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A construção psicossocial da competição: o engano na cumplicidade de uma falsa vida

Psychosocial construction of competition: the inveracity in cumplicity of a fake life

Resumos

O presente trabalho faz uma análise da competição e de sua propagação ideológica na contemporaneidade. Inicialmente identificamos sua matriz na propriedade privada, que possibilitou a utilização dessa conduta como mola propulsora do desenvolvimento do capitalismo. Nesse trajeto, a ciência mostrou-se como componente de legitimação e intensificação. A fim de aumentar a exploração do trabalho humano, atualmente a competição se mescla ao discurso cínico da cooperatividade. Na reprodução da competição entre os indivíduos estão presentes alguns elementos subjetivos como a submissão autoritária ao social, à projetividade, o sadomasoquismo e o pensamento coisificado ("mentalidade do ticket"). No terreno dos afetos, a competição é sustentada pela inveja, que ainda, via indústria cultural, induz os indivíduos ao consumismo. Este artigo é o desdobramento de uma pesquisa de cunho bibliográfico, cujas bases teóricas são a Psicanálise freudiana e a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, em especial Adorno e Horkheimer.

competição; ideologia; capitalismo; indústria cultural; inveja


The present work analyses competition and its ideological spread in contemporaneity. First we have identified its matrix in private property, what enabled the use of this procedure as the stimulus of capitalism development. In this path, science has presented itself as a component of legitimation and intensification. Intending to increase human work exploitation, nowadays competition mixes itself with the cynic speech of cooperativeness. In the reproduction of the competition among individuals are present some subjective elements as authoritarian submission to the social, to projectivity, to sadomasochism and to the reified thought (ticket's mindedness). Concerning affection, competition is sustained by envy, which still adheres, via cultural industry, the individuals to consumerism. This article is a literature review research, whose theoretical bases are the Freudian Psychoanalysis and Critical Theory of the Frankfurt School, especially Adorno and Horkheimer.

competition; ideology; capitalism; cultural industry; envy


A construção psicossocial da competição: o engano na cumplicidade de uma falsa vida

Psychosocial construction of competition: the inveracity in cumplicity of a fake life

Angela Maria Pires Caniato; Samara Megume Rodrigues

Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Brasil

RESUMO

O presente trabalho faz uma análise da competição e de sua propagação ideológica na contemporaneidade. Inicialmente identificamos sua matriz na propriedade privada, que possibilitou a utilização dessa conduta como mola propulsora do desenvolvimento do capitalismo. Nesse trajeto, a ciência mostrou-se como componente de legitimação e intensificação. A fim de aumentar a exploração do trabalho humano, atualmente a competição se mescla ao discurso cínico da cooperatividade. Na reprodução da competição entre os indivíduos estão presentes alguns elementos subjetivos como a submissão autoritária ao social, à projetividade, o sadomasoquismo e o pensamento coisificado ("mentalidade do ticket"). No terreno dos afetos, a competição é sustentada pela inveja, que ainda, via indústria cultural, induz os indivíduos ao consumismo. Este artigo é o desdobramento de uma pesquisa de cunho bibliográfico, cujas bases teóricas são a Psicanálise freudiana e a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, em especial Adorno e Horkheimer.

Palavras-chave: competição; ideologia; capitalismo; indústria cultural; inveja.

ABSTRACT

The present work analyses competition and its ideological spread in contemporaneity. First we have identified its matrix in private property, what enabled the use of this procedure as the stimulus of capitalism development. In this path, science has presented itself as a component of legitimation and intensification. Intending to increase human work exploitation, nowadays competition mixes itself with the cynic speech of cooperativeness. In the reproduction of the competition among individuals are present some subjective elements as authoritarian submission to the social, to projectivity, to sadomasochism and to the reified thought (ticket's mindedness). Concerning affection, competition is sustained by envy, which still adheres, via cultural industry, the individuals to consumerism. This article is a literature review research, whose theoretical bases are the Freudian Psychoanalysis and Critical Theory of the Frankfurt School, especially Adorno and Horkheimer.

Keywords: competition; ideology; capitalism; cultural industry; envy.

Partida-Largada

Correr na rua tem a expressão do terror. Já tentar fugir à queda se mimetiza a queda da vítima. A postura da cabeça que tenta se manter ereta é do afogado, o semblante tenso assemelha-se à mascara do sofrimento. Ele tem que olhar à frente, mal consegue voltar-se sem tropeçar, como se na sua nuca se encontrasse o olhar petrificador (Adorno, 2008, p.158)1 1 Frase presente no livro Mínima Moralia. Fragmento do Aforismo nº 102 intitulado "Devagar e sempre"

A competição social é a base do modo de produção capitalista, desde o seu surgimento. Assim, já nos primórdios dessa organização social essa conduta é valorada de forma positiva. No entanto, na contemporaneidade a competição tornou-se um imperativo categórico. Ela acirrou-se substancialmente ao ponto de transformar-se em um destruir-se a si e ao outro semelhante. O competir impregnou todos os âmbitos da vida dos indivíduos, enlaçando a construção e destruição da subjetividade humana.

A competição à qual os indivíduos estão submetidos não diz respeito à busca de certa perfeição na execução de alguma habilidade humana, a um movimento de reconhecimento dos próprios limites e desenvolvimento dos potenciais - uma ação honrosa. Competir no atual contexto significa esvaziar-se, negar-se enquanto indivíduo-sujeito; sujeitar-se às injunções perversas do capitalismo flexível, que retira a possibilidade do desenvolvimento da solidariedade e acolhimento entre os homens. O indivíduo nesse contexto procura manter grande distância dos outros, pois todos podem lhe tomar o lugar. Como aponta o aforismo de Adorno (2008) na epígrafe, na sua nuca existe um "olhar petrificador" - um outro indivíduo com igual temor de perder seu posto. Por isso é preciso correr desesperadamente como um afogado e ainda com a cabeça ereta.

A palavra competição advém do latim competitione e significa concorrência, luta, rivalidade, antagonismo, emulação (Cunha, 1991), o que indica a ocorrência de uma atividade rival de duas ou mais pessoas ou grupos, em que apenas uma das partes pode ganhar.

Constantemente ouvimos a palavra "corrida" para adjetivar a vida e o cotidiano das pessoas: "dia corrido, vida corrida". Nossa existência se resume a uma constante competição. Segundo Adorno (2008), "a dignidade humana consistia no direito ao caminhar, um ritmo que não é extorquido do corpo pelo comando ou pelo terror" (p.158). Hoje somos forçados a viver segundo o tempo das inovações tecnológicas, dos produtos descartáveis: o ritmo do mercado. A realidade passou a ser experiênciada como uma corrida. Cada pessoa corre com seu carro, irrita-se em se atrasar. No entanto, os indivíduos acreditam que correm para "vencer", quando, na realidade, correm para "fugir" - para não se questionarem a respeito da competição sem fim à qual estamos submetidos. Adorno (2008) ainda revela que nessa corrida nossos atos parecem resumir-se atualmente em técnica, visto que o próprio caminhar transformou-se em correr, em movimentos de máquinas.

Freud (1930/1981) aponta que o homem necessita de amparo para se desenvolver, necessita da presença física e afetiva de um outro para se constituir enquanto humano. A partir do acolhimento o homem constrói sua identidade e se diferencia, tornando-se único, e edifica o respeito à alteridade, ao diferente de si. Segundo André (2001), o desamparo significa um "buraco" no psiquismo, um rompimento na continuidade do psiquismo, que leva à desqualificação do outro como outro. O desamparo é, assim, a impossibilidade de estabelecer relações de objeto, cuja desproteção fragmenta o indivíduo, deixando-o à mercê de perigos internos e externos.

A competição, dessa forma, caminha no sentido oposto à real necessidade humana, uma vez que impossibilita relações de acolhimento, indo na contramão daquilo que fortifica o homem e o caracteriza enquanto humano: a necessidade do outro. Pergunta-se, porém: no contexto atual, como esperar do outro amparo se ele é decretado a priori como meu concorrente, meu rival? Afinal, não existe emprego para todos, não existe vaga na universidade para todos, nem todos têm condições materiais de viver de forma digna, com saúde e moradia.

De posse desse saber, entendemos que o estímulo à competição propagado no contexto social contemporâneo configura-se como uma ideologia, na acepção que Adorno faz do termo. Cohn (1986), remetendo à obra de Adorno, aponta que a ideologia não se reduz ao conjunto de ideias e representações falsas da realidade, mas é "um processo responsável pela própria formação da consciência social" (p.11). As ideias e representações são produtos de um processo histórico complexo, no entanto aparecem como dados naturais, imediatos. Assim a consciência social dos homens é formada sem mediação, ou seja, a ideologia bloqueia a reflexão, pois impõe ideários como formas acabadas em si. Quando internalizados, esses ideários destroem a capacidade de pensar de forma crítica, pois a realidade passa a ser vista como natural.

A mediação, para o autor, refere-se a um processo de constituição da realidade por meio da reflexão da contradição imanente ao objeto - em que se distinguem a forma como ele é apresentado e aquela em que foi concretamente produzido. O imediato é justamente o abstrato, a aparência que acaba por negar a contradição, que toma forma ideológica, impossibilitando a construção de elementos para o movimento questionador do pensamento que gera mudanças. A respeito do conceito de ideologia em Adorno afirma, Cohn:

Não se trata de instrumento nas mãos de alguém - classes ou indivíduos - nem de cortina de fumaça para ocultar alguma coisa, mas de falsa experiência social. Falsa porque é incapaz de reconhecer e realizar sua própria verdade, que é ser resultado de uma atividade social determinada. (Cohn, 1986, pp.11-12)

A competição presente na sociedade contemporânea é resultado de um longo processo histórico, mas essa mediação é impossibilitada e ela aparece cotidianamente como dado natural, como um engano, uma falsa experiência social - termo utilizado por Adorno. Essa falsa experiência é necessária não apenas para a reprodução da estrutura social desigual, mas também para a própria sobrevivência do indivíduo nesse contexto. Assim, como aponta Adorno (citado por Cohn, 1986, p. 12): "toda ideologia tem seu momento de verdade"; sua falsidade intrínseca é o que confere veracidade na vida dos indivíduos que a reproduzem, já que para eles, nesse contexto, ela é verdade.

A competição como dado social naturalizado estende-se ao longo de anos como falsa experiência social dos indivíduos. Seu caráter deletério em relação à vida é encoberto, uma vez que para ascender socialmente torna-se imperativo não pensar no outro e, consequentemente, não pensar e questionar a própria vida nessa realidade social.

O presente trabalho é uma mediação, ou seja, seguiu um caminho histórico na abordagem do objeto de estudo. Assim, apresentamos as contradições imanentes ao nosso objeto (competição social). Partimos do início do modo de produção capitalista, no qual encontramos as matrizes do processo de naturalização da competição na atualidade. Caminhamos por dentro do mundo do trabalho e da vida social, desvelando as estratégias de sua naturalização. Identificamos na competição atual alguns elementos fascistas latentes, que representam as marcas de um processo histórico não elaborado. Na contemporaneidade, em que o consumo de mercadorias parece tomar todas as esferas da vida dos indivíduos, a inveja aparece como um elemento de adesão dos indivíduos à competição e, principalmente, ao consumismo.

Este artigo é um desdobramento de uma pesquisa bibliográfica, cuja base teórica foi construída por meio da seleção de obras que vêm ao encontro da visão de homem como ser da cultura, a saber, os escritos de Marx e a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt - esta, proposta especialmente por Adorno e Horkheimer - e a Teoria Psicanalítica.

As matrizes da competição social

Dois marcos históricos são fundamentais para se compreender a competição na sociedade contemporânea: a instituição da propriedade privada, no século XV, e as Revoluções Industriais, já no século XVIII e XIX. O primeiro deles cria o signo do "tirar do outro", visto que naturaliza a expropriação do trabalho alheio e privilegia o individual em detrimento do coletivo (da cooperação); e o segundo marco é a utilização da ciência para a legitimação e segregação entre os indivíduos. Ela passa a usar a competição como mola propulsora do desenvolvimento do capitalismo e, consequentemente, do distanciamento cada vez maior dos homens entre si.

A competição enquanto fenômeno social relaciona-se à atividade do homem, à relação de concorrência pela posse e usufruto de bens. Para que ela exista deve existir algo que não é compartilhado, algo que só alguns têm o privilégio de possuir. A sociedade em que vivemos se organiza justamente pautada na desigualdade: um tem e os outros não têm.

Marx (1867/1968) conceitua esse processo de instituição da propriedade privada, que dissociou o trabalhador dos meios de produção, como acumulação primitiva, que constitui a pré-história do capital e do modo de produção capitalista. Segundo o autor:

Não basta que haja, de um lado, condições de trabalho sob a forma de capital, e, do outro, seres humanos que nada têm para vender além de sua força de trabalho. Tampouco basta forçá-los a se venderem livremente. Ao progredir a produção capitalista, desenvolver-se uma classe trabalhadora que por educação, tradição e costume aceita as exigências daquele modo de produção como leis naturais evidentes. A organização do processo de produção capitalista, em seu pleno desenvolvimento, quebra toda resistência. (p.854, grifos nossos).

A acumulação primitiva foi o núcleo de um processo de usurpação do trabalhador, um processo de instituição da desigualdade social, que passou a ser considerado um dado natural. Tal usurpação primeira estratificou a sociedade entre dois rivais: aqueles que são donos dos meios de produção e vendem seus produtos e aqueles que não possuem mais nada para vender-viver senão sua força de trabalho. O produto da atividade de grande parte dos trabalhadores se tornou alheio à consciência desses, transformando-se em mera mercadoria, e assim não mais possibilitou ao homem materializar e se identificar com sua produção, ao contrário, deixou-o alheio à sua própria atividade, ou seja:

El trabajo le es externo al trabajador, o sea no pertenece a su ser. Por tanto el trabajador no se afirma a sí mismo en su trabajo, sino que se niega; no se siente bien a disgusto; no desarrolla una libre energía física e intelectual, sino que mortifica su cuerpo y arruina su mente. De ahí que el trabajador no se sienta suyo hasta que sale del trabajo, y en el trabajo se siente enajeado. (Marx, 1844/1978, p. 352)

O trabalho torna-se alienado e, para a vida do trabalhador, apenas um meio de subsistência. Assim o produto de sua atividade se transforma em algo exterior a ele. Não lhe pertence mais, mas a um outro, que é o dono dos meios de produção.

Inicialmente a competição pela posse dos meios produtivos se fez entre as classes e, posteriormente, pela própria organização do trabalho, ela foi naturalizada dentro delas, tornando-se fenômeno generalizado.

O cercamento dos campos, sua privatização, iniciou um processo de mudança nas bases da sociedade, alterando significativamente os rumos da história. Os homens, agora sem terra, formaram uma multidão de mão-de-obra ociosa, que, somada ao novo paradigma científico político-filosófico na Europa dos séculos XVIII e XIX, propiciou as chamadas Revoluções Industriais, em que ocorreu a introdução da ciência nos sistemas de produção, principalmente pela mecanização.

Taylor (1856-1915) foi um marco para a história do capitalismo. Ele sistematizou um método para intensificar a produção nas fábricas: a Administração Científica do Trabalho. Assim, ele abriu caminho para o uso da ciência na manutenção do capitalismo. Durante os séculos XVIII e XIX, várias escolas de pensamento elaboraram teorias dando subsídio às revoluções industriais.

A ciência aplicada à produção reduziu o tempo de produção e aumentou o controle sobre os trabalhadores. Criou a divisão do processo produtivo, que passou a ser segmentado em trabalho intelectual (planejamento, concepção e direção) e trabalho manual (execução), visando à padronização e à produção em série. Assim, postulou a hierarquização e uma fragmentação no cotidiano da vida dos trabalhadores. Ainda criou a estratégia de instituição de prêmios de produtividade. Todo esse contexto do mundo do trabalho dilacerou as relações entre os trabalhadores, uma vez que alienou os indivíduos da produção e criou a rivalidade entre eles, impossibilitando, assim, o desenvolvimento de uma consciência de classe. A competição, de forma lúgubre e sorrateira, passou a retirar dos homens a possibilidade de aproximação afetiva e construtiva entre os pares, ou seja, a destruir os vínculos verdadeiros de solidariedade no trabalho.

Ciência e selva: legitimação da competição

A ciência nas Revoluções Industriais instrumentalizou uma classe social, a dos patrões, para a dominação e subordinação de outra, a classe trabalhadora, colocando-a a serviço da primeira, por meio da competição entre os trabalhadores para a sua exploração. Essa utilização do desenvolvimento da ciência como dominação foi possível graças ao movimento filosófico-político do Iluminismo, que marcou o século XIII como o "Século das Luzes", termo empregado para se referir ao antigo regime como aquele que estava sob o império das trevas, da ignorância. Com o Iluminismo a visão teocêntrica é suplantada pela antropocêntrica, em que o homem é colocado na posição de senhor da realidade. Dessa maneira, somente a razão humana passa a ser vista com portadora de verdade, e não mais a crença místico-religiosa. No entanto, a importância da razão surge exatamente atrelada ao desenvolvimento do modo de produção capitalista e seus propósitos caminharam em sentido oposto ao reconhecimento e respeito ao humano. Desconhecendo o homem como seu sujeito/objeto, a ciência passou a ser utilizada para subjugá-lo, legitimando as atrocidades em prol da usurpação de benefícios do trabalho humano.

Horkheimer e Adorno (1985a) apontam que a razão da ciência se tornou substrato para a dominação. Essa razão, chamada de instrumental, ao transformar os fatos em números, resumiu tudo ao cálculo e à classificação, ao "imediatamente dado". Neste processo, a ciência positiva converte-se na nova metafísica, regredindo "à mitologia da qual jamais soube escapar" (p.38).

Segundo esses autores, quanto mais o homem intervém sobre a natureza por meio da técnica, mais ele tornou-se escravo. Com o iluminismo o pensamento foi transformado em coisa, em mero instrumento, destarte, "o preço da dominação não é meramente a alienação dos homens com relação aos objetos dominados, com a coisificação do espírito, as próprias relações dos homens foram enfeitiçadas, inclusive as relações de cada indivíduo consigo mesmo" (p. 40, grifo nosso).

Com a ciência positiva como verdade absoluta, o homem vai deixando de ser o centro e o propósito dos avanços e progressos e dando lugar a uma abstração: o lucro, o dinheiro.

No século XIX, com Darwin (1809-1882) em The origin of species, a ciência deu um salto na compressão da vida. Ele propôs que a seleção natural entre os animais seria o processo de sobrevivência a governar a maioria dos seres vivos. A seleção natural seria a base para vários teóricos da eugenia, visando a um darwinismo social. Essa noção de luta pela sobrevivência é perversamente utilizada como arma ideológica, dando a legitimação à segregação entre os homens.

Nesse sentido, a luta pela vida, em que só os mais bem-adaptados sobrevivem, ideologicamente naturaliza o discurso da competição e a conclusão de que essa luta é necessária para se fazer a "evolução" do ser humano, uma vez que só os "bem-equipados" geneticamente conseguirão perpetuar-se, legitimando a competição predatória que produz a desigualdade e a exclusão social.

Black (2003) aponta que a eugenia nasceu em solos americanos, com o financiamento de grandes empresários, entre eles industriais do ramo de aço e das ferrovias. O autor esclarece que no início do século XX as ideias de Darwin já eram amplamente aceitas na Europa, surgindo o discurso da preocupação quanto à "degradação biológica" dos países, pois o declínio na taxa de nascimentos era muito maior nas classes alta e média do que na classe baixa. Para muitos parecia lógico que a qualidade da população pudesse ser aprimorada mediante a proibição de uniões indesejáveis e a promoção da união de parceiros bem-nascidos. Foi necessário apenas que Galton (1822-1911) popularizasse a eugenia e justificasse suas conclusões com argumentos científicos aparentemente sólidos. Com o tempo, a eugenia passou a ser vista como ciência prestigiosa e conceito médico verdadeiro e ser disseminada por meio de livros didáticos e instituições de direção eugenista.

A eugenia revela-se como uma "legitimação científica" do fascismo - que se configura como o ponto máximo em que a competição pode chegar, uma vez que leva a cabo a luta, a superação do outro, em que os mais "fracos" devem ser exterminados. Legitimado pela ciência, esse extremo limite de desrespeito à vida humana cobriu-se de um discurso que significa seu oposto: a eugenia passou a ser justificada pela preservação da vida, pelo bem do homem. Como dado imediatizado, naturalizado (uma vez que o homem é um animal e evolui pela seleção natural), afirmou a destruição como lei da selva dentro do mundo "civilizado", desprezando-se todas as capacidades de pensamento, que permitem ao homem a transformação da natureza e da sua realidade social.

Na Alemanha, a eugenia norte-americana inspirou nacionalistas defensores da supremacia racial, entre os quais Hitler (1889-1945), que nunca se afastou das doutrinas eugenistas de identificação, segregação, esterilização, eutanásia e extermínio em massa dos indesejáveis e legitimou o ódio fanático por um segmento da população envolvendo esse ódio numa fachada médica e científica, de modo que uma competição no terreno da política também passou a balizar a mutilação dos indivíduos que não se enquadrassem nos ideais higienistas.

O capital impõe necessariamente a luta pela sobrevivência individual em uma sociedade na qual o desenvolvimento das bases materiais já possibilitaria a sobrevivência de todos. Nesse sentido, o movimento eugenista cumpriu a mesma função que possui hoje o discurso da competição. Ideológicos, ambos os discursos, embasados na ciência ("darwinismo social" e "darwinismo econômico"), capturam os indivíduos engajando-os na manutenção da violência social. Assim, como aponta Ramonet (1998),

As "leis" do mercado tomam o lugar das leis da mecânica (que rege a vida dos astros, do cosmos e da natureza), ou da história, como explicação geral do movimento das sociedades. Ai também, somente os mais fortes é que levam o melhor, com toda legitimidade, e os mais fracos são excluídos. A vida é uma luta, uma selva. Darwinismo econômico e darwinismo social (apelos constantes à competição, à seleção, à adaptação) impõem-se como se tudo fosse evidente . (pp. 66-67, grifos nossos)

A própria Psicologia contribuiu para a legitimação da competição entre os indivíduos. A respeito da historiografia da Psicologia, Abib (1998) afirma que, nos Estados Unidos, foi com base em Darwin e Galton, e não em Wundt, que a Psicologia adquiriu o seu reconhecimento social. O autor relata que os incentivos do governo americano na área da educação tinham a meta de desenvolver um sistema educacional racionalizado e eficiente para dar "continuidade à competição interindividual cada vez mais notável com as mudanças sociais produzidas pelo capitalismo industrial" (p.81).

O sistema educacional americano, dirigido por administradores e profissionais da educação, passou a operar segundo os princípios da administração científica do trabalho. A lógica instrumental da indústria foi assim transferida para a educação, onde passou a visar à classificação dos indivíduos e à seleção dos programas educacionais a serem implementados.

Abib (1998) afirma ainda que a prática de pesquisa psicológica, com a liderança de Edward Thorndike (1874-1949), direcionava-se para o exame da distribuição de características psicológicas nas populações e grupos, objetivando a segregação. Investigando as diferenças individuais, as pesquisas utilizavam técnicas estatísticas rudimentares de médias e porcentagens que incorporavam as técnicas estatísticas de Galton. O propósito dessas pesquisas era "corrigir as posições dos indivíduos na esperança, enfim, de transformá-los em pessoas mais eficientes e competitivas" (p.81, grifos nossos).

Dessa maneira, a psicologia galgou o status de profissão, respondendo à demanda de controle social e desenvolvendo estratégias para aumentar esse controle; ou seja, embebida da ideologia fascista, a psicologia veio propagar uma lógica que visava integrar o indivíduo ao sistema ou, caso isso não fosse possível, excluí-lo. Essa historiografia é uma denúncia das consequências sociais do uso do pensamento puramente técnico, que ignora a crítica filosófica, política e social - que levou a Psicologia a se cegar para os valores imbricados em suas práticas.

O mundo do fim do século XVIIII não resultou no que os pensadores do Iluminismo haviam antecipado, quando buscaram liberar o homem da subordinação à tradição e ao dogma, colocando-o assim na posição de senhor de sua realidade. A ciência revelou-se como uma mística que transformou esse homem em coisa, reduziu seu corpo ao utilitário e seus atos a meras técnicas.

Competição e fascismo: alguns apontamentos dos elementos fascistas presentes na competição atual

Horkheimer e Adorno (1985c) afirmam que o fascismo foi consequência inevitável do capitalismo de monopólios, foi a expressão última de uma razão instrumental que anulou a humanidade dos homens; mas essa dominação não pode ser entendida apenas por meio de uma análise social, visto que ela abriga tendências sociais que possuem "certo grau de independência da economia".

Adorno foi um pensador que não apenas elaborou uma crítica social, mas também estruturou uma teoria da personalidade. O estudo "A Personalidade Autoritária", realizado por ele em conjunto com Horkheimer, Lowenthal e Guterman, revelou que o fascismo está relacionado mais a traços de mentalidade e de comportamentos do que simplesmente a movimentos políticos. Os autores frankfurtianos buscaram desvelar os traços essenciais e históricos do fascismo latente presentes nos cidadãos comuns não pertencentes a organizações políticas. Ao conjunto dessas características foi conferida a denominação de personalidade autoritária, ou síndrome autoritária. Essas características não são inatas, mas psicossociais, ou seja, advindas do vínculo indivíduo e sociedade, e atuam no indivíduo de forma a selecionar os estímulos ideológicos que o momento histórico da sociedade propicia - que necessita para sua manutenção. O fascismo seria composto dessas predisposições, não existindo um tipo fascista específico, mas variações de alguns traços, conforme a dinâmica psicológica específica de cada indivíduo (Carone, s.d.).

Na competição atual, algumas predisposições fascistas podem ser claramente identificadas. A competição é uma atividade rival, uma tentativa constante de sobrepujar o outro e mostrar-se melhor que ele. Entendemos que o fascismo possui no terreno da política a mesma lógica presente na competição (atitude mais ligada aos relacionamentos interpessoais), sendo que o fascismo de Estado foi o ponto extremo a que a competição pode chegar, pois, na emulação com o outro, o extermínio passou a ser a única saída.

Embora não estejamos mais em um fascismo de Estado - tal como o apresentado na política totalitária presente no regime do III Reich na Alemanha de Hitler e na Itália com Mussoline, que propagaram o antissemitismo, o nacionalismo e a militarização -, a sociedade contemporânea ainda produz continuamente personalidades autoritárias.

Em uma democracia de massas não existe propriamente um líder ditatorial, nem um nivelamento total da opinião pública, mas a tendência à personalização prepara os indivíduos para assegurar o conformismo e a subordinação aos ditames sociais. A internalização da ideologia da competição é um dos principais elementos que formam essa tendência.

Algumas das disposições que compõem a personalidade autoritária descrita na referida pesquisa são: a submissão autoritária, a agressividade autoritária, o convencionalismo, a projetividade, a anti-intracepção, a preocupação com o poder e a dureza e o cinismo (Carone, s.d.).

A submissão autoritária e a agressividade autoritária são traços ligados ao caráter sadomasoquista, ou seja, a subordinação incondicional à autoridade (masoquismo) e a descarga da agressividade no grupo contraidentificação (sadismo), traços presentes na submissão a Hitler e no ataque da população alemã aos judeus

Horkheimer e Adorno (1985c) afirmam que os próprios judeus foram cúmplices de sua derrocada, o que não significa naturalizar as mortes, mas tirá-los da posição de passivos/vítimas perante o grande horror da Segunda Guerra. Eles representaram o próprio movimento do capital sem pátria. De fato, certa camada da população judia detinha o poder do mercado, pois era relacionada ao setor de circulação da economia; esses não foram levados a campos de concentração e extermínio. Estando eles aliados ao poder e submissos à estrutura social desigual, foi fácil cair sobre eles o ódio de toda a população. Eles serviram assim de "bodes expiatórios" para toda a sociedade, ou seja, pagaram um preço muito alto pela aliança que estabeleceram com o poder econômico.

Como explicita Coimbra (2001), a violência e a criminalidade na sociedade contemporânea são produzidas historicamente e relacionam-se a diferentes práticas sociais, porém a classe pobre acaba sendo o "bode expiatório", sendo responsabilizada por todas as ações danosas à sociedade. Segundo a autora, a relação entre pobreza, periculosidade, violência e criminalidade apresenta-se cristalizada no senso comum, criando o mito da existência de uma determinada "classe perigosa".

Entretanto, essa atribuição de malignidade não é dos pobres, mas sim se constitui como estratégia para silenciar os indivíduos e destruir seu coletivo, porque ameaçador. Hoje o tirano é a indústria cultural, se descorporificou (não é mais representado por um homem, Hitler ou Mussoline) e ataca o simbólico dos homens, direciona aqueles que são alvos de ataque de toda a sociedade.

Em uma sociedade que anula a capacidade dos indivíduos de humanizar-se, "as vítimas são intercambiáveis" (Horkheimer & Adorno, 1985c), ou seja, os "bodes expiatórios" são eleitos tendo-se em vista as características que melhor contribuem para a manutenção da estrutura social: certa categoria de judeus, ciganos, velhos, a população pobre como um todo.

A anti-intracepção é a dificuldade do indivíduo de entrar em contato com a sua vida psicológica, desvalorizando sentimentos, emoções, ternura e sensibilidade. Destarte, os indivíduos passam a valorizar em demasia a racionalidade e a desprezar a vida afetiva. Tal fato leva à busca do poder e da dureza e à afirmação constante da virilidade (Carone, s.d.).

Adorno (1995), no texto "Educação contra a barbárie", afirma que a competição está sendo disseminada como valor positivo nas escolas. A ideia de virilidade (de suportar a própria dor) e a premiação dos melhores alunos (colocando-os como ideais a serem seguidos) revelam-se como princípios de segregação e estímulo ao sadismo. Assim, o autor aponta que atualmente as pessoas estão sendo educadas a dar "cotoveladas [que] constituem sem dúvida uma expressão da barbárie" (p.162).

A anti-intracepção é necessária para a reprodução da competição. Por meio da razão (da educação) os indivíduos aprendem que a vida afetiva não possui importância diante o sucesso financeiro. Atualmente os pais matriculam os filhos pequenos em aulas de línguas, teatro, música esportes. Crianças já na primeira infância possuem uma agenda cheia de atividades e compromissos. Esses pais alegam que estão preocupados com o futuro da criança. Em um mercado competitivo, só consegue ascender socialmente o mais apto, o mais preparado, por isso, desde muito cedo a ideologia do "salve-se quem puder" deve ser internalizada; ou seja, a educação tradicional propaga a conformação com o modelo econômico e lucra com isso.

Horkheimer e Adorno (1985b) apontam que a responsabilidade do indivíduo por si e pelos seus pares é substituída pela possibilidade de integrar-se ao aparelho social, de maneira que

Não é mais possível dar uma solução ao conflito pulsional em que se forma a consciência moral. Em vez da interiorização do imperativo social - que não apenas lhe confere um caráter mais obrigatório e ao mesmo tempo mais aberto, mas também emancipa da sociedade e até mesmo faz com que se volte contra a sociedade - tem lugar uma identificação pronta e imediata com as escalas de valores esteriotipadas. (p.185)

Tanto o fascismo, mais ligado a uma ordem social e política, quanto a competição, que diz respeito à ordem das relações pessoais, estão carregados de preconceitos e irracionalidades, ou seja, de estereotipias, que representam o "pensamento coisificado" de nossa época.

Horkheimer e Adorno (1985c) afirmam que a discriminação presente no fascismo é pautada na projeção psíquica e que suas características levam à paranoia, não patológica, mas social. Sua determinação social a configura como uma falsa projeção. Ao se projetar o medo e a agressividade em um objeto definido socialmente, reverte-se o sentido: o objeto passa a ser tido como perigoso e seu extermínio como necessário para "o bem da nação". Assim, não existe um "antissemita" nato, legítimo, mas um construído socialmente.

Os autores afirmam que, quando surgiu o ódio aos judeus, esse ódio ainda era definido por escolha "subjetiva". Hoje essa "escolha" é controlada. Escolhe-se em quem soltar o ódio dentro das opções preestabelecidas socialmente, caracterizando o que o autor conceituou como mentalidade do ticket: conceito que nomeia uma forma de escolha racional feita em blocos. Por meio desse pensamento todo nacionalista convicto escolhe também ser um antissemita, pois o indivíduo associa de forma superficial diversos elementos diferentes entre si e os trata como parte de uma mesma pauta. A mentalidade do ticket nega a opinião pessoal, pois essa não tem valor diante do todo dominante; ou seja, a escolha pautada nesse pensamento obedece a mecanismos sociais, não importando, por exemplo, se existe ou não uma experiência pessoal com um judeu ou não judeu. Nessa forma de pensamento o "senso de realidade, a adaptação ao poder, não é mais resultado de um processo dialético entre sujeito e a realidade, mas é imediatamente produzido pela engrenagem da indústria." (Horkheimer & Adorno, 1985c, p.191). Ainda segundo os autores, na competição atual necessita-se sempre ser o melhor e eliminar o adversário, independentemente de existir ou não uma experiência pessoal com tal "adversário". Essa conduta, reproduzida de forma compulsória, representa uma mentalidade do ticket. Ela é resultado da crença de que todos competem, ou seja, uma escolha em bloco, que acaba gerando uma forma de paranoia socialmente produzida. Assim "as etiquetas são coladas: ou se é amigo, ou inimigo. A falta de consideração pelo sujeito torna as coisas fáceis para a administração." (Horkheimer & Adorno, 1985c, p.188).

Cooperação ou competição? Mundo da produção atual

A competição é utilizada dentro do mundo da produção como mola propulsora de um avanço material que gradativamente minou as relações entre os trabalhadores, promovendo um distanciamento cada vez maior entre eles e deles com a sua realidade interna.

Com o fim da Segunda Guerra, ocorre nos países de capitalismo avançado um grande estímulo estatal para o aumento do poder aquisitivo da população, como forma de acabar com o descontentamento social e escoar a produção em massa do Fordismo: é o chamado Estado Keynesiano (Estado de Bem-Estar Social). No entanto, como aponta Gorender (1997), perto da década de 70 o regime fordista já evidenciava com muita clareza vários acúmulos de deficiências, pois a população não dava conta de absorver toda a produção, mesmo com todo o estímulo dirigido para o consumo.

O método fordista também exigia a manutenção constante de grandes reservas de insumos, implicando gastos financeiros com armazenagem. Por fim, prolongava-se em demasia o tempo de adaptação das máquinas (ou sua substituição) quando se tratava de colocar em linha de produção um novo modelo de mercadoria.

Com a crise do modo de produção e de regulamentação fordista-keynesiano, outro regime de acumulação toma forma, trazendo consigo a reconfiguração do papel do Estado, da política, das finanças, da indústria e do comércio mundial, e em consequência, alteram-se a organização do trabalho, as formas de emprego e desemprego, as ideologias, os estilos de vida e a luta de classes (Aglietta, citado por Gorender, 1997).

Nesse momento fica em evidência o sucesso dos fabricantes japoneses e seus métodos. Constatou-se que o sucesso não se devia tanto ou tão somente ao baixo nível dos salários e à intensidade do trabalho, mas outro fator era decisivo: a organização do trabalho (Keller, citado por Gorender, 1997).

O chamado modelo japonês originou-se na fábrica da Toyota Motor (por isso foi denominado toyotismo) e tem como porta-voz o engenheiro Taiichi Ohno (1912-1990), que elaborou uma organização do trabalho combinando crescimento da produtividade e maior subordinação dos trabalhadores, por meio de técnicas das quais muitas introduziram massivamente a competição no centro do coletivo de trabalho.

Para aumentar a produtividade japonesa (no Japão destruído do Pós-Guerra), Ohno reduz os custos da produção recorrendo à diminuição do número de trabalhadores e a máxima potencialização do trabalho vivo. A produção passa a ser feita pela demanda do consumo, ou seja, acompanha o fluxo de mudanças na economia. Se no modelo fordista a meta era produzir o máximo em grande série, no Toyotismo a empresa só produz o que é vendido, e o consumo condiciona toda a organização de produção; assim, o estoque e o desperdício são evitados.

O ajustamento às flutuações da produção acarreta a flexibilização da organização do trabalho. No fordismo as tarefas eram parceladas, caracterizando o chamado homem-máquina. No modelo flexível as operações essenciais do operário passam a ser deixar as máquinas funcionarem e preparar elementos necessários a esse funcionamento, de maneira a reduzir o quanto mais possível o tempo de não-produção. O trabalho passa a ser "homem-equipe", visto que o trabalhador necessita ser polivalente para operar diferentes máquinas de seu trabalho cotidiano e também auxiliar no trabalho do colega, quando preciso.

O toyotismo cria um marco no mundo do trabalho ao passar o discurso da cooperação entre os trabalhadores. "Todos devem ser cooperativos, devem trabalhar como uma equipe" - são duas máximas presentes atualmente em muitos ambientes de trabalho. Elas foram incorporadas ao discurso social devido à introdução e sucesso de uma técnica toyotista, o team-work, e mantidas por muitas outras, entre elas os Círculos de Controle de Qualidade (CCQs) e o Gerenciamento Participativo.

Ohno, segundo Oliveira (2004), sugere que o trabalho em equipe pode ser comparado aos jogos competitivos. Ele denomina-o de team-work, que significa um sistema de máquinas com equipes de trabalhadores unidos por um mesmo objetivo: "fazer certo pela primeira vez". Cada equipe é responsável por realizar corretamente o que lhe foi atribuído. Essa "atribuição de responsabilidade" faz com que aumente a coerção interna da equipe, visto que começa a ocorrer um controle de uns sobre os outros, chegando ao ponto da introdução de penalizações na forma de castigos que a equipe impõe ao membro que não se enquadrar, caso seu desempenho não seja satisfatório. A esse respeito observa Oliveira (2004):

Talvez o maior achado dessa experiência de organização do trabalho sob a forma de equipe seja o de colaborar continuamente para estabelecer a competição entre os trabalhadores, soterrando, por vários níveis de ocultação, a possibilidade de expressão da solidariedade de classe (p.29).

Assim, tal técnica intensifica o trabalho (todos devem saber fazer o trabalho de todos) e aumenta a coerção interna entre os indivíduos. Vemos claramente o surgimento de uma estratégia de cooptação da necessidade de amparo do homem a serviço do lucro. A cooperação presente no discurso do trabalho em equipe leva ao seu oposto, uma vez que exige a competição entre os pares e uma constante comparação entre "os mais eficientes e polivalentes".

Outra técnica, apontada por Oliveira (2004), para engajar o trabalhador nos objetivos da empresa são os Círculos de Controle de Qualidade (CCQs), que são ligas de trabalhadores pertencentes ao sindicato que supervisionam a qualidade da produção e o envolvimento do operário; ou seja, essas ligas são compostas por trabalhadores cuja função é vigiar os próprios trabalhadores. Segundo Oliveira (2004):

a prática dos CCQs revela que a prevalência do crescimento constante da produção instrumentalizou o coração e a alma dos trabalhadores como elemento ativo na guerra da concorrência, desenvolvendo-se, no sentido de enfrentar a efetiva competição entre concorrentes capitalistas, de um comportamento operário que fortalece e intensifica a competição entre trabalhadores no seio da empresa. (p. 49)

Essa técnica faz com que o trabalhador troque sua identidade de classe pela de um supervisor menor (um delator), responsável pela qualidade. Assim, ele não consegue identificar a forma perversa como é engajado em uma luta contra os pares.

Todo o discurso das empresas da contemporaneidade introduzido pelo toyotismo estabelece a noção de que o trabalhador é "responsável pela empresa", sendo ele "autônomo", tendo toda a "liberdade" dentro dela. Oliveira (2004) descreve que esse discurso está presente no Gerenciamento Participativo, que é a implementação de técnicas que suscitam o envolvimento dos trabalhadores nos objetivos da empresa, direcionando-os a fazer sugestões de boas ideias e melhorias contínuas (chamadas de kaisen) que contribuam para alterar a organização interna da empresa e melhorar sua posição competitiva no mercado.

O "homem-equipe", da cooperatividade, dentro da administração atual é um discurso cínico. A cooperação existe, mas ela ocorre em relação à empresa (e às atividades referentes à produção), e não ao outro humano em sua integridade. Esse discurso, necessariamente, produz o contrário: alimenta a competição, uma vez que a pessoa tem que ser o mais eficiente possível em relação ao outro de sua equipe e não possui mais uma atividade preestabelecida, mas deve atuar em várias frentes. Assim, a ciência administrativa cria formas cada vez mais refinadas de debochar da dignidade humana, pois, como aponta Adorno (2008) em um de seus aforismos, "dizer nós e pensar eu é um dos insultos mais refinados" 2 2 Aforismo nº122, intitulado "Monogramas", presente no livro Mínima Moralia. (p.186).

Trabalho flexível e homem flexível - consequências subjetivas e relacionais da atual forma do capital

A acumulação capitalista contemporânea passou a ser flexível, ou seja, voltada para o descarte, pois o consumo passou a condicionar toda a produção. O trabalhador ideal passou a ser aquele homem flexível, que consegue se adaptar a constantes mudanças. O discurso da flexibilidade - de saber "desprender-se de seu passado", de adaptar-se ao "correr riscos", de ser "sempre inovador", de buscar o novo constantemente, etc. - passa a ser difundido em toda a sociedade como um ideal a ser alcançado; mas o que de fato significa a flexibilização do trabalho e/ou do trabalhador? Segundo o dicionário, flexível é um adjetivo que caracteriza: 1. O que se pode dobrar ou curvar. 2. Elástico. 3. Fácil de manejar; maleável. 4. Dócil, submisso. (Ferreira, 2004).

O indivíduo flexível é aquele maleável e dócil para com todos os ditames sociais; é aquele que se adapta até mesmo a situações que o violentam. Devido às características dessa nova ordem econômica, o indivíduo não consegue construir um senso de identidade sustentável e passa a relacionar-se por meio de vínculos frouxos, permeados pela intensa competitividade. Esses elementos fazem com que aumente sua vulnerabilidade e submissão.

No modelo flexível, o contexto social tende a aumentar a competição entre os indivíduos a cada dia. Dois elementos embasam essa nossa afirmativa: o aumento do desemprego e a crescente terceirização. O primeiro obriga os indivíduos a se verem como rivais, uma vez que os postos de trabalho diminuem a cada dia e o segundo e a terceirização acabam com o vínculo estável do trabalhador com a empresa - que não necessita mais pagar as garantias trabalhistas, podendo o trabalhador, a qualquer momento, não estar mais no emprego que nela exercia.

Martin e Schumann (1999) escrevem que o futuro é visto pela elite intelectual e econômica, que discutiu o caminho da humanidade na entrada do séc.XXI por meio de um neologismo: "20 por 80", em que vinte por cento da população em condições de trabalhar no século XXI bastaria para manter o ritmo da economia mundial, ou seja, um quinto de todos os candidatos a emprego daria conta de produzir todas as mercadorias e prestar todos os serviços qualificados que a sociedade mundial poderá demandar. Somente esses vinte por cento participariam ativamente do consumo e do lazer, outros um ou dois por cento poderão ser acrescentados, representado por aqueles que herdam alguma riqueza material, enquanto a esmagadora maioria dos oitenta por cento aptos a trabalhar ficaria à mercê do acaso, jogada à própria sorte e mantida calada por meio do entretenimento.

Nesse contexto em que cada vez existem menos empregos, para os indivíduos sobreviverem/ascenderem socialmente se faz necessário competirem acirradamente entre si, seguindo a lei perversa do "cada um por si e Deus por todos".

Sennett (2007) afirma que, devido ao modelo flexível, a carreira "a longo prazo" está em vias de ser extinta. Esse fato indica consequências subjetivas importantes: a destruição do senso de identidade do indivíduo, pois, em uma sociedade composta de episódios e fragmentos, fica demasiadamente difícil a construção de uma narrativa histórica de vida e o estabelecimento de relações duráveis - elementos cruciais para o ser humano se ver como singular, como um.

Os vínculos sólidos entre os indivíduos são necessários para um bom desenvolvimento psíquico. Para se desenvolver, o ser humano, enquanto ser do desamparo, necessita do outro não apenas como presença física, mas também como presença afetiva. O outro é aquele que dá a possibilidade de humanização e individuação (eu e não-eu), pois afirma uma limitação e demarca diferenças; assim, para que a dinâmica interna se desenvolva de forma saudável, ela deve ser mediada principalmente por relacionamentos de trocas afetivas e respeito às características individuais, o que faz com que o homem não se resuma a elementos naturais instintivos (Freud, 1930/1981).

Na sociedade atual, o outro não é aquele que poderá me amparar e me humanizar, ao contrário, é aquele decretado a priori como meu rival (aquele que concorrerá comigo pelo lucro, pelo emprego, pelas garantias no trabalho etc.). Vulnerável, o indivíduo torna-se facilmente uma massa de manobra.

Sennett (2007) afirma que na flexibilização está ocorrendo a destruição de qualidades que ligam, de forma positiva, os seres humanos uns aos outros, como a lealdade, a confiança e o compromisso. Assim, "a flexibilização nada mais significa senão "despir" o trabalhador de sua roupagem de proteção, segurança, perspectiva de futuro e solidariedade de classe" (Oliveira, 2004, p.35).

Competição e inveja na sociedade do consumo/espetáculo

Com o marco do toyotismo, em que a produção é feita pela demanda do consumo, acompanhando o fluxo da economia de mercado (acumulação flexível), o mais importante para o acúmulo passou a ser o descarte da mercadoria, pois esse estimula a economia capitalista.

Bauman (1999) aponta que a sociedade de nossos antecessores (industrial) instituía uma norma de obediência e cumprimento de leis, engajando seus membros como produtores ou soldados. No interior dessa sociedade começa a surgir o que hoje vivemos - uma "sociedade do consumo", cujos membros são engajados principalmente por uma característica: a capacidade de consumir mercadorias.

Essa mudança altera significativamente as relações sociais. De produtora a sociedade passa a ser consumidora e a moldar seus membros pela lei do mercado e pelo dever de comprar para inserir-se como cidadão; ou seja, a mercadoria passa a ser mais valorizada que o próprio ser humano. Esse só é visto na sua humanidade quando exibe a posse dela. Entendemos, assim, que a inveja pode ser um afeto que está gradativamente sendo utilizado para a adesão do indivíduo ao consumo, pois a mercadoria passou a conferir prestígio social a quem a consome, configurando-se uma sociedade hierarquizada e dominada fundamentalmente pelas aparências, na qual os múltiplos e complexos sentidos do ser humano estão subordinados ao poder do capital.

Passamos de uma sociedade preocupada com a aquisição de bens para uma em que o mais importante é o aparentar ter; uma sociedade dominada pelo poder da aparência, que, como aponta Debord (1997), apresenta-se "como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação" (p. 13). Esses não se resumem ao conjunto de imagens transmitidas pelos meios de comunicação, mas incluem algo que se interpõe nas relações sociais, que passam a existir somente pelas imagens.

A inveja mostra-se como a sustentação subjetiva (afetiva) da competição (ato, atividade). Ambos, conduta e afeto, contêm uma agressão entre os pares e representam uma díade de perversão dos relacionamentos contemporâneos, pois ambos atualmente perderam o seu sentido deletério inerente. Ser uma pessoa competitiva e/ou invejada tornou-se categoria positiva, glorificada socialmente.

A inveja é uma expressão sádica dos impulsos perversos, relacionada à pulsão de morte, à agressividade, e está relacionada ao ataque decorrente de uma comparação não suportada entre eu e o outro. Esse sentimento possui base constitutiva no ser humano, ou seja, presente já na fase inicial da vida (Klein, 1957/1991).

A origem etimológica da palavra inveja (do latim invidia) advém do verbo invideo, que significa olhar atravessado, olhar de soslaio; significa ainda um sentimento de pena e raiva; sentimento de desgosto pela prosperidade ou alegria de outrem; desejo de possuir aquilo que os outros possuem; emulação e cobiça (Cunha, 1991).

Esse sentimento, arcaico na história individual, está sendo cooptado e utilizado para a adesão do indivíduo ao consumismo e a todos os ideais necessários à sua manutenção. Assim sua manifestação atual revela-se como uma expressão da violência internalizada por meio da indústria cultural, que se fundamenta nas dimensões destrutivas da inveja.

A mudança de uma sociedade da posse para uma sociedade da aparência altera os vínculos entre os indivíduos, pois as características estimadas pelos indivíduos e cultivadas em si passam a ser a fama, a visibilidade, o exibicionismo.

Essa valorização da pura aparência, da superficialidade da imagem (espetáculo), é resultado da massiva e intensa utilização de todo um aparato técnico desenvolvido pela ciência: as revistas, o rádio, o cinema e a televisão. Esses meios de comunicação, pela propaganda, apresentaram a mercadoria como não apenas tendo vida própria (descolada de sua função social), mas também como possuidora de um poder muito superior ao do homem, como portadora do poder de lhe trazer a felicidade e acabar com suas angústias e toda a tristeza.

Em seu comércio, a mercadoria não aparece como produto de uma relação de produção humana, ou seja, o valor social nela se apaga e ela apresenta-se como se valesse por si mesma, como se tivesse vida autônoma. A mercadoria passa a ter um caráter místico-religioso, como se estivesse enfeitiçada: o fetiche da mercadoria (Marx, 1867/1968).

Em sua época Marx já havia apontado que na transformação do produto em mercadoria o humano se anula e toda a sua produção apresenta-se alheia a ele. Alguns teóricos da chamada Escola de Frankfurt, em especial Adorno e Horkheimer, aprofundam a proposição marxista de que a produção humana passou a dominar os homens, sendo que a própria cultura se converteu em uma mercadoria.

Horkeimer e Adorno (1985b) cunham o conceito de indústria cultural em 1947 para se referir à manipulação pelo fetiche feita pelos diversos meios de comunicação, que possuem o propósito de seduzir os indivíduos para que consumam, "educando-os", assim, para a manutenção do sistema econômico.

Segundo Adorno (1986), a indústria cultural utiliza elementos da cultura popular e erudita burguesa. No entanto, ao serem atreladas a mercadorias, elas perdem o propósito de resistência civilizatória ou o caráter verdadeiramente cultural da arte - de cultivar o espírito humano. Segundo o autor, uma cultura atuando segundo seu sentido estrito seria aquela que possibilitasse aos indivíduos construir elementos para a autonomia, para a reflexão e crítica. A indústria cultural, pelo contrário, subjuga os indivíduos, inserindo-os em uma malha em que são meros objetos pelos quais se obtém lucro.

O entretenimento oferecido pela indústria cultural possui patrocinadores, pessoas que não veem a diversão transmitida como brincadeira. Para serem vendidos, os produtos são atrelados a imagens visuais e sonoras que os carregam de significados e signos; assim, a mercadoria passa a ser consumida não pela sua utilidade material, mas pelo seu poder simbólico construído pela propaganda; assim, consome-se justamente o não material, mas a imagem ilusória, a fantasia. A indústria cultural ataca o simbólico dos indivíduos, uma vez que apresenta uma falsa realidade como verdadeira.

Adorno (1986) assinala que o indivíduo inserido na sociedade via indústria cultural não possui os elementos necessários para ser autônomo. Educado para a submissão, ele não consegue passar por um processo formativo que lhe propicie a individualização, mas apenas integrar-se enquanto massa, pois a indústria cultural lhe impõe uma semiformação - que não significa uma deformação, mas uma falsa formação. Ela cria exatamente uma falsa experiência do real, dando ao indivíduo a impressão de que ele é sujeito de sua própria vida, quando, na verdade, como o próprio autor aponta, ele é impedido até mesmo de ser um indivíduo-sujeito.

Essa falsa experiência do real é o que mantém a competição e a inveja na sociedade contemporânea. A competição tornou-se necessária nesse contexto, ou seja, necessária para a manutenção desse contexto; no entanto, ela foi assimilada de tal forma pelos indivíduos que se apresenta como necessária para a existência do ser humano, como se esse não pudesse mais sobreviver caso não reproduzisse a lógica predatória a ele imposta.

A intensa valorização da aparência, da imagem ilusória, nada mais é do que uma falsa experiência da realidade, uma vez que a totalidade dessa experiência é reduzida a pura e simples superficialidade. Ao invejar o outro possuidor de uma mercadoria, o individuo acredita que com a posse/exibição dela conseguirá suprir todas as suas faltas. Por meio da idealização, mecanismo psíquico que caracteriza a inveja (Mezan, 1987), o indivíduo passa a sobrevalorizar a mercadoria e seu detentor, atribuindo-lhes características positivas, por vezes mágicas.

A relação invejosa é necessariamente uma relação sadomasoquista, visto que, por meio da idealização, o invejoso sente-se inferiorizado e esvaziado. Ele projeta no outro a perfeição narcísica (Mezan, 1987) e, quando impossibilitado de adquirir a mercadoria que idealiza, ataca seu possuidor, entrando em um círculo destrutivo de competição.

As ideologias da competição e da "inveja boa" são propagadas pelos indivíduos socialmente porque, na maioria das vezes, elas não passam pelo crivo da consciência, mas operam por meio de um susto traumático - conceito elaborado por Freud (1920/1996) para se referir às excitações provindas do exterior que, de tão intensas, atravessam qualquer forma de proteção natural da mente. Como não chegam à consciência, a carga energética estabelece um conflito em que, compulsivamente, faz o indivíduo reviver a situação traumática.

Dessa forma, as ideologias transmitidas pela indústria cultural violentam o indivíduo. Essa violência é simbólica (Costa, 1986) e mais difícil de ser identificada, pois a imposição violenta externa não é vista nem sentida como tal. A mensagem, assim, reverbera no inconsciente e pode se manifestar como um sentimento de culpabilidade (Freud, 1930/1981), em que a violência sofrida volta-se para o ego do indivíduo.

Todos devem ter "inveja boa" uns dos outros e vorazmente consumir/exibir as mercadorias oferecidas, transformando-se, assim, em pessoas invejáveis. Impossibilitado de identificar a violência simbólica presente nessa ideologia, o indivíduo se autoagride, identifica-se com a violência e culpa-se por não atingir o ideal invejável. Assim, ele atua segundo o processo que foi denominado por Ana Freud (1946/1978) como identificação com o agressor. Por meio desse mecanismo o indivíduo repete as frases e condutas, repete a segregação que a indústria cultural proclama.

A indústria cultural, valendo-se de toda a tecnologia de manipulação audiovisual, capta e gere aquilo que é antigo na história do indivíduo, aquilo que é intrínseco a seu desenvolvimento: a necessidade de reconhecimento e a constatação de sua limitação diante do outro, a comparação não suportada (inveja). A mídia promete a cura desse mal, afirmando que não existe mais a necessidade de se sentir inferior, pois quem consome é superior, é especial e aceito.

Chegada: alguns apontamentos finais

Ao longo do texto buscamos delinear alguns dos tortuosos caminhos que fizeram da competição uma atitude banalizada e naturalizada na contemporaneidade: uma falsa experiência do real.

A competição revelou-se, assim, como uma mola propulsora do capitalismo. A ciência, em seu viés instrumental, possibilitou não apenas a sua administração no trabalho, mas também sua legitimação social. Com a eugenia, ela afirmou a naturalização da luta pela sobrevivência, em que somente os mais aptos sobrevivem, com a conclusão de que essa luta é necessária para fazer a evolução do ser humano, negando o homem como ser social, que transforma a sua realidade.

Destarte, existe uma íntima relação entre a competição e o fascismo - sendo esse o ponto máximo (no terreno da política) a que a competição pode chegar. O fascismo, além de uma mera nomenclatura política, congrega uma série de disposições (elementos) que o caracterizam, tais como a submissão e a agressividade autoritárias, o sadomasoquismo e a mentalidade do ticket. Todos esses elementos estão presentes na competição contemporânea.

No mundo de produção atual, a competição se mescla ao discurso do homem-equipe, da cooperatividade, a fim de intensificar a exploração do trabalho humano. A indústria cultural, nesse contexto, tornou-se um novo paradigma, pois o consumo passou a condicionar a produção. Com a acumulação flexível, o mundo do trabalho passou a ser dependente do consumo e de seu maior propagador: a mídia. Assim, a inveja revelou-se como importante sentimento de sustentação (cumplicidade) da sociedade atual, presente de forma massiva na adesão dos indivíduos ao consumismo, que prega a superficialidade da mercadoria como único valor a ser estimado.

A ideologia da competição é um engano administrado, que falsifica a realidade a tal ponto que passa a propagar a destruição do outro e de si como algo positivo. A violência das ideologias brutalizou nosso espírito. Torna-se urgente fazer a crítica (mediação) das ideias naturalizadas na contemporaneidade, que reproduzem compulsivamente essa violência em nosso cotidiano, e denunciar como elas foram forjadas historicamante, criando assim elementos para que consigamos desestigmatizar e desenrijecer nossos atos.

O atual culto à velocidade, a superação do outro e a vida corrida representam a fuga de si mesmo - esvaziamento do nosso pensar, dos nossos vínculos, da potência de transformação da realidade, da nossa parte humana maior.

Notas

Carone, I. (s.d.). A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Acesso em 13 de setembro, 2010, em http://antivalor2.vilabol.uol.com.br/textos/outros/carone.htm

Recebido em: 05/09/2010

Revisão em: 28/05/2011

Aceite final em: 25/06/2011

Angela Maria Pires Caniato é Professora Doutora do Curso de Mestrado em Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá - UEM. Endereço: Rua Joaquim Nabuco, 1496. Zona 04. Maringá/PR, Brasil. CEP 87014-100. Email: ampicani@onda.com.br

Samara Megume Rodrigues é Psicóloga formada pela Universidade Estadual de Maringá e integrante do projeto de pesquisa-intervenção "Phenix: a ousadia do renascimento do indivíduo-sujeito". Email: samara_meg@hotmail.com

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  • 1
    Frase presente no livro
    Mínima Moralia. Fragmento do Aforismo nº 102 intitulado
    "Devagar e sempre"
  • 2
    Aforismo nº122, intitulado "Monogramas", presente no livro
    Mínima Moralia.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Abr 2012

    Histórico

    • Recebido
      05 Set 2010
    • Aceito
      25 Jun 2011
    • Revisado
      28 Maio 2011
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