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Repertórios interpretativos na controvérsia sobre a legalização do aborto de fetos anencefálicos

Interpretative repertoires in the controversy on the legalization of abortion of anencephalic fetuses

Resumos

Neste artigo procuramos apresentar como os sentidos de vida são produzidos na controvérsia moral sobre o aborto induzido a partir dos usos de repertórios interpretativos. O foco do nosso estudo foi a liminar do Ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, que em 2004 autorizou a interrupção da gestação em casos de anencefalia do feto. Nossa análise discursiva se baseou na descrição e interpretação dos repertórios na construção de argumentos favoráveis e contrários à autorização do aborto induzido em casos de gestação de fetos anencéfalos. A análise dos documentos estudados indica que os usos da linguagem para designar "gestante", "feto" e "aborto" sobrepõem valores religiosos na avaliação dos direitos reprodutivos que atravancam a efetivação de políticas de assistência à saúde da mulher.

repertórios interpretativos; psicologia discursiva; anencefalia; aborto


In this paper we explore how the meanings of life are produced in the moral controversy about induced abortion through the use of interpretative repertoires. The focus of this study was the injunction by the Marco Aurelio Mello, Minister of the Supreme Court, who in 2004 authorized the termination of pregnancy in cases of fetal anencephaly. Our discursive analysis was based on the description and interpretation of linguistic repertoires used for constructing arguments for and against approval of induced abortion in cases of pregnancy of an anencephalic fetus. The analysis of the documents indicates that the uses of language to refer to "pregnant women", "fetus" and "abortion" gives preeminence to religious values in the evaluation of reproductive rights which block the effectiveness of welfare policies for women's health.

interpretative repertoires; discursive psychology; anencephaly; abortion


Repertórios interpretativos na controvérsia sobre a legalização do aborto de fetos anencefálicos* * Apoio e financiamento CNPq

Interpretative repertoires in the controversy on the legalization of abortion of anencephalic fetuses

Flávia Regina Guedes RibeiroI; Mary Jane Paris SpinkII

IUniversidade Federal de Alagoas, Palmeira dos Índios, Brasil

IIPontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil

RESUMO

Neste artigo procuramos apresentar como os sentidos de vida são produzidos na controvérsia moral sobre o aborto induzido a partir dos usos de repertórios interpretativos. O foco do nosso estudo foi a liminar do Ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, que em 2004 autorizou a interrupção da gestação em casos de anencefalia do feto. Nossa análise discursiva se baseou na descrição e interpretação dos repertórios na construção de argumentos favoráveis e contrários à autorização do aborto induzido em casos de gestação de fetos anencéfalos. A análise dos documentos estudados indica que os usos da linguagem para designar "gestante", "feto" e "aborto" sobrepõem valores religiosos na avaliação dos direitos reprodutivos que atravancam a efetivação de políticas de assistência à saúde da mulher.

Palavras-chave: repertórios interpretativos; psicologia discursiva; anencefalia; aborto.

ABSTRACT

In this paper we explore how the meanings of life are produced in the moral controversy about induced abortion through the use of interpretative repertoires. The focus of this study was the injunction by the Marco Aurelio Mello, Minister of the Supreme Court, who in 2004 authorized the termination of pregnancy in cases of fetal anencephaly. Our discursive analysis was based on the description and interpretation of linguistic repertoires used for constructing arguments for and against approval of induced abortion in cases of pregnancy of an anencephalic fetus. The analysis of the documents indicates that the uses of language to refer to "pregnant women", "fetus" and "abortion" gives preeminence to religious values in the evaluation of reproductive rights which block the effectiveness of welfare policies for women's health.

Keywords: interpretative repertoires; discursive psychology; anencephaly; abortion.

Introdução

A palavra aborto origina-se do latim aboriri e significa "separação do sítio adequado" (Salomão, 1994). Esse termo refere-se ao produto da concepção eliminado da cavidade uterina ou abortado, enquanto o termo abortamento, mais amplamente aceito na área médica, diz respeito ao processo de ameaça à gravidez que pode culminar ou não na perda gestacional.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (World Health Organization, 1992), o abortamento deve ser considerado como a interrupção voluntária ou não da gravidez até a vigésima semana de gestação, com o feto pesando menos de 500 gramas (para os casos em que a idade gestacional é desconhecida). O Ministério da Saúde do Brasil (2005) adota a seguinte definição: abortamento é a interrupção da gravidez até a 20ª - 22ª semana de gestação e com o produto da concepção pesando menos de 500g; aborto é o produto da concepção eliminado no abortamento.

Apesar desse esforço de distinção entre aborto e abortamento, a palavra "aborto" é usada muito frequentemente como sinônimo de abortamento. Dado o caráter generalizado do uso desses dois termos como sinônimos não faremos aqui uso diferenciado dos mesmos. Utilizaremos tanto aborto como abortamento para nos referir à interrupção da gravidez.

O abortamento pode ser espontâneo ou provocado. O aborto espontâneo é a interrupção da gestação que ocorre sem nenhuma intervenção externa e pode ser causado por doenças da gestante, por problemas genéticos do embrião ou por traumas físicos ou psíquicos. O termo aborto provocado, aborto induzido ou aborto voluntário, refere-se à interrupção da gravidez causada por uma intervenção externa e intencional (Faúndes & Barzelatto, 2004).

O abortamento espontâneo é, basicamente, o resultado de um problema de ordem médica que afeta a saúde da mulher, e que também pode implicar consequências sociais e psicológicas para ela e sua família. O abortamento induzido, por sua vez, é geralmente encarado como um problema pessoal e social, com complexas implicações médicas, culturais, religiosas, éticas, políticas e psicológicas. Este artigo focaliza exclusivamente o tema do abortamento induzido, especificamente, o aborto nos casos de má formação incompatível com a vida extrauterina (mais especificamente a anencefalia fetal), e sempre que usarmos a palavra aborto ou abortamento estaremos nos referindo ao aborto induzido.

Segundo Faúndez e Barzelatto (2004), definir aborto simplesmente como a interrupção da gestação é inadequado, porque tal definição excluiria o nascimento de um bebê prematuro, ou mesmo maduro, antes de se completar a gestação normal. A diferença entre aborto e nascimento prematuro é a viabilidade, o que significa entender o abortamento induzido como a interrupção da gestação pelo uso de drogas ou intervenção cirúrgica após a implantação do concepto e antes que o produto da concepção tenha se tornado viável. Como já dissemos, a viabilidade foi estabelecida pela OMS a partir de 20 semanas completas de gestação ou com um feto de 500 gramas. Isto posto, abaixo desse limite o término da gestação é definido como sendo um aborto, e acima é considerado como parto de um bebê prematuro.

Aborto seguro ou aborto de risco (inseguro) são dois termos frequentemente usados em documentos internacionais. A WHO (1992) define aborto de risco como um procedimento para interromper uma gestação indesejada, realizado por pessoas que não sejam capacitadas ou em ambiente que não tem os padrões médicos mínimos, ou ambos. Em contraposição, um aborto médico ou cirúrgico, realizado por um profissional treinado e capacitado em um ambiente médico adequado, é considerado seguro por implicar menores riscos para a saúde da mulher.

A maior parte dos abortos de risco é ilegal, realizada clandestinamente e não prevista em lei. Porém, alguns ocorrem em países onde o aborto é legal, mas as condições em que são realizados são inadequadas, e muitos abortos seguros são feitos em países onde o aborto é ilegal. Esse é o caso do Brasil, que tem restrições legais quanto ao direito ao aborto seguro e onde mulheres que têm condições financeiras para pagar um abortamento recorrem a clínicas clandestinas, mas especializadas, enquanto as mulheres pobres, que não têm condições de pagar por um abortamento seguro, acabam realizando em si mesmas, ou sendo submetidas a procedimentos de risco por pessoas despreparadas.

Nesta pesquisa fazemos uso dos termos aborto seguro e aborto inseguro de forma distinta dos termos legal e ilegal. O termo aborto legal é usado para nomear os casos previstos pelo Código Penal brasileiro, e o termo aborto ilegal para os casos em que está prevista, pelo mesmo Código, a punição para a prática do aborto.

O Código Penal brasileiro, promulgado em 1940, no artigo 128, exclui a punição para o aborto pós-estupro realizado por médico/a quando há consentimento da gestante. Segundo a lei, não se pune aborto praticado por médico/a: (a) se não há outro meio de salvar a vida da gestante e (b) se a gravidez resultar de estupro e o aborto for precedido do consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (Hungria, 1955).

O caráter legal ou ilegal do abortamento induzido constitui um tema complexo no âmbito dos conflitos morais. Diferentes posições, políticas e religiosas, enfrentam-se cotidianamente na abordagem ao assunto. Para alguns, o aborto é uma questão de foro íntimo, não sendo necessária a regulamentação ou controle social de sua prática; para outros é uma questão moral fundamental sobre a origem da vida humana, sendo obrigatória uma vigilância rigorosa sobre essa prática. A busca de consenso ou mesmo de diálogo entre os extremos morais envolvidos no debate sobre o tema acarreta uma disputa acirrada, em meio a embates, enfrentamentos e articulações políticas. O abortamento induzido é um tema capaz de reverter expectativas de eleições políticas, criar constrangimentos entre nações, provocar rompimentos entre entidades e instituições, sendo considerado, por um lado, uma questão religiosa e, de outro, de diretos fundamentais (Diniz & Damasceno, 2001).

Chama-nos atenção a questão que se coloca como eixo da discussão e que marca os limites entre os grupos que se contrapõem quando o tema é a interrupção voluntária da gravidez. De modo geral, parte-se da premissa binária de quem é a favor ou contra o aborto, determinando-se, assim, o lugar a ser ocupado no espaço público destinado ao debate. Este, por sua vez, configura-se, de modo emblemático, tendo de um lado aqueles que se autodenominam "pró-vida", geralmente liderados por segmentos conservadores da Igreja Católica, cujo nome ostenta, de forma clara e inequívoca, a intenção de seus membros: advogar pelo direito à vida do feto. Do outro lado, encontra-se um grupo capaz de atrair inúmeras denominações, em geral pejorativas, que dão ideia de um movimento orquestrado a serviço da morte, uma vez que, supostamente, advogam pela aniquilação do bem sagrado que é a vida humana. Atribui-se a esses a alcunha de "abortistas", em detrimento das designações que lhe são próprias, a saber: "Pró-escolha", "Autodeterminação", "Pelo direto de decidir", entre outros. Esse grupo, de modo geral, é fundado nos ideais do movimento feminista, especialmente na premissa "nossos corpos nos pertencem".

Concebido nesses termos, o debate revela um evidente ardil ao propor a discussão a partir da polarização em torno do direito à vida, como se a defesa desse direito fosse prerrogativa de apenas um dos polos ativos do debate, além de minimizar, ou mesmo excluir, a incidência de qualquer outro elemento capaz de intervir na compreensão do tema, ampliando-a. A redução de seu escopo transforma a questão do aborto em um problema simples, sugerindo respostas esquemáticas de base binária, cuja dimensão de racionalidade cede espaço à transcendência, obstacularizando a construção de espaços múltiplos de discussão (Domingues, 2008).

Tendo em vista a compreensão do dilema moral acerca da valorização da vida no debate sobre o aborto, este artigo trata dos sentidos de vida presentificados na controvérsia a respeito da anencefalia fetal. Buscamos investigar como os repertórios interpretativos usados para dar sentido à vida são construídos retoricamente pelos diferentes atores sociais envolvidos na contestação de sentenças argumentativas acerca do tema. Os objetivos traçados para orientar a nossa análise foram: identificar e descrever os repertórios interpretativos usados na controvérsia moral sobre o aborto induzido que ponham em evidência a produção de sentidos sobre a vida e interpretar esses repertórios buscando os sentidos sobre a vida.

O caso da anencefalia do feto é basilar por colocar à prova os limites da argumentação polarizada com a qual vem sendo tratado o tema do aborto induzido; de um lado, a ideia feminista de que o corpo pertence às mulheres e, de outro, o direito potencial à vida do feto, segundo a hierarquia da Igreja Católica.

A concessão, em 1º de julho de 2004, da liminar do Ministro Marco Aurélio Mello, que autorizou temporariamente a interrupção da gestação de fetos anencefálicos, impulsionou os atores sociais envolvidos no debate a se posicionarem sobre a moralidade do aborto, fazendo com que os argumentos sobre os valores sagrados da vida viessem à tona. Considerando esse aspecto, que atende ao nosso objetivo de investigar os sentidos da vida na controvérsia sobre aborto induzido, o elegemos para ser apresentado neste artigo.

Apesar de o tema estar em discussão desde a cassação da liminar em 2004, ele ainda não foi votado em definitivo pelos 11 Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Em setembro de 2008, o relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, Ministro Marco Aurélio Mello, propôs uma audiência pública onde foram ouvidos representantes de 25 diferentes instituições, ministros de Estado e cientistas, entre outros. A audiência durou quatro dias em que argumentos, opiniões, palestras e dados científicos foram apresentados, tendo, de um lado, defensores do direito das mulheres de decidirem sobre prosseguir ou não com a gravidez de fetos anencéfalos, e, de outro, aqueles que acreditam ser a vida intocável, mesmo no caso de má formação incompatível com a vida extrauterina.

A controvérsia pública sobre o aborto nos casos de anencefalia surgiu quando a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), em 16 de junho de 2004, entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) usando uma ferramenta jurídica chamada Arguição de Descumprimento Fundamental (ADPF-54), que gerou a liminar do Ministro Marco Aurélio Mello autorizando a interrupção da gestação em tais casos. O Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, que tem como obrigação institucional manifestar-se frente às decisões do Supremo, emitiu um parecer contrário à aprovação da liminar, o que gerou a sua cassação e consequente votação como improcedente pelos Ministros do STF. Nesse embate, os dois documentos – liminar e parecer – compõem o contexto agonístico (Billig, 1991) de combate argumentativo sobre as versões de verdades acerca da legalidade do aborto de fetos anencefálicos – em que se constitui a controvérsia acerca da moralidade do aborto nos casos de fetos anencefálicos.

Pretende-se, aqui, discutir os resultados da análise retórica focalizada no uso dos repertórios interpretativos, feita a partir das práticas discursivas presentificadas na liminar do Ministro do STF e do parecer do Procurador-Geral da República. Para tanto, iniciaremos com a apresentação do enquadre conceitual e teórico que sustenta a análise; em seguida explicitaremos os procedimentos de pesquisa, para então apresentar a nossa interpretação dos documentos de domínio público analisados.

Enquadre conceitual e teórico

A preocupação crescente com o estudo dos discursos ou textos é parte do desenvolvimento de uma vertente da Psicologia Social crítica que, além de enfocar a natureza simbólica da realidade social, destaca a natureza construtiva da linguagem na interpretação e recriação da ação social. A atenção voltada para a linguagem vinculada à ação leva a um redirecionamento da pesquisa psicossocial, deslocando a ênfase nos constructos mentais, representações ou processos internos aos indivíduos, próprios da perspectiva cognitiva, para as práticas sociais como a comunicação, a interação e a argumentação. A análise da ação no contexto discursivo e retórico é o cerne das preocupações do enfoque teórico em que se situa esta pesquisa.

Adotamos a perspectiva das Práticas Discursivas, em que a linguagem em uso é entendida como prática social, e a atenção é focalizada na interface entre os aspectos performáticos da linguagem - quando, em que condições, com que intenção, de que modo - e as condições de produção são compreendidas tanto como contexto social e interacional como no sentido foucaultiano de construções históricas (Spink, 2004).

A pesquisa na perspectiva da linguagem em uso implica enfocar as maneiras pelas quais as pessoas produzem sentidos e posicionam-se em relações sociais cotidianas. A linguagem em uso é o que define a Pragmática, uma das correntes teórico-metodológicas que deram origem à análise de discurso. Não é possível se comunicar sem dispor de uma ancoragem linguística nos contextos físicos, relacionais e sociais, e essa operação linguística tem que ser decodificada, porque, se não se produz essa decodificação, a compreensão é impossível.

Um dos aspectos centrais da Psicologia Discursiva é a noção de repertórios interpretativos – conjunto de termos, lugares-comuns e descrições utilizadas em construções gramaticais e estilísticas. Constituem os dispositivos linguísticos que utilizamos para construir versões dos eventos ações e outros fenômenos que estão a nossa volta que estão presentes em uma variedade de produções linguísticas e atuam como substrato para uma argumentação (Potter & Wetherell, 1987).

Os repertórios interpretativos demarcam o plano de possibilidades de construções discursivas; são aprendidos e construídos ao longo de nossa vida, em diferentes momentos e contextos. Dessa forma, por meio dos repertórios podemos entender tanto a permanência como a dinâmica e a variabilidade das produções linguísticas.

De forma geral, ao identificarmos repertórios em textos ou falas, podemos compreender alguns sentidos - consensuais e contraditórios - que circulam no cotidiano e que podem assumir outras significações no esforço de produção de sentido empreendido por um leitor ou interlocutor. Isso significa que os textos, como prática discursiva, ampliam a gama de repertórios disponíveis às pessoas, possibilitando a produção de outros sentidos e a construção de versões diversas sobre si e o mundo a sua volta (Medrado-Dantas, 2002). Os repertórios são colocados em movimento nos processos de interanimação dialógica, numa perspectiva bakhtiniana - inseridos num contínuo processo de negociação, desenvolvido a partir de trocas comunicativas, num espaço de interpessoalidade -, e compõem as unidades básicas da linguagem e as da comunicação.

Em síntese, os repertórios interpretativos são os termos, os conceitos, os lugares-comuns, as figuras de linguagem e de retórica que demarcam o rol de possibilidades de construção de sentidos. Esses repertórios circulam na sociedade de formas variadas. Aprendemos repertórios no próprio processo de aprendizagem da linguagem, por meio de livros, dos filmes que assistimos, das conversas cotidianas e demais meios de comunicação.

Procedimentos de pesquisa

Para o objetivo de descrever a controvérsia moral acerca do aborto induzido, buscando os sentidos de vida, foi preciso elaborar um critério de escolha de uma situação social que fosse prototípica do confronto moral sobre a questão. Utilizamos, então, a noção de incidentes críticos, considerada como a categorização de um evento que dá visibilidade às diferentes posições assumidas pelos atores sociais na contestação de sentenças sobre os sentidos de vida acerca do aborto induzido. Para identificar os incidentes críticos, elegemos a mídia como esfera pública de visibilidade para esses incidentes, o que possibilitou nos aproximarmos às controvérsias que permeiam o tema da moralidade do aborto induzido. O caminho que foi percorrido, então, partiu da mídia para localizar incidentes críticos e definir o caso da anencefalia como a controvérsia a ser analisada. Pelo que discutimos até aqui, podemos considerar que algumas controvérsias conduzem a mudanças, outras tão somente ratificam a ordem já estabelecida. Os incidentes críticos que visibilizam uma controvérsia são considerados, nesta pesquisa, eventos-chave que não explicitam todos os que falam, mas dão visibilidade aos porta-vozes (Latour, 2000), por meio dos quais identificamos os argumentos em confronto na controvérsia.

O procedimento que seguimos para estabelecer critérios de escolha para os incidentes críticos e posterior identificação de controvérsias se deu da seguinte forma: decidimos que iríamos trabalhar com o jornal Folha de S. Paulo, por ser este um jornal de grande circulação nacional, e fizemos um recorte temporal que nos permitiu ter uma leitura sobre os momentos de maior debate do tema na mídia. Esse recorte foi do ano de 1997 até 2007. Escolhemos iniciar pela década de 1990 por ser justamente nesse período que as notícias sobre abortamento induzido se intensificaram nos veículos de comunicação (Melo, 1999).

Realizamos, em seguida, uma avaliação sobre qual dos incidentes críticos apresentados no jornal Folha de S. Paulo atendia ao objetivo de descrever uma controvérsia moral sobre os sentidos da vida. Definimos um incidente crítico com base nesse critério – a liminar do Ministro Marco Aurélio Mello –, considerando que este nos permite analisar o valor intrínseco (sagrado) defendido pelas diferentes posições divergentes sobre a moralidade do aborto induzido. A controvérsia suscitada pela concessão da liminar é composta por três documentos: a ADPF-54, a liminar do Ministro Marco Aurélio e o parecer do Procurador-Geral da República. Como o conteúdo da ADPF-54 e da liminar confluem para o mesmo argumento - a legalização do aborto de fetos anencefálicos – decidimos analisar apenas os documentos com conteúdos divergentes: a liminar do Ministro Marco Aurélio e o parecer do Procurador geral da República. O passo seguinte foi extrair do site (www.stf.jus.br), do STF, os documentos que serviriam como nosso material empírico.

Para a consecução da análise discursiva dos documentos jurídicos, realizamos uma análise dos repertórios interpretativos, que versou sobre a interpretação dos usos dos termos associados à interrupção da gestação, gestante e concepto empregada em cada um dos documentos jurídicos.

Descrição e análise dos documentos de domínio público

Para interpretação das práticas discursivas presentificadas nos documentos analisados, buscamos apreender como os repertórios interpretativos organizam e expressam os pressupostos morais usados para persuadir a respeito das suas respectivas posições e convicções acerca do valor da vida. Nesta seção, apresentamos a análise discursiva realizada a partir dos documentos protagonistas da controvérsia: a liminar, do Ministro Marco Aurélio Mello, e o parecer, do Procurador Geral da Republica, Cláudio Fonteles.

Usos dos repertórios interpretativos na liminar do Ministro Marco Aurélio Mello

A análise do uso dos repertórios interpretativos objetivou identificar as nomeações, definições, conjunto de termos e expressões utilizadas pelo autor da liminar na defesa das suas posições morais. Consideramos que o uso de determinados termos indicam a premissa moral que sustenta a argumentação dos atores em controvérsia, e a análise desses termos nos permite identificar quais são as posições morais em conflito agonístico. Os repertórios associados à nomeação da intervenção cirúrgica que provoca a interrupção da gestação, os termos usados para nomeação da gestante e as nomeações do concepto ou embrião são os usos dos repertórios que nos interessam para conhecer os pressupostos morais presentes na controvérsia sobre o aborto induzido no caso da anencefalia do feto, considerando o contexto retórico de utilização das respectivas nomeações.

Os usos dos repertórios para nomear a interrupção da gestação e o concepto ocorreram na liminar de uma maneira semelhante àqueles realizados na petição inicial (ADPF-54), principalmente na introdução do documento, onde o relator – Ministro Marco Aurélio Mello – repete os argumentos da petição inicial:

a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS formalizou esta argüição de descumprimento de preceito fundamental considerada a anencefalia, a inviabilidade do feto e a antecipação terapêutica do parto. Em nota prévia, afirma serem distintas as figuras da antecipação referida e o aborto, no que este pressupõe a potencialidade de vida extra-uterina do feto. (Mello, 2004, p. 01)

A utilização desses repertórios assumiu características próprias quando o relator começou a justificar a sua concordância com os argumentos da ADPF-54, somando aos repertórios associados à interrupção da gestação e ao concepto os repertórios relacionados à nomeação da gestante. O termo "feto" foi usado constantemente e sem variações em todo o documento, mas a nomeação da gestante mudou conforme o objetivo da argumentação. A gestante foi nomeada "mãe" quando o arranjo retórico visava enunciar a frustração da vida do feto com consequente risco para a vida da gestante. Foi usado o termo "gestante" quando o foco argumentativo deixou de ser a frustração da vida do feto e passou a ser a vida em risco da gestante. Ou seja, a portadora do feto, em seus aspectos biomédicos, foi nomeada "gestante" e, quando se referia às capacidades maternais que não se realizariam, foi nomeada "mãe". O trecho a seguir ilustra esse tipo de uso dos repertórios:

A permanência de feto anômalo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde e à vida da gestante. Consoante o sustentado, impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que se sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana. (Mello, 2004, p.02)

O termo "gestante" também foi utilizado para dar sentido de cidadã na retórica em defesa do direito de escolha pela interrupção. As nomeações "antecipação terapêutica do parto" e "interrupção da gravidez" foram relacionadas ao sentido de cidadã para indicar que, no primeiro uso, não se tratava de aborto, e no segundo que, mesmo que se tratasse, a gestante teria o direito de interromper a gestação. Tais usos sugerem a concepção moral que defende que, mesmo que o feto humano tivesse direito à vida, ou fosse considerado pessoa, a gestante teria o direito de abortar (Thonson, 1971, citado por Galvão, 2002). O extrato da liminar, a seguir, é um exemplo desse uso:

nas hipóteses de antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos, assentando-se o direito constitucional da gestante de se submeter a procedimentos que leve à interrupção da gravidez e do profissional da saúde de realizá-lo, desde que atestada, por médico habilitado, a ocorrência da anomalia. (Mello, 2004, p.02)

Os termos "antecipação terapêutica do parto", "feto" e "gestante" também foram usados de forma relacionada para atestar a autorização contida na liminar conforme a argumentação da ADPF-54:

como impeditiva da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de assim agir sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado. (Mello, 2004, p.03)

O exemplo do Habeas Corpus, em favor da gestante Gabriela de Oliveira, foi usado na liminar com os termos "abreviar o parto" e "interrupção da gestação" enunciando, novamente, a interpretação do preceito moral que considera permissível abortar mesmo que o feto tenha direito derivativo à vida:

em Juízo, gestante não logrou autorização para abreviar o parto. A via-crúcis prosseguiu e, então, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a relatora, desembargadora Giselda Leitão Teixeira, concedeu liminar, viabilizando a interrupção da gestação. (Mello, 2004, p.3)

O termo "mulher" para nomear a gestante foi utilizado com o objetivo de estabelecer a supremacia do sentido de independência entre o fato de ser mulher e de ser mãe, trazendo a tona a crítica feminista sobre os valores morais vigentes que associam como similares estes dois termos: "O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal" (Mello, 2004, p. 7).

Usos dos repertórios interpretativos no parecer do Procurador-Geral

A análise dos repertórios interpretativos do parecer do Procurador-Geral da República deu-se com os mesmos objetivos e seguiu os mesmos passos da análise dos repertórios na liminar.

Os repertórios interpretativos associados à interrupção da gestação, utilizados no parecer, foram sempre variações ou adjetivações do termo aborto: "aborto terapêutico", "aborto sentimental", "aborto eugênico" e "aborto por indicação social". O uso recorrente do termo "aborto" para referir-se à interrupção da gestação invocou o sentido de criminalização do ato de abortar voluntariamente. A organização retórica visou relacionar o ato de abortar com os textos legais, trazendo para o argumento o sentido dado pela legislação e estabelecendo os limites desse sentido. Ou seja, o uso do termo "aborto" objetivou indicar o sentido restrito de ilegalidade pelo qual o tema deveria ser tratado: "Os artigos 124 e 126 tipificam, criminalmente, o aborto provocado pela gestante, ou com seu consentimento e o aborto provocado por terceiro" (Fonteles, 2004, p. 6).

O termo "aborto" foi empregado em relação aos repertórios usados para nomear a gestante com o objetivo persuasivo de definir o enquadre jurídico do ato de abortar. O termo "mãe", para nomear a gestante, foi usado como apelo afetivo ao laço de parentesco que invocou o sentimento materno como um valor inerente e natural (naturalizado) a todas as mulheres. O uso desse termo foi associado aos casos em que é legalmente permitido abortar. Fonteles utilizou "aborto terapêutico" para nomear os casos em que é permissível abortar para salvar a vida da gestante e "aborto sentimental" para referir-se aos casos em que a permissibilidade se baseia no fato de a gestante ter sido vítima de estupro, qualificando moralmente o ato. Seria permissível abortar nesses casos porque, além de estar previsto no Código Penal, haveria ameaça ao sentimento materno como "dom" divino concedido a todas as mulheres. O termo "feto", para referir-se ao concepto, foi usado em associação aos termos "mãe" e às qualificações do "aborto" para construir o sentido de "bebê" ou "nascituro", termos que Fonteles usou literalmente no documento à medida que a sua construção retórica evoluiu. Os trechos a seguir são exemplos desses usos dos repertórios interpretativos: "sentido inequívoco e preciso, que se completa, e legaliza o aborto: a) para que a mãe não morra (aborto terapêutico); b) se a mãe, vítima de estupro, consente no aborto (aborto sentimental)" (Fonteles, 2004, p. 7).

O feto anencéfalo não causa a morte da mãe. Afasta-o a própria petição inicial. Se causasse tal situação, ter-se-ia diante o aborto terapêutico. Quanto ao aborto sentimental não há discrepância na abalizada doutrina penal de que sua compreensão é limitadíssima à hipótese que enuncia: gravidez resultante de estupro. (Fonteles, 2004, p. 7)

Os termos "aborto eugênico" e "aborto por indicação social" somaram-se à nomeação da interrupção da gestação para excluir a hipótese de enquadramento dos casos de gestação de anencéfalo como previsto no Código Penal, contrariando o argumento da ADPF-54. Esses termos foram usados como citações de argumentos de autoridade e estavam relacionados ao termo "ofendida", utilizado para justificar que, nos casos onde há vitimização da gestante por ter sido estuprada, pode ser considerado moralmente correto realizar o aborto:

O aborto sentimental (que se realiza em conseqüência de um crime) todavia não se confunde com o aborto eugênico (conveniência de evitar procriação indesejável) ou com o aborto por indicação social (miséria ou dificuldades econômicas dos pais), que são sempre criminosos perante nossa lei. A exclusão do crime depende aqui do prévio consentimento da ofendida ou de seu representante legal (se for incapaz), devendo o médico certificar-se da existência de estupro (e não de outro crime sexual). Trata-se de norma excepcional, que não admite interpretação analógica. Não pode ser ampliada para legitimar o aborto quando a mulher foi vítima de outro crime, como, por exemplo, o de sedução. (Fonteles, 2004, pp. 7-8)

A construção retórica que visou à persuasão do argumento sobre o direito à vida do "feto" desde o momento da concepção desembocou no uso do termo "nascituro" para nomear o concepto. O uso desse termo imprimiu o sentido de que o feto seria potencialmente pessoa, com direitos e interesses a serem protegido pelo Estado. Está implicada, na retórica utilizada, a defesa moral da vida do feto como valor derivativo. Ou seja, a crença que o feto, por pertencer à espécie humana, tem direito à vida e que esse direito deve ser consagrado pela legislação. A defesa dessa premissa moral evidencia-se com o emprego do termo "ser humano concebido" que, apesar de tornar clara a defesa dos direitos e interesses do feto, confunde os valores intrínsecos, referentes à defesa da vida como um dom e, portanto, sagrada, e derivativos (Dworkin, 2003), em que o valor da vida decorreria do fator de se tratar de uma vida humana, tornando difícil saber de qual deles parte a defesa de Fonteles. A defesa da posição moral do Procurador-Geral parece estar no uso da expressão "direito intrínseco à vida que tem todo ser humano concebido" (Fonteles, 2004, p. 9), que indica o pressuposto do valor sagrado da vida dado pela natureza humana do feto:

Artigo 2º: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro ... reconhece o direito intrínseco à vida que tem todo ser humano concebido ... Ora, o próprio dicionarista Aurélio Buarque de Holanda, trazido à colação pelo il. advogado em nota de pé de página sobre a transcrição retro é textual em definir o nascituro como o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato futuro certo. (Fonteles, 2004, p. 9)

O termo "bebê" foi usado na composição dos repertórios para nomear o concepto, marcando a posição de defesa da vida em potencial e imprimindo o sentido de valor sagrado ao investimento biológico da vida do feto: "O bebê anencéfalo por certo nascerá" (Fonteles, 2004, p. 9). A expressão "gestante" foi usada para referir-se à portadora do feto no contexto argumentativo em que o Procurador-Geral condenou a atitude de interrupção da gestação, defendendo o direito à vida do "feto" e posicionando-se a favor da consideração da existência de vida a ser valorizada desde o momento da concepção. Os extratos do parecer a seguir são exemplos desses usos:

E se assim o é, e o é afetivamente, dada a clareza dos textos normativos importa prosseguir, e indagar, então: a dor temporal da gestante é causa bastante a obscurecer, e então relativizar, a compreensão jurídica do direito à vida, como venho de assentar? ... De pronto, não são todas as gestante que, por sua dor, almejam livrar-se do ser humano, que existe em seus ventres maternos. Há, outras também, gestantes, que, se experimentam a dor, superam-na e, acolhendo a vida presente em seu ser, deixam-na viver, pelo tempo possível. Digo isso para assentar que a dor da gestante não é comum a todas as gestantes, de sorte que, e atento ao princípio jurídico da proporcionalidade, a temporalidade do direito à vida, como desenvolvi nos itens 42/45, retro, sobrepuja, por essa perspectiva, o direito da gestante não sentir a dor, posto que a dor não será partilhada por todas as gestantes, ao passo que todos os fetos anencefálos terão suprimidas suas vidas. (Fonteles, 2004, p.10)

A defesa da posição moral que considera o concepto ou embrião membro da espécie humana e por isso deve ter sua vida protegida também foi explícita no uso do termo "feto": "O feto no estado intra-uterino é ser humano, não é coisa!" (Fonteles, 2004, p. 10). A defesa dessa posição foi complementada com o uso do termo "bebê", cuja lógica retórica parece ter sido construída evolutivamente em termos do que considerava ser o estatuto do embrião. Em suma, a organização retórica do Procurador-Geral construiu uma persuasão, por meio do uso dos repertórios associados ao concepto, que parece seguir um raciocínio que acompanha a mudança do uso do termo "feto" para o uso do termo "bebê", consolidando a sua concepção de que o embrião seria pessoa, e o é por pertencer à espécie humana:

Ora, o pleito da autora, titulado por órgão que representa profissionais da área da saúde, impede possa acontecer a doação de órgãos do bebê anencéfalo a tantos outros bebês que, se têm normal formação do cérebro, todavia têm grave deficiência nos olhos, nos pulmões, nos rins, no coração, órgãos estes plenamente saudáveis no bebê anencéfalo, cuja morte prematura frustará a vida de outros bebês, assim também condenados a morrer, ou a não ver. (Fonteles, 2004, p.11)

Considerações finais

Este artigo teve como objetivo discutir como os repertórios interpretativos organizam e expressam os pressupostos morais usados para convencer a respeito das diferentes posições e convicções acerca da legalização do aborto de fetos anencefálicos.

Na análise dos documentos jurídicos observamos que o arranjo retórico dos usos dos repertórios interpretativos da liminar, organizado em torno de argumentos favoráveis à autorização do aborto de anencéfalos, visou enunciar a frustração da vida do feto com consequente risco para a vida da gestante. Para a consecução de tal objetivo o Ministro Marco Aurélio lançou mão de repertórios que desideologizassem a maternidade compulsória. Em seu discurso, a gestante foi nomeada como "mãe" sempre que o arranjo retórico visava enunciar a frustração da vida do feto. O termo "gestante" foi usado quando o foco argumentativo deixou de ser a frustração da vida do feto e passou a ser a vida em risco da gestante. A mulher grávida, quando considerada em seus aspectos biomédicos, também foi nomeada "gestante" e, ao se referir às capacidades maternais que não se concretizariam, foi nomeada "mãe". O termo "gestante" também foi utilizado para dar sentido de cidadã na retórica em defesa do direito de escolha pela interrupção.

O termo "mulher" foi utilizado com o objetivo de estabelecer a supremacia do sentido de independência entre o fato de ser mulher e de ser mãe, trazendo à tona a crítica feminista sobre os valores morais vigentes que associam como similares estes dois termos.

No parecer do Procurador-Geral da República, Claudio Fonteles, os repertórios interpretativos foram usados para defesa do direto do feto à vida como uma primazia jurídica desde a concepção. Para Fonteles, os casos em que é permissível abortar - para salvar a vida da gestante e nos casos em que a permissibilidade baseia-se no fato de a gestante ter sido vítima de estupro, qualificando moralmente o ato - seriam as exceções que justificariam a valorização da vida da gestante em detrimento da vida do feto. Ou seja, seria permissível abortar nesses casos porque, além de estar previsto no Código Penal, haveria ameaça ao sentimento materno como "dom divino" concedido a todas as mulheres, o que poderia prejudicar a vida do feto: no caso do risco de vida da gestante, o fim da vida dela ocasionaria o fim da vida do feto e, no caso do estupro, o sentimento de maternidade, possivelmente abalado pelo trauma da violência sexual, prejudicaria o investimento afetivo da gestante na vida do feto.

Para Fonteles, o investimento biológico na vida do feto foi considerado suficiente para que o Estado governasse essa vida e garantisse a sua sobrevida. O Procurador também argumentou contra a aplicação do conceito de morte cerebral nos casos de anencefalia, mas se posicionou a favor da doação de órgãos dos anencéfalos. Tal argumento soa como uma contradição, pois se consideramos um anencéfalo após o parto como doador de órgão, isto significa que o consideramos morto. Dado que nada mudou quanto à possibilidade de consciência entre o diagnóstico na 12ª semana de gestação e o parto a termo, ao concordarmos que o anencéfalo pode doar órgãos, por coerência, teríamos de concordar que o embrião ou feto já estava com morte encefálica.

O termo "mãe", para nomear a gestante, foi usado como apelo afetivo ao laço de parentesco que invocou o sentimento materno como um valor inerente e natural (naturalizado) a todas as mulheres. O uso desse termo foi associado aos casos em que é legalmente permitido abortar. A expressão "gestante" foi usada para referir-se à mulher grávida no contexto argumentativo em que o Procurador-Geral condenou a atitude de interrupção da gestação, defendendo o direito à vida do "feto" e posicionando-se a favor da consideração da existência de vida a ser valorizada desde o momento da concepção.

O conjunto de termos usados para nomear a mulher gestante, a interrupção da gestação e o concepto posiciona os atores sociais em controvérsia acerca da crença moral que se adota frente à legalização do aborto. Vimos que, enquanto o Ministro Marco Aurélio usou repertórios que buscavam dissociar a maternidade do simples fato ser mulher, o Procurador Fonteles fez o movimento contrário, enfatizando a crença de que a maternidade é intrínseca a natureza feminina.

O abortamento induzido subverte a ordem moral que estabelece a maternidade como padrão cultural. Além de pôr em questão os princípios de uma sociedade machista (se os homens ficassem grávidos, seria o aborto um crime ou um sacramento?), o abortamento induzido constitui-se como tema dominado pelas crenças ideológicas de um tipo de catolicismo que há muito vem vitimizando, manipulando e explorando as mulheres. Nesse âmbito, a imposição da hierarquia da Igreja Católica pela maternidade compulsória é tão violenta quanto algumas de suas ações, historicamente marcadas pela opressão. Em que difere, por exemplo, a ação de queimar mulheres em fogueiras, como na Inquisição, de condená-las a condições de risco de vida e até à morte por aborto inseguro?

Nota

Recebido em: 16/01/2011

Revisão em: 08/09/2011

Aceite em: 28/10/2011

Flávia Regina Guedes Ribeiro é Professora Adjunta da Universidade Federal de Alagoas/Campus Arapiraca - Unidade de Ensino de Palmeira dos Índios. Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Endereço: Rua Sonho Verde, s/nº. Eucalipto. Palmeira dos Índios/AL, Brasil. Email: frgribeiro@palmeira.ufal.br

Mary Jane Paris Spink é Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutora em Psicologia Social pela London School of Economics and Political Science, Universidade de Londres. Pesquisadora do CNPq.

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    Apoio e financiamento CNPq
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      2011

    Histórico

    • Revisado
      08 Set 2011
    • Recebido
      16 Jan 2011
    • Aceito
      28 Out 2011
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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