, de saúde e de bem estar" (Magalhães, 1923, p. 134). Com efeito, no alvorecer do século XX, paradoxalmente, a proteção à infância resguardava a preocupação com a proteção da sociedade, pois a criança desprotegida poderia se tornar um perigo social. É o que nos esclarece o trecho a seguir ao afirmar que

Quando recolhemos um pequeno ser atirado sózinho nas tumultuosas marêtas dos refolhos sociaes, victimas de paes indignos ou de taras profundas, não é elle que nós protegemos, são as pessoas honestas que defendemos; quando tentamos chamar ou fazer voltar à saude physica ou moral seres decadentes e fracos, ameaçados pela contaminação do crime, é a própria sociedade que defendemos contra as aggressões, das quaes o abandono das creanças constitui uma ameaça ou um presságio. (Magalhães, 1923, p. 133, grifos nossos)

Verificamos que a emergência de uma intervenção efetiva por parte do Estado era abonada, sobretudo, quando os males que afligiam a infância prejudicavam a coletividade. Se a filantropia lutava para dar conta da proteção à infância, o Estado era chamado a entrar em cena porque os problemas se multiplicavam e demandavam novas intervenções. No transcurso dos debates incitados pelas autoridades científicas participantes daquele Congresso, a súplica mais entoada foi a de que o poder público assumisse a corresponsabilidade e o cofinanciamento das políticas de atendimento.

Num texto intitulado "Algumas considerações sobre o problema da infancia", Moncorvo Filho (1930), 31 anos após a fundação do IPAI, advertia sobre a recorrente necessidade de proteger a infância. Ao falar da proteção, lembrava que, até a criação do IPAI, as instituições que existiam se preocupavam quase que exclusivamente com os expostos cujos pais abdicavam da guarda e a reclusão dos maiores de sete anos em asilos e hospitais. Salientava a urgência em restringir esse tipo de encaminhamento, fosse pelo perigo do contágio de doenças infectocontagiosas, fosse pela aquisição dos vícios pela imitação e sugestão e, sobretudo, pelo embotamento dos sentimentos de pertencimento à família. Asseverava o quanto era economicamente vantajoso utilizar-se dos recursos da prevenção.

Com efeito, o projeto de proteção idealizado por Moncorvo Filho, foi atravessado pelos limites de seu tempo e da organização social a qual pertencia. A batalha na qual esse higienista se enveredou não se completaria e nem se encerraria com a sua atuação. Em 1934, iniciou-se um tímido planejamento para uma política pública nacional de assistência à infância quando o então Presidente Getúlio Vargas autorizou a criação de uma Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância, vinculada ao Ministério da Educação e Saúde Pública. Nos limites do recorte temporal estabelecido em nosso estudo, outro projeto político expressa o fortalecimento progressivo do Estado: a criação do Departamento Nacional da Criança pelo Decreto-Lei n. 2.024, de 17 de fevereiro de 1940. Demarcando a inserção formal do poder público no direcionamento da assistência à infância, esse órgão, que nasceu com objetivos semelhantes aos do "Departamento da Creança no Brasil", criado em 1919 por Moncorvo Filho, orientou a política de atendimento durante os trinta anos subsequentes à sua fundação.

Com estes breves apontamentos, apresentamos parte do projeto de assistência idealizado por Moncorvo Filho que, já nas primeiras décadas do século XX, confirma a infância como objeto de preocupação e foco de intervenção. Constatamos que a criação de dispositivos que intentam proteger a infância continuou sendo projetada, a despeito da luta abraçada por homens como Moncorvo Filho. Tais dispositivos, é verdade, ganharam os contornos que cada época demandava. Contudo, muitos destes dispositivos se lançam ainda na dispendiosa tarefa de resolver os problemas "da" infância e transformar as condições de vida da população, começando pelos indivíduos e pelas instituições.

Nuanças de uma história inacabada

Ao recuperar parte da história da assistência à infância no início do século XX, procuramos sinalizar nuanças de um momento em que o país vivia intensa preocupação com o reordenamento político e social. Livrar a criança da morte e construir uma infância saudável vinha ao encontro das necessidades da época. Neste breve retorno na história, encontramos Moncorvo Filho, que sob os auspícios da proteção, educou higienicamente as famílias, combateu as doenças, o alcoolismo e a ignorância. Lutou pela formulação de uma política que, de modo efetivo, abarcasse aquelas crianças que eram vítimas de exploração, abuso e negligência, que eram afetadas diretamente pelos infortúnios de uma sociedade que não teve em seu cerne a preocupação com a saúde e a educação de seu povo.

A instauração da República representou os esforços empreendidos para a consolidação do capitalismo e as transformações sociais, econômicas e políticas decorrentes do novo sistema, deflagravam o aumento da pobreza, o desemprego, o abandono. Nesse cenário marcado por tantas contradições eram as condições materiais que delineavam uma nova representação social para a infância e criava o terreno profícuo para que a filantropia emergisse com a promessa de resgatar pelas mãos da ciência a infância desvalida.

A atuação de Moncorvo Filho expressa as expectativas de uma época que se erguia creditando à higiene mental a fórmula que equacionaria os problemas sociais que se acirravam. Ele aspirava colaborar para a construção de uma nação forte e acreditava poder fazê-lo por meio da produção de filhos mais saudáveis. O que sua atuação, todavia, não deu conta foi do processo sócio-histórico que produzia a existência de tantas crianças pobres, carentes de amparo, e tampouco desvelava o porquê destas se tornarem dignas de proteção.

Em que pesem as contribuições particulares alcançadas com seu trabalho, grande parte dos problemas que Moncorvo Filho tencionava resolver não era inerente à infância e, por isso, em detrimento de seu esforço, muitas crianças continuavam à mercê dos fatores que as expunham a situações de vulnerabilidade. Reconhecido o trabalho desse médico brasileiro, e cujo mérito não colocamos em debate, salientamos que suas iniciativas não ultrapassavam o campo das ideias e sequer tocavam nas contradições inerentes a um sistema que pela sua natureza produz também a infância vulnerável. Desse modo, salvo erro de interpretação, observamos que se reedita, sob novas roupagens, preocupações já apontadas por Moncorvo Filho no início do século passado.

Voltando os olhos para o passado e confirmando a remota existência de uma infância desprotegida, vemos que assistência foi produzida e alterada como resposta apropriada a seu tempo. Doravante, a existência de crianças em situação de vulnerabilidade e a associação desta condição às causas dos mais diferentes problemas sociais desvelam uma perspectiva naturalizada de infância. Como se ela existisse destituída do contexto que a ampara, muitas propostas se lançam ao desafio de mudar mentalidades, prometem resgatar a infância e reordenar, por meio desta, a sociedade.

No decurso do século XXI testemunhamos a recorrência de discursos que desvelam a validade de ponderarmos sobre os elementos subjacentes a esta história cujo arremate, há tempos, vem sendo perseguido. Por se entender a infância a partir da condição de incompletude, a interação de diferentes fatores (entre eles citamos o desemprego, a miséria, o uso de drogas, a violência, a negligência e o abandono) é vista como potencialmente nociva para seu desenvolvimento psicossocial. Logo, a exposição a essas vivências tem outorgado à psicologia um lugar de destaque na elaboração das intervenções que minimizem os efeitos da desproteção social que acometem no Brasil milhares de crianças e adolescentes.

Prevenção é a palavra de ordem. Em se tratando especificamente da política de assistência social, vemos que esse é o mote da denominada proteção social básica. Nos municípios brasileiros, a implantação e implementação desse nível de proteção está a cargo dos Centros de Referência da Assistência Social – CRAS5 5 A política de Assistência Social tem regulado e organizado as ações e serviços socioassistenciais por meio do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Como desdobramento do SUAS, foi criado o CRAS, que é uma unidade estatal, de base municipal, considerada porta de entrada para todos os demais serviços ofertados por essa política. Ver mais a respeito em: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2004, 2005, 2006). , que prestam atendimento às famílias e indivíduos considerados em situação de risco e vulnerabilidade social através de programas, projetos e serviços socioassistenciais locais. A atual política de assistência social compreende que essa condição de vulnerabilidade pode decorrer da pobreza, privação (ausência ou precariedade da renda e acesso precário aos serviços públicos) e ou da fragilidade dos vínculos afetivo-relacionais e de pertencimento social (por discriminações étnicas, de gênero, etárias ou por deficiências, entre outras). Psicólogos, juntamente com profissionais do Serviço Social, compõem a equipe mínima do CRAS e, com seu saber, buscam por meio do trabalho sócioeducativo desenvolver potencialidades e aquisições e fortalecer os vínculos familiares e comunitários.

Como vimos, a defesa da proteção social como resposta aos problemas que perpassam crianças e adolescentes das camadas empobrecidas da população não é própria deste momento e difuso foi o caminho que precedeu a compreensão da assistência como atributo político. Como pontuam Iamamoto e Carvalho (1990), na verdade, a assistência social foi se configurando ao longo do tempo como um recurso do Estado para enfrentar demandas que perpassam a questão social, compreendida como um conjunto de problemas políticos, econômicos e sociais decorrentes da generalização do trabalho livre na sociedade capitalista. Assim, concluímos que as condições materiais de vida que, já nos primórdios do século XX, produziam epidemias, pobreza, desemprego e analfabetismo, seguem a produzir a necessidade de proteger socialmente a infância, implementando a ela cuidados.

Neste artigo, não tivemos a intenção de aprofundar o debate sobre as atuais propostas de proteção social. Entretanto, ressaltamos que a inserção do psicólogo no contexto das políticas atendimento à infância considerada vulnerável deve ser construída e acompanhada de reflexões e isso justifica nosso esforço em recuperar fatos históricos e quiçá, com eles, angariar elementos para questionar o que está posto e continua presente. Do mesmo modo, a relevância do tema confirma que outros estudos são necessários para que a psicologia se instrumentalize e problematize a que demanda seu saber e seu fazer estão atendendo.

Finalizamos com a paráfrase de uma observação da educadora Maria Lacerda de Moura (1924), apresentada na tese "O atual regime social soluciona o problema da proteção à infância", exposta no Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância em 1922. Em meio a tantos trabalhos e defesas contra a mortalidade, a criminalidade, em favor de novas legislações, da criação de colônias agrícolas, juizado de menores, entre outras, a autora fazia uma crítica ao regime social e econômico e questionava se, diante do capitalismo que à época se consolidava, consiguir-se-ía acabar com os problemas que perpassavam a infância, debatidos veementemente naquele grande evento. Ela ousou registrar uma pergunta àqueles homens de ciência: "Fundam-se associações de protecção á infancia. E se não houvesse creanças desprotegidas?" (Moura, 1924, p. 151).

Notas

Recebido em: 15/11/2009

1ª. Revisão em: 04/01/2010

2ª. Revisão em: 25/02/2010

Aceite em: 22/03/2010

Ednéia José Martins Zaniani é Psicóloga e Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá, PR. Email: edapsi@hotmail.com

Maria Lúcia Boarini é Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É professora associada no Departamento de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, PR. Endereço: Departamento de Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Av. Colombo, 5790. Maringá/PR, Brasil. CEP 87.020-900. Email: mlboarini@uol.com.br

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  • 1
    Moncorvo Filho foi um importante membro do Movimento Higienista no Brasil. Este movimento, iniciado no século XIX, esteve num primeiro momento ligado à busca por soluções aos problemas sanitários enfrentados pelos grandes centros urbanos. No século XX, desdobrou-se no Movimento de Higiene Mental, cuja ação mais expressiva foi a criação da Liga Brasileira de Higiene Mental em 1923. Outras informações sobre esses movimentos ver Machado, Loureiro, Luz, e Muricy (1978), Costa (1989), Boarini (2003), entre outros.
  • 2
    As reflexões tecidas neste texto foram extraídas de uma pesquisa histórica e documental, cujo objetivo foi compreender a concepção de proteção à infância presente nas obras de Moncorvo Filho que datavam de 1899 a 1938 e sua relação com as proposições do Movimento Higienista. Essa pesquisa resultou na dissertação de Mestrado intitulada:
    Sob os auspícios da proteção: Moncorvo Filho e a higienização da infância, de Zaniani (2008).
  • 3
    Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é considerada "criança" a pessoa de até doze anos de idade incompletos e "adolescente" aquela entre doze e dezoito anos de idade. Os termos criança e infância são tomados neste estudo como genéricos para fazer referência à população infanto-juvenil da época, visto ser assim que eles aparecem nos textos consultados.
  • 4
    Entre os inúmeros trabalhos escritos por Moncorvo Filho, citamos três importantes livros, referência para a área da infância naquele período:
    Hygiene Infantil (1917),
    Formulário de Doenças das Creanças (1918) e
    Histórico da Protecção á Infância no Brasil (1926).
  • 5
    A política de Assistência Social tem regulado e organizado as ações e serviços socioassistenciais por meio do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Como desdobramento do SUAS, foi criado o CRAS, que é uma unidade estatal, de base municipal, considerada porta de entrada para todos os demais serviços ofertados por essa política. Ver mais a respeito em: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2004, 2005, 2006).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Revisado
      25 Fev 2010
    • Recebido
      15 Nov 2009
    • Aceito
      22 Mar 2010
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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