Acessibilidade / Reportar erro

Análise sobre as emoções no livro Teoría de las emociones (Vigotski)

Analysis of the emotions in the book Teoría de las emociones (Vigotski)

Resumos

O tratamento dado às emoções como objeto de investigação em psicologia transitou entre a negligência e a depreciação. Contudo, observamos atualmente o ressurgimento do interesse pelo estudo acerca dessa temática. Nesse contexto, consideramos pertinente retomar e discutir algumas contribuições de Vigotski concernentes às emoções. O presente trabalho buscou analisar aspectos apontados por Vigotski no manuscrito intitulado Teoría de las emociones - estúdio histórico-psicológico. Centramo-nos na crítica do autor ao dualismo que caracterizava tanto a teoria organicista das emoções (explicativa), quanto à apropriação puramente filosófica, idealista (descritiva) dessas. Discutimos ainda o possível entrave de cunho teórico-metodológico ao projeto de Vigotski de fundamentar a sua teoria nas contribuições do filósofo Espinosa: as divergências entre a perspectiva materialista histórico-dialética e o racionalismo/idealismo de Espinosa. Embora não tenha alcançado o seu objetivo de produzir uma teoria materialista-dialética das emoções, Vigotski inovou ao buscar integrar arte, ética e ciência em sua análise.

emoções; psicologia; Vigotski


As a topic of research in psychology, emotions were treated with neglect and depreciation. However, we observe today a resurgence of interest in research of this topic. We consider it appropriate to retake and discuss some contributions of Vigotski related to emotions. This paper examined aspects pointed on the book Teoría de las emociones - estudio histórico-psicológico. He commented the dualism present in the organic theory of emotions (William James and Carl Lange). He also criticized the philosophical theories of emotions. We also pointed out the possible hindrance to support his theory of emotions on the contributions of the philosopher Spinoza: differences between the historical-dialectical materialist outlook and Rationalism-idealism of Spinoza. Although the goal of building a dialectical-materialist theory of emotion has not been reached, Vigotski innovated since sought to integrate art, ethics and science in his analysis.

emotion; psychology; Vigotski


ARTIGOS

Análise sobre as emoções no livro Teoría de las emociones (Vigotski)

Analysis of the emotions in the book Teoría de las emociones (Vigotski)

Áurea Júlia de Abreu Costa; Jesus Garcia Pascual

Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil

RESUMO

O tratamento dado às emoções como objeto de investigação em psicologia transitou entre a negligência e a depreciação. Contudo, observamos atualmente o ressurgimento do interesse pelo estudo acerca dessa temática. Nesse contexto, consideramos pertinente retomar e discutir algumas contribuições de Vigotski concernentes às emoções. O presente trabalho buscou analisar aspectos apontados por Vigotski no manuscrito intitulado Teoría de las emociones – estúdio histórico-psicológico. Centramo-nos na crítica do autor ao dualismo que caracterizava tanto a teoria organicista das emoções (explicativa), quanto à apropriação puramente filosófica, idealista (descritiva) dessas. Discutimos ainda o possível entrave de cunho teórico-metodológico ao projeto de Vigotski de fundamentar a sua teoria nas contribuições do filósofo Espinosa: as divergências entre a perspectiva materialista histórico-dialética e o racionalismo/idealismo de Espinosa. Embora não tenha alcançado o seu objetivo de produzir uma teoria materialista-dialética das emoções, Vigotski inovou ao buscar integrar arte, ética e ciência em sua análise.

Palavras-chave: emoções; psicologia; Vigotski.

ABSTRACT

As a topic of research in psychology, emotions were treated with neglect and depreciation. However, we observe today a resurgence of interest in research of this topic. We consider it appropriate to retake and discuss some contributions of Vigotski related to emotions. This paper examined aspects pointed on the book Teoría de las emociones - estudio histórico-psicológico. He commented the dualism present in the organic theory of emotions (William James and Carl Lange). He also criticized the philosophical theories of emotions. We also pointed out the possible hindrance to support his theory of emotions on the contributions of the philosopher Spinoza: differences between the historical-dialectical materialist outlook and Rationalism-idealism of Spinoza. Although the goal of building a dialectical-materialist theory of emotion has not been reached, Vigotski innovated since sought to integrate art, ethics and science in his analysis.

Keywords: emotion; psychology; Vigotski.

Introdução

O trabalho buscou analisar e discutir aspectos relativos aos processos emocionais que Vigoski (1933/2004b) apontou no manuscrito Teoría de las emociones - estúdio histórico-psicológico (depois transformado em livro).

O tratamento dado às emoções como objeto de investigação no âmbito da psicologia transitou entre a negligência e a depreciação. Não obstante, observamos atualmente o ressurgimento do interesse pelo estudo acerca da temática das emoções, principalmente como reação aos excessos provocados pelo enaltecimento da racionalidade (Lacroix, 2006).

A gênese da postura de negligência às emoções tem sido apontada como desdobramento do paradigma cartesiano (século XVII), que preconizou a tendência à dicotomização sujeito/objeto, corpo/mente, matéria/espírito, razão/emoção, repercutindo significativamente sobre o pensamento científico moderno (Plastino, 2001) e, consequentemente, sobre a psicologia, que priorizou a abordagem fragmentada do funcionamento psicológico humano (Vigotski, 1927/2004c).

Embora as emoções ainda configurem uma lacuna no campo da ciência psicológica, constatamos pesquisas recentes relacionadas ao tema. Há estudos no que tange à imbricação entre a emoção e a constituição social da subjetividade na perspectiva vigotskiana (González Rey, 2000b); às "reminiscências filosóficas", que resgatam e analisam as contribuições espinosanas (Lima, Bomfim, & Pascual, 2009); a vinculação entre emoções e a "identidade de lugar" (Ponte, Bomfim, & Pascual, 2009), ao "locus urbano" (Bomfim, 2010) e a novos estudos de base frankfurtiana (Soares, 2010).

O autor bielo-russo fez uma análise crítica das principais teorias que, na época, versavam sobre as emoções, especialmente a teoria de William James e Carl Lange. Essa, segundo Veer & Valsiner (2006), ficou condensada nas palavras de James: "Minha teoria é que as mudanças corporais seguem-se diretamente à percepção do fato estimulador e que nosso sentimento dessas mesmas mudanças quando elas ocorrem é a emoção" (p. 378).

A análise crítica de Vigostki (1933/2004b) centrou-se no aspecto amplamente aceito e compartilhado pelos referidos estudiosos – mas que, segundo ele, configurava o primeiro equívoco sobre as emoções: a concepção de que as emoções consistiam em nada além de processos de natureza exclusivamente biológica, restritas ao funcionamento orgânico. O autor bielo-russo criticou, também no livro analisado, um segundo equívoco decorrente da teoria descritiva das emoções, procedente da filosofia (Dilthey, Bergson), que considerava os sentimentos como não sendo causalmente determinados pelo corpo, isto é, ignoravam a dimensão corporal desses.

Referenciamos ainda outro trabalho de Vigotski (1932/1998), no qual o autor criticou a apropriação darwiniana das emoções como herança biológica da ancestralidade animal do homem, portanto, prescindível ao homem na atualidade.

E, em decorrência dessas leituras, mostramos que, para Vigostki (1932/1998; 1933/2004b), as emoções não se configuravam como acessórios prescindíveis da vida humana – adiposidade emocional aderida às sensações -, mas como dimensão inalienável dessa, na medida em que medeiam as interações humanas e as práticas sociais. As emoções são concebidas pelo autor numa perspectiva desenvolvimentista, em que a dimensão psicológica das emoções transforma as manifestações fisiológicas em significações subjetivas.

Assim, como funções psicológicas superiores, as emoções devem ser compreendidas em suas múltiplas dimensões, isto é, emergem de funções elementares (natureza orgânica), mas não se reduzem a essa, transformando-se na e pela interação com outras funções psicológicas tipicamente humanas.

Análise das emoções segundo Vigotski

Um aspecto crucial para compreender o contexto de negligência histórica às emoções foi apontado por Vigotski (1932/1998), para quem o desenvolvimento teórico dessa temática em psicologia fora profundamente influenciado por uma perspectiva naturalista e que, por essa razão, a questão das emoções teria sido relegada ao âmbito dos objetos de reduzida visibilidade, em comparação com outras temáticas das quais se ocupava a psicologia de sua época.

Para Vigotski (1933/2004b), a psicologia caracterizava-se ainda por posturas essencialmente dualistas, no que se referia ao estudo do funcionamento psíquico humano. Ainda de acordo com o autor, a psicologia de sua época havia esquecido o homem, na medida em que se ocupava de análises fragmentadas das partes componentes da consciência. Concebendo a tendência à dicotomização e, consequentemente, a análise fragmentada como entraves para a compreensão da consciência, Vigotski (1931/1995) apontava que o sujeito encontra-se necessariamente implicado no mundo em que vive, mas o faz em sua inteireza: "Quando uma pessoa dança, será que de um lado se encontra a soma dos movimentos musculares e do outro a alegria e o entusiasmo? Um e outro estão estruturalmente próximos." (Vigotski, 1927/2004c, p. 356).

Vigotski (1933/2004b) considerava um equívoco conceber as contingências do mundo em que o sujeito vive como idênticas às condições controladas do laboratório em que eram feitas as experiências fisiológicas: "posto que nas condições da vida real, em autênticas situações críticas, é difícil que o animal seccionado (operado) possa igualar-se ao normal no que se refere à possibilidade real de sobrevivência" (p. 35). Portanto, o sujeito não poderia ser compreendido isolado do contexto social e concreto de sua existência, nem seu funcionamento psicológico poderia ser compreendido a partir de análises isoladas dos aspectos que o compõem.

Em texto anterior, Vigotski (1932/1998) já apontava a depreciação histórica às emoções em decorrência da abordagem naturalista. Segundo o referido autor, para a ciência psicológica do início do século XX, as emoções constituíam um aspecto à parte da vida psíquica, que não se relacionava com os demais aspectos, pois supostamente seriam de natureza exclusivamente biológica. Sendo assim, para ele, Darwin teria contribuído para a configuração desse cenário de depreciação às emoções ao apontar uma correspondência total entre as emoções humanas e as reações instintivas observadas no comportamento animal, demonstrando a origem exclusivamente animal dos processos de natureza emocional.

Nessa perspectiva, as emoções se resumiriam a alterações orgânicas, herdadas dos ancestrais animais do ser humano. Profundamente influenciada pelos pressupostos naturalistas, a psicologia relegou as emoções ao plano dos assuntos de menor relevância, em detrimento de temáticas supostamente mais proeminentes (Vigotski, 1932/1998).

Os pressupostos de Darwin foram, assim, adotados pela psicologia para tratar a questão das emoções, estabelecendo uma correspondência total entre as emoções humanas e as reações instintivas observadas no comportamento animal. Tomadas apenas como resquícios de comportamentos herdados dos ancestrais animais do homem, relacionados às reações de fuga, defesa e ataque, as emoções, no homem da atualidade, apareciam apenas como um apêndice inútil. Elas se justificavam na vida humana apenas em épocas remotas da filogênese porque constituíam processos imprescindíveis à sobrevivência do indivíduo.

As emoções adquiriram, assim, caráter irrelevante do ponto de vista da psicologia do homem, na medida em que perderam seu caráter de importância vital, visto que o homo sapiens não compartilhava as mesmas condições sociais, históricas e ambientais de seus ancestrais, nas quais as emoções encontravam o seu mais alto grau de funcionalidade.

Portanto, as emoções humanas configuravam um objeto que só poderia ser abordado a partir de suas estreitas relações com as reações emocionais do animal e, também por essa razão, elas foram consideradas um assunto à parte, relegadas ao conjunto de temas secundários para a investigação psicológica (Vigotski, 1932/1998).

Ademais, Vigotski (1932/1998), afirmava que a ideia de que as emoções constituíam resquícios herdados de reações instintivas animais e, portanto, como processos determinados biologicamente, encerrava uma concepção estagnada, que pouco contribuía para a compreensão das emoções humanas, justamente por não abranger o caráter mutante das condições sociais, históricas e culturais que influenciam o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, típicas do ser humano. Sobre a perspectiva reducionista das emoções humanas a processos de origem animal, Vigotski (1932/1998) afirma: "semelhante formulação da questão excluía a possibilidade de estudar de forma adequada o que constitui as particularidades específicas das emoções do homem" (p. 81).

Tal perspectiva não abrangia as especificidades das emoções, pois não considerava as inter-relações que essas estabelecem com outros processos psicológicos característicos do desenvolvimento humano, que são social e historicamente determinados (Veer & Valsiner, 2006). Além disso, não respondia às questões que se apresentavam quanto à especificidade e diversidade de manifestações afetivas que caracterizam o sujeito humano.

Retomando a fonte primeira do presente estudo, o livro Teoría de las emociones, apontamos que Vigotski (1933/2004b) denunciou também as limitações epistemológicas inerentes à teoria organicista das emoções, que as reduzia às suas manifestações orgânicas. Tal teoria consiste nos estudos realizados por William James e Carl Lange, que, apesar de terem desenvolvido suas teorias de forma independente, chegaram a conclusões semelhantes: o caráter puramente orgânico das emoções e a concepção de que essas resultam das modificações fisiológicas que se processam no corpo. Vigotski (1932/1998, 1933/2004b) centrou a sua análise sobre as inconsistências que apresentava a teoria organicista das emoções, que descrevemos a seguir.

James e Lange defenderam a ideia de que a causa das emoções residia nas reações orgânicas que as acompanham, o que possibilitou a compreensão das mesmas como simples reflexos das reações orgânicas (corpo) na consciência (mente). A vida emocional (restrita ao corpo) era, assim, considerada um "estado dentro de outro", no qual as emoções permaneciam isoladas de outros processos psíquicos, podendo somente ser percebidas pela consciência, mas não se integrar a esta (Vigotski, 1933/2004b).

Essa teoria diferenciava ainda "emoções inferiores" de "emoções superiores", atribuindo origem e natureza distintas para ambas. Assim, somente as "emoções inferiores" (herdadas dos ancestrais animais) teriam origem e natureza orgânica, enquanto que as emoções consideradas superiores (sentimentos) estariam necessária e exclusivamente interligadas aos processos de pensamento. Tal ponto de vista teria contribuído para legitimar a dicotomia corpo/mente. Segundo Vigotski, (1932/1998), na medida em que essa teoria inclui a fragmentação dos processos emocionais em inferiores e superiores, é possível identificar nela a essência dualista, isto é, a separação entre consciência (mente) e emoções (corpo).

Segundo Vigotski (1933/2004b), a concepção de James sobre as emoções encerrava as seguintes ideias: (a) existiriam emoções inferiores, herança do processo de evolução animal, de origem orgânica, que permaneceram invariáveis em relação ao que se apresentava nos ancestrais animais; (b) no processo de evolução da espécie humana, surgiram emoções superiores, que não existiam nos animais. Uma das inconsistências dessa teoria, apontada por Vigotski (1932/1998), consistia em não explicar a continuidade entre o que foi herdado dos animais e o desenvolvimento emocional posterior do homem.

De acordo com Vigotski (1933/2004b), James e Lange utilizavam como prova fundamental de sua teoria o fato, para eles indubitável, de que as emoções não poderiam existir sem suas modificações fisiológicas. Para James, se se eliminam as reações orgânicas das emoções, essas se reduzem a nada, "o que resta é um juízo tranquilo, impassível que pertence por completo ao âmbito intelectual, puro pensamento" (Vigotski, 1933/2004b, p. 30) . Tendo sido descaracterizada a emoção (destituída das suas manifestações orgânicas), o que restava não poderia ser chamado de emoção, porque seria de outra natureza.

Para Vigotski (1933/2004b), a perspectiva de Lange não se diferenciava da de James, quando o primeiro afirmava que "as causas das emoções podem ser as mais variadas, que não tenham nada em comum com os processos mentais e, com frequência estas podem ser controladas ou atenuadas por meios puramente físicos" (p. 31).

Frente a estas ideias, Vigotski (1933/2004b) questionou-se sobre a possibilidade de uma emoção aparecer sem suas manifestações corporais e se seria possível uma emoção surgir nas seguintes condições: na falta do que chamou de processo mental e quando suas manifestações corporais são provocadas de maneira puramente artificial.

Para responder a tais perguntas, recorreu aos resultados dos experimentos de Sherrington e Cannon com animais, através dos quais se constatou que as emoções (sua expressão emocional e intensidade) apareciam mesmo quando era eliminada cirurgicamente a possibilidade de surgirem as manifestações orgânicas que, em condições normais, as acompanham.

Os resultados de tais experimentos refutavam os postulados de James e Lange: depois de seccionadas as conexões dos cérebros com os órgãos internos em cães, eliminaram-se as reações orgânicas das emoções, mas não se modificaram os comportamentos dos animais, pois a reação emocional (intensidade da expressão de raiva, medo) não deixou de se apresentar. A ausência de conexão com os órgãos internos não modificou em absoluto a conduta emocional habitual dos cães, demonstrando que as manifestações orgânicas não se configuravam como condição suficiente para o surgimento das emoções.

Vigotski (1933/2004b) decidiu, então, verificar o que chamou de "teorema inverso" (p. 38): a possibilidade da ausência de emoção, apesar das manifestações orgânicas estarem presentes. Para isso, recorreu aos experimentos de Marañon, nos quais, após uma injeção de adrenalina na corrente sanguínea, em quantidade suficiente para produzir os mesmos fenômenos orgânicos característicos das emoções intensas, não se provocou nos sujeitos (pessoas) a experiência emocional. Pela introspecção, os sujeitos constataram a ausência de emoção (nada se modificou na consciência dos sujeitos), apesar das modificações orgânicas terem se evidenciado.

A partir dos experimentos de Marañon, Vigotski (1933/2004b) concluiu que há um entrelaçamento dos aspectos psíquicos e somáticos da reação emocional; apesar de se apresentar uma relativa independência entre esses e de se poder provocá-los separadamente, um aspecto (psíquico ou somático) poderia facilitar o desenvolvimento do outro e até reforçá-lo, produzindo um afeto integral, mostrando, assim, que os aspectos psíquicos e somáticos da emoção mantêm uma estreita conexão.

À união dos aspectos psíquico e somático, Vigotski (1933/2004b) chamou de AFETO ÍNTEGRO. Apesar de poderem ser provocados de diferentes maneiras, eles vão ao encontro um do outro e, no momento da intersecção dos dois, nasce o verdadeiro fenômeno emocional.

O resultado desses estudos consiste num relevante dado que desconstrói a apropriação epistemológica da emoção como processo puramente biológico, visto que no fenômeno emocional, na idade adulta, não há somente alterações de natureza fisiológica ou orgânica, como no recém-nascido, mas transformações no estado da consciência do sujeito, ou seja, alterações de natureza psíquica.

O autor bielo-russo (1933/2004b) afirmou ainda que, ao apontar uma tendência a agir energicamente aparecendo junto com as manifestações orgânicas da raiva, James se contradiz e admite a presença conjunta de um estado de consciência, que seria o aspecto psíquico da emoção. Essa tendência a agir numa determinada direção constitui algo que não se resume a uma reação orgânica, mas que consiste no próprio componente psíquico da emoção.

Para Vigotski (1933/2004b), o mérito das investigações de Marañon residia em proporcionar o contato direto com o homem, inserindo no campo de observação do investigador o plano psicológico subjetivo, contrariamente às observações de caráter especulativo de James e Lange.

Os experimentos fisiológicos contribuíram para uma mudança de perspectiva na abordagem das emoções, a que Vigotski (1932/1998) chamou de "deslocamento do núcleo da vida emocional da periferia para o centro", na medida em que tais experimentos se prestaram a mostrar que:

o substrato real, os portadores reais dos processos emocionais não são, de modo algum, os órgãos internos da vida vegetativa, nem os mais antigos no aspecto biológico. ... o substrato material das emoções não é um mecanismo extracerebral, um mecanismo que se acha fora do cérebro humano, graças ao que se criou a doutrina das emoções como um estado à parte dentro de toda a psique, mas que é constituído por um mecanismo cerebral. Ligou o mecanismo das emoções com o cérebro, e esse deslocamento do centro da vida emocional dos órgãos da periferia para o cérebro incorpora as reações emocionais ao contexto anátomo-fisiológico geral de todos os conceitos anátomo-fisiológicos, que os relacionam estreitamente com o resto da psique humana. (pp. 94-95)

Com base nos estudos e experimentos psicofisiológicos, depreende-se que as reações emocionais são regidas pelo cérebro, que rege também outras funções psíquicas, o que desconstrói a ideia das emoções como uma dimensão à parte, desconectada dos demais aspectos da vida psíquica ("um estado dentro de outro"), o que termina por invalidar a dicotomia das emoções em emoções inferiores (de natureza orgânica) e emoções superiores (de natureza puramente intelectual). Os estudos vigotskianos demonstraram, no âmbito da psicologia, a interdependência entre o desenvolvimento das emoções e dos demais aspectos que constituem a vida psíquica humana.

Vigotski concebia todos os fenômenos psicológicos humanos a partir de uma perspectiva desenvolvimentista, ou seja, como processos, em contínuo desenvolvimento (Veer & Valsiner, 2006). Nesse sentido, Vigotski (1931/1995) também concebia as emoções não como continuum entre animais e homens, mas como processos cujas especificidades se constituem nas suas dimensões orgânica e sócio-histórico-cultural. Para Toassa (2009), Vigotski "trata as emoções como processos do organismo humano tornados funções da personalidade, histórica e culturalmente contingentes" (p. 162).

Portanto, pode-se inferir que, do ponto de vista histórico-cultural, as emoções não poderiam ser compreendidas como funções puramente biológicas, herdadas e imutáveis, mas como processos que tiveram seu desenvolvimento na filogênese, que têm um aspecto indubitavelmente biológico, mas que não se resume a esse. Na trajetória evolutiva, à medida que se desenvolve o aspecto intelectual, as emoções não permanecem invariáveis, mas se integram ao intelecto e a outras funções psíquicas, exercendo influência sobre estas (transformando-as) e, ao mesmo tempo, sendo influenciadas por aquelas (transformando-se na relação).

Nesse sentido, as emoções não poderiam permanecer invariáveis, meros correlatos animais no homem, já que Vigotski (1931/1995) compreendia o desenvolvimento das funções psicológicas superiores como processo essencialmente (não exclusivamente) determinado pela cultura. No caso das emoções, essas foram tomadas por Vigotski (1932/1999) como funções mentais que se relacionam com outros elementos da vida mental, na qual o orgânico interage necessariamente com o contexto sócio-histórico-cultural.

Toassa (2009) caracterizou as emoções como funções psíquicas superiores. Como tal, estas se desenvolvem a partir de suas conexões inferiores (de origem biológica), que, mediadas pela cultura, transformam-se em formas mais diversificadas e complexas de organização afetiva, que caracterizam a dimensão da afetividade humana. Para a autora, na perspectiva histórico-cultural

as emoções surgem como funções mentais que, das bases biológicas permeadas por correlatos no universo animal (embora dotadas de componentes especificamente humanos), transformam-se em algo qualitativamente novo no processo de desenvolvimento. Os sistemas psicológicos socializados criam, então, as manifestações bizarras ou belas da vida emocional. (Toassa, 2009, p. 143)

O substrato biológico das funções psíquicas superiores consiste no cérebro (Vigotski, 1931/1995), composto de estruturas que funcionam de forma concertada (Luria, 1980). Adquirem o caráter de "superiores" devido ao fato de essas funções serem reguladas pelo córtex cerebral - camada mais externa do cérebro, de origem filogenética recente, que permite ao sujeito exercer controle sobre a própria conduta (Vigotski, 1931/1995). As interações entre a dimensão biológica (cérebro humano) e a cultura determinam o surgimento das funções psicológicas superiores e, consequentemente, da própria condição humana.

Assim, apesar de apresentar aspectos convergentes com as emoções nos animais, as emoções humanas não podem ser reduzidas a simples atualizações da herança ancestral animal, nem podem ser consideradas processos inferiores e inúteis na vida do homem na contemporaneidade. Vigotski (1926/2004a) defendeu que, em sua dimensão psicológica, as emoções contribuem para complexificar e diversificar o comportamento.

Toassa (2009) defendeu que, no conjunto da obra de Vigotski, a emoção não aparece como realidade independente de outras funções da consciência, mas, necessariamente, integrada ao contexto das vivências subjetivas. Sobre o conceito de vivência (perejevânie) em Vigotski, a autora afirma:

Havendo atividade cerebral humana, qualquer que seja o grau de emotividade, haverá vivência; embora cada vivência seja marcada pela atividade mais intensa desta ou daquela função psíquica. Pensamento e emoção se integram na vivência, não mais se opondo. ... As vivências inscrevem-se numa temporalidade de fatos que se estendem no passado, presente e futuro da vida psicológica. Na teoria histórico-cultural propriamente dita, toda função psíquica superior tem uma face vivencial – ao lado de sua ação no mundo, e tanto as partes como o todo da consciência podem ser generalizadas pela linguagem que se imiscuiu no seu processo de constituição. (Toassa, 2009, p. 28)

Assim, o conceito de vivência, como salientado por Toassa (2009), mostrou-se como mais uma apropriação vigotskiana na tentativa de construção de uma abordagem monista do psiquismo, além de demonstrar a interdependência entre a consciência e a realidade social na vida humana. Vigotski (1933/2004b) demonstrou no livro Teoría de las emociones que a teoria organicista de James e Lange era essencialmente dualista e buscou o monismo do psiquismo na teoria espinosana das emoções; intento que não conseguiu alcançar, conforme apontam Veer e Valsiner (2006). Entretanto, como abordaremos nas reflexões a seguir, defendemos que o propósito vigotskiano de fundamentar sua teoria em Espinosa não foi alcançado por razões de cunho teórico-metodológico, e não apenas por razões circunstanciais (desinteresse pelo texto, doença, premência de outros trabalhos etc.), conforme apontaram Veer e Valsiner (2006).

Significados encontrados na leitura do livro Teoría de las emociones

Após a análise do conteúdo do texto Teoría de las emociones, procedemos a levantar alguns significados sobre as emoções, apreendidos na leitura do livro. Nosso intuito foi encontrar significados gerais que sirvam como categorias norteadoras para extrair conhecimentos sobre as emoções, já que o manuscrito vigotskiano, que chegou até nós em forma de livro, mostra-se inacabado e, por vezes, confuso. Procedemos à análise a partir de conceitos gerais mais conhecidos sobre a teoria visgotskiana das emoções até outros que nos pareceram menos comentados.

1. Vigostki, ao se posicionar contra o reducionismo fisiológico, apontou o significado psicológico nas emoções humanas

Em primeiro lugar, as emoções não se reduzem às sensações conforme afirma o fisiologista dinamarquês na sua teoria organicista vasomotora. Vigotski (1933/2004b) mostrou que Lange afirmava claramente seu reducionismo quando expressava que as emoções dissipavam-se ao se lhes retirar as manifestações orgânicas: "Suprimam no medo os sintomas físicos, devolvam a calma à pulsação agitada, ao olhar sua firmeza, à face sua cor normal, aos movimentos sua rapidez, à língua sua atividade, ao pensamento sua clareza, e o que ficará do medo?" (p. 18). E James, comentou Vigotski (1933/2004b), confirmou o reducionismo físico nas emoções quando julgou supérflua a hipótese psíquica para descrevê-las, daí que "se as manifestações corporais não sucedessem imediatamente à percepção, esta última seria, por sua forma, um ato puramente cognitivo, pálido, carente de colorido e de calor emocional" (p. 20). Assim, para James e Lange, as manifestações emocionais presentes nos processos sensoriais eram consideradas como epifenômenos, apêndices correlatos; o fenômeno principal era a mudança fisiológica acontecida no corpo, provocada pelas sensações. Desse modo, constatar as lágrimas (processo fisiológico) provocava a tristeza (processo emocional).

Prosseguindo na sua crítica à teoria organicista de James e Lange, Vigotski (1933/2004b) apontou uma guinada na abordagem das emoções, deslocando o eixo da pergunta: "ou à inversa, devemos admitir que o fato de experimentar emoções de modo consciente representa o fenômeno fundamental e principal, e que as modificações corporais que o acompanham sejam unicamente um epifenômeno? (p.21). O autor bielo-russo mostrou a impossibilidade de se reduzir a emoção à sensação fisiológica ou de se considerar a emoção como correlato da sensação, referindo-se a uma constatação promovida dentro do campo fisiológico, já que uma injeção de adrenalina provocava as mesmas manifestações corporais típicas que acompanham as emoções intensas, mas sem o significado emocional pressuposto. Os sujeitos que recebiam a injeção de adrenalina sentiam as reações fisiológicas de situação de euforia, mas não se sentiam eufóricos!

Vigotski (1933/2004b) acrescentou, pois, o significado que dá unidade às emoções humanas nas vivências, e apontou na direção do sentido da emoção na estrutura psíquica dos sujeitos: "a ideia de que a emoção não é simplesmente a soma das sensações das reações orgânicas, senão principalmente uma tendência a agir numa determinada direção" (p. 40). Porque - questionava-se ele - como "pode aparecer o medo na qualidade de estrutura psíquica única e coerente, na qualidade de emoção inteira, a partir de sensações como diminuição da velocidade respiratória, das palpitações cardíacas, de suar frio etc."? (Vigoski, 1933/2004b, p.111) . A emoção pressupõe, assim, a dimensão psicológica, subjetiva, que sinaliza o contexto vivencial e significativo no qual se inscreve.

2. Vigotski considerava insatisfatória a teoria organicista explicativa e a teoria descritiva no que se refere ao nexo causal entre a dimensão fisiológica e a dimensão psíquica das emoções

O autor bielo-russo buscou um nexo que explicasse a relação entre os aspectos fisiológicos e os aspectos psicológicos nas emoções, mas considerava que nenhuma das duas teorias mantinha o nexo causal. A teoria organicista de James e Lange explicava, pela via eferente dos impulsos nervosos, a emoção constituída pelas modificações fisiológicas que se processavam no corpo, reduzindo as reverberações psicológicas à mera adiposidade sentimental. Mas a explicação causal mecanicista proposta por James (teoria explicativa) parecia simplificar o nexo inextricável que há entre as manifestações fisiológicas e os sentimentos que a mãe tem ao perder um filho. Certamente, torna-se difícil concordar com a explicação mecanicista apresentada por James (Vigotski, 1933/2004b) sobre o "pavor" provocado pela morte de um filho, para quem tal sentimento era provocado pelo fato de que se experimenta "um sentimento associado ao aumento das batidas do coração, à respiração rápida, ao tremor dos lábios, à fragilidade dos membros, ao arrepio e aos calafrios na barriga" (p. 122).

A explicação causal apresentada pela teoria explicativa mecanicista (James-Lange) surpreendia não só nosso autor como provocava indignação em alguns psicólogos e filósofos: Dilthey, Spranger, Bersong (teoria descritiva). Mas essa teoria sobre as emoções quebrava também o nexo entre sensação e emoção, na medida em que justificava as reações corporais como resultado da "vontade" da alma. Constatamos que a teoria descritiva ancorava-se decididamente na concepção dualista de Descartes (1649/2000), que propunha duas espécies de "vontades": "Algumas consistem em ações da alma que terminam na própria alma (amar a Deus) ... as outras são ações que terminam em nosso corpo (termos vontade de passear, redunda que nossas pernas se mexam e nós caminhemos)" (p. 117).

De acordo com Veer & Valsiner (2006), Vigotski se opôs às duas teorias marcando seu descontentamento com o rumo dualista que a psicologia seguia: "A tragédia de toda psicologia moderna, que consiste no fato de que ela não consegue encontrar uma maneira de compreender a verdadeira ligação adequada entre nossos pensamentos e sentimentos, de um lado, e a atividade do corpo, de outro lado" (p. 384). À procura do nexo causal entre o lado fisiológico e o lado psicológico nas emoções, o autor bielo-russo buscou apoio teórico na orientação para o futuro que apontava a obra de Espinosa, e não no aspecto morto e atrofiado desse autor, como o fez Dilthey.

3. Interlocuções vigotskianas inconclusas com a Filosofia racionalista (Espinosa) no que tange às emoções

A presença de Espinosa nos escritos vigotskianos não se resume ao livro Teoría de las emociones; parece que Vigotski tinha admiração não só teórica pelo filósofo holandês, mas pela sua atitude frente às adversidades da vida . Espinosa não reagiu com hostilidade contra a atitude dos rabinos da sinagoga de Amsterdã, e a essa "maneira espinosana" de lidar com as emoções Vigostki recorreu para manifestar seus sentimentos em relação a Leontiev por motivo da separação teórica cada vez maior entre eles: "Aparentemente, nem em sua biografia, nem na minha, nem na história de nossa psicologia, isto que aconteceu será repetido. Estou tentando entender tudo isto da maneira spinozana – com tristeza, mas aceitando como algo inevitável" (Veer & Valsiner, 2006, p. 316).

No livro, objeto de análise do presente artigo, Vigostki (1933/2004b) recorreu ao estudo do monismo de Espinosa sobre as emoções, em parte como antídoto contra o dualismo cartesiano. Pensou que poderia resolver o problema do nexo causal das emoções, mas logo viu que: "Espinosa sempre lutou por uma explicação causal, determinista, natural e materialista das paixões humanas" (p.232). Ora, esse era o fulcro teórico de James e Lange, portanto, o problema do nexo continuou sem solução no livro Teoría de las emociones.

Cabe levantar uma questão teórica sobre a recorrência ao monismo espinosano para tratar o nexo casual nas emoções. Pensamos que os referenciais epistemológicos dos quais partem Vigostki (materialismo histórico-dialético) e Espinosa (racionalismo monista) são diferentes. Comentaremos os dois referenciais e teceremos algumas reflexões sobre suas implicações no estudo das emoções.

O monismo espinosano parte do conceito de Natureza, que contém em si a Natura naturans (Deus) e a natura naturata (os seres). A primeira acepção de Natureza (Deus) é a origem do todos os outros seres (já existentes ou com possibilidade de existir); a segunda acepção de natureza é um desdobramento de Deus, que não alcança, é claro, a sua perfeição. Nesse sentido, Rohdem, no prefácio ao livro de Espinosa (1696/2003), explica a relação Deus e os outros seres: "Deus é infinito em sua essência, mas finito em suas existências ou manifestações. Deus, essencialmente infinito, é existencialmente finito" (p.21).

Vemos que a manifestação da Natura naturans na natura naturata não pode ser entendida pelos princípios do materialismo histórico-dialético. Esse modelo epistemológico defende que a matéria se transforma dialeticamente em cultura com a mediação do trabalho (não é mera manifestação fenomênica). A transformação da natureza em cultura é dialética, e recordemos que Hegel, para falar de dialética, usa, diz Nóbrega (2009), um verbo alemão (aufheben) que significa ao mesmo tempo "suspender" e "cessar". Na relação dialética encontra-se o suspender a ação (mas que poderá vir a ser realizada depois) e o cessar a ação (nunca mais será realizada porque foi cancelada sua execução).

Portanto, a transformação da matéria (reações do corpo nas emoções) em sentimentos (dimensão psicológica nas emoções) se dá de forma dialética, isto é, as modificações orgânicas ficam "suspensas" no plano psicológico, mas nem por isso acabam no plano orgânico (tese). Mas essas modificações orgânicas vão cessar enquanto meramente orgânicas a partir do momento que recebam significado (antítese) e virão a ser (devir/síntese) um processo emocional humano.

A ruptura dualista do materialismo-dialético supõe estagnar o processo das emoções humanas na tese (a emoção é apenas modificação orgânica) e impedir sua cópula fecunda com a antítese (a emoção é apenas o significado atribuído a essas modificações orgânicas). Mas quando se junta tese e antítese, as reações orgânicas e suas significações psicológicas devêm (devir) emoções humanas superiores. Eis o aspecto histórico de seu desenvolvimento na teoria histórico-cultural.

A explicação espinosana da realidade segue a trilha do idealismo, na medida em que se trata de natureza racionalizada e não materializada. Portanto, a consciência/razão precede a matéria, o que contradiz o pressuposto marxiano (a matéria precede a consciência).

A divisão corpo-alma não faz sentido na teoria espinosana porque a realidade é toda espiritual (na medida em que se entendam todos os seres como emanações de Deus, que é espírito puro), ou é toda ela material (na medida em que se entenda Deus como formado pelos seus desdobramentos espaço-temporais). Da metafísica monista (explicitada nas partes I e II do seu livro Ética, demonstrada ao modo dos geômetras), Espinosa (1696/2003) tratou da origem e da natureza das paixões. Para ele, a liberdade humana não se identificava com a "vontade" (Descartes), mas com a "razão", que busca sempre a harmonia absoluta da Natureza composta pela sintonia entre a Natura naturans e natura naturata.

Ser livre supõe, para Espinosa, conhecer a harmonia da Natureza de tal forma que nossa razão siga "livremente" sua inclinação para o conhecimento pleno da realidade. Mas, segundo Espinosa (1696/2003), por vezes a razão se vê perturbada pelas "paixões": "Por paixões, entendo as afecções do corpo pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou reduzida, assim como as ideias dessas afecções" (p. 197). A paixão pode, portanto, diminuir o conatus, isto é, a potência de agir desse corpo; nesse caso, Espinosa (2003/1696) diz: "Chamo 'servidão' a impotência do homem para governar e refrear suas paixões" (p. 283).

Observamos que a transformação da "servidão" em paixão favorecida significa entrar em harmonia com a razão, que se sente atraída pelo Bem supremo (Deus). Percebe-se na teoria espinosana das emoções a tendência imantada de entrosamento cada vez mais plena entre a natura naturata e Natura naturans. Mas não podemos esquecer que Espinosa é um racionalista idealista. Talvez por isso Vigotski não pudesse se utilizar dessa teoria monista no livro Teoría de las emociones.

Considerações finais

O livro Teoría de las emociones apresentou-se confuso, com repetições e sem uma resposta clara ao que Vigotski postulava: manter o nexo causal entre o aspecto fisiológico e o aspecto psicológico das emoções, fulcro do que denominou por afeto íntegro. Emocionar-se seria, pois, para Vigotski, ultrapassar a constatação das mudanças no corpo (reações reflexas que provocam alteração na cor da pele, ressecamento da boca, sudorese, palpitações etc.) para dar-lhes significação no repertório das ações humanas.

Observamos que Vigotski mostra certamente no livro que a teoria organicista das emoções, vista na linearidade da fisiologia, conduz às lágrimas carpideiras (profissional feminina cuja função consiste em chorar para um defunto alheio), quimicamente explicadas como secreção formada por proteínas e gorduras e desprovidas de sentimento. Mas alerta-nos contra a tendência contrária (romântica), que considera as lágrimas como eflúvios que, quando a dor não cabe mais no coração, ela transborda pelos olhos (mãe chorando a morte do filho).

Assim, a emoção é um processo psicossomático irredutível apenas ao corpo ou à alma. Como acontece esse processo não fica claro no livro, mas, com certeza, ecoa na teoria das emoções o intento da obra vigotskiana, que buscou integrar arte (emocionamo-nos diante de um quadro), ética (as paixões da alma são controladas na abordagem espinosana) e ciência (o corpo modifica-se na emoção).

Notas

1 O nome do autor bielo-russo admite várias grafias, a saber, Vigotsky, Vygotsky, Vigotskii e Vigotski. Neste trabalho, optamos por "Vigotski" por se tratar da grafia equivalente mais próxima da língua portuguesa. No entanto, nas referências aos livros consultados, mantivemos as grafias utilizadas pelos editores.

2 "puesto que, em las condiciones de la vida real, em auténticas situaciones críticas, es difícil que el animal operado pude igualar al normal poro que a la posibilidad real de supervivencia se refiere".

3 "lo que queda es un juicio tranquilo, impasible, que pertenece por completo al ámbito intelectual, puro pensamiento".

4 "las emociones pueden ser provocadas por numerosas causas que no tengan absolutamente nada en común con los procesos mentales y, con frecuencia, éstas pueden ser controladas o atenuadas por medios puramente físicos".

5 "Suprimid en el miedo los síntomas físicos, devolved la calma al pulso agitado, a la mirada su firmeza, a la tez su color normal, a los movimientos su rapidez y seguridad, a la lengua su actividad, al pensamiento su claridad, y que quedará del miedo?".

6 "Si las manifestaciones corporales no sucedieran inmediatamente a la percepción, esta última sería, por su forma, un acto puramente cognitivo, pálido, carente de colorido y de 'calor' emocional".

7 "o a la inversa, debemos admitir que el hecho de experimentar emociones de manera consciente representa el fenómeno fundamental y principal, y que las modificaciones corporales que lo acompañan sean únicamente un epifenómeno?".

8 "la idea de que la emoción no es simplemente la suma de las sensaciones de las reacciones orgánicas sino, principalmente, una tendencia a actuar en una dirección determinada".

9 "cómo puede aparecer el miedo en calidad de estructura psíquica única y coherente, en calidad de emoción entera, a partir de sensaciones como la disminución de la velocidad de la respiración, las palpitaciones cardíacas, el sudor frio".

10 "Porque experimentamos un sentimiento asociado al aumento de los latidos del corazón, a una respiración corta, al temblor de los labios, al debilitamiento de los miembros, a la carne de gallina y al estremecimiento de las vísceras".

11 Cabe lembrar a execração pública que Espinosa recebeu à porta da sinagoga de Amsterdã em 1656: "Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos, excomungamos, expulsamos, execramos e maldizemos Baruch de Espinosa... maldito seja de dia e de noite; maldito seja quando se deita e maldito seja quando se levante" (p. 5). Chauí, M. H. (2000). Espinosa: vida e obra. In B. Espinosa, Espinosa (Coleção Os Pensadores, pp. 5-19). São Paulo: Nova Cultural.

Agradecimento

Agradecemos o apoio oferecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES/REUNI para a realização deste estudo.

Referências

Bomfim, Z. (2010). Cidade e Afetividade. Estima e construção dos mapas afetivos de Barcelona e de São Paulo. Fortaleza: Edições UFC.

Descartes, R. (2000). As paixões da alma (Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural. (Original publicado em 1649)

Espinosa, B. (2003). Ética, demonstrada à maneira dos geômetras. São Paulo: Martin Claret. (Original publicado em 1696)

González Rey, F. L. (2000). El lugar de las emociones en la constitución social de lo psíquico: El aporte de Vigotski. Revista Educação & Sociedade, ano XXI, 70, 132-148.

Lacroix, M. (2006). O culto da emoção: ensaios (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: José Olympio. (Original publicado em 2001)

Lima, D., Bomfim, Z., & Pascual, J. G. (2009, junho/setembro). Emoção nas veredas da Psicologia Social: reminiscências na filosofia e psicologia histórico-cultural. Revista Psicologia Argumento, 27(58), 231-240.

Luria, A. R. (1980). Higher cortical functions in man. New York: Basic Books.

Nóbrega, F. P. (2009). Compreender Hegel (5ª ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.

Plastino, C. A. (2001). O primado da afetividade. A crítica freudiana ao paradigma moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumará .

Ponte, A, Bomfim, Z., & Pascual, J. G. (2009, outubro/dezembro). Considerações teóricas sobre identidade de lugar à luz da abordagem histórico-cultural. Revista Psicologia Argumento, 27(59), 345-354.

Soares, J. C. (2010). Escola de Frankfurt: inquietudes da razão e da emoção. Rio de Janeiro: EdUERJ.

Toassa, G. (2009). Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Acesso em 19 novembro, 2012, em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-19032009-100357/

Veer, R. & Valsiner, J. (2006). Vygotsky: uma síntese (C. Bartalotti, Trad., 5ª ed.). São Paulo: Ed. Loyola.

Vigotski, L. S. (1995). Historia del desarollo de las funciones psíquicas superiores (Obras Escogidas, 3). Madrid: Visor Distribuiciones. (Original publicado em 1931)

Vigotski, L. S. (1998). O desenvolvimento psicológico na infância. São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1932)

Vygotsky, L. S. (1999). On the problem of the psychology of the actor's creative work (The Collected Works of L. S. Vygotsky, 6). New York: Kluwer Academic/Plenum Publishers. (Original publicado em 1932)

Vigotski, L. S. (2004a). Psicologia Pedagógica. São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1926)

Vigotsky, L. (2004b). Teoría de las emociones – Estudio histórico-psicológico. Madrid: Akal. (Original publicado em 1933)

Vigotski, L. S. (2004c). O significado histórico da crise da psicologia. In L. S. Vigotski, Teoria e método em psicologia (3ª ed., pp. 203-417) São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1927)

Recebido em: 14/12/2010

Revisão em: 09/04/2012

Aceite em: 17/05/2012

Áurea Júlia de Abreu Costa é Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza/CE, Brasil. Email: aureajulia@yahoo.com.br

Jesus Garcia Pascual é Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Professor do Mestrado em Psicologia da mesma Universidade, Fortaleza/CE, Brasil. Endereço: Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades. Av. da Universidade, 2853, Benfica. Fortaleza/CE, Brasil. CEP 60020-181. Email: garciapascual2001@yahoo.com.br

  • Bomfim, Z. (2010). Cidade e Afetividade. Estima e construção dos mapas afetivos de Barcelona e de São Paulo Fortaleza: Edições UFC.
  • Descartes, R. (2000). As paixões da alma (Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural. (Original publicado em 1649)
  • Espinosa, B. (2003). Ética, demonstrada à maneira dos geômetras São Paulo: Martin Claret. (Original publicado em 1696)
  • González Rey, F. L. (2000). El lugar de las emociones en la constitución social de lo psíquico: El aporte de Vigotski. Revista Educação & Sociedade, ano XXI, 70, 132-148.
  • Lacroix, M. (2006). O culto da emoção: ensaios (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: José Olympio. (Original publicado em 2001)
  • Lima, D., Bomfim, Z., & Pascual, J. G. (2009, junho/setembro). Emoção nas veredas da Psicologia Social: reminiscências na filosofia e psicologia histórico-cultural. Revista Psicologia Argumento, 27(58), 231-240.
  • Luria, A. R. (1980). Higher cortical functions in man New York: Basic Books.
  • Nóbrega, F. P. (2009). Compreender Hegel (5ª ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Plastino, C. A. (2001). O primado da afetividade. A crítica freudiana ao paradigma moderno Rio de Janeiro: Relume Dumará
  • Ponte, A, Bomfim, Z., & Pascual, J. G. (2009, outubro/dezembro). Considerações teóricas sobre identidade de lugar à luz da abordagem histórico-cultural. Revista Psicologia Argumento, 27(59), 345-354.
  • Soares, J. C. (2010). Escola de Frankfurt: inquietudes da razão e da emoção Rio de Janeiro: EdUERJ.
  • Toassa, G. (2009). Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Acesso em 19 novembro, 2012, em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-19032009-100357/
  • Veer, R. & Valsiner, J. (2006). Vygotsky: uma síntese (C. Bartalotti, Trad., 5ª ed.). São Paulo: Ed. Loyola.
  • Vigotski, L. S. (1995). Historia del desarollo de las funciones psíquicas superiores (Obras Escogidas, 3). Madrid: Visor Distribuiciones. (Original publicado em 1931)
  • Vigotski, L. S. (1998). O desenvolvimento psicológico na infância São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1932)
  • Vygotsky, L. S. (1999). On the problem of the psychology of the actor's creative work (The Collected Works of L. S. Vygotsky, 6). New York: Kluwer Academic/Plenum Publishers. (Original publicado em 1932)
  • Vigotski, L. S. (2004a). Psicologia Pedagógica São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1926)
  • Vigotski, L. S. (2004c). O significado histórico da crise da psicologia. In L. S. Vigotski, Teoria e método em psicologia (3ª ed., pp. 203-417) São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1927)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    2012

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2010
  • Aceito
    17 Maio 2012
  • Revisado
    09 Abr 2012
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revistapsisoc@gmail.com