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Processos de trabalho e gestão na estratégia de atenção psicossocial

Work procedures and management in the psychosocial attention's strategy

Resumos

Este trabalho situa-se no campo da Reforma Psiquiátrica Brasileira, cenário no qual transformar os modos tradicionais de cuidados exige o enfrentamento de obstáculos, dentre os quais destacamos o fenômeno da cronificação das práticas profissionais e da circulação dos usuários nos serviços substitutivos. A pesquisa foi desenvolvida com o objetivo de analisar esses processos em um ambulatório especializado em saúde mental, tomando como referência teórico-metodológica a análise institucional. As ferramentas metodológicas foram: pesquisa bibliográfica; análise dos registros do serviço; observação participante; registros no diário de campo e rodas de conversa com a equipe. Observamos que o cotidiano da equipe é revestido de tensões, variando entre polos distintos: especialismos x experimentação, verticalidade x horizontalidade, centralização da demanda x corresponsabilização, despolitização x empoderamento, compaixão x solidariedade. As análises apontam o embate cotidiano entre os Paradigmas Psicossocial e Hospitalocêntrico, a necessidade de investir em mudanças nos processos de gestão, politizando os processos de trabalho.

reforma psiquiátrica; estratégia de atenção psicossocial; modos de trabalho; gestão


This work takes place in the field of Brazilian Psychiatric Reform, in which transforming the traditional ways of caring requires confronting the obstacles, among which we highlight the chronification phenomenon on the professional practices and on the users movements in the substitutive services. Research was developed with the purpose to analyze these processes and was accomplished in a specialized mental health clinic taking as a theoretical-methodological reference the institutional analysis perspective. The methodological procedures were: bibliographical research; analysis of the services records; participant observation and registers in the field's notebook; conversation circles with the teamwork. We observed that the teamwork routine is revested in tensions, varying between distinct poles: specialisms X experimentation, verticality X horizontality, demands centralization X co-responsibility, despolitization X empowerment, compassion X solidarity. The analyses aim the everyday crash between the Psychosocial and Hospitalocentric Paradigms, the need to invest on changing the management tactics, politicizing the working procedures.

psychiatric reform; strategy of psychosocial attention; ways of work; management


Processos de trabalho e gestão na estratégia de atenção psicossocial* * Esta pesquisa foi realizada como parte dos requisitos do trabalho de Mestrado desenvolvido por Severo (2009) com o apoio, através de bolsa de estudo, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

Work procedures and management in the psychosocial attention's strategy

Ana Kalliny SeveroI; Magda DimensteinII

IUniversidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil

IIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, Brasil

RESUMO

Este trabalho situa-se no campo da Reforma Psiquiátrica Brasileira, cenário no qual transformar os modos tradicionais de cuidados exige o enfrentamento de obstáculos, dentre os quais destacamos o fenômeno da cronificação das práticas profissionais e da circulação dos usuários nos serviços substitutivos. A pesquisa foi desenvolvida com o objetivo de analisar esses processos em um ambulatório especializado em saúde mental, tomando como referência teórico-metodológica a análise institucional. As ferramentas metodológicas foram: pesquisa bibliográfica; análise dos registros do serviço; observação participante; registros no diário de campo e rodas de conversa com a equipe. Observamos que o cotidiano da equipe é revestido de tensões, variando entre polos distintos: especialismos x experimentação, verticalidade x horizontalidade, centralização da demanda x corresponsabilização, despolitização x empoderamento, compaixão x solidariedade. As análises apontam o embate cotidiano entre os Paradigmas Psicossocial e Hospitalocêntrico, a necessidade de investir em mudanças nos processos de gestão, politizando os processos de trabalho.

Palavras-chave: reforma psiquiátrica; estratégia de atenção psicossocial; modos de trabalho; gestão.

ABSTRACT

This work takes place in the field of Brazilian Psychiatric Reform, in which transforming the traditional ways of caring requires confronting the obstacles, among which we highlight the chronification phenomenon on the professional practices and on the users movements in the substitutive services. Research was developed with the purpose to analyze these processes and was accomplished in a specialized mental health clinic taking as a theoretical-methodological reference the institutional analysis perspective. The methodological procedures were: bibliographical research; analysis of the services records; participant observation and registers in the field's notebook; conversation circles with the teamwork. We observed that the teamwork routine is revested in tensions, varying between distinct poles: specialisms X experimentation, verticality X horizontality, demands centralization X co-responsibility, despolitization X empowerment, compassion X solidarity. The analyses aim the everyday crash between the Psychosocial and Hospitalocentric Paradigms, the need to invest on changing the management tactics, politicizing the working procedures.

Keywords: psychiatric reform; strategy of psychosocial attention; ways of work; management.

Introdução

Os desafios enfrentados pela busca de democratização das relações de trabalho são comuns à Reforma Psiquiátrica e à Reforma Sanitária. Entretanto, muitos problemas nos modos de organização do trabalho e de gestão têm dificultado a implementação efetiva dos princípios do SUS, a saber: desvalorização dos trabalhadores de saúde, a precarização das relações de trabalho, baixo investimento em processos de educação permanente dos trabalhadores e os modelos de gestão centralizados e verticais que desapropriam o trabalhador de seu processo de trabalho (Santos-Filho & Barros, 2007). A partir da identificação desses problemas, o Ministério da Saúde vem tentando qualificar a atenção e o cuidado em saúde, propondo uma Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no Sistema Único de Saúde- Humaniza SUS (Santos-Filho e Barros, 2007). Alguns dos princípios norteadores dessa política pública são: valorização da dimensão subjetiva, social e cultural em todas as práticas de atenção e gestão do SUS, fortalecimento do trabalho em equipe, construção de redes cooperativas na construção de ações em saúde, construção da autonomia e protagonismo dos sujeitos, corresponsabilidade e indissociabilidade entre a atenção e a gestão, democratização das relações de trabalho e valorização dos trabalhadores (Santos-Filho e Barros, 2007).

A Reforma Psiquiátrica brasileira tem objetivado construir práticas de cuidado às pessoas em sofrimento psíquico, a partir de serviços de atendimento comunitário que contemplem a vida concreta dos sujeitos. Entretanto, implementar uma rede de serviços substitutivos, bem como transformar os modos tradicionais de cuidado exige o enfrentamento de uma série de obstáculos epistemológicos, políticos e culturais (Amarante, 1996). Um dos pontos presentes nas discussões do campo da saúde mental trata dos processos de cronificação dos usuários no interior dos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico. Barros (2003) aponta que esse é um problema recorrente na atualidade e diz respeito à inexistência de uma rede integrada de saúde, às cronicidades presentes nos dispositivos assistenciais e, principalmente, nos modos de trabalho e gestão. Processos de cronificação relativos aos usuários indicam que a desospitalização e a criação de novos serviços, apesar de constituírem um passo importante nas mudanças da relação loucura e sociedade, não abrange atualmente as modificações sociais, políticas, econômicas, e subjetivas, necessárias à transformação da lógica de segregação vigente. A permanência ilimitada de tempo dos usuários no interior dos serviços substitutivos acaba por reproduzir o isolamento das pessoas com transtornos mentais, excluídas historicamente do convívio social por não corresponder a um ideal de normalidade. Além disso, gera relações de dependência do usuário e dos familiares para com os serviços de saúde mental, que acabam por querer um cuidado permanente, acreditando sempre necessitar dele. Entendemos, assim, que os problemas relacionados ao fluxo dos usuários nos serviços, de excesso de procura e quase nenhuma saída, servem de analisadores dos processos de trabalho no contexto da reforma psiquiátrica.

Neste artigo, objetivamos analisar os processos relacionados à cronificação no cotidiano da equipe de um serviço ambulatorial da rede de saúde mental de um município nordestino, bem como discutir as suas estratégias de enfrentamento. Nesse serviço percebemos inúmeros problemas que acabam perpetuando tais processos, os quais estão relacionados às relações de poder e à coexistência de dois paradigmas orientando as práticas: o asilar e o psicossocial.

Modos de trabalho e gestão: dois paradigmas em curso na saúde mental

Discutir os processos de trabalho e de gestão é imprescindível para o avanço da Reforma Psiquiátrica nos campos assistencial, político e cultural. A desinstitucionalização deve ultrapassar a desospitalização (Amarante, 1996), devendo ser assumida como um processo de desconstrução do saber psiquiátrico, buscando "transformar as relações de poder entre a instituição e os sujeitos e, em primeiro lugar, os pacientes" (Rotelli, Leonardis, & Mauri, 2001, p. 32). Em termos dos processos de trabalho, é preciso transformar a relação técnico-usuário, renunciando o mandato social do primeiro sobre o segundo, efetivando mudanças no campo ético para com as pessoas que têm transtornos mentais. Para tanto, é necessário que os técnicos discutam com essas pessoas a sua condição social de ser excluído e sem direitos, reconstituindo sua capacidade de escolha retirada pela relação objetificante a qual permanece assujeitado, desconstruindo atitudes de violência e de tolerância (Basaglia, 1985).

Os embates históricos que circunscrevem as intervenções sobre a loucura atravessam os modos de trabalho desenvolvidos nos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico. Desse modo, Romagnoli (2006) retoma Foucault para discutir as relações de poder que perpassam as inserções dos profissionais "psi" nos serviços de saúde. O aparecimento dos saberes, entendidos como formações discursivas e suas respectivas práticas ocorrem em momentos históricos circunscritos, estando ligados com a questão do poder e, portanto, não são dispositivos universais e a-históricos, mas sim resultam de questões emergentes em determinada época. Dessa ligação entre saber e poder emergem as práticas, sendo esse sistema de controle não restrito a uma área específica, como o sistema judiciário e penal, mas também pela medicina, pela pedagogia, pela psicologia, pela economia; enfim, por todos os campos de saber.

Conforme a perspectiva ética e política adotada pelo trabalhador da saúde, ele fundamentará seu trabalho a partir do Paradigma Hospitalocêntrico Medicalizador ou o Psicossocial, objetivando assim a permanência ou mudanças nessas configurações de saber e poder e, desse modo, dos modelos de gestão e de trabalho em saúde. Segundo Costa-Rosa (2000), no modo asilar, os meios de trabalho podem incluir recursos multiprofissionais, mas não ultrapassam o modelo de divisão do trabalho com tarefas fragmentadas, tendo o saber médico um lugar de privilégio sobre os outros (Yasui & Costa-Rosa, 2008). Do mesmo modo, o sujeito acaba por ser concebido de modo fragmentado e o diálogo dentro da equipe bastante reduzido, e quando ocorre, o prontuário torna-se o elo de interconexão entre os profissionais da equipe. As formas de organização institucional são piramidais, nas quais o fluxo do poder institucional segue apenas um sentido. Por isso, nesse modelo de organização, as relações entre os trabalhadores são verticais e o poder de decisão e de coordenação são concentrados no ápice da pirâmide (Costa-Rosa, 2000). O cuidado no Paradigma Asilar segue ainda a noção de reparo, a partir do qual os técnicos profissionais de saúde dizem saber o que é melhor para os usuários, escamoteando a noção de direitos que os estes devem ter de ser assistidos e de ter respeitada a sua expressão singular (Alves & Guljor, 2004).

Em contraponto a essas características, o Paradigma Psicossocial, alinhado com a proposta de desinstitucionalização, propõe outra lógica de organização de trabalho. A equipe interprofissional deve caracterizar o meio de trabalho, com a inserção de uma série de dispositivos diversificados (Costa-Rosa, 2000). A organização da divisão do trabalho deve ser coerente com uma lógica de cooperação entre diferentes profissionais, serviços e gestão-administração. Nesse sentido, o trabalho da assistência torna-se indissociado do trabalho da gestão, pois os processos decisórios devem perpassar o cotidiano dos serviços, existindo a horizontalização de saberes e de decisões (Santos-Filho & Barros, 2007). No processo de cuidado, faz-se necessária ainda a corresponsabilização entre técnicos, serviços, usuários, comunidade e família na construção de novos projetos de vida para os usuários, buscando a liberdade, e negando o isolamento (Alves & Guljor, 2004).

Yasui e Costa-Rosa (2008) pontuam que os profissionais não podem esquecer que todos nós somos atores de uma prática social, que temos potencialidade e que ao produzir modos de trabalho também estamos produzindo processos de subjetivação. Desse modo, acreditamos que o campo de atuação em saúde mental está revestido por embates, tanto no que diz respeito aos Paradigmas Hospitalocêntrico e Psicossocial, quanto aos modos de trabalho e de gestão produzidos no âmbito da saúde.

A criação do percurso da pesquisa

O espaço de pesquisa foi um serviço ambulatorial especializado em saúde mental de um município nordestino, situado em uma cidade cuja área geográfica é de 170.298 km2, com 806.203 habitantes. Os serviços tipo Centros Psicossociais II disponíveis na rede são dois, distribuídos em dois distritos sanitários: o Leste e o Oeste. O ambulatório estudado é referência para o Distrito Sanitário Leste, e tenta funcionar como porta de saída da rede substitutiva, recebendo usuários da rede CAPS. Entretanto, isso tem-se mostrado problemático, pois os usuários não conseguem sair da rede especializada em saúde mental.

O ambulatório estudado funciona de segunda à sexta-feira, das oito às doze horas, nas dependências de um Centro Clínico da cidade. Suas atividades estavam distribuídas em atividades grupais, abrangendo oficinas de artes e artesanato, grupos terapêuticos; consultas psiquiátricas individuais e escuta psicológica. Outras atividades como grupos de dança, passeios e sessões de cinema eram inseridas na programação cotidiana do serviço conforme a demanda dos usuários. A equipe era composta por dez técnicos, sendo três psicólogas, uma assistente social, uma filósofa, uma arte-educadora, uma auxiliar de enfermagem e três psiquiatras. Existiam 214 usuários cadastrados no serviço e todos faziam uso de consultas psiquiátricas.

Realizamos três meses de observação das atividades cotidianas do serviço, que eram feitas em três dias da semana, durante quatro horas por dia, totalizando cento e quarenta e quatro horas, registradas em diários de campo. Fizemos ainda a análise dos registros acerca da demanda atendida no serviço com a utilização da ferramenta Excel 2003, e cinco rodas de conversas com técnicos. Segundo Afonso e Abade (2008), as rodas de conversas são utilizadas nas metodologias participativas e buscam sensibilizar e mobilizar os participantes a refletirem acerca de sua relação com o mundo, com o trabalho, com seu projeto de vida, etc. As temáticas das rodas de conversas não foram delimitadas a priori, mas surgiram a partir de suas dinâmicas. No início de cada uma delas, havia o processo de restituição daquilo que estávamos refletindo acerca da pesquisa e dos levantamentos feitos a partir dos dados das observações e registros do serviço. As rodas de conversas com os técnicos eram feitas durante as reuniões de equipe, nas quais os psiquiatras, apesar de convocados, não participavam, justificando, na maioria das vezes, não dispor de tempo para isso.

A abordagem teórico-metodológica utilizada foi a análise institucional, na qual existe a preocupação com a busca de movimentos autoanalíticos e autogestivos, tornando-se imprescindível a elucidação dos analisadores (Rodrigues, 2004). Um analisador refere-se a um fenômeno emergente de uma série de forças contraditórias apresentadas na realidade (Baremblitt, 1992).

Ao mapear as forças que compõem a realidade pesquisada, buscamos elucidar as instituições e seu funcionamento através de duas dimensões: instituinte e instituída. Essas dimensões acabam por dar processualidade, fazendo emergir o novo, rompendo com a lógica de funcionamento enrijecida (dimensão instituinte), ou mesmo perpetuando práticas, modos de pensar, de viver e de funcionar (dimensão instituída). No caso do nosso objeto de estudo, foi necessário apontar quais forças favorecem ou não a cronificação nos serviços de saúde mental e pensar estratégias de enfrentamento da problemática.

Resultados e discussão

Como pontuado anteriormente, há uma série de características que diferenciam os modos de trabalho e de gestão no Paradigma Asilar e no Psicossocial, que afetam os processos micropolíticos no cotidiano dos serviços de saúde. Desse modo, tomamos como analisadores algumas tensões entre a dinâmica instituído-instituinte presente nos modos de trabalho no serviço. As tensões a seguir apresentadas são categorias formadas a partir da análise dos dados encontrados nessa pesquisa: especialismos x experimentação, verticalidade x horizontalidade, centralização da demanda x corresponsabilização, despolitização x empoderamento, compaixão x solidariedade. A partir de tais tensões, percebemos a dinâmica do cotidiano, no qual o processo de cronificação identifica-se com o instituído, e àquilo que lhe escapa identifica-se aos processos instituintes, podendo contribuir para a sua superação.

Especialismos x experimentação

No cotidiano do serviço, percebemos a existência de uma atuação marcada pela especialidade do profissional, ao mesmo tempo em que existiram atividades nas quais esses especialismos se desfizeram em prol do desenvolvimento de projetos comuns. O perfil de atuação, segundo a lógica especialista, diz respeito a uma atuação marcada pela delimitação de territórios de cada grupo profissional, sendo marcada pela constituição das profissões, através de um saber específico e da autonomia profissional (Campos, 1998). Em contraposição a isso, a experimentação refere-se a partilhar conhecimentos, saberes, práticas, experiências, habilidades e intersubjetividade, em prol de projetos singulares (Furtado, 2009).

Encontramos uma manutenção do perfil de atuação, de acordo com a especialidade do profissional: a assistência social trabalhando com parcerias institucionais e com os benefícios sociais; os psicólogos coordenando grupos terapêuticos, sendo responsáveis pela escuta clínica; o psiquiatra com consultas psiquiátricas; a auxiliar de enfermagem responsável pela organização das consultas psiquiátricas; a farmacêutica sendo responsável pela distribuição de medicamentos.

Campos e Domitti (2007) têm destacado o problema dos especialismos na implantação da Reforma Sanitária, em que a crescente divisão do trabalho dificulta a integração do processo de atenção e cuidado às pessoas. As distintas especialidades médicas e profissões de saúde definiram objetos de intervenção e campos de conhecimento distintos e fragmentados, distante da realidade concreta dos sujeitos. Nesse processo, a grande maioria das especialidades e profissões de saúde trabalha com um referencial sobre o processo de saúde e doença restrito, filiado à racionalidade biomédica.

Entretanto, observamos durante a pesquisa muitos momentos nos quais esses especialismos foram desfeitos e os projetos coletivos/interdisciplinares foram executados com cada técnico assumindo funções não "prescritas". Nesses projetos outras posturas foram assumidas de acordo com a disponibilidade dos profissionais para a criação e invenção no contexto de trabalho. As organizações dos passeios e das festas envolviam cada profissional e os convocavam a atuar conforme sua disponibilidade e suas habilidades pessoais, demonstrando bastante criatividade nesse cotidiano. Um desses momentos foi a mobilização do grupo de Pastoril. O Pastoril é uma dança popular nordestina e iniciou-se no ambulatório mobilizado pelos usuários e técnicos no período da pesquisa, de acordo com a sugestão de uma usuária. Após aproximadamente um mês de ensaio, o grupo fez sua primeira apresentação ao público na festa natalina promovida pelo serviço. Nesse momento, por exemplo, não houve distinção de especialidades e nem distinção de qual técnico seria responsável pela atividade, mas foi um projeto elaborado de acordo com a disponibilidade e habilidade de cada um. As técnicas relatam com imensa alegria esse evento, falando o quanto ele foi terapêutico, no sentido de auxiliar o grupo de usuários e técnicos no respeito à diferença e aos ritmos e gestos de cada um. Mencionam ainda como foi emocionante perceber o envolvimento da comunidade, principalmente porque nessa dança existe a interação com o público. Um fato inusitado e relatado por uma das técnicas ocorreu também com a formação de uma roda de dança com a comunidade junto aos "dançarinos" no final da apresentação.

A criatividade nos processos de trabalho é fundamental para produzir prazer no trabalho e de novos modelos de cuidado em saúde mental, superando, desse modo, a cronificação identificada nos processos de trabalho em diversos serviços substitutivos (Barros, 2003). Durante o momento em que o trabalhador inventa, recria a si mesmo e ao próprio processo de trabalho, lutando contra seu próprio adoecimento. Desse modo, é necessário investir na invenção de si e do mundo no trabalho através das práticas cotidianas (Santos-Filho & Barros, 2007). Acreditamos ainda que a experimentação esteja associada à colaboração. Furtado (2009) nos lembra ainda que colaboração interprofissional é sempre "co-laboração", ou seja, trabalho com e entre muitos, e para isso é necessária a instauração de um ambiente democrático, no qual haja mecanismos de horizontalização dos saberes, minimizando a hierarquização de saberes, potencializando a interdisciplinaridade. Desse modo, percebendo a existência dos especialismos e da experimentação, devemos questionar quais as associações entre essa tensão e as relações de poder dentro do ambulatório. Isso será foco de análise no próximo item.

Verticalidade x horizontalidade

Na pesquisa de campo percebemos tensões vivenciadas na equipe relacionadas às experiências entre os profissionais em torno da horizontalidade e verticalização das relações interprofissionais. A tensão verticalidade x horizontalidade guarda uma estreita ligação com o movimento de tensão anteriormente citado. Essa afirmação parte da perspectiva de que o saber e poder, como vimos anteriormente, estão constantemente se coproduzindo, produzindo realidades e subjetividades, e importa questionar que implicação cada sujeito tem nessa configuração (Santos-Filho & Barros, 2007). Desse modo, a tensão entre verticalidade e horizontalidade se instaura nas configurações de distribuição de poder nos serviços, na qual a verticalidade caracteriza-se pelo privilégio de um saber sobre outros, e a horizontalidade ocorre quando temos diversos saberes e/ou atores sociais atuando de forma coparticipativa no processo de construção de uma realidade.

Quanto à relação dos técnicos entre si, percebemos que existe uma horizontalidade nos processos decisórios, no que se refere à organização das atividades do serviço e nas discussões sobre os casos. Entretanto, a expressão usada por uma das técnicas em uma reunião, mencionando o comentário de alguns usuários sobre a equipe ser "peão" (psicóloga 1) submetida aos psiquiatras, indicam a dinâmica de forças contraditórias anteriormente citadas nesse cotidiano. Em muitos momentos percebemos reclamações de alguns técnicos da equipe diante da recusa dos psiquiatras em inserir usuários a mais na sua agenda, levando-os a uma posição de "pedir favor" (assistente social 1).

Pela importância atribuída ao saber psiquiátrico no ambulatório, as atividades cotidianas do serviço são organizadas de acordo com a frequência das consultas psiquiátricas. Nos dias da semana em que não existem consultas psiquiátricas, há mais tempo para a realização de outras atividades, pois o serviço fica "menos tumultuado" (psicóloga 1). Ou seja, existe uma verticalização dos modos de trabalho orientados pelo predomínio do saber psiquiátrico que ordena o cotidiano do serviço. As consultas são prioridade e determinam os projetos terapêuticos. Isso está articulado com a vigência do saber biomédico, como dito anteriormente, mas também ao fato das profissões da saúde estar ordenadas em departamento segundo a lógica das profissões e especialidades médicas. A prevalência da verticalidade, diante da relação que se mantém com o saber psiquiátrico, é reforçada ainda pela dinâmica anterior dos especialismos, e na consideração de que outros técnicos, seu saber e sua prática são auxiliares secundários ao saber psiquiátrico. Baremblitt (1992) nos lembra que ao longo dos séculos a sociedade industrial tem se complexificado, e nesse processo houve um acúmulo de saberes, no qual os experts têm se colocado a serviço de entidades e forças dominantes em nossa sociedade, onde o saber popular é relegado a um segundo plano. Apesar dos questionamentos feitos pelo paradigma psicossocial, sabemos que, sobre a gestão da loucura, a psiquiatria tem acumulado, ao longo dos séculos, um saber reconhecidamente científico, e, portanto, socialmente mais valorizado do que outros saberes, inclusive, os do campo da saúde, tornando-se hierarquicamente superior aos outros. Entretanto, existem outros saberes e práticas que precisam ser valorizados no cuidado com a pessoa com transtorno mental, sendo necessário superar a lógica produzida pelo saber psiquiátrico de problema-solução.

Santos-Filho e Barros (2007) afirmam que para pensar os processos de horizontalização é necessário, dentre outras ações, investir na valorização do trabalhador como dispositivo de reorganização dos processos de trabalho, democratizando-os, investindo, desse modo, em um processo de autonomia do trabalhador, com uma educação permanente, na qual se estimule ver os serviços como espaços de aprendizagem contínua, com capacitações no próprio ambiente de trabalho (Santos-Filho & Barros, 2007). Além disso, ao apostar em processos autogestivos, cuja premissa básica é a horizontalização dos saberes, os coletivos começam a se apropriar do seu cotidiano, dos saberes neles envolvidos, entrando em um processo autoanalítico, e sendo protagonistas na construção da realidade (Baremblitt, 1992). Ou seja, é preciso investir nesse tipo de relação no ambulatório, e investir em um processo no qual os saberes dos usuários, dos familiares e dos técnicos estejam construindo o modelo de serviço; que eles reflitam sobre o seu próprio saber em uma relação de igualdade com outros saberes, dialogando e formulando um cotidiano de cuidado na saúde mental.

Entretanto, percebemos a permanência de um processo de gestão do cuidado do serviço ainda cronificada, pois prevalece em muitos momentos o saber médico-psiquiatra, e a não participação do usuário, dos familiares e da comunidade em geral na gestão do cuidado em saúde mental. Esses dados contribuem para o processo de cronificação, continuando a reproduzir relações de tutela e de exclusão das pessoas com sofrimento psíquico.

Centralização da demanda x co-responsabilização

No atendimento à diversidade de demandas no ambulatório, instaura-se frequentemente a tensão entre acolhê-la ou encaminhá-la para outros serviços da rede. Essa tensão indica: a centralização da demanda por um lado, e a corresponsabilização e a conexão com outros dispositivos, por outro.

A diversidade de serviços oferecidos e a falta de clareza do papel dos ambulatórios de saúde mental na rede de serviços, quando associados ao discurso de responsabilização dos técnicos e o intenso vínculo que esses formam com os usuários, têm provocado, por vezes, a centralização da demanda. Entendemos centralização da demanda como a centralização por um serviço de saúde das respostas em saúde e de vida de um grupo de usuários, tornando tal estabelecimento como um espaço depositário de tutoria (Costa-Rosa, 2000). A estruturação dos processos de trabalho nesses serviços tem efeitos diretos sobre os processos de subjetivação da equipe. Os processos de subjetivação são conjuntos de elementos originários dos equipamentos sociais e dos dispositivos políticos de poder, da cultura, dos modos de produção econômicos e das instituições que se encarregam da produção de subjetividade (Guimarães & Meneguel, 2003). Tomando uma expressão surgida em uma das rodas de conversa, a equipe composta por pessoas "superpoderosas" (psicóloga 1) tem que lidar, no cotidiano, com questões complexas como a produção de vida, dentre outras (falta de receitas, falta de medicação, rotatividade dos psiquiatras, etc.).

Ramminger (2008) destaca, em revisão bibliográfica sobre a relação entre os trabalhadores de saúde mental nos serviços substitutivos e o sofrimento vivenciado por eles em situações de trabalho, a desproporcionalidade existente entre o aumento da responsabilidade e autonomia do trabalhador para responder problemas complexos depois da Reforma Psiquiátrica, e o menor aumento de recursos teóricos, financeiros e de suporte emocional. Segundo esta autora há indicadores de sofrimento que têm sido ressaltados em estudos feitos em CAPS. No ambulatório estudado, outras condições ainda prejudicam o desenvolvimento de algumas atividades como a falta de telefone, de vale-transporte, além das especificidades assumidas por esse serviço na rede, com a centralização da demanda que deveria ser assumida por outros tipos de dispositivos na rede, tais como a atenção básica. Diante da alta do CAPS, os usuários poderiam estar sendo atendidos na atenção básica e não no serviço estudado. Essas precárias condições de trabalho dificultam a participação ativa e criativa dos trabalhadores nos seus processos de trabalho, tornando os modelos de trabalho por vezes enrijecidos, repetindo, desse modo, a cronificação nos modos de trabalho.

No contexto da Estratégia da Atenção Psicossocial, torna-se importante a responsabilização de diversos atores e instâncias sociais pelo cuidado ao portador de transtorno mental de forma compartilhada. Para responder à demanda de cuidados mais intensivos de muitos usuários, observamos que a equipe do ambulatório entra em contato com os CAPS II no sentido de solicitar atendimento, tentando construir processos de corresponsabilização. Percebemos nesse e em muitos outros casos presentes no ambulatório, a existência de problemas que ultrapassam o âmbito do que tradicionalmente se coloca como sendo específica da saúde mental, exigindo diversas articulações para respondê-las. A assistência em saúde mental deve englobar diversos níveis da vida, ao fundamentar-se na integralidade e no cuidado da existência do usuário. Entretanto, atuar sobre diversas esferas da vida, principalmente diante da desassistência que essas pessoas sofrem, desassistência na saúde básica, nas condições de moradia, fatores relacionados à construção de um modo de vida satisfatório, torna-se um imenso desafio. No ambulatório, a formação de algumas parcerias, de comunicações com grupos não restritos aos serviços de saúde mental, portanto não "formalizados" a partir das diretrizes das políticas públicas em saúde mental tem possibilitado a construção de um cuidado focado na vida dos usuários, tentando refazer histórias, possibilitando a promoção de encontros de lazer e cultura. Diversas possibilidades poderiam ser ampliadas se efetivamente a gestão-administração se encarregasse de fazer parcerias e priorizasse a intersetorialidade como estratégia fundamental na rede de atenção psicossocial da cidade. Não estamos aqui afirmando que a responsabilidade das parcerias seria exclusiva dos gestores-administradores, pois acreditamos na importância dos serviços em fazê-las, e no ambulatório pesquisado isso aconteceu (Severo, 2009), entretanto, afirmamos a necessidade das parcerias irem além das iniciativas promovidas pelos serviços.

A partir da centralização da demanda, a equipe do ambulatório se coloca em uma postura de sobreimplicação, com um alto nível de comprometimento e de pró-atividade naquilo que se está exercendo, mas de forma alienada, sem análise daquilo que se está produzindo (Altoé, 2004). O ativismo irreflexivo pode indicar uma postura apolítica diante de ordens implícitas e/ou explícitas (Altoé, 2004). Existe a necessidade, portanto, de superar a postura de sobreimplicação, problematizando a relação que a equipe mantém com as ordens da gestão-administração de saúde mental, por exemplo, colocando em análise a articulação entre a demanda social, a equipe do ambulatório e a gestão-administração.

Despolitização x empoderamento

Durante as rodas de conversas, uma das técnicas psicólogas denomina a equipe de "apolítica", no sentido de não participação nas decisões e nas reivindicações políticas no âmbito da saúde mental, ou mesmo de entender os problemas cotidianos como dissociados da questão política. Quando falamos de empoderamento, referimo-nos à apropriação dos trabalhadores com relação ao seu processo de trabalho e a politização do mesmo. Em contraponto a isso, a despolitização indica um desconhecimento em relação ao modo de organização do trabalho e uma dificuldade em "explicitar sua prática, o que tem consequências no seu fazer cotidiano, em sua atuação mais banal" (Monceau, 2008, p.24). Nesse sentido, é necessário problematizar quais atravessamentos estão articulados com a postura de "apolitização" da equipe. Ao entendermos o trabalhador como gestor de seu próprio trabalho, estamos afirmando que essa atividade é potencialmente geradora de mudanças políticas, sejam elas de qualquer ordem, ou mesmo um exercício que tende à repetição de uma determinada ordem social (Santos-Filho & Barros, 2007).

Torna-se necessário, portanto, incluir a implicação nos processos de trabalho, não reduzindo o trabalho em saúde mental a um conjunto de técnicas, incluindo uma perspectiva clínica-política na qual não haja um predomínio da técnica e do saber eminentemente científico. Esse predomínio da técnica é problemático, pois no mundo contemporâneo acaba-se enfatizando a formação dos trabalhadores a partir de especialidades, resultando na cisão entre o conhecimento e o engajamento social (Romagnoli, 2006). Pensamos ser imprescindível a necessidade de ampliações na perspectiva de pensar a clínica, indo além do sentido tradicional da capacidade de acolher, para pensá-la como uma operação de "desvio", de interferência no movimento para a produção de novos caminhos, criação de outros processos de trabalho e, deste modo, de produção de si (Passos & Barros, 2001). Desse modo, pensar o trabalho como produção de si implica articulá-lo com os processos de gestão: gestão de si, do cotidiano, do exercício do cuidado, etc. Nesse sentido, é necessário analisar que tipo de articulação com a gestão-administração de saúde mental tem se desenvolvido no sentido de produzir um trabalho de assistência indissociado do trabalho da gestão, onde os processos decisórios perpassam o cotidiano dos serviços.

Podemos ainda destacar a insatisfação que a equipe do ambulatório demonstrou no que se refere à sua relação com a gestão-administração de saúde mental, sendo essa tomada, por vezes, como ausente dos conflitos vivenciados no serviço. Além disso, a presença de duas coordenações, uma referente à gestão-administração de saúde mental e outra à coordenação do Centro Clínico, tem provocado, por vezes, uma confusão de papéis e incentivado essa ausência de apoio em algumas atividades executadas no ambulatório. A cisão da equipe do ambulatório com a gestão-administração de saúde mental foi percebida principalmente no sentido de pensar os problemas do serviço intrainstitucionalmente. Essa cisão aponta que o organograma da rede de serviços está organizado de forma hierárquica e com pouca participação da equipe nos processos decisórios, indicando a predominância do Paradigma Hospitalocêntrico (Costa-Rosa, 2000). Em um dos momentos das observações, o anúncio de que a arte-terapeuta iria se afastar do serviço provocou um pavor na equipe, de como iria ser o serviço sem as oficinas terapêuticas, consideradas "carro-chefe" do serviço, e como os usuários lidariam com esse afastamento e com a pausa repentina das oficinas terapêuticas. Nesse período, foi solicitada uma reunião com a supervisora institucional, e a gestão-administração de saúde mental não esteve presente no serviço. Compreendemos que nesse momento, para a equipe, a questão da clínica, ou seja, de como seria a recepção disso pelos usuários, era mais urgente do que a questão administrativa; por isso a procura pela supervisão institucional. Mas queremos questionar: como seria possível instalar uma maior proximidade e envolvimento da equipe com processos decisórios se a gestão-administração de saúde mental não se apresenta nesses momentos de dificuldades vivenciadas pela equipe?

Acreditamos que estimular processos auto e cogestivos seria uma alternativa. Na heterogestão, os coletivos acabam desapropriados do saber sobre si, sobre os processos sociais dos quais fazem parte, e o poder de decidir acaba sendo reduzido. No período da apresentação do Pastoril, a equipe desconhecia os incentivos financeiros do Ministério para o desenvolvimento de projetos culturais no campo da saúde mental e a gestão-administração de saúde mental, quando consultada, a princípio, não forneceu apoio para a equipe, e este momento poderia ser, por exemplo, uma oportunidade importante para conseguir verbas e incentivos, investindo em uma estratégia terapêutica diferenciada.

Ressaltamos, nesse sentido, que a manutenção de estratégias verticalizadas de coordenação e gestão propicia a manutenção do Paradigma Hospitalocêntrico, pois impossibilita a construção de relações horizontais e reproduz relações de poder instituídas. No âmbito da Atenção Psicossocial é necessário que a gestão esteja mais próxima dos serviços substitutivos, cogerindo os modos de intervenção em saúde mental. Ressaltamos ainda a necessidade do envolvimento da gestão-administração de saúde mental junto, por exemplo, à supervisão institucional, para investir em processos de cogestão, com planejamento da rede de serviços e de estratégias intersetoriais necessárias. Diante desse quadro de tensões que envolvem o cotidiano do ambulatório e as dificuldades que envolvem a sua relação com a gestão, questionamos que saídas os técnicos encontram no seu cotidiano. Essas saídas têm proporcionado a invenção no cotidiano, estimulando a dimensão organizante, ou têm servido à repetição? As organizações possuem a dimensão organizante, onde se configuram os processos instituintes destas, e a dimensão organizada, as quais representam a institucionacionalização de modos de funcionar. Acreditamos que essas contradições precisam ser analisadas, sendo necessário investir nessa dimensão organizante para superar o quadro de repetição mencionado.

Compaixão x solidariedade

A cronificação presente nos dispositivos tipo CAPS e também encontrada no ambulatório apontam para a dificuldade de se aliar clínica e política (Barros, 2003). As saídas encontradas ou apontadas no ambulatório para esses processos de cronificação têm variado desde a compaixão até a solidariedade.

Ao fazermos essa denominação, estamos colocando tal questão em uma ordem ética, não apenas epistemológica, mas também de ordem micropolítica, de uma estética da existência (Alarcon, 2005). Aquilo que chamamos de compaixão diz respeito às respostas pautadas em um fazer saúde ligado a uma ética fraterna, de fazer o "bem", seja ao outro ou ao serviço. Nessa perspectiva, a desassistência da gestão-administração de saúde mental e as dificuldades cotidianas são resolvidas pela equipe, sem nenhum tipo de problematização, e de se colocar na posição de pedir algo, na dependência de favores. Para exemplificar isso, indicamos muitas situações nas quais a equipe precisa se colocar na postura de pedinte, seja para consultas psiquiátricas, seja para atendimento de emergência, para prestar assistência aos usuários. Não estamos aqui negando a positividade e a criatividade vivenciadas no cotidiano para atender aos usuários, mas indicando o quanto isso acaba produzindo sobrecarga de trabalho e reproduzindo subjetividades assujeitadas às formas tradicionais de gestão, dissociadas da atenção. A aceitação da verticalidade da psiquiatria, dos especialismos, da sobrecarga de trabalho, da cisão com a gestão, com respostas "despolitizadas", indica uma produção de uma repetição na realidade do instituído, de "querer" viver uma realidade segura, definida antecipadamente. Nesse sentido, Alarcon (2005) nos lembra do risco do fascismo que está em cada um de nós, de viver acreditando e desejando a subordinação, estando no limite entre o conforto e o sofrimento. A partir das reflexões propostas pela Reforma Psiquiátrica e pela Reforma Sanitária brasileira, buscamos mais do que modificar relações técnico-assistenciais, mudar valores sociais que propiciem a universalidade do acesso às políticas públicas, a equidade, a integralidade, etc., valores que propiciem atos e gestos concretos no cotidiano, que façam a diferença naqueles que são cuidados, como por exemplo, atos de generosidade, de hospitalidade, e de respeito à diferença. Yasui (2009), citando Birman, afirma que a solidariedade é a consequência do laço fraterno, sendo uma ética que implica necessariamente em uma política, uma ação coletiva. Nesse sentido, a solidariedade é promotora de bons encontros que produzem efeitos, ressonâncias.

No ambulatório, vemos os agentes sociais a partir de suas práticas de promoção desses bons encontros, de um serviço que acolhe as diferenças dos usuários, que busca promover saúde e vida, mas que ainda necessitam de um investimento político nos projetos. Através das propostas da Reforma Psiquiátrica, resgata-se a discussão sobre a relação com alteridade, referindo-se à "ousadia de inventar um novo modo de cuidar do sofrimento humano, por meio da criação de espaços, de produção, de relações sociais pautadas por princípios e valores que buscam reinventar a sociedade, constituindo um novo lugar para o louco" (Yasui, 2009, p.03). O destaque sobre a humanização vem tentar reagir às políticas, ao mercado, à gestão, às muitas instituições que tendem a nos reduzir a objetos, defendendo a recriação de sistemas públicos de cultura, de lazer, educação, saúde, ecologia, produção agrícola, etc.

Considerações finais

A coexistência explícita de dois paradigmas acaba gerando tensões no cotidiano do ambulatório, as quais indicam a verticalização do saber psiquiátrico, a hegemonia dos especialismos, a fragmentação dos processos de trabalho, dentre outros, o que têm gerado desprazer e sofrimento entre os técnicos. Isso é reforçado pela cisão da equipe com a gestão, e pela despolitização dos problemas cotidianos vivenciados pela equipe. Ao mesmo tempo, existe um movimento instituinte de tentar romper com o Paradigma Hospitalocêntrico e Medicalizador, tentando inventar novas práticas ligadas a horizontalização dos saberes, à corresponsabilização pela demanda, etc. As tensões acima mencionadas têm proporcionado ora repetição, ora a invenção, ora alegria, ora dor no cotidiano dos técnicos do ambulatório e dos serviços de saúde em geral. A dor pela falta de significação do trabalho, pela mecanização dos gestos, pela falta de sentido/finalidade do trabalho realizado (Santos-Filho & Barros, 2007).

Nessas tensões percebemos que se perpetuam processos de cronificação no serviço de saúde mental estudado, na rede e nos processos de gestão, ao mesmo tempo em que surgem movimentos que fogem a isso. Apontamos aqui a necessidade de investir na problematização dos modos de gestão e de trabalho no âmbito da Estratégia de Atenção Psicossocial, principalmente para uma maior participação política dos técnicos e dos usuários, implementando e ampliando os espaços de cogestão, para que os diversos atores sociais se apropriem das mudanças propostas pela Reforma Psiquiátrica e sejam mais atuantes nesse processo, superando os processos de cronificação vivencidos nos serviços. Os processos de "cogestão' precisam extrapolar um sentido formal, normativo ou mesmo jurídico. Segundo Santos-Filho e Barros (2007), contratar significa o estabelecimento de contato, criando conexões, redes, alterando os modos de gerir o/no trabalho, sendo importante desencadear movimentos simultâneos em duas direções: em uma, o movimento de oficinas en­volvendo gestores-trabalhadores dos serviços e gestão-administração central, criando assim espaços efetivos de atualização das diretrizes dos projetos, propiciando sua apropriação pelo conjunto dos trabalhadores e ajustamento coletivo de metas no nível local.

A partir disso, voltamos a Basaglia (1985) quando este afirma que as práticas de compaixão podem estar re-atualizando a exclusão e, desse modo, a violência. Para a superação desse quadro, torna-se imprescindível a análise das práticas pautadas na solidariedade, nas quais haja a implicação de cada ator social, entendo toda a prática como construção política. A análise da implicação com a participação do trabalhador nos processos decisórios permite ao trabalhador de saúde mental sair da condição de objeto a que se submeteu por regimes de saber-poder históricos, contestando o modo como tem se estruturado os regimes de trabalho e de vidas, rejeitando o conformismo de esperar por uma instância superior para produzir mudanças políticas.

Nota

Referências

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Recebido em: 30/08/2009

Revisão em: 15/04/2010

Aceite final em: 17/05/2010

Ana Kalliny Severo é Psicóloga, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Doutoranda em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. Endereço: Rua Pintor Rodolfo de Amoedo, 528. Pitimbú, Natal/RN, Brasil. CEP 59069-150. Email: kallinysevero@yahoo.com.br

Magda Dimenstein é Doutora em Saúde Mental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Endereço: UFRN, CCHLA/ Depto. de Psicologia, Campus Universitário, Lagoa Nova. Natal/RN, Brasil. CEP 59.078-970.Email: magda@ufrnet.br

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    Esta pesquisa foi realizada como parte dos requisitos do trabalho de Mestrado desenvolvido por Severo (2009) com o apoio, através de bolsa de estudo, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Revisado
      15 Abr 2010
    • Recebido
      30 Ago 2009
    • Aceito
      17 Maio 2010
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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