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Invisíveis e subalternos: as representações sociais do indígena

Invisible and subordinates: the social representations of indigenous

Resumos

O objetivo deste artigo é articular e discutir como os veículos de mídia de massa, no caso da demarcação e desocupação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, em função de uma lógica própria, elaboram os discursos e constroem uma realidade particular, independente dos atores sociais envolvidos. Este artigo apresenta como as situações potencialmente comunicativas, geradas pela mídia, assumem um discurso de autoridade que, mesmo de forma monológica, passam a funcionar como contratos de comunicação, definindo quando e quem deve falar. Realizada em 266 (n=266) notícias publicadas por um jornal impresso de circulação nacional entre os anos de 2005 e 2009, a pesquisa teve como suporte de análise o software Alceste, o que possibilitou à interpretação dos dados uma perspectiva metodológica particular aplicada ao campo dos estudos sobre o preconceito e, em especial, ao estudo das representações sociais nele envolvidas.

Representações Sociais; mídia; invisibilidade; subalternidade; indígena


The aim of this paper is to articulate and discuss how the mass media outlets, in the case of demarcation and eviction of the Indian Reserve Raposa Serra do Sol, according to its own logic, prepare speeches and construct a particular reality, regardless of the social actors involved. This article shows how the potentially communicative situations generated by the media, take a discourse of authority, so that even monological operate as contracts, sets when and who should speak. Held in 266 (n = 266) news published by a newspaper of national circulation between the years 2005 and 2009, research was supported by the analysis software Alceste, which allowed the interpretation of data a particular methodological approach applied to the field studies of prejudice and, in particular, the study of social representations involved in it.

Social representations; media; invisibility; subalternity; indigenous


ARTIGOS

Invisíveis e subalternos: as representações sociais do indígena

Invisible and subordinates: the social representations of indigenous

Claudomilson Fernandes BragaI; Pedro Humberto Faria CamposII

IUniversidade Federal de Goiás, Goiânia, Brasil

IIPontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, Brasil

RESUMO

O objetivo deste artigo é articular e discutir como os veículos de mídia de massa, no caso da demarcação e desocupação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, em função de uma lógica própria, elaboram os discursos e constroem uma realidade particular, independente dos atores sociais envolvidos. Este artigo apresenta como as situações potencialmente comunicativas, geradas pela mídia, assumem um discurso de autoridade que, mesmo de forma monológica, passam a funcionar como contratos de comunicação, definindo quando e quem deve falar. Realizada em 266 (n=266) notícias publicadas por um jornal impresso de circulação nacional entre os anos de 2005 e 2009, a pesquisa teve como suporte de análise o software Alceste, o que possibilitou à interpretação dos dados uma perspectiva metodológica particular aplicada ao campo dos estudos sobre o preconceito e, em especial, ao estudo das representações sociais nele envolvidas.

Palavras-chave: Representações Sociais; mídia; invisibilidade; subalternidade; indígena.

ABSTRACT

The aim of this paper is to articulate and discuss how the mass media outlets, in the case of demarcation and eviction of the Indian Reserve Raposa Serra do Sol, according to its own logic, prepare speeches and construct a particular reality, regardless of the social actors involved. This article shows how the potentially communicative situations generated by the media, take a discourse of authority, so that even monological operate as contracts, sets when and who should speak. Held in 266 (n = 266) news published by a newspaper of national circulation between the years 2005 and 2009, research was supported by the analysis software Alceste, which allowed the interpretation of data a particular methodological approach applied to the field studies of prejudice and, in particular, the study of social representations involved in it.

Keywords: Social representations; media; invisibility; subalternity; indigenous.

Introdução

Apesar da ideia de classificação humana por raça ser ultrapassada, essa noção continua a estruturar a percepção que se tem dos outros e a operar o discurso de exclusão, ainda mais ou menos camuflada, mas, sobretudo, naturalizada, significando que o discurso não racializante de grupos humanos tem se constituído na construção de novas Representações Sociais.

Diante desse novo cenário, os estudos sobre o preconceito étnico racial têm apresentado resultados que apontam transformações na sua forma de expressão (Gaertner & Dovidio, 1986; Katz & Hass, 1988; Lima & Vala, 2004; McConahay & Hough, 1976; Pettigrew & Meertens, 1995; Turra & Venturi, 1995), cujos resultados têm demonstrado que as pessoas cada vez mais se preocupam em não ferir as normas antirracistas, preservando desse modo sua autoimagem de pessoa igualitária, ao mesmo tempo em que buscam utilizar a diferenciação intergrupal como forma de atender à norma.

Resultados dos estudos sobre o preconceito (Pettigrew & Meertens, 1995; Turra & Venturi, 1995) apontam na direção de uma clara interação entre modificações ambientais e alterações comportamentais. Nesse cenário de transformação, as pesquisas sobre o papel da comunicação como suporte básico na construção das Representações Sociais parecem pertinentes, à medida que a ideia de legitimação construída em razão da mídia define cada vez mais o lugar da fala, enquanto ato comunicativo primordial, assegurando e definindo quem deve e pode falar.

Dessa forma, o sentimento de que os sujeitos se adequam às normas antirracistas e praticam um discurso não racializante não reflete a realidade, pelo menos quando se fala dos meios de comunicação de massa, cujo lugar, pelo menos ao que parece, não é o lugar de todos, ao contrário, é o lugar de alguns, cujas situações potencialmente comunicativas são, geralmente, tratadas como contratos de comunicação, corroborando a ideia de que quem fala nos veículos sabe mais do que quem apenas consome a informação.

Nesse sentido, o processo de demarcação e desocupação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, noticiado em larga escala pela mídia, sobretudo pela mídia impressa, entre os anos de 2005 e 2009, se insere como situação potencialmente comunicativa, visto que, desde a década de 1970, a demarcação da reserva vem sendo discutida.

Alegado em todos os âmbitos da justiça, o referido processo foi arrolado por décadas e finalmente foi colocado em pauta pelo Tribunal Superior Federal (TSF) nos anos de 2005, sendo concluído na década de 2009. Em relação a esse fato, além dos ministros do Superior Tribunal, estavam envolvidos no processo os rizicultores da região de Normandia, Estado de Roraima, e os indígenas da Sociedade dos Indígenas Unidos de Roraima (Sodiur), ambos favoráveis à manutenção dos arrozeiros e à demarcação da reserva em ilhas, e, do outro lado, os indígenas do Conselho Indígena de Roraima (CIR), favoráveis à demarcação em terras contínuas, cujo resultado acarretaria a desocupação da reserva de aproximadamente 11 milhões de Km².

A aprovação pelo TSF da reserva em terras contínuas acarretou a desocupação conflituosa da área e a retomada da reserva pelos indígenas, sobretudo da etnia macuxi. Atualmente, a reserva e seus povos indígenas vivem uma situação de abandono, já que, com a saída dos rizicultores na década de 2010, todo o investimento no cultivo do arroz e na criação de bovinos foi desmobilizado e se deixou a terra para os povos indígenas com uma série de restrições legais, em razão das determinações do TSF e em função da falta de investimento do governo federal.

O caso da reserva indígena Raposa Serra do Sol, que teve cobertura midiática por quase meia década, deixa de ser notícia em função daquilo que se denomina de lógica própria da mídia, ou seja, a noção de que a mídia elabora os discursos e constrói uma realidade particular, independente dos atores sociais envolvidos.

Comunicação e preconceito

Apesar da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que condena há mais de cinquenta anos todas as formas de discriminação; da declaração condenatória da Unesco sobre as classificações raciais e da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas, que reconhece e estabelece aos povos indígenas o direito coletivo à terra, o uso dos recursos naturais e a autodeterminação política, indicam, de um modo geral, uma alteração na expressão do preconceito.

Quando essa situação é observada nos veículos de comunicação, os aspectos regulatórios, nomeadamente da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, não se confirmam, e o preconceito, que vem assumindo novas expressões, aparece agora mascarado de mudanças qualitativas e operativas, passando para o nível político, isto é, tornando-se o princípio de uma ação e de uma força política, operacionalizando-se de modo institucional (Wieviorka, 1993).

Nesse estágio, essa força política capitaliza as opiniões e os preconceitos, mas também os orienta e desenvolve. Reclama-se de elementos doutrinários, que deixam de estar marginalizados e dota-se de intelectuais orgânicos, inscrevendo-se em uma tradição ideológica, ou funda-a, ao mesmo tempo em que apela no sentido de medidas concretas de discriminação ou de um projeto de segregação racial. (Machado, 2000. p. 9).

Esse salto de um plano não-político para um plano político coloca as atitudes e discursos preconceituosos não apenas nas ações de indivíduos, grupos ou instituições isoladas, mas configurando-se como um fenômeno de proporções mais graves, por via da intervenção de "agentes de institucionalização ativa".

Aqui os meios de comunicação de massa se prestam ao papel de propor "(re)combinações de conteúdos arcaicos sob pressão das forças do grupo, mas também como produtos da ciência" (Spink, 1993. p. 6), fazendo circular livremente através dos veículos de mídia um discurso legitimado, apesar de serem essencialmente monológicos (Thompson, 2006).

Representações sociais e comunicação

Moscovici (1978), em seu livro La psychanalyse, son imagem et son public, com o objetivo de estudar os processos psicossociológicos existentes e subjacentes ao modo como a Psicanálise foi transformada em conhecimento do senso comum, descreve as representações sociais como "sistemas de valores, noções e práticas que proporcionam aos indivíduos os meios para orientar-se no contexto social e material ... que tornam inteligíveis a realidade física e social e integram-se em um grupo ou em uma relação cotidiana de intercâmbios" (Moscovici, 1978, p. 79).

Outro aspecto importante na compreensão do conceito de representação social é o seu papel na formação de condutas (Gomes, 2006), o que, dito de outro modo, significa que ela modela o comportamento e justifica sua expressão (Amaral, 1997; Poeschl, 1995), situando os sujeitos de forma simbólica nas relações sociais e nas categorias decorrentes das características da sociedade.

Nesse aspecto, a ideia de modelagem do comportamento e da ação coloca a Comunicação Social próxima da Teoria das Representações Sociais subsidiando em partes ou no todo o que Rouquette (1996) define como a compreensão dos processos de formação de conduta e a circulação das Representações Sociais nas sociedades contemporâneas, em que o fluxo comunicativo é o resultado global derivado da rede de interações que une as pessoas umas às outras (Wolf, 1999).

A partir da ideia de que os mass media descrevem e precisam a realidade exterior, apresentando à audiência uma lista daquilo sobre o que é necessário ter uma opinião (Shaw, 1979), e, portanto, prescrevem a ação, logo representam um guia de leitura da realidade, dão às Representações Sociais o que Campos (2005) denomina de dimensão normativa, ou seja, as Representações Sociais definem o que é para um grupo e não para o outro, assim como a Comunicação.

Nesse sentido, a ideia de que o discurso da mídia é o discurso do senso comum - elaborado e veiculado como verdade, em razão do princípio da autoridade - marca definitivamente a relação entre coisa e signo (objeto e representação) (Campos, 2005), pois ambos, representação e comunicação, são essencialmente enunciados muito mais do que representações, definidos cada vez mais pelo contexto comunicacional.

Rouquette (1999), ao discutir o papel da comunicação na construção das Representações Sociais, afirma que as Representações Sociais são elaboradas e transmitidas a partir da comunicação, indicando um caminho de análise, oferecendo à Comunicação Social um lugar privilegiado na compreensão das Representações Sociais.

Método, amostra e procedimentos

Neste estudo, demonstra-se o que representa uma perspectiva metodológica particular, aplicada ao campo dos estudos sobre o preconceito e, em especial, ao estudo das representações sociais nele envolvidas. Tomando de empréstimo a abordagem teórica proposta pela Escola de Genebra no estudo das representações sociais, um primeiro aspecto a ser destacado é a noção de consenso. Trata-se da ideia de "saber partilhado", e, sobretudo, da parte consensual - comum a todos ou quase todos - deste mesmo saber, que pode ser qualificada pelo menos de duas maneiras: primeiro, o consenso como um acordo entre os indivíduos manifestado pela similitude (proximidade ou não) das respostas - usualmente estudado pela abordagem empreendida pela teoria do Núcleo Central -, e, segundo, como partilha de pontos de referência, "tomadas de posição" que exprimem, tanto estatística quanto conceitualmente, a diferença. Assim, pode-se pensar que o metassistema social (constituído pelos grandes sistemas do pensamento social, os grandes "sistemas de crenças" ou sistemas "ideológicos" - de la pensée sociale -, bem como o sistema institucional) se constitui em pontos de referência comum, portanto organizadores de um consenso que permite diferentes posicionamentos.

Devemos salientar que, ao reintroduzir a diferença como foco de análise e compreensão dos fenômenos representacionais coletivos, não se trata de "variações" individuais no sentido exato do termo, não se trata em absoluto de diferenças do tipo traços de personalidade, mas, antes, de "posições individuais" ordenadas (regidas) pelas "appartenances" ("pertenças") sociais, pelo contexto social, por "regularidades de ordem social".

Com um corpus textual de 266 notícias (n=266) publicadas por um jornal impresso de cobertura nacional, a pesquisa realizada neste estudo caracteriza-se como qualitativa documental de caráter descritivo, em que foram analisadas todas as matérias sobre o evento de demarcação e desocupação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol publicadas no período de janeiro de 2005 a dezembro 2009.

As matérias foram obtidas junto ao banco de dados do jornal. Foi montado um corpus, no qual cada matéria (considerada como uma unidade de contexto inicial – UCI) foi antecedida por uma linha de comando que continha cinco categorias: ano (ano 1 = 2005; ano 2 = 2006; ano 3 = 2007; ano 4 = 2008 e ano 5 = 2009); grupos (grupo 1 = indígenas; grupo 2 = arrozeiros; grupo3 = políticos e grupo 4 = STF); local (local 1 = Roraima; local 2 = Brasília; local 3 = São Paulo e local 4 = outros); motivos (motivo 1 = demarcação contínua; motivo 2 = demarcação em ilhas; motivo 3 = questões jurídicas e motivo 4 = tríplice fronteira) e a categoria tema (tema 1 = preconceito; tema 2 = violência e atitudes violentas; tema 3 = ocupação; tema 4 = soberania e tema 5 = cronologia).

Os dados foram analisados com o auxílio do programa Analyse Lexicale par Contexte d'un Ensemble de Segments de Texte (Alceste) (Reinert, 1998), permitindo uma análise lexicográfica do material textual e oferecendo contextos textuais (UCE) que são caracterizados pelo seu vocabulário e também por segmentos de textos que compartilham esse vocabulário. O programa efetua ainda uma análise geral do material, oferecendo análises complementares denominadas tri-croisé (Nascimento & Menandro, 2006).

O corpus coletado foi dividido em classes de palavras que podem indicar as representações sociais ou ao menos campos de imagens sobre um dado objeto (Camargo, Goetz, & Barbará, 2005; Nascimento-Schulze & Camargo, 2000), permitindo em um primeiro momento uma classificação hierárquica descendente (CHD), que consiste em separar as unidades de contexto elementar em várias classes do vocabulário que as compõem, de tal forma que seja obtido o maior valor possível numa prova de x2, apresentando também as oposições entre as classes sob a forma de uma árvore (dendograma).

Em um segundo momento da mesma análise, foi realizada a Análise Fatorial de Correspondência (AFC), cujo cruzamento entre o vocabulário (considerando a frequência de incidência de palavras) e as classes gera uma representação gráfica em plano cartesiano, na qual são vistas as oposições entre classes ou formas (Nascimento & Menandro, 2006), possibilitando visualizar sob a forma de um plano fatorial, as oposições resultantes da CHD. Mediante essa análise, torna-se possível uma projeção das palavras analisadas que considera também as variáveis suplementares.

Resultados e discussão

A análise do corpus total, obtida a partir das notícias, tendo como motivação temática o processo de demarcação e desocupação da reserva Indígena Raposa Serra do Sol demonstra a ocorrência de seis classes em dois eixos. O primeiro que enfatiza a principal questão envolvente no processo: a ocupação produtiva e as implicações decorrentes (figura 1).

A ocupação produtiva identificada nos eixos 1, 2 e 5 indica que os atores sociais envolvidos ainda são os da região do conflito. Políticos e indígenas da Sociedade Indígena de Roraima (Sodiur), favoráveis à demarcação das terras indígenas em ilhas, são os principais interlocutores. A fala desses atores é traduzida, segundo as análises, em atitudes de violência e resistência à desocupação. A ideia de ocupação produtiva justiça a fala e os atos.

Em um segundo eixo (figura 2) organiza-se o tema ordenamento jurídico institucional. As classes de palavras identificadas nos eixos 3, 4 e 6 demonstram um deslocamento do centro do conflito e uma presença definitiva do órgão regulador máximo do poder judiciário brasileiro, o Supremo Tribunal Federal. Os discursos presentes nas classes desse eixo indicam que a questão da demarcação e desocupação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol (RR), que originalmente se organizava em torno de uma ocupação produtiva, agora é institucional. A ideia de tutela indígena é reforçada. Em que pese a importância dos aspectos econômicos defendido pelos políticos (classe 3), o que prevalece é um ordenamento jurídico institucionalizado do conflito (classe 6).

Há, portanto, uma mudança qualitativa e operativa do discurso, passando de um nível político e econômico para um nível institucional (Wieviorka, 1993). Dito de outra forma: os elementos do conflito agora são doutrinários, fundantes, dotados de medidas institucionais e abrangentes, capazes de determinar as regras de outros conflitos; criam-se regras por via dos agentes de institucionalização ativa.

Em um segundo nível de análise, as diferentes posições grupais em relação à representação social do conflito em razão da Classificação Hierárquica Descendente são verificadas através do plano fatorial. A figura 3 apresenta a projeção das palavras analisadas com associação das variáveis suplementares distribuídas nos diferentes campos. Verifica-se que o discurso dos sujeitos se distribui nas diversas zonas, de modo não-aleatório e corresponde às formas específicas das classes.

Aqui se divide horizontalmente o plano, de forma que, na parte superior esquerda desse campo, encontram-se a classe 6 (ordenamento jurídico), juntamente com as variáveis suplementares (questões jurídicas, retirada dos não-indígenas), onde o ator social mais representativo é o Superior Tribunal Federal (STF). Na parte superior direita, a classe 2 (manifestação / protestos dos atores) e a classe 5 (conflito armado), as variáveis suplementares são os anos de 2005 e 2006. Na interseção entre os dois planos superiores, destaque para as variáveis "soberania" e "Brasília", indicando que ambas as variáveis têm importância para todas as classes localizadas na parte superior do plano.

A variável "violência", que pertence exclusivamente ao campo superior direito, se aproxima do campo inferior direito, o que significa dizer que: os discursos de violência se aproximam da classe 1 (ocupação produtiva).

Na linha divisória entre a parte superior e inferior esquerda, encontra-se a classe 3 (proteção da economia), cuja localização explica os discursos de ordenamento jurídico do conflito, isto é, a ordenação do conflito numa perspectiva jurídica considerou em grande parte os aspectos econômicos que a decisão judicial acarretaria, explicando dessa forma o pertencimento da classe 3 tanto ao quadrante superior esquerdo como ao quadrante inferior esquerda. Ficando, portanto, na linha divisória entre os dois lados do plano cartesiano.

Na parte inferior do mesmo plano se encontram a classe 4 (dimensões do conflito) e a classe 1 (ocupação produtiva), do lado esquerdo e direito, respectivamente, assim como as variáveis suplementares dessas duas classes.

As cronologias do conflito, como também o ano de 2008, compreendem as principais variáveis da classe 4. A ocupação produtiva tem como principais variáveis o Estado de Roraima como principal palco do conflito para essa classe, um discurso de disputa pela posse da terra e ainda os políticos como os principais interlocutores desse discurso.

A variável demarcação contínua, cujo discurso é preponderante nos indígenas vinculados ao Conselho Indígena de Roraima (CIR), aparece no lado inferior direito do plano, tendo pouco destaque em relação às demais variáveis do plano fatorial de correspondência. No nível de análise da ancoragem das diferenças individuais na representação social do conflito, sabemos que as representações sociais não expressam uma forma única de pensar, pois, no seu interior, cabem modulações individuais geradas nas diversas inserções das pessoas, nas suas relações com a sociedade e nas suas experiências particulares de vida.

A ancoragem das representações sociais se insere nas variáveis psicossociológicas que incluem os aspectos de natureza sociais, cognitivas, culturais e econômicas, dentre outros, que estão presentes no cotidiano. Para Doise, Clemence e Lorenzi-Cioldi (1992), a ancoragem refere-se à análise do que ocorre quando os atores sociais, coletivamente, tomam um posicionamento no panorama social, posição definida em comparação com o posicionamento de outros grupos.

Nesse nível de análise, as representações sociais se ancoram nas hierarquias de valores, nas crenças, nas concepções que os sujeitos constroem, na sua relação entre grupos e nas suas experiências sociais partilhadas com outros indivíduos, em função de sua pertença e posição, que influenciam os demais grupos na criação de uma representação social.

Os resultados deste estudo revelam, em um primeiro momento, um discurso de ocupação produtiva (classes 1, 2 e 5), que, quando noticiado, justifica e contextualiza a ação. Há um extrapolamento dos espaços e dos sentidos (Spink, 2006), à medida que as ações de protestos e manifestações se articulam com a produção, justificando e naturalizando o discurso, as atitudes e a ação, atribuindo-lhe um sentido de permissão. Assim, a notícia que torna algo socialmente construído como natural / real, circulando sentidos que se contrapõem aos sentidos resistentes (ocupar, mesmo que produtivamente), dá a exata noção da ideia de conflito. Os atores e os seus discursos são construídos numa tentativa de convencimento, cujas ações são, agora, justificadas pela naturalização do fato.

Em um segundo momento, surge uma dimensão jurídica que regula o conflito, envolvendo as etnias indígenas e os não-indígenas, revelando a ideia de uma tutela que parece permanecer inalterada em relação aos primeiros. Os indígenas, que historicamente não tiveram vez, agora também não têm voz. A tomada de posição da mídia (leia-se Folha de São Paulo), de incluir ou excluir este ou aquele discurso, buscando consolidar determinados conteúdos, resultantes dos produtos sociais, passa pela lógica da agenda setting, transformando esses discursos em autônomos (Spink, 2006), como se fossem desvinculados de uma situação real, gerando consequências inevitáveis.

Nesse sentido, os meios de comunicação de massa (televisão, rádio e jornais) prestam serviço na construção da memória (Jodlowski, 2005), e em especial da nossa memória, já que parece improvável lembrar daquilo que os outros não lembram. São eles (mass media) que expandem as possibilidades humanas de imprimir, preservar e transmitir sentidos objetivados.

Dessa forma, o caso da Raposa Serra do Sol se insere naquilo que Thompson (2006) denomina de quase-interação mediada, ou seja, relações mediadas por veículos de mídia de massa (rádio, televisão, jornal), onde a reciprocidade é mínima e a ação do autor é monológica. O que, dito de outro modo, significa que são comunicações monolocutivas (Ghiglione, 1984), onde o veículo de massa estabelece os níveis das relações entre os sujeitos supondo uma validação a priori, tratando as situações potencialmente comunicativas como se fossem, imaginariamente, contratos de comunicação.

Um terceiro aspecto revelado pelos resultados diz respeito à atribuição de um sentido de invisibilidade do indígena. As notícias, sucessivamente veiculadas, circundam atores e acontecimentos num emaranhado de informações que parece omitir e definir, intencionalmente, quem é o protagonista e quem são os coadjuvantes do relato. Se forem congeladas, deixam de ser notícias (Spink, 2006), por isso, precisam ser reinventadas, como num processo de atualização. Não fazem parte da pauta jornalística notícias sobre alguém ou sobre determinado grupo considerado inexpressivo, representado (tutelado), ou invisível. Também aqui a ideia da agenda setting prevalece.

Retomando a ideia da invisibilidade, outra dimensão revelada pelo estudo se refere ao fato de essa invisibilidade ser compreendida a partir do silêncio discursivo a que determinados grupos são submetidos. A hipótese interpretativa, nesse sentido, é a da espiral do silêncio.

A ideia central dessa hipótese situa-se na possibilidade de que os agentes sociais podem ser isolados, caso expressem publicamente opiniões diferentes daquelas que o grupo majoritário considere como opiniões dominantes. Isso porque existe uma tendência de acompanhar a opinião da maioria, talvez por medo do fator isolamento, e pelo fato de, em geral, a sociedade exigir uma certa conformidade com o tema em discussão (Noelle-Neumann, 1995).

A possibilidade de um grupo isolado, que discorda de uma opinião expressa nos meios de comunicação de massa, manifestar sua visão de um fato é absolutamente reduzida (Tuzzo, 2005), havendo uma tendência desse grupo minoritário, silenciar-se.

Se a agenda setting define a pauta e os critérios de relevância e plausibilidade daquilo que deve ser notícia (ou não), também a espiral do silêncio explica, a partir de uma omissão deliberada ou interpretação específica de determinado evento, o silêncio de determinados sujeitos (ou grupos) em relação a esse evento. Ou seja, a ideia de invisibilidade pode ser atribuída a uma condição mediática imposta pelos mass media.

Considerações finais

Os aspectos aqui apontados e discutidos indicam duas novas questões de interesse: uma que se refere ao fato de determinados grupos sociais silenciarem-se, o que significa dizer que existem discursos não revelados e, portanto, notícias não veiculadas no caso da Reserva Raposa Serra do Sol. Notícias que a Folha de S. Paulo não publicou, ou discursos de determinados atores (ou grupos), que não foram noticiados por não serem consideradas notícias?

E uma segunda questão que diz respeito à invisibilidade. Duschatzky e Skliar (2001), ao problematizarem a relação identidade e diferença, apontam três versões discursivas sobre o outro diferente. O outro todo mal, cuja identidade é centrada, fixa, homogênea e estável. O outro como alguém a tolerar, cuja visibilidade "não desperta desprezo ou interesse" (Guareschi, 2006), cuja marca identitária é neutra. E, por último, o outro como marca cultural, em que as diferenças identitárias (gênero, etnia, dentre outros) são únicas, onde a diferença é definidora da sua totalidade, ou suposta totalidade, cuja radicalização leva ao exagero de uma identidade, encerrando-a na diferença. (Guareschi, 2006). "Deste modo permaneceriam invisíveis nas relações de poder e conflito" (Duschatzky & Skliar, 2001, p. 128).

A possibilidade interpretativa da invisibilidade e do silêncio indígena sugere outros olhares sobre a questão. Seriam essa invisibilidade e esse silêncio consequências do fato dos grupos indígenas serem tutelados, portanto legalmente incapazes? Ou seria aquilo que Spivak (1994) denominou de subalternidade, esta autorrepresentação não escolhida pelos sujeitos (ou grupos), mas imposta a um conjunto de indivíduos de forma arbitrária, em que os processos políticos, associados às formas de linguagem e de construção identitária, colocam os grupos minoritários em situações de opressão, impossibilitando a reivindicação dos espaços abertos pela democracia?

Ou seja, o que Spivak (1994) denomina de "sujeitos subalternos" são todos aqueles cuja voz não transita entre o locutor e o interlocutor, não estabelecendo, portanto, uma relação dialógica. Dessa forma, os resultados apontam na direção de um silêncio, típico dos grupos invisíveis, subalternos.

Assim, a invisibilidade e subalternidade do indígena no âmbito da mídia parece indicar um conjunto de representações que permeia a memória coletiva dos sujeitos não-indígenas, cuja memória é reavivada pelos veículos midiáticos, ou seja, mais do que uma disputa entre grupos, a relação entre indígenas e não-indígenas está toda ela construída a partir de situações potencialmente comunicativas e, portanto, monolíticas, todavia tratadas e construídas como se fossem contratos de comunicação.

Dito de outra forma, significa dizer que aquilo que se veicula nos veículos de mídia é validado a priori e definidor de identidades, mas, sobretudo, definidor de quem deve ser pauta da notícia.

Recebido em: 17/01/2012

Revisão em: 03/04/2012

Aceite em: 30/04/2012

Claudomilson Fernandes Braga é Doutor em Psicologia pela Pontífica Universidade Católica de Goiás. Professor Adjunto da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás. Endereço: Av. C5 n.45 quadra 34 lote 03 – Jardim América. Goiânia/GO, Brasil. CEP 74265-050. Email: milsonprof@gmail.com

Pedro Humberto Faria Campos é Doutor em Psicologia pela Université de Provence (França). Professor Titular do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia (Mestrado – Doutorado) da Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUC Goiás. Email: phd2001@terra.com.br

Anexos




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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    2012

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2012
  • Aceito
    30 Abr 2012
  • Revisado
    03 Abr 2012
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