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Representações e estratégias identitárias na experiência do artista

Identity representations and strategies in the artist's experience

Resumos

O objetivo deste artigo é compreender os processos de construção das representações e estratégias identitárias utilizadas por artistas em três setores da cultura no Estado de São Paulo. Foram combinadas duas estratégias de coleta de dados: um survey e entrevistas em profundidade. Ao todo, 92 artistas aceitaram participar desta pesquisa. Os dados foram analisados com base em níveis de categorização e com o suporte de software específico. Os resultados mostram que o núcleo da representação identitária artística é formado pela auto-percepção do ar-tista como profissional vocacionado, dedicado à construção de uma obra capaz de mobilizar o outro e contribuir para um gênero estético. Já as estratégias identitárias mais comuns utilizadas são a exposição pública, o engajamento e desengajamento contínuo de projetos de duração limitada, o investimento no próprio desenvolvimento pessoal e estratégias de relacionamento com o público.

identidade profissional; estratégias identitárias; trabalho e identidade; tra-balhadores artísticos


The paper's purpose is to understand the identity representation construction processes and identity strategies used by artists in three cultural segments in the State of São Paulo. Two data-gathering strategies have been combined: a survey and in-depth interviews. A total of 92 artists accepted taking part in the study. The data were analyzed based on categorization lev-els and with the support of specific computer software. The results show that the core of artis-tic identity representation is formed by the artist's self-perception as a professional with a calling, dedicated to the construction of a body of work capable of mobilizing others and con-tributing to an aesthetic genre. The most frequent identity strategies include public exposure, continuous engagement and disengagement from limited duration projects, investment in their own personal development, and public relationship strategies.

professional identity; identity strategies; work and identity; artistic workers


ARTIGOS

Representações e estratégias identitárias na experiência do artista

Identity representations and strategies in the artist's experience

Pedro F. BendassolliI; Jairo Eduardo Borges-AndradeII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, Brasil

IIUniversidade de Brasília, Brasília – DF, Brasil

RESUMO

O objetivo deste artigo é compreender os processos de construção das representações e estratégias identitárias utilizadas por artistas em três setores da cultura no Estado de São Paulo. Foram combinadas duas estratégias de coleta de dados: um survey e entrevistas em profundidade. Ao todo, 92 artistas aceitaram participar desta pesquisa. Os dados foram analisados com base em níveis de categorização e com o suporte de software específico. Os resultados mostram que o núcleo da representação identitária artística é formado pela auto-percepção do ar-tista como profissional vocacionado, dedicado à construção de uma obra capaz de mobilizar o outro e contribuir para um gênero estético. Já as estratégias identitárias mais comuns utilizadas são a exposição pública, o engajamento e desengajamento contínuo de projetos de duração limitada, o investimento no próprio desenvolvimento pessoal e estratégias de relacionamento com o público.

Palavras-chaves: identidade profissional; estratégias identitárias; trabalho e identidade; tra-balhadores artísticos.

ABSTRACT

The paper's purpose is to understand the identity representation construction processes and identity strategies used by artists in three cultural segments in the State of São Paulo. Two data-gathering strategies have been combined: a survey and in-depth interviews. A total of 92 artists accepted taking part in the study. The data were analyzed based on categorization lev-els and with the support of specific computer software. The results show that the core of artis-tic identity representation is formed by the artist's self-perception as a professional with a calling, dedicated to the construction of a body of work capable of mobilizing others and con-tributing to an aesthetic genre. The most frequent identity strategies include public exposure, continuous engagement and disengagement from limited duration projects, investment in their own personal development, and public relationship strategies.

Keywords: professional identity; identity strategies, work and identity; artistic workers.

Os setores culturais foram recuperados com vigor na agenda de debates dos governos ao redor do mundo. Parte do motivo é a redescoberta de seu potencial econômico (Caves, 2000; Hartley, 2005). No Brasil, diversas tentativas governamentais vêm sendo levadas a cabo com o intuito de redimensioná-los e desenvolver políticas públicas apropriadas. Por exemplo, o Ministério da Cultura (2006) encomendou ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) um relatório com os principais indicadores desses setores. Entre esses, destaca-se que eles são responsáveis por 10% do Produto Interno Bruto (PIB), por 6% das ocupações formais e por pouco mais de 6% de todas as empresas atuantes no país.

Questões relacionadas à cultura e aos seus setores constituem tema genuíno de preocupações acadêmicas, embora ainda existam desafios a serem superados – como, por exemplo, uma melhor compreensão dos processos relativos ao desenvolvimento da identidade profissional nesses setores. Da perspectiva da psicologia social do trabalho, isso parece especialmente crítico, pois esse subcampo tendeu a orientar suas categorias de análise pensando, sobretudo, no emprego tradicional. Isso tem mudado de forma acelerada, mas ainda há muito a se fazer no intuito de ampliar o espectro de temas envolvidos na compreensão do que significa trabalhar na atualidade. Este artigo, derivado de pesquisa de campo, busca contribuir nessa direção ao voltar-se para o artista como trabalhador (Menger, 2002).

Nosso objetivo específico é compreender o processo de construção da identidade profissional do artista e quais são as estratégias identitárias mais comumente utilizadas por ele em sua experiência laboral. Escolhemos um recorte específico, privilegiando os processos de construção de significados relativos à identidade profissional, pressupondo que isso possa nos ajudar a compreender a articulação entre elementos pessoais, sociais e institucionais mais amplos. O artigo está estruturado em quatro partes, nas quais sistematizamos os conceitos teóricos de base, apresentamos os procedimentos metodológicos, arrolamos e discutimos os resultados e esboçamos tópicos para pesquisas futuras.

Referencial teórico

Nesta seção, apresentamos nossos elementos conceituais de base: a definição de identidade, identidade profissional e estratégias identitárias. Primeiramente, porém, a título de contextualização, esboçamos um breve panorama do campo de estudos sobre identidade.

Psicologia da identidade: raízes históricas e panorama atual

O estudo da identidade é um tema antigo na psicologia. Contudo, quando se considera o período contemporâneo, Erikson (1968) sistematizou e consolidou um sentido até hoje influente de identidade. Inspirado na psicanálise, especificamente no conceito de identificação, o autor observa que a identidade faz referência, simultaneamente, a um sentimento de singularidade, a um esforço no sentido de se manter a continuidade da experiência vivida, e à participação do indivíduo nos ideais e nos modelos culturais do grupo e da cultura.

Na psicologia social, a identidade pode ser analisada conforme duas grandes perspectivas: a psicologia social individualista e a psicologia social sociológica (Farr, 1996). Na tradição anglo-saxã, o termo utilizado para referir-se à identidade é self, ao passo que, na tradição europeia,e mesmo de boa parte da brasileira, o termo preferido é identidade (Lopes, 2002). Mais do que uma questão de terminologia, há nisto pressupostos que fazem a self psychology, na tradição anglo-saxã, dar preferência aos níveis pessoal e interpessoal de análise, enquanto que, na tradição sociológica da psicologia social, a identidade é estudada especialmente no nível das relações intergrupais (Simon, 2004).

A despeito de diferenças relevantes entre as diversas abordagens psicossociais, é possível dizer, como o faz Marc (2005), que há algum consenso em torno do entendimento de que o self designa uma configuração organizada de percepções de si em contextos socioculturalmente mediados. Essa definição remete ao final do século dezenove, quando James (1892) define o self como a soma total de tudo o que o indivíduo pode chamar de seu. Posteriormente, Mead (1934), na corrente interacionista, estabelece a clássica distinção entre o eu e o mim, defendendo a primazia das interações e comunicação sociais na constituição do self. Para esse autor, o indivíduo faz a experiência de si mesmo apenas de forma mediada, ou seja, adotando o ponto de vista dos outros ou do grupo ao qual pertence.

Para encerrar esta seção com uma síntese não-exaustiva do panorama atual de perspectivas teóricas sobre identidade psicossocial, pode-se dizer que, do lado da self psychology, há seis linhas fundamentais de teorização, baseadas nos seguintes tópicos (Simon, 2004): autocontinuidade, autoconceito, autoconsciência, autovalorização, autorrealização e crescimento e na concepção de que o self é uma instância ao mesmo tempo agente (autoeficácia) e autorregulatória. Já no âmbito da sociologia, há contribuições provenientes da teoria dos papéis (Sarbin, 1954) e da teoria da identidade (Stryker, 1987). No cenário brasileiro, há, por exemplo, a abordagem da identidade como metamorfose, proposta por Ciampa (1987), a qual se baseia no materialismo histórico, especificamente pós-Habermas (Paiva, 2007).

No cenário da psicologia da identidade de ramificação europeia, é possível identificar as teorias produzidas pela Escola de Bristol, a saber: a teoria da identidade social (Tajfel, 1981) e da autocategorização (Turner, 1985); as teorias de inspiração sóciogenética, com seu acento nas diversas fases ou percursos da diferenciação self-outro (L'Écuyer, 1994); e as teorias da identidade como representação (Baugnet, 1998; Costalat-Founeau, 1997; Deschamps & Moliner, 2008; Oyserman & Markus, 1998). Esta última perspectiva foi adotada como pano de fundo para este trabalho, e é detalhada na próxima seção.

Identidade e representações identitárias

A abordagem da identidade como representação constitui uma proposta de articulação de várias teorias. Foi desenvolvida na França por, entre outros, Deschamps e Moliner (2008) e Deschamps, Morales, Paez e Worchel (1999). Articula as teorias das representações sociais (Jodelet, 1989; Moscovici, 1961), da identidade social (Tajfel, 1981) e da categorização social (Turner, 1985) e conceitos advindos da tradição da self psychology, especificamente o de self como uma estrutura cognitiva ou esquema de si (Markus, 1977; Oyserman & Markus, 1998). Pode-se notar ainda a influência de conceitos desenvolvidos na Escola de Genebra, especificamente o relativo à marcação social (De Paolis, Doise, & Mugny, 1987), que trata da forma como representações preexistentes agem como mediadores do desenvolvimento da identidade.

O self consiste em um conjunto de informações cognitivas que o indivíduo tem de si próprio, dispostas na forma de uma estrutura com elementos interligados e interdependentes, bem como multifacetado – diferentes representações de si são ativadas conforme o contexto. Deschamps e Moliner (2008) postulam que as referidas informações podem ser tomadas como representações sobre o próprio self, o endogrupo (grupo de pertencimento, identificação) e o exogrupo (grupos de não pertencimento, diferenciação). Por meio de processos de diferenciação, o indivíduo cria distâncias variáveis entre si mesmo, o endogrupo e o exogrupo. O sentimento de identidade seria o resultado dinâmico da percepção dessas distâncias. Suas bases são as representações sociais sobre o self, o endogrupo e o exogrupo, moduladas por representações contextuais mais amplas. Os mecanismos psicológicos de base são a comparação social, a autoatribuição e a categorização e atribuição social (Deschamps & Moliner, 2008).

As representações identitárias funcionam tanto como marcadores identitários, suscitando tomadas de posição comuns ou divergentes, como também reguladores identitários, ao organizar a percepção do espaço social em congruência com as aspirações dos indivíduos. Ainda de acordo com Deschamps e Moliner (2008), o sentimento de identidade baseia-se na manutenção de uma imagem positiva do self, de sorte que o indivíduo usará diversas estratégias para preservar uma imagem positiva de si. Isso nos conduz a nosso último tópico teórico, o conceito de estratégias identitárias.

Identidade profissional e estratégias identitárias

Como este relato diz respeito a uma investigação sobre identidade profissional, é primeiramente fundamental delimitar este conceito no âmbito dos estudos sobre identidade anteriormente apresentados. A identidade profissional é, para alguns autores, uma faceta da identidade social (e.g., Blin, 1997; Costalat-Founeau, 1997; Dubar, 1991, 1992). A diferença entre ambas ocorre em função de a primeira dizer respeito ao contexto de trabalho, ao passo que a segunda se aplica a um leque mais amplo de experiências da pessoa no seu contexto social.

Em consonância com a teoria que acabamos de apresentar, que aproxima identidade e representações sociais, Cohen-Scali (2000) propõe que a construção das identidades profissionais tem, por origem, a emergência de representações sociais comuns a um determinado conjunto de atores nos espaços de trabalho (Cohen-Scali, 2000). Portanto, as representações identitárias profissionais dependem, para sua construção, do confronto entre um conjunto de práticas sociais, de conhecimentos e significados de diferentes ofícios, além de conhecimentos ou representações sobre o objeto de cada atividade profissional. A identidade profissional seria o resultado do distanciamento do indivíduo em relação aos grupos profissionais de pertencimento (endogrupo) e aos grupos profissionais de não-pertencimento (exogrupo).

Chegamos ao último conceito a ser aqui discutido, o de estratégias identitárias. Ele foi pensado para se referir aos processos psicológicos observados em contextos de transformações identitárias (Lipiansky, Taboada-Leonetti, & Vasquez, 1990). Está apoiado em duas ideias centrais: primeira, o indivíduo é capaz de agir a partir de, e sobre, a definição de si próprio, com o intuito de afirmá-la; segunda, a identidade é um conceito dinâmico e dependente de negociações de significados. Na construção identitária, articulam-se duas ordens de transações (Dubar, 1991). Uma delas é diacrônica, denominada transação biográfica, cuja missão é manter a coerência do conceito de si ao longo do tempo. A outra é sincrônica, denominada transação relacional, voltada à sincronização entre a identidade autopercebida e a identidade atribuída – os rótulos atribuídos ao indivíduo pelo fato de pertencer a determinados grupos.

As estratégias identitárias realçam a necessidade de os indivíduos manejarem as clivagens interiores e as contradições socioinstitucionais nas quais estão imersos, especialmente em circunstâncias de rupturas e descontinuidades nos processos identificatórios profissionais (como no caso de desemprego de longa duração). Lipiansky, Taboada-Leonetti e Vasquez (1990) definem as estratégias identitárias como

procedimentos acionados (consciente ou inconscientemente) por um ator (individual ou coletivo) para alcançar uma ou várias finalidades (definidas explicitamente ou se situando ao nível inconsciente), procedimentos esses elaborados em função da situação de interação, ou seja, em função das diferentes determinações (sócio-históricas, culturais, psicológicas) dessa situação (p. 24).

Coerente com sua abordagem da identidade como representação, Deschamps e Moliner (2008) observam que a utilização de uma estratégia identitária visa preservar as distâncias que o indivíduo deseja manter entre a representação de si e as representações do endogrupo e do exogrupo, podendo ser superficiais, intermediárias ou profundas. Elas também podem ser cognitivas, afetivas ou comportamentais, individuais ou coletivas (Baugnet, 1998). Uma vez apresentado nosso referencial teórico, descrevemos, na sequência, os procedimentos metodológicos adotados na pesquisa.

Método

O desenho metodológico desta investigação segue a premissa de que a pesquisa de representações identitárias depende da apreensão de significados. Entende que uma via privilegiada para o acesso a tais significados é a linguagem, considerada tanto em seus aspectos de conteúdo (os repertórios de significado), como organizativos (construção de esquemas sobre si e os outros). Neste sentido, aproxima-se, embora não literalmente, do método de pesquisa em representações e significados sociais (Abric, 1994; Moliner, 1996; Seca, 2001). Seu enquadre é de natureza exploratória e descritiva, além de qualitativo. Operacionalmente, a pesquisa combinou duas estratégias interligadas de investigação: uma baseada em entrevistas em profundidade e a outra baseada num survey. Na sequência, apresentamos os procedimentos adotados.

Participantes, procedimentos e técnicas de coleta de dados

Tanto para a fase de entrevistas quanto para o survey, os participantes foram escolhidos conforme os critérios propostos por Throsby (2001a), que versam sobre quem pode ser considerado artista, pois esta é uma categoria ocupacional de difícil delimitação. Entre os critérios incluem-se o tempo dedicado à atividade artística, a inserção no mercado, observada na existência de obras ou atividades desenvolvidas na área de atuação, e a formação específica.

Outro aspecto crítico para a seleção dos participantes foi a determinação dos setores artísticos ou culturais a serem considerados, pois não há consenso absoluto acerca de quais são os critérios para sua delimitação (Hartley, 2005). Utilizamos outro modelo proposto por Throsby (2001b), que estratifica esses setores em função de sua maior ou menor proximidade com a produção de bens simbólicos de natureza artística, colocando no centro de seu modelo os artistas – tais como músicos, escritores, atores, pintores. Nesta pesquisa, optamos por trabalhar precisamente com os profissionais pertencentes a esse núcleo mais denso de criação artística. Para redução ainda maior de escopo, a investigação restringe-se a três setores nucleares: artes plásticas e cênicas e literatura, localizados no Estado de São Paulo.

A razão da escolha por São Paulo é o fato de este ser o maior Estado do país, tanto em termos populacionais, quanto em termos do tamanho, complexidade e desenvolvimento do setor artístico-cultural. Portanto, apresenta um amplo e diversificado quadro de artistas que atuam nos mais variados setores culturais. Todavia, é preciso observar que, devido às grandes diferenças entre as regiões brasileiras, não é possível generalizar as características dos setores e trabalhadores artístico-culturais de São Paulo para o restante do país, servindo este último apenas como um primeiro locus de mapeamento desses setores no contexto brasileiro.

Em benefício de melhor contextualização, cumpre apontar alguns outros aspectos sobre o ambiente em que ocorre a produção cultural em questão. De fato, apesar de diversos questionamentos acerca da restrição de incentivos à cultura, é importante reconhecer que o governo, tanto de São Paulo como o Federal, especificamente o Ministério da Cultura, têm ofertado diversas linhas de incentivo à cultura. Primeiro, os editais regularmente lançados, e que consistem de importante fonte de financiamento para projetos culturais – por exemplo, em setores como teatro e no setor audiovisual. Em São Paulo, em particular, são mais de 300 Pontos de Cultura, entidades apoiadas financeira e institucionalmente pelo Ministério da Cultura. Existem também os Programas de Ação Cultural (ou ProAC), o Prêmio Estímulo, o Prêmio São Paulo de Literatura, os Programas de Fomento e Incentivo Paulista, além de Editais de ocupação de espaços de cultura, todos contribuindo para o desenvolvimento das iniciativas culturais no Estado.

Com base nos critérios que acabam de ser apresentados, realizamos uma busca exaustiva de potenciais artistas. Isso foi feito mediante pesquisa em diversas redes sociais, sites, organizações culturais, associações, entre outros lugares em que se pudessem localizar artistas que se encaixassem nos parâmetros estabelecidos. Desse esforço resultou uma lista com, aproximadamente, 1.300 artistas. Primeiramente, tal lista foi filtrada com o intuito de selecionar os participantes da etapa de entrevistas em profundidade. Atentou-se para a criação de uma amostra diversificada em termos de perfis, experiências e atividades. Disso foram obtidos pouco mais de 100 nomes. Com essa lista, contatos foram feitos com os potenciais participantes, explicitando os objetivos e as questões operacionais pertinentes.

Ao todo, 26 artistas aceitaram participar desta fase. As entrevistas foram realizadas conforme um roteiro semiestruturado composto pelos seguintes eixos temáticos: trajetórias profissionais; contexto de atuação; representações identitárias (percepção de si como profissional); e estratégias identitárias (ações voltadas à manutenção/afirmação da identidade pessoal e profissional). Em média, cada entrevista durou 90 minutos e, com a autorização dos participantes, foi gravada. Posteriormente, foram transcritas e reenviadas a cada entrevistado para que esse tomasse ciência do conteúdo e, se apropriado, o alterasse.

Para os outros artistas da lista inicial (pouco mais de 1.200 nomes), foi enviado um e-mail igualmente convidando-os a participarem da pesquisa, com os esclarecimentos pertinentes. Caso aceitassem, seu papel seria responder a um questionário hospedado em meio eletrônico, cujo link e senha lhes seriam enviados. Ao todo, 66 artistas responderam ao survey (sem respostas em branco), cujo instrumento de coleta consistiu de um questionário com 23 questões, combinando itens abertos e fechados, os quais versavam sobre dimensões da atividade artística. Em função do escopo deste artigo, apenas os resultados da questão que dizia respeito à representação da identidade profissional serão comentados. A estratégia consistiu em utilizar uma variação da técnica de associação de palavras (Abric, 1994), pedindo para que cada respondente escrevesse o que lhe viesse à mente sobre o que significava ser artista.

Em síntese, esta pesquisa contou com a participação de 92 artistas dos três setores indicados. Os participantes do survey têm uma média de idade de 47 anos, sendo 73% do setor das artes plásticas, 20% das artes cênicas e 7% de literatura. Em termos de experiência, 44% atuam há mais de 20 anos no setor, e 25% deles entre 10 a 15 anos. Já os entrevistados têm uma média de idade de 45 anos, sendo 34% de artes cênicas, 27% de artes plásticas e 39% de literatura. A média de experiência é de 23 anos, sendo 70% homens.

Procedimentos de análise de dados

O enquadre geral da análise de dados é de natureza qualitativa e descritiva – mesmo lançando mão de procedimentos de quantificação (Bernard & Rian, 2009). Dois parâmetros nortearam tal análise: mais superficialmente, a identificação e descrição de um repertório de representações sobre a identidade profissional artística e de estratégias profissionais identitárias (survey); e, num processo de redução metodológica mais profunda, a identificação de termos nucleares ou organizativos das representações identificadas nas entrevistas. Neste último caso, o processo de análise se aproxima, embora não literalmente, das estratégias de verificação do núcleo central de representações sociais (Moliner, 1996; Sá, 1994; Seca, 2001).

Operacionalmente, o procedimento de análise dos dados foi realizado com a ajuda de um software específico para análises qualitativas, a saber, o QDA-MINER (Provalis Research). A justificativa para o uso de tal instrumento é a redução de grande volume de dados via categorização (Dey, 1993; Gibbs, 2007). Dois procedimentos foram adotados: primeiro, uma categorização descritiva de conteúdos baseada em identificação de temas e sua frequência. Isso se aplica às representações identitárias obtidas no survey e às estratégias identitárias obtidas nas entrevistas. Para a demarcação dos temas, levou-se em consideração a definição teórica de representações identitárias como significados concernentes ao self (à definição de si). Estratégias identitárias foram definidas como ações, procedimentos, iniciativas e comportamentos dos respondentes, realizados com o intuito de assegurar sua trajetória ou carreira profissional e sua identidade como artistas no contexto socioeconômico das artes.

O segundo procedimento consistiu de uma redução mais profunda do conteúdo das entrevistas, pela qual se pretendia obter categorias capazes de refletir os temas nucleares das representações identitárias. Para isso, foram considerados o grau de associatividade e de saliência de certos termos, bem como seu papel na organização cognitiva das falas dos entrevistados (Seca, 2001). Privilegiaram-se aqui os significados referentes a esquemas identitários com potencial de explicar as representações e as estratégias identitárias identificadas no processo de categorização. Apresentados os procedimentos metodológicos, passamos, então, aos resultados e à sua discussão.

Resultados e discussão

Primeiramente, serão apresentados os resultados referentes às representações identitárias, tanto em termos descritivos quanto de unidades de significado mais profundas; em seguida, serão apresentados os resultados referentes às estratégias identitárias profissionais.

Repertório de representações identitárias

A Tabela 1 sumariza as categorias descritivas que emergiram após a análise dos dados do survey. Como se pode notar, há três categorias principais que aglutinam as representações sobre o que significa ser artista. Essas categorias são predominantes nos três setores investigados. A primeira, Criação, obra e arte, reúne itens que associam a identidade artística à capacidade de criar, de dar vida a obras com determinado valor cultural ou social, de materializar processos subjetivos, tais como inspiração, criatividade e senso estético. O artista se vê como um intermediário, um instrumento de comunicação a serviço da obra.

A segunda categoria, Prazer, paixão e envolvimento, aglutina temas que apresentam o artista como alguém estreitamente vinculado às artes, sugerindo um trabalho cujo comprometimento é de natureza afetiva. Essa forma de identificação pode ser associada à ideia de amor à arte pela arte (Chateau, 2008), estando na origem de outras representações nem sempre condizentes com a realidade do artista e de seu trabalho: por exemplo, a de que ele é alguém que passa fome pelo amor à arte (Filer, 1986). É importante dizer que diversos artistas entrevistados colocaram-se contra essa visão idealizada de seu trabalho.

A terceira categoria, Autoexpressão e singularidade, contém temas pelos quais o artista é representado como quem se diferencia dos outros pela afirmação de sua singularidade e produção de obras igualmente singulares. Aqui, a identidade artística revela sua faceta pessoal, por contraposição à identidade social – com seu acento na semelhança do indivíduo com os membros do endogrupo (Deschamps & Moliner, 2008). Se considerarmos que o universo artístico é um universo autoral (Heinich, 1993), parece fazer sentido tanto esta representação de uma identidade singular quanto a de autoexpressão, dando ao trabalho uma orientação expressiva – por contraposição à instrumental (Menger, 2002).

As outras quatro categorias da Tabela 1 complementam as representações anteriores, sugerindo que o artista é quem mobiliza o outro por meio de sua obra, no que podemos apreender o valor social da atividade artística, isto é, o valor do produto do trabalho; que o artista é um profissional, no sentido de que possui rotinas, padrões de qualidade, domínio de técnicas como se pode encontrar em outros setores econômicos (veremos mais sobre isso a seguir); e que o artista é alguém livre e autônomo para decidir como trabalhar. A última categoria, embora com menor número de temas, é interessante ao destacar aspectos afetivos negativos da atividade artística, sugerindo sofrimento. Os que mencionaram esse tema referiam-se às dificuldades em ser artista no Brasil, tanto em termos econômicos como de reconhecimento. Achados semelhantes sobre o artista brasileiro podem ser encontrados em Macêdo (2010).

Apreciadas em conjunto, as categorias da Tabela 1 parecem realçar especialmente a dimensão individual da identidade autoatribuída. O artista é retratado como quem se realiza por meio de sua atividade e obra, sendo afetivamente vinculado a seu trabalho, o qual é entendido como fonte de prazer e satisfação. Ao mesmo tempo, a identidade artística é associada à criação estética, à materialização de criatividade e inspiração, cujo resultado é a transformação e mobilização do outro e o desenvolvimento do gênero artístico em questão. A liberdade e a autonomia atribuídas à identidade artística parecem coerentes com o desejo de autoexpressão e singularidade. Um aprofundamento dessas questões será apresentado a seguir, a partir do material obtido nas entrevistas.

Núcleos de significado das representações

A Tabela 2 sintetiza os quatro principais núcleos de significado das representações identitárias aos quais o conteúdo das entrevistas foi reduzido. O primeiro deles, Profissional, é uma categoria cujos temas apontam para a autopercepção do artista como alguém que domina uma técnica, que tem capacidade de entrega, de cumprir os prazos e, especialmente, de responder por um determinado padrão de qualidade. Quase todos os artistas entrevistados enfatizaram a importância da qualidade da obra e do contínuo aperfeiçoamento profissional. Nesse sentido, essa faceta da representação identitária se aproxima muito da ideia de carreira (Wrzesniewski, McCauley, Rozin, & Schwartz, 1997), ou seja, de uma trajetória de experiências e de progressão. A diferença é que, no caso do artista, tal progressão não necessariamente é avaliada pela sucessão de cargos ou funções ocupadas numa organização, mas pela qualidade da obra e pelo desenvolvimento da credibilidade ou de um nome no mercado artístico.

A representação como profissional serve para diferenciar o artista em relação a membros de outros grupos de não pertencimento (exogrupo), por exemplo, dos artesãos – notadamente no caso dos artistas plásticos. Os artistas se reconhecem como detentores de um saber especializado que dependeu, para sua aquisição e lapidação, de uma formação. De fato, mais de 70% dos artistas que participaram desta pesquisa têm alguma formação específica nas artes. Mesmo os que desenvolveram suas competências de forma autodidata avaliam-se como capazes de um desempenho profissional diferenciado daquele do artesão. Este último é visto como alguém que, apesar de manipular técnicas e objetos, não necessariamente cria ou inova. É importante observar que, na história social da arte, a divisão entre artista e artesão é um ponto de contínuas discussões (Lafargue, 2003).

Mais radical ainda é a diferenciação do artista-profissional em relação ao "artista amador". Segundo os entrevistados, o amador é alguém que não vive financeiramente de sua arte, não necessariamente apresenta aperfeiçoamento de estilo ao longo do tempo e, sobretudo, não possui uma obra com padrões de qualidade avaliados a partir de um regime estético-artístico e pelos pares. Essa distinção entre artista profissional e artista amador é outro elemento fundamental do processo de construção identitária nas artes (Stebbins, 1992).

O segundo núcleo das representações identitárias é apresentado pela categoria Obra. Nela, estão reunidos temas que aproximam, às vezes até confundem, o artista com sua obra. Neste caso, a obra é tomada no sentido de uma produção resultante da ação do artista sobre objetos materiais ou imateriais, sendo, portanto, consequência da conjugação do desempenho do artista com insumos, técnicas e instrumentos – moldados por um contexto social, econômico e cultural específico (Guérin, 1986). No caso dos setores aqui considerados, a obra pode ser um livro (literatura), um quadro (artes plásticas) ou a representação de um personagem, enredo, estória, etc. (artes cênicas).

Num nível mais subjetivo, a obra é considerada pelos artistas entrevistados como seu próprio legado. Na verdade, é possível identificar, a partir das entrevistas, fortes tensões entre o artista e sua obra. Por exemplo, há casos em que o artista julga que deve "se apagar" na obra, no sentido de que é esta que deve sobressair; noutros casos, a obra é visceralmente associada ao artista, ao seu nome, sendo muitas vezes esse nome o responsável pelo valor atribuído àquela. O não reconhecimento do artista também pode ter sua origem no não reconhecimento da própria obra.

O terceiro núcleo de significado é ilustrado pela categoria Vocação. Reunem-se aqui temas que apresentam o artista como alguém predestinado a ser artista. Como afirmam Wrzesniewski, McCauley, Rozin e Schwartz (1997), quando o trabalho é experienciado como vocação, ele é avaliado a partir de crenças, tais como missão de vida, predestinação, talento e necessidade. De fato, isso transparece nas entrevistas aqui realizadas, na medida em que o artista se autodefine como alguém destinado, desde muito cedo, a enveredar por esta carreira. A maioria começa efetivamente bem cedo a envolver-se com as artes, na forma de um hobby que vai, progressivamente, se consolidando como profissão. Faz parte do universo de significados desse núcleo a percepção do artista como um criador ou instrumento a serviço da criação estética, explicando o aparecimento desse mesmo tema no survey (ver Tabela 1).

Por último, o quarto núcleo de significados é expresso pelo que denominamos aqui de Identidade autoatribuída ou rótulo. Trata-se do modo como os entrevistados definem ou descrevem a si mesmos: como "artistas". Isso é interessante, pois a utilização desse termo (artista) parece reforçar a identificação do indivíduo com os valores e representações do endogrupo. Para se ter uma ideia de algumas consequências dessa forma de autocategorização, notamos vários pontos de tensões entre artistas que, além de atuarem como tal, também incorporavam funções de outras profissões, como a de administrador. É possível que a extensão do pensamento gerencial ao universo das artes esteja contribuindo para transformações das representações identitárias dos artistas, que agora devem saber gerenciar seu orçamento, ser empreendedores, gerenciar pessoas, buscar patrocínios e conquistar clientes.

Do ponto de vista dos processos de identificação dentro do endogrupo, intitular-se como artista produz certos fenômenos de similaridade. Por exemplo, os artistas entrevistados vêem uns aos outros (membros do endogrupo) como possuindo uma visão de mundo comum, além de compartilharem certas habilidades, tais como maior sensibilidade, criatividade e persistência. Mas há também distanciamentos (diferenciações) dentro do próprio endogrupo. Por exemplo, vários escritores fizeram questão de demarcar suas diferenças em relação a escritores de massa. Nas artes cênicas, vários artistas se diferenciaram dos "artistas da publicidade", cujo sucesso dependeria, sobretudo, de beleza física. Nas artes plásticas, vários artistas buscavam se diferenciar de colegas exclusivamente orientados pela venda de quadros encomendados. Essas várias formas de diferenciação geram tensões na experiência do artista, parte das quais podem ser compreendidas a partir das estratégias identitárias, nosso próximo tópico.

Estratégias identitárias

A Tabela 3 apresenta onze estratégias identitárias identificadas nas entrevistas. Ao contrário das representações identitárias, concentradas e homogêneas, as estratégias são dispersas e heterogêneas, quando são considerados os três setores culturais aqui estudados. Em função de restrições de espaço, não discutiremos todas elas. Vamos nos ater apenas às potencialmente mais sugestivas para nossa discussão sobre identidade profissional.

A estratégia mais comum para esses artistas é a exposição pública, incluindo nisto a utilização de várias mídias, especialmente a Internet, e a participação em eventos. O objetivo é criar visibilidade para o artista e sua obra. Ao contrário de outros setores econômicos, nos quais a credibilidade e o valor do profissional muitas vezes dependem da organização em que o indivíduo pertence, no setor artístico, comumente regido pelo trabalho autônomo e flexível (Alper & Wassall, 2006), a credibilidade profissional depende do próprio indivíduo e de suas estratégias de autoagenciamento e de gerenciamento de impressões.

Outra estratégia identitária é a diversificação de atividades. Isso significa multiplicar as frentes de atuação profissional ao ponto de incluir grande parte da cadeia de valor da atividade. Por exemplo, dar aulas, cursos e palestras na área de expertise; atuar na venda de insumos necessários para a produção da obra artística em questão; realizar traduções; trabalhar em jornais (no caso de escritores); atuar em teatro, publicidade comercial e em consultoria (para os profissionais de artes cênicas). Em suma, apesar de haver um "centro de gravidade", a identidade deve acomodar-se a distintas demandas, acionando facetas diferenciadas conforme o contexto. Na teoria da identidade, isso é conhecido como hierarquia de saliências de identidade (Stryker, 1987). Na literatura de carreira, um termo similar é o de "carreira portfólio" (Templer & Cawsey, 1999). Talvez seja por isso que as carreiras no universo das artes vêm sendo usadas como metáforas do próprio trabalho na atualidade (Menger, 2002). Voltaremos a esse ponto nas conclusões do artigo.

A terceira estratégia consiste em participar de projetos com duração limitada. Em termos de construção da identidade profissional, isto implica um contínuo fazer-e-desfazer de vínculos: trabalhar em um projeto e estar pronto para logo entrar em outro. Há nisso um componente de risco, incerteza e flexibilidade que, paradoxalmente, alimenta a motivação de muitos dos artistas entrevistados. Saber que um determinado trabalho não é de "duração indeterminada", a despeito do risco econômico envolvido (ficar sem salário), parece contribuir para a própria satisfação profissional – algo similar foi identificado por Menger (2002).

Outra estratégia destacada na Tabela 3 é o desenvolvimento e a consolidação da carreira, isto é, o esforço permanente de aperfeiçoamento do desempenho profissional. Isso é interessante do ponto de vista da constituição da identidade, pois parece que a carreira do artista depende fortemente do grau em que ele consegue delinear sua própria identidade profissional. Em outras palavras, as escolhas dos repertórios de descrição e avaliação de si repercutem, como reguladores identitários (Deschamps & Moliner, 2008), na própria qualidade do desempenho e, consequentemente, da obra e da carreira do artista. Em outras palavras, a identidade pode ser vista, neste caso, como um organizador da ação e como um sinalizador para o mercado, por exemplo, dos quais pode depender o próprio sucesso do artista.

Por fim, a estratégia que denominamos empreendedorismo refere-se à percepção de que o artista deve administrar sua carreira como uma empresa ou negócio, incorporando valores, competências e visão de mundo típicos da gestão ou administração. Como afirmamos anteriormente, esse pode ser um potencial foco de tensão, pois há um nítido confronto entre representações da arte como vocação e representações da arte como negócio. Ainda mais críticas, nesse sentido, são as estratégias em relação ao público.

No decorrer das entrevistas, as estratégias em relação ao público apresentaram dupla conotação: uma positiva, sugerindo que, como qualquer outro profissional que oferece um bem ou serviço, o artista deve conhecer, entender e construir uma parceria com seu público; e outra negativa, quando o artista simplesmente acata o que o público quer, modelando seu desempenho e sua obra à demanda comercial de massa. Parece haver um limite entre a construção de uma relação interdependente com o público e a heteronomia do artista vocacionado. Esse último fenômeno, na visão dos entrevistados, ocorre com pessoas cujo compromisso com a arte é aparentemente menor, comparativamente a seu compromisso (instrumental) com o ganho financeiro (por exemplo, entre artistas "amadores"). É muito provável que as tensões originárias do cruzamento entre arte e mercado representem um intrincado emaranhado de conflitos na construção da identidade artística, merecendo explorações futuras.

Considerações finais

Ao final deste trabalho, consideramos pertinente alinhavar suas ideias centrais na forma de proposições para futuras investigações. Em primeiro lugar, sugerimos explorações adicionais sobre as tensões potencialmente presentes no processo de construção da identidade artística. Como vimos, há tensões decorrentes da diferenciação entre profissional-amador, entre o artista vocacionado e o artista "comercial", entre o artista e o artesão. Também podemos supor tensões entre a identidade autopercebida, por exemplo, o artista como um profissional autônomo e independente, e a identidade atribuída ou exigida. Entendemos que uma forma de explorar em profundidade tais contradições é analisar as estratégias identitárias profissionais utilizadas pelos artistas, pois elas indicam o grau de transação entre as várias facetas que compõem a identidade, entendida como a distância percebida entre o si mesmo e o outro, tanto com referência ao endogrupo como ao exogrupo.

Esta pesquisa deixa em aberto a discussão sobre os processos de manutenção da identidade em um contexto de intensa fragmentação e descontinuidade. De fato, os setores culturais aqui considerados, salvo poucas exceções, implicam regimes de trabalho por projetos, oferecendo poucas garantias ao trabalhador artista. Além disso, como o artista nem sempre está vinculado a uma organização, os mecanismos de identificação psicológica passam a depender estreitamente da obra desenvolvida e da autocategorização. Recomendamos investigações futuras dedicadas à análise das trajetórias profissionais em tal ambiente de risco.

Outra questão importante a compor uma pauta de novos estudos é a análise da relação entre representações identitárias e estratégias identitárias. De que modo as primeiras subsidiam as segundas? O baixo retorno de respostas válidas, no survey, impediu a utilização de técnicas quantitativas para análise dessas relações e pode ser considerado como a principal limitação metodológica do presente estudo. Observamos que as representações identitárias consistem, em um primeiro plano, de repertórios de significado sobre a atividade artística e o artista; num segundo, consistem de alguns núcleos que funcionam como organizadores centrais daquelas outras representações. O trio profissional-obra-vocação emergiu neste trabalho como uma chave qualitativa de leitura sobre a construção da identidade artística. Explorar mais os vínculos deste eixo com as estratégias identitárias é outra linha de investigação que propomos.

Uma reflexão final sobre nossa hipótese de o trabalho artístico ser uma metáfora para se compreender o trabalho na atualidade. Os dados obtidos nesta investigação sugerem uma ambiguidade ou tensão na relação entre arte, trabalho e economia: de um lado, o trabalho artístico congrega diversas formas de resistência à captura econômica do trabalho. Como coloca Menger (2002), a cultura é uma esfera da vida social que resiste à "colonização" exercida pela esfera econômica, que transforma o trabalho vivo em trabalho abstrato. Não é por menos que movimentos de contracultura opõem-se aos modos vigentes de organização social e econômica da realidade. De outro lado, há igualmente sinais de absorção do trabalho nas artes pelo mundo comum do trabalho. Tanto os movimentos de administração quanto de profissionalização das artes fazem com que estas se aproximem mais do mercado e de sua lógica.

Outra forma de absorção do trabalho artístico ocorre no campo das representações sociais. O artista é amiúde representado como autônomo, singular, orientado por um projeto pessoal de autorrealização, autêntico e independente. Do ponto de vista histórico, o artista e os empreendedores são os dois atores responsáveis por levar adiante os ideais do individualismo moderno, minando a ética protestante calcada no trabalho (Menger, 2002). Com isso, e também de acordo com Menger, a hiperflexibilidade do mundo das artes é recuperada nas novas formas de organização do trabalho na atualidade, especialmente no campo dos discursos e das representações da gestão de pessoas. O artista passa a ser um modelo ideal de trabalhador, pois, apesar de viver em regimes de elevada insegurança e flexibilidade, ainda assim mantém-se comprometido e engajado com seu trabalho, além de ser capaz de operar bens e serviços de natureza simbólica ou imaterial.

Finalizamos este texto deixando o convite para que novas reflexões sejam feitas sobre as tensões levantadas pelo trabalho artístico entre trabalho vivo e trabalho abstrato, trabalho morto e trabalho criativo, trabalho como atividade de constituição de identidade e trabalho como emprego e fonte de remuneração e subsistência econômica. O universo das artes, em seu movimento de aproximação e distanciamento da esfera econômica, constitui importante repositório de ideias para a psicologia do trabalho.

Recebido em: 06/06/2011

Revisão em: 08/04/2012

Aceite em: 04/05/2012

Pedro F. Bendassolli é Doutor em Psicologia Social pela USP (2006). Realizou estágio pós-doutoral na Université Paris IX, França (2009), e no Instituto de Psicologia da UnB (2012). Seus atuais interesses de pesquisa envolvem o papel do trabalho no desenvolvimento psicológico e a relação entre trabalho e cultura. Endereço: Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Departamento de Psicologia. Av. Salgado Filho, s/n – Cidade Universitária. Natal/ RN, Brasil. CEP 59072-970. Email: pbendassolli@gmail.com

Jairo E. Borges-Andrade é PhD em Sistemas Instrucionais pela Florida State University (1979). Realizou estágios de pós-doutorado no International Food Policy Research Institute (1990), na University of Sheffield e Rijksuniversiteit Gröningen (2001) e no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Portugal (2010). Endereço: Universidade de Brasília. Departamento de Psicologia Social e do Trabalho. Instituto de Psicologia, ICC Sul. Campus Universitário Darcy Ribeiro. Brasília-DF, Brasil. CEP 70910-900. Email: jairo.borges@gmail.com

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    2012

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2011
  • Aceito
    04 Maio 2012
  • Revisado
    08 Abr 2012
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