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Ocupações do movimento dos sem-teto e a psicologia do trabalho

Homeless movement's squats and work psychology

Resumos

O objetivo deste artigo é discutir a importância das atividades coletivas nas ocupações realizadas pelo movimento dos sem-teto e descrever algumas características de sua organização de trabalho, a partir do diálogo entre as referências epistemológicas e teóricas que embasam os estudos da psicologia sobre o trabalho humano e a experiência de um dos autores como apoiador da ocupação. O planejamento, a entrada no imóvel e a sua manutenção são etapas realizadas por um trabalho coletivo. Observa-se a mobilização de uma inteligência astuciosa que permite intervir criativamente na ocupação, lidando com situações imprevistas através de soluções novas. A análise da organização do trabalho permitiu perceber que, embora o ideal de responsabilização coletiva não seja plenamente atingido, essa experiência de organização afirma valores de solidariedade de uma vida em comum, na qual a luta contra a exclusão e a miséria não deriva para saídas totalmente individualistas e marginais.

atividade coletiva; psicologia social do trabalho; ocupação; movimento dos sem-teto


The aim of this article is to discuss the importance of the collective activities in squats accomplished by the homeless movement and to describe some characteristics of their work organization, from the dialogue between the epistemological and theoretical references that underlie the studies of psychology over human work and the experience of one of the authors as a support of the squat. The planning, the entering the property and its conservation are steps performed by a collective work. It is possible to observe the mobilization of a crafty intelligence that allows the creative intervention in the squat, dealing with unpredictable situations through new solutions. The analysis of the work organization made possible the perception although the ideal of collective accountability isn't fully reached; this organization experience affirms values of solidarity of a common life, where the struggle against exclusion and misery doesn't derive to solutions totally individualistic and marginal.

collective activity; social work psychology; squat; homeless movement


ARTIGOS

Ocupações do movimento dos sem-teto e a psicologia do trabalho

Homeless movement's squats and work psychology

Patrícia Tomimura; Hélder Pordeus Muniz

Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil

RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir a importância das atividades coletivas nas ocupações realizadas pelo movimento dos sem-teto e descrever algumas características de sua organização de trabalho, a partir do diálogo entre as referências epistemológicas e teóricas que embasam os estudos da psicologia sobre o trabalho humano e a experiência de um dos autores como apoiador da ocupação. O planejamento, a entrada no imóvel e a sua manutenção são etapas realizadas por um trabalho coletivo. Observa-se a mobilização de uma inteligência astuciosa que permite intervir criativamente na ocupação, lidando com situações imprevistas através de soluções novas. A análise da organização do trabalho permitiu perceber que, embora o ideal de responsabilização coletiva não seja plenamente atingido, essa experiência de organização afirma valores de solidariedade de uma vida em comum, na qual a luta contra a exclusão e a miséria não deriva para saídas totalmente individualistas e marginais.

Palavras-chave: atividade coletiva; psicologia social do trabalho; ocupação; movimento dos sem-teto.

ABSTRACT

The aim of this article is to discuss the importance of the collective activities in squats accomplished by the homeless movement and to describe some characteristics of their work organization, from the dialogue between the epistemological and theoretical references that underlie the studies of psychology over human work and the experience of one of the authors as a support of the squat. The planning, the entering the property and its conservation are steps performed by a collective work. It is possible to observe the mobilization of a crafty intelligence that allows the creative intervention in the squat, dealing with unpredictable situations through new solutions. The analysis of the work organization made possible the perception although the ideal of collective accountability isn't fully reached; this organization experience affirms values of solidarity of a common life, where the struggle against exclusion and misery doesn't derive to solutions totally individualistic and marginal.

Keywords: collective activity; social work psychology; squat; homeless movement.

O Rio de Janeiro é uma cidade maravilhosa como canta a música, mas há contradições sociais violentas. O processo de exclusão em que vive a maior parte da sua população se reflete na ausência e na precariedade de habitações. Porém, muitas pessoas não ficam passivas nesse processo e lutam por meio das ocupações de prédios abandonados, realizadas pelo movimento dos sem-teto. Esses excluídos encontram um lugar para viver e, também, para exercitar uma forma de se organizarem para a batalha pela permanência definitiva no local.

As três ocupações pesquisadas aqui são denominadas, respectivamente, Chiquinha Gonzaga, Zumbi dos Palmares e Quilombo das Guerreiras. A ocupação Chiquinha Gonzaga se localiza perto da Central do Brasil, ao pé do morro da Providência, onde nasceu a favela que é considerada a primeira do Rio de Janeiro. É curioso notar que essa ocupação se encontra próxima ao local onde existia o maior cortiço do Rio em finais do século XIX: o Cabeça de Porco. A Quilombo das Guerreiras está estabelecida na Zona Portuária do Rio de Janeiro; e a Zumbi dos Palmares, na Praça Mauá. Todas estão próximas ao Centro da cidade.

Essas ocupações têm uma identidade comum: a presença de uma organização política, anteriormente denominada Frente de Luta Popular (FLP), que auxiliou no planejamento e participou do cotidiano das ocupações. A sua principal característica é buscar a autogestão como forma de organização nas lutas populares e se negar a construir uma direção centralizada do movimento. Isso faz com que a dinâmica de organização das ocupações seja vitalizada pela construção de espaços coletivos de discussões (assembleias e reuniões) em que as pessoas podem decidir juntas os caminhos e estratégias que vão seguir. Além dos moradores dos prédios ocupados, há, também, a presença de apoiadores que participam como voluntários, auxiliando os ocupantes na sua luta. Os apoiadores não estão ali para dirigir o movimento, mas para trabalhar com os ocupantes, buscando não reproduzir a assimetria da sociedade.

Um dos autores deste artigo é apoiador dessas ocupações e teve necessidade de refletir sobre sua atuação nesse movimento, realizando uma pesquisa que originou sua dissertação de mestrado em Psicologia na Universidade Federal Fluminense (Tomimura, 2007). Uma das principais contribuições dessa investigação foi salientar que a ocupação exigia um trabalho coletivo dos ocupantes e que o conceito de atividade de trabalho era fundamental para a compreensão de como todos construíam a ocupação, a partir de suas atividades. Segundo Britto (2004), a mídia vem construindo e divulgando representações de que as ocupações do movimento dos sem-teto são um lugar de criminosos e vagabundos. Assim, torna-se importante testemunhar a ocupação como um lugar de produção de meios de vida, que possibilita a luta concreta pela moradia a partir de uma recusa à passividade e ao assistencialismo.

O objetivo principal deste artigo é discutir a importância das atividades coletivas nas ocupações realizadas pelo movimento dos sem-teto e descrever algumas características de sua organização de trabalho, a partir do diálogo entre algumas referências epistemológicas e teóricas que embasam os estudos da psicologia sobre o trabalho humano e a experiência de um dos autores como apoiador da ocupação.

Este artigo vem modestamente seguir a convocação de Narita (2005), que finaliza sua discussão acerca dos conceitos teóricos sobre movimentos sociais, indicando a importância de se realizar pesquisas de campo em psicologia social que possibilitem analisar os processos do cotidiano, os quais não são suficientemente abordados pelos trabalhos sociológicos. Também nessa direção duas pesquisas sobre o movimento dos sem-terra contribuem para avançar na compreensão dos movimentos sociais. Groff, Maheirie e Prim (2009), visando a compreender o sentido e o significado do singular e do coletivo no cotidiano de um assentamento do movimento dos sem-terra, vão apontar que, por meio das relações de solidariedade, os assentados puderam superar o sofrimento ético-político na construção do singular coletivo. Já Leite e Dimenstein (2010), ao estudarem os processos de subjetivação nesse movimento, vão perceber que sua força política vem da sua produção de singularidades, e não de sua ordem identitária. Essas duas pesquisas reforçam o propósito deste artigo de trazer outro olhar sobre o movimento dos sem-teto, abordando-o como um lugar de atividades coletivas, de debates de normas.

Neste artigo, inicialmente se abordará a perspectiva ética e epistemológica da ergologia (Schwartz, 2010) sobre a atividade humana, que afirma a importância do debate entre os conceitos das disciplinas teóricas e a experiência dos participantes do movimento. Depois, será descrita a metodologia utilizada na pesquisa, seguida da apresentação de alguns conceitos da psicodinâmica do trabalho que auxiliam a compreender a mobilização criativa nas ocupações. Por fim, será realizada uma análise da sua organização do trabalho.

Ergologia e a atividade como debate de normas e valores

A perspectiva ética e epistemológica da ergologia (Schwartz, 2000a) desenvolveu-se a partir do diálogo com as contribuições da filosofia de Canguilhem (1995), da ergonomia da atividade (Teiger, 2005) e do modelo operário italiano (Oddone, Re, & Briante, 1981). Segundo Schwartz (2000a), uma concepção de trabalho como atividade renormatizadora provém da concepção de Canguilhem (1995) sobre saúde e vida. Esse autor aborda o debate sobre normalidade e o normal, diferenciando a saúde de um padrão quantitativo de normalidade:

A saúde não é idêntica à normalidade, pois aquela vai à direção desta, mas a ultrapassa, pois um indivíduo saudável é normativo, ou seja, é também a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir novas normas em situações novas. ... A saúde é uma margem de tolerância às infidelidades do meio. ... Sua infidelidade é exatamente seu devir, sua história. (Canguilhem,1995, pp. 158-159)

O que seria isso? O meio é um devir, pois o novo sempre aparece e é necessário saber lidar com ele. Muitas vezes, acabamos por viver dentro de situações que exigem rígidos padrões de comportamento. Mesmo assim, o que o Canguilhem (1995) menciona é, justamente, a impossibilidade de as rígidas estruturas deixarem a vida totalmente de lado, já que a vida se expressa na produção de novas normas, sendo "atividade de oposição à inércia e à indiferença" (Canguilhem, 1995, p. 208).

Seguindo a orientação de Canguilhem, Schwartz (2000a) propõe a ideia de que o trabalho é um debate de normas, entre normas antecedentes e renormatizações. As normas antecedentes são as resultantes da história anterior do trabalhador e também aquelas que preexistiam (ao ingresso do trabalhador) no local de trabalho. Nesse sentido, vemos que é importante enxergar o trabalho como produção de sentidos outros pelo trabalhador, e não apenas mera execução de tarefas.

Levando em consideração essas dimensões, podemos nos perguntar: o que exatamente é trabalho? Schwartz (2010) apreende com a ergonomia da atividade (Teiger, 2005) que, devido à variabilidade técnica e humana, existe sempre a distinção entre trabalho prescrito e o efetivamente realizado, o que faz com que a concepção do termo se amplie.

Na tradição da ergonomia da atividade (Teiger, 2005), a análise da atividade envolve a compreensão dessa mobilização para esclarecer o que acontece entre a tarefa prescrita e a tarefa realizada. Nas ocupações, as tarefas são prescritas pelo coletivo e há uma tentativa de que quem executa seja o mesmo sujeito que concebe. Isso as difere das empresas capitalistas, em que se busca uma divisão entre concepção e execução do trabalho. Os estatutos internos das ocupações são construídos nas assembleias e têm de ser seguidos por todos. Porém, muitas vezes, os próprios ocupantes burlam as regras coletivas, agindo de modo individualizado. Pode também ocorrer que as regras não consigam abarcar todas as situações sociais e, portanto, é necessário debatê-las constantemente.

A partir dessas contribuições da ergonomia da atividade, Schwartz (2000a) vai propor a ideia de trabalho como uso de si. O trabalho é um objeto histórico, não podendo ser tomado como essência humana. Vão se produzindo historicamente significados diferentes para o trabalho em cada época. A experiência de uma atividade industriosa que envolve um debate de normas e transformação do meio e de si (Schwartz, 2000a) atravessa as épocas e amplia a ideia de trabalho para um campo da vida e do movimento.

Nessa concepção, pode ser uma forma de realização da potência do trabalhador, dependendo das condições históricas. Esse autor defende que o trabalho é um lugar onde o sujeito se manifesta já que, de alguma forma, os trabalhadores burlam as instâncias de vigilância, modificando, até certo ponto, o modo operatório heterodeterminado para adequar os instrumentos de suas atividades laborais e a cadência às suas características. Dessa forma, há um debate de normas subjetivas no trabalho.

Nas ocupações, também ocorrem esses investimentos subjetivos, pois os ocupantes/trabalhadores planejam suas atividades coletivamente nas assembleias e se antecipam aos diferentes desafios e problemas. Além disso, é importante evidenciar as questões subjetivas e políticas presentes em toda atividade de trabalho. Nas ocupações, o sentido do trabalho não é produzir para dar lucro a um capitalista, mas melhorar as condições de vida de forma coletiva. O que não quer dizer que valores mercantis não possam entrar em debate nas ocupações. Nas assembleias das ocupações, podemos perceber quando interesses coletivos divergem das posturas individualistas, em cada discussão sobre os caminhos que serão seguidos nas atividades.

A partir de suas pesquisas, Schwartz (2000b) percebe que o trabalho não molda apenas a natureza exterior do homem, mas que há debates dos indivíduos consigo mesmos presentes na atividade de trabalho. Schwartz afirma que os trabalhadores não podem ser vistos como robôs, aceitando todas as prescrições, nem contendo uma essência contestatória. No trabalho, existe um uso de si, que seria uma convocação do ser em sua totalidade: afetos, com seus amores e ódios; ideais, valores, convicções, desejos; corpo, envolvendo cognição, músculos, ossos e órgãos; relações sociais, onde haveria dialogia, comunicação e reconhecimento; história pessoal. Muitas capacidades são requeridas, além do que explicitamente é prescrito ou observável (Schwartz, 2000b). A partir das lógicas de uso da força de trabalho humana em cada época histórica, podemos conhecer melhor a subjetividade desse ser como alguém em uma liberdade situada. Há, porém, uma tensão contraditória, pois, ao mesmo tempo em que a prescrição requer um uso de si por outro, há também, concomitantemente, o uso de si por si: o "recentramento do meio de trabalho ao redor dos seus possíveis singulares" (Schwartz, 2000b, p. 42).

Em suma: o trabalhador é, em parte, heterodeterminado, mas também subverte esse funcionamento para que a tarefa seja útil à sua construção. O uso de si por outros vai desde as normas econômico-produtivas às instruções operacionais, enquanto o uso de si por si revela compromissos microgestionários (Schwartz, 2004). Segundo o autor, "a negociação dos usos de si é sempre problemática, sempre lugar de uma dramática" (Schwartz, 2004, p. 25). É uma afinação constante entre as normas antecedentes e as singularidades atualizadas pelos fatores determinados anteriormente.

É interessante ver como, nas ocupações, as dramáticas de uso de si acontecem. As pessoas debatem como devem viver e compartilhar o espaço comum. As discussões de regras comportamentais são encaradas não como questões apenas de uma esfera íntima, mas que dizem respeito a todo o coletivo.

A importância do diálogo entre a experiência e os conceitos na transformação e compreensão das situações de trabalho

A experiência de intervenção nas fábricas italianas empreendida por Oddone et al. (1981) foi extremamente importante para o desenvolvimento da perspectiva ergológica de Schwartz (2000c). Eles exercitaram a construção de dispositivos denominados comunidades científicas ampliadas. Nessa concepção, os trabalhadores assumiam a importância de sua experiência para a compreensão e transformação das situações de trabalho, não delegando aos especialistas a responsabilidade sobre a sua saúde e o seu trabalho. Não delegar significa não deixar que mesmo os intelectuais aliados tivessem, no processo de produção de conhecimento, mais poder que os trabalhadores em termos de escolha. Na comunidade científica ampliada, os trabalhadores passam de fontes de informação a participantes ativos na construção do conhecimento e na transformação de suas condições e de sua organização do trabalho.

Certas mudanças conjunturais que ocorreram desde o final da década de 1970 no mundo do trabalho impuseram a necessidade de se repensar o dispositivo comunidade científica ampliada. Para compreender essas mudanças, foi necessário considerar-se o trabalho como atividade humana produtora de normas antecedentes e renormatizações (Schwartz, 2000c).

Existe, no polo do saber de experiência, a convocação dos saberes disciplinares e a sua posterior reconvocação, ou seja, a testagem e avaliação desses conhecimentos, em confronto com os saberes da experiência. Entre o polo da convocação e da reconvocação dos saberes investidos na atividade e o polo dos conceitos acadêmicos existe uma incultura recíproca. Segundo uma concepção de ciência positivista empirista, é necessária, por um lado, a sistematização de conceitos que sejam universais e que, portanto, deixem de lado a história singular de cada objeto de estudo. Por outro lado, no saber prático, há "uma tendência ligada ao retrabalho da experiência e à (micro) fabricação de histórias" (Schwartz, 2000c, p. 43). Toda a dificuldade se dá no sentido de pôr a experiência em palavras.

Schwartz (2000c) avalia que a conceitualização comunidade científica ampliada é inadequada, pois o termo científica pode dar a entender que o conhecimento das atividades pertence à academia. Além do mais, o polo que regularia a articulação entre o polo dos conceitos e o da experiência era o da consciência de classe, da luta emancipatória presente em todos. Mas agora não é mais possível essa consciência de classe fundada na relação exclusiva com os sindicatos. Os parceiros não são somente militantes operários, mas desempregados, profissionais de diversos ramos, consultores e militantes de movimentos sociais. Fez-se necessária, então, a criação de um terceiro polo. A partir dos limites dessa conceitualização, Schwartz (2000c) cria o dispositivo de três polos, como consequência à ideia da renormatização da atividade. Mas quais seriam esses polos?

O primeiro refere-se ao polo dos conceitos, onde se fabricam os conhecimentos formalizados. Nele, encontramos a noção de mercado, as ciências biológicas, as ciências humanas e as diferentes abordagens teóricas sobre o trabalho. Todos os saberes de diferentes disciplinas acadêmicas que contribuam para o estudo das atividades humanas são importantes, não havendo aqui exclusão a priori de uma determinada disciplina em detrimento do poder de outra.

O segundo polo é composto "dos saberes gerados nas atividades", da experiência dos que vivenciam as atividades (Schwartz, 2000c, p. 44). Essas forças de convocação e reconvocação retrabalham modelos, descrições e categorizações que os trabalhadores encontram em seu meio laboral. Aqui podemos falar de como os saberes não são neutros e são convocados, por exemplo, nas ocupações, para ajudar a pensar vários problemas práticos do cotidiano. Os conceitos são ferramentas que podem ser utilizadas pelo coletivo da ocupação. Porém, esses instrumentos devem ser constantemente validados e criticados pelos ocupantes a partir de sua experiência.

O terceiro polo, necessário para a fecundação dos outros dois, é o ético-epistemológico. Nele, há a indicação de como deve ocorrer a colaboração entre os portadores de saberes diferentes, no reconhecimento de que se deve aprender com os outros, já que todos são capazes de exercer sua normatividade. Há desconforto intelectual porque os conceitos, preconceitos e o saber da experiência devem ser sempre tratados e retratados. A impregnação com quem está no outro polo é a que contagia essa disposição desconfortável.

A convocação acontece quando os saberes acadêmicos começam a dialogar com outros saberes investidos na atividade, ou seja, os saberes dos trabalhadores. Ocorre, então, um questionamento mútuo cujo efeito é um retrabalho dos conceitos e teorias, em que se faz necessária uma humildade epistemológica: ambos, os pesquisadores e os trabalhadores, precisam estar abertos a ouvir e a aprender um com o outro (Athayde, Muniz, França, & Figueiredo, 2010).

O primeiro polo é sempre provisório, na medida em que nenhum modelo é absoluto e universal. Assim, a questão que se coloca é: como quebrar o muro que separa os dois saberes? Quando os dois saberes se encontram, um vai mostrar a fragilidade do outro. Essa crítica é positiva, uma vez que não se desqualifica nem a um nem a outro saber. E, além disso, pode incentivar o desenvolvimento dos mesmos. O dispositivo de três polos pode ser assumido como uma máquina que produz e faz circular saberes e conhecimentos conjuntamente.

A operacionalização da pesquisa nas ocupações do movimento dos sem-teto

A pesquisa seguiu a linhagem da observação participante conforme vivenciada por Linhart (1980), na qual o pesquisador é participante do movimento que busca compreender. Sua experiência é fonte importante para a análise, bem como a dos outros participantes que não são pesquisadores profissionais. Interessantes usos desse método vêm sendo realizados no Brasil, como os de Gonçalves Filho (2004) no campo da psicologia social do trabalho. O pressuposto assumido é que o importante não é buscar a neutralidade, mas colocar em análise sua implicação (Rodrigues, Leitão, & Barros, 1992) de modo a compreender como essa relação com o campo produz efeitos na produção de conhecimento. Nesse sentido, o diário de campo foi um instrumento essencial. É nele que foram registrados os dados da pesquisa e as questões, as interpretações, as suposições e os sentimentos produzidos durante a intervenção. O diário de campo é a matéria bruta com a qual se fazem os relatórios sistematizados, que são a comunicação do observador participante com os outros parceiros e com os trabalhadores. Através dele é possível acompanhar não apenas o desenvolvimento das informações sobre o campo de intervenção, mas também as suas próprias mudanças, o desenvolvimento de suas questões, pressupostos e interpretações (Muniz & Vidal, 2001).

Nesse momento, queremos reforçar a importância de um dispositivo composto por dois coletivos de pesquisadores: os que estavam no campo empírico da pesquisa e os que não foram para o campo (Dejours, 2004). Assim, a pesquisadora-apoiadora discutia as suas reflexões sobre o seu envolvimento nas ocupações com dois pesquisadores que nunca haviam ali estado para avaliar e planejar cada passo da pesquisa. Esse foi um momento especial, quando todos se ajudaram a perceber implicações com as instituições, processos inconscientes, falhas involuntárias e bloqueios que estavam impedindo o fluir do trabalho.

Por fim, com a construção de um primeiro relatório parcial da pesquisa, dois moradores e líderes – um da Chiquinha Gonzaga e outro da Zumbi dos Palmares – foram convidados a participar de uma discussão sobre o assunto. Eles leram esse relatório e deram sua opinião, trazendo novos dados importantes para a compreensão das atividades nas ocupações a partir de sua experiência.

A seguir, o trabalho nas ocupações será abordado com o auxílio de alguns conceitos da psicodinâmica do trabalho (Dejours, 2004).

A mobilização da inteligência astuciosa nas ocupações do movimento dos sem-teto

Os moradores nas ocupações planejam e decidem coletivamente como serão realizadas as atividades. Esse planejamento inicial se depara com a margem de imprevisibilidade a ser gerida no momento da execução das ações, necessitando, então, de invenções no processo de execução da tarefa que, talvez, subvertam o planejamento inicial. Essa regulação das variabilidades, que exige criação encharcada da experiência trabalho, está ligada ao que Dejours (1993) chama de inteligência do corpo: uma inteligência em constante ruptura com as normas, as regras, é uma inteligência fundamentalmente transgressiva.

Dejours (1997) mostra alguns resultados de pesquisas da etnografia industrial que estudam os tacit skills (habilidades tácitas). Trata-se de uma habilidade presente em todo operador, da qual não se fala, não se conhece e não se estuda. Ela não é empiricamente observável, e sim deduzida a partir das atividades do trabalhador.

Um funcionamento específico do pensamento e do corpo é expresso pelas atividades de trabalho, escapando da consciência, ainda que seja intencional. Nesse sentido, os atos práticos não estão limitados a uma intervenção sobre a matéria ou as instalações, mas produzem uma transformação subjetiva no operador. Esta é uma construção que provém da experiência verdadeira, e não da experimentação regrada. Em certo grau, é a engenhosidade. Nesse sentido, Dejours começa a esboçar uma análise da "inteligência mobilizada na situação real de trabalho ou ... inteligência da prática do trabalho" (Dejours, 1997, p. 45).

Essa inteligência foi denominada pelos antigos gregos de métis, que tem, etimologicamente, o mesmo núcleo do termo métier (ofício, em francês). É uma inteligência inventiva e criativa, "engajada nas atividades técnicas e ... nas atividades de fabricação (poièsis)". Ela é mobilizada frente às variabilidades, aos imprevistos. "Sua competência é a astúcia. Ela está fundamentalmente enraizada no corpo ... Preocupa-se em poupar esforços e privilegia a habilidade em detrimento do emprego da força. ... é da ordem do não limitado ... age por desvios" (Dejours, 1997, pp. 46-47).

A inteligência astuciosa é uma inteligência do corpo, dos afetos, das afecções, da cognição. Não há a cartesiana separação entre cognição e corpo. É a capacidade de encontrar alternativas de ação, quando ocorre o imprevisto. Envolve sair do protocolo para garantir a produção, encontrar estratégias de escape. O trabalhador só consegue isso quando está impregnado da experiência do trabalho. Não se trata da inteligência que se usa para saber resolver bem um problema com um método aprendido anteriormente, e sim da capacidade de, quando as normas anteriores não forem adequadas para regular um imprevisto, já que a ciência e a técnica não controlam ou antecipam tudo, ser capaz de criar uma outra maneira de trabalhar astuciosamente burlando essas formas de fazer o trabalho.

Esse autor menciona que:

Além das condições psicológicas singulares necessárias para pôr em andamento a inteligência astuciosa, é preciso também reunir as condições sociais: tendo em conta que ela é sempre transgressiva e, pelo menos durante certo tempo, elaborada no espaço psíquico privado, para tornar-se eficaz socialmente, deve passar por uma validação social. Caso contrário, ela permanece confidencial e é eventualmente o objeto de condenação por falta profissional. (Dejours, 1993, p. 134)

O autor ainda acrescenta que "uma das características da inteligência ardilosa é evidentemente o seu poder criador. A astúcia e a engenhosidade avaliam-se nas novas formas que elas fazem surgir" (Dejours, 1993, p. 289).

A análise psicológica do trabalho deveria incluir o uso do corpo como fonte de inteligência. Já o cognitivo, o afetivo e a construção de redes seriam partes da experiência trabalho, porque são eles que o tornam possível.

Essa inteligência da prática ou inteligência astuciosa é fundamental em todas as atividades da ocupação. Estratégias para burlar a repressão do Estado, macetes para transformar um prédio abandonado que foi projetado para ser uma repartição em um lugar de moradia. Essa inteligência exige requisitos sociais para a sua mobilização. Dejours (1993) aponta a importância de uma dinâmica de contribuição e reconhecimento, em que as pessoas possam sentir que têm o direito de contribuir com suas singularidades e se verem reconhecidas pelo coletivo com essa contribuição. Isso é fundamental para a construção de sua saúde e passa pela participação ativa na construção da organização do trabalho, na ocupação. Esses processos incluem o julgamento de utilidade e beleza, a dinâmica da contribuição e do reconhecimento, da visibilidade, da confiança, da arbitragem, da cooperação.

Dejours elabora outra definição de trabalho:

Trabalhar, pois, não é somente executar atos técnicos, é também fazer funcionar o tecido social e as dinâmicas intersubjetivas indispensáveis à psicodinâmica do reconhecimento, que ... é o caráter necessário em vista da mobilização subjetiva, de personalidade e da inteligência. (Dejours, 2004, p. 58)

Mas o que significa isso? O trabalhador se mobiliza por inteiro para fazer a tarefa. Ele precisa sentir que está contribuindo, sendo útil. Mas ele também precisa ser reconhecido tanto pela utilidade de sua atividade (julgamento emitido por instâncias mais altas ou mais baixas na hierarquia existente no seu ambiente laboral) quanto pela beleza de seu trabalho (julgamento emitido por seus pares quanto à dimensão estética; seus pares entendem o quanto é difícil fazer aquela mesma tarefa e quão bem feito e elegantemente o trabalhado foi realizado). Ele está, assim, em uma rede social de produção, sentida mais intensamente quanto mais se empenha no seu trabalho; ou, pelo contrário, quando não exerce bem suas atividades e sente os efeitos disso nessa rede. É nesse sentido que ele faz funcionar o tecido social, construindo sua história e sua identidade, exercitando sua inteligência e afirmando/incorporando seus valores.

Os participantes da ocupação mencionam como o trabalho coletivo vai transformando as pessoas. Muitas delas chegam à ocupação com uma história de humilhação, de desqualificação pessoal por estarem vivendo na miséria, nas ruas. Quando começam a participar das assembleias em que podem falar, participar das tarefas coletivas e perceber que ali têm um lugar singular e que são reconhecidas pelo coletivo, vão se transformando, pouco a pouco, tendo uma relação mais positiva não só com elas mesmas como também com os outros.

Essa cooperação depende de um conjunto de fatores no qual se inclui a confiança. Esse é o fator mais delicado de se construir, pois nunca se pode obrigar uma pessoa a confiar em outra. Porém, quando há uma dimensão ética, ou seja, a construção de regras comuns e coletivas de convivência e de trabalho, a confiança pode se dar.

Dejours (2004) critica a sua concepção anterior de organização do trabalho como imposta totalmente aos trabalhadores, afirmando que essa organização precisa ser construída pelos próprios por meio de mobilização subjetiva que contém esforços da inteligência, para arbitrar coletivamente as contradições entre a organização do trabalho, e a efetiva práxis dessa atividade. Isso exige um espaço para os trabalhadores se integrarem e participarem do debate de opiniões necessárias às deliberações do coletivo. Isso acontece nas assembleias das ocupações, em que as divergências e as controvérsias do coletivo podem ser avaliadas com o objetivo de se construir regras comuns. Todo esse debate indica a importância de apoiar os coletivos de trabalho nas ocupações a construírem e manterem seus espaços públicos de discussão.

Organização do trabalho nas ocupações

No contexto das ocupações, as atividades se dão em um ambiente de extrema variabilidade, submetidas a várias limitações impostas pela espoliação urbana. O contexto econômico-político influencia nas atividades exercidas, pois as condições nas ocupações são extremamente precárias. As decisões a serem tomadas devem levar em conta as relações que os ocupantes têm com a mídia, com os aparelhos de Estado e sua repressão e com os possíveis aliados.

É necessário salientar alguns exemplos dessa precariedade. Na ocupação Zumbi dos Palmares, quando os ocupantes fizeram um mutirão para limpar os oito andares do prédio, todos ficaram com problemas de pele posteriormente. Devido ao abandono do edifício por tantos anos, havia agentes químicos e biológicos que prejudicaram a saúde dos ocupantes. Em termos geográficos, as ocupações se situam também em regiões precárias. A Chiquinha Gonzaga está situada na Rua Barão de São Félix. Essa rua tem um sistema de esgoto muito antigo: quando chove, a região fica alagada de esgoto, que vai carregando o lixo putrefato e as fezes humanas e de animais que se depositam nessa rua.

Dejours (1992, p. 25) designa, por organização do trabalho, "a divisão do trabalho, o conteúdo da tarefa (na medida em que ele dela deriva), o sistema hierárquico, as modalidades de comando, as relações de poder, as questões de responsabilidade".

E nas ocupações, como se dá a divisão do trabalho? Como são determinados os conteúdos das tarefas? Como são o sistema hierárquico, as modalidades de comando e as relações de poder? Quem é responsável pelo quê? É preciso, então, analisar como se dá a organização do trabalho nas ocupações, tomando como ponto de partida essas perguntas.

As tarefas a serem realizadas podem ser divididas em várias fases. A fase inicial envolve a organização e o planejamento da ocupação, que podem durar vários meses. Inicialmente, todos os interessados participam desse planejamento. Quem não o faz não pode se cadastrar para receber um quarto na divisão desses, quando o imóvel for ocupado e devidamente limpo, com água e eletricidade. Muitas vezes, acontece também de os ocupantes ficarem sem água e eletricidade, como no caso da ocupação Quilombo das Guerreiras. O proprietário do imóvel impediu, com seus guardas, a entrada de água e luz por dois meses.

Todos participam dessa etapa, que é feita na forma de reuniões para divisão coletiva das tarefas e também da fase posterior, que é a entrada no prédio e a consequente necessidade de se gerenciar o contato com a polícia, com os proprietários, com a mídia e com os apoios (como estudantes, outros movimentos e sindicatos).

Na fase de planejamento, algumas pessoas são designadas para fazer o cadastro dos futuros moradores, outras para pesquisar possíveis prédios, outras para contatar advogados envolvidos com causas populares e assim por diante. Observou-se, em cada etapa da ocupação, que os ocupantes fazem um uso do que Dejours (1993) chama de "inteligência astuciosa", na medida em que eles têm de resolver problemas e tomar decisões apenas possíveis quando se está encharcado da experiência de ocupar, que aqui está sendo considerada como trabalho. Pode-se citar vários exemplos disso, como a valorização subjetiva e de construção de uma identidade a partir do reconhecimento do coletivo de que cada um tem uma contribuição singular nas assembleias, na própria escolha do prédio e na transformação de prédios que foram projetados inicialmente para sediarem escritórios em prédios de moradia.

Na fase da ocupação em si do prédio, os sem-teto vão chegando em grupos, à noite, e algumas pessoas arrombam a porta. Outras começam a verificar, uma vez dentro do prédio, quais são as condições de permanência no local, como o sistema hidráulico, o sistema elétrico e a limpeza (geralmente muito precária, devido ao abandono por, às vezes, mais de 20 anos). Outros começam já a fazer a limpeza, a determinar quantos quartos existem no imóvel, onde poderia ser a cozinha coletiva. Outros apoios que estão do lado de fora chamam a mídia, pois, quanto mais cobertura da imprensa, menos chance de confrontos diretos e violentos com a polícia. Quem decide quem faz o que são os próprios participantes, de acordo com sua disponibilidade, seus contatos, seus meios, sua vontade e uma certa regulação do coletivo (por exemplo, se uma pessoa se recusar a fazer qualquer tarefa, ela pode começar a causar problemas e eventualmente ser expulsa). Essa regulação pode vir na forma de "Fulano sempre faz tudo. Deixa os outros fazerem mais" ou "Beltrano nunca faz nada. Deixa que dessa vez ele faça".

Em seguida, vem uma fase mais estável, envolvendo litígio jurídico, limpeza do imóvel, reuniões muito frequentes no início, mas com uma queda gradativa, e estabelecimento de comissões de trabalho. Geralmente, na divisão do trabalho, as mulheres ficam com tarefas mais domésticas, como a cozinha coletiva, e os homens se responsabilizam por trabalhos como obras e carregar entulho. Mas sempre há participantes de ambos os sexos nas diferentes comissões, mesmo que, às vezes, como aprendizes. Os mais experientes em um ofício específico determinam o conteúdo das tarefas a serem realizadas com fins comuns. Por exemplo: J. era mestre em hidráulica. Ele era ajudado por S., um senhor idoso, por quem J. tinha carinho e paciência, e por M., uma senhora que não sabia nada do assunto, mas estava sendo ensinada por ambos. Esse aprendizado é muito importante em termos de formação política, fazendo com que se aprenda a trabalhar em grupo, com fins coletivos, assumindo conjuntamente a responsabilidade dos problemas, e tentando discutir, mesmo que desesperadamente, soluções para as mais diversas situações que acontecem neste processo e que demandam encaminhamento pelo coletivo.

Quanto à divisão do trabalho, todos concebem as tarefas e muitos as executam. Porém, não todos. Outras vezes, as mesmas pessoas participam de muitas comissões, o que, no processo de ocupação, não é considerado produtivo. Isso porque os outros, que não querem produzir, têm de ser intimados. Já a pessoa que participa de muitas comissões, seja ela moradora ou apoio, se desgasta em decorrência do sobretrabalho.

Oficialmente, não há sistema hierárquico nas ocupações. Mas na prática, que é o que conta, há relações de poder desiguais devido a vários fatores, como alianças, nível de instrução, nível econômico, capacidade de argumentação e ação etc. As relações de poder na ocupação se dão a partir de uma igualdade aparente, na forma jurídica – todos os moradores têm o mesmo poder de voz e voto –, mas, no plano das forças, pode-se sentir uma desigualdade. O problema é que acabam sendo formados feudos familiares. Mas demonstrações de solidariedade também são vistas. Muitas vezes, há pessoas sem lugar para morar e algum morador permite que elas fiquem no quarto dele durante algum tempo. Há construção de cooperativas de trabalho. Há alianças internas na ocupação.

Schwartz (2009) vai salientar que o uso de si por si no trabalho não é apenas uma astúcia, uma transgressão a normas antecedentes. Ele afirma que, muitas vezes, é necessário se contrapor a normas anteriores, mas também é importante pensar nesses momentos de história em que surgem os vazios de normas, situações em que não há normas para trabalhar seja porque um acontecimento faz com que as normas antecedentes não se adaptem à nova realidade, seja porque as normas existentes se anulam mutuamente. Nessas situações, é necessária a invenção de novas normas. Isso envolveria pensar que, além da resistência a um modo de viver e trabalhar anterior, vive-se a possibilidade de afirmar uma maneira diferente de viver juntos, com novas normas. Assim, propõe ele que a atividade comporta reservas de alternativas para a criação de uma forma distinta de viver coletivamente. Esse seria o elemento mais importante do uso de si por si, mais que resistência, afirmação de novas possibilidades, de novos modos de vida e trabalho.

As ocupações também são o lugar de expressão de diferentes formas de engajamento. Para alguns, tudo o que envolve o coletivo lhes diz respeito pessoalmente. Eles defendem, trabalham, organizam o coletivo. Estão sempre nas comissões e frequentemente se sobrecarregam. Para outros, as assembleias nunca decidem nada, as discussões são chatas. Então, por que ir à assembleia? Nunca aparecem nos espaços coletivos de discussão e trabalho. As ocupações são, para esses, um grande condomínio, onde a questão política passa ao largo. Portanto, assim como Dal Magro e Coutinho (2008) já tinham observado em sua pesquisa em cooperativas, os processos de autogestão enfrentam várias contradições e dificuldades, o que não significa que não tenham um papel importante como estratégia coletiva para enfrentarem os processos de espoliação urbana capitalista.

Considerações finais

Neste artigo, parte-se do pressuposto de que as ocupações são situações de trabalho e que ocupar envolve trabalhar, já que, segundo Schwartz (2000b), é uma atividade que diz respeito ao uso de si por outros e uso de si por si. Os ocupantes vão adquirindo uma formação política por meio tanto das assembleias, pela convivência com outros moradores, quanto pelas atividades que lhes foram atribuídas pelo coletivo.

A maioria dos ocupantes entra em um processo de ocupação por necessidade de moradia e encontra um trabalho de aprender a fazer tarefas coletivamente. Aprende a defender suas posições dentro das assembleias e a conviver, por vezes de maneira precária, com os outros.

É importante notar que, segundo a definição de Schwartz (2000a), a atividade como debate entre normas antecedentes e renormatizações também ocorre nas ocupações. Cada morador chega com uma história de vida, com uma determinada forma de enxergar o mundo, e tem de se deparar, muitas vezes, com um grupo já constituído e que elaborou os estatutos das ocupações coletivamente. O novo ocupante, então, precisa apreender essas normas e renormatizá-las, para poder contribuir com sua singularidade no processo coletivo. Esse debate de normas está relacionado ao debate de valores de toda sociedade. Pode-se dizer que, na ocupação, estarão presentes valores de autonomia e de solidariedade que se defrontam com os valores de individualismo e autoritarismo.

A breve experiência de encontro de discussão do relatório parcial de pesquisa com dois líderes das ocupações mostrou a riqueza que pode provir de uma experiência mais permanente de um dispositivo a três polos, como tem sido operacionalizada no Brasil por Brito, Athayde e Neves (2003) através do que eles denominam Comunidade Ampliada de Pesquisa. Nesta pesquisa, observamos os dispositivos coletivos já existentes, mas poderia ser interessante construir vários encontros sobre o trabalho, entre pesquisadores e moradores da ocupação, para produzir uma reflexão sobre a atividade.

Observamos a potencialidade das ocupações, quando há uma transversalidade do trabalho entre os moradores das ocupações citadas, no sentido de que não existem hierarquias e as tarefas são realizadas através de decisões e execuções do coletivo. Uma análise do trabalho na ocupação permite ver as potencialidades e dificuldades presentes nesse processo. Apontamos como tal processo acontece de forma não idealizada, com todas suas contradições e limites, mas também com suas possibilidades de transformação, já que essa experimentação produz interferências nos modos de vida protagonistas da história coletiva.

Recebido em: 14/07/2009

Revisão em: 13/03/2011

Aceite em: 10/04/2012

Patrícia Tomimura é Psicóloga e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (2007). Email: patriciatomimura@gmail.com

Hélder Pordeus Muniz é Pós-doutor em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Doutor em Engenharia de Produção (COPPE/UFRJ), Mestre em Educação (UFPB), Graduação em Psicologia (UFPB). Professor Associado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Endereço: Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/nº. São Domingos. Niterói/RJ, Brasil. CEP 24210-201. Email: heldermuniz@uol.com.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Ago 2012

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2009
  • Aceito
    10 Abr 2012
  • Revisado
    13 Mar 2011
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