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O inconsciente sócio-histórico: notas sobre uma abordagem dialética da relação consciente-inconsciente

The unconscious social-historical: notes about a dialect relationship between conscious-unconscious

Resumos

O inconsciente, tal como é tratado pela psicologia sócio-histórica, não é uma instância absoluta e dominante da consciência. Pelo contrário, ambos mantêm-se em uma relação dialética, um garantindo e possibilitando a existência do outro polo. Partindo desse entendimento, buscamos explicar ao longo deste artigo a forma como se dá essa relação. Como esta relação entre inconsciente e consciente se diferencia da forma como é usualmente tratada pela psicologia, também nos preocupamos em esclarecer o que é o inconsciente para essa abordagem e, dada a condição epistêmica comum entre as análises acerca das condições sociais e a ontogenia na teoria marxista e a teoria sócio-histórica, também nos detivemos na diferenciação entre a alienação e o inconsciente. Por fim, apontamos a necessidade de aprofundar o estudo do inconsciente na perspectiva da psicologia sócio-histórica. Por fim, apontamos a necessidade de aprofundar o estudo do inconsciente dentro desta perspectiva teórica.

psicologia sócio-histórica; inconsciente; consciência


The unconscious, as is addressed by the Socio-historical Psychology is not an absolute and dominant instance of consciousness, but co-exist in a dialectical relationship in which one allows the existence of the other. From this understanding, we explain throughout this article how this relationship occurs. How different is the way it is usually treated by Psychology also take care to clarify what is the unconscious to this approach and, given the epistemic condition common among analysis about social conditions, and ontogeny in Marxist theory and Socio-historical field. Also we point the differentiation between alienation and the unconscious. Finally, we point out the need for further studies on the unconscious within this theoretical perspective.

socio-historical psychology; unconscious; consciousness


ARTIGOS

O inconsciente sócio-histórico: notas sobre uma abordagem dialética da relação consciente-inconsciente

The unconscious social-historical: notes about a dialect relationship between conscious-unconscious

Lívia Gomes dos Santos; Inara Barbosa Leão

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, Brasil

RESUMO

O inconsciente, tal como é tratado pela psicologia sócio-histórica, não é uma instância absoluta e dominante da consciência. Pelo contrário, ambos mantêm-se em uma relação dialética, um garantindo e possibilitando a existência do outro polo. Partindo desse entendimento, buscamos explicar ao longo deste artigo a forma como se dá essa relação. Como esta relação entre inconsciente e consciente se diferencia da forma como é usualmente tratada pela psicologia, também nos preocupamos em esclarecer o que é o inconsciente para essa abordagem e, dada a condição epistêmica comum entre as análises acerca das condições sociais e a ontogenia na teoria marxista e a teoria sócio-histórica, também nos detivemos na diferenciação entre a alienação e o inconsciente. Por fim, apontamos a necessidade de aprofundar o estudo do inconsciente na perspectiva da psicologia sócio-histórica. Por fim, apontamos a necessidade de aprofundar o estudo do inconsciente dentro desta perspectiva teórica.

Palavras-chave: psicologia sócio-histórica; inconsciente; consciência.

ABSTRACT

The unconscious, as is addressed by the Socio-historical Psychology is not an absolute and dominant instance of consciousness, but co-exist in a dialectical relationship in which one allows the existence of the other. From this understanding, we explain throughout this article how this relationship occurs. How different is the way it is usually treated by Psychology also take care to clarify what is the unconscious to this approach and, given the epistemic condition common among analysis about social conditions, and ontogeny in Marxist theory and Socio-historical field. Also we point the differentiation between alienation and the unconscious. Finally, we point out the need for further studies on the unconscious within this theoretical perspective.

Keywords: socio-historical psychology; unconscious; consciousness.

Introdução

O presente artigo tem por objetivo identificar alguns dos pressupostos do Inconsciente na perspectiva da psicologia sócio-histórica. Como está evidenciado em nosso título, nossa orientação epistêmica é o materialismo histórico-dialético, particularmente nas produções da psicologia sócio-histórica, o que implica uma forma de conceber o inconsciente fundamentalmente diferente de como que é usualmente utilizada pela psicologia.

A diferença fundamental reside na necessidade de considerar o inconsciente em relação de dialeticidade com a consciência. Inconsciente, consciência e as mediações que perpassam estas duas qualidades do psiquismo são construções sociais e, como tais, determinadas pelo contexto sócio-histórico no qual são desenvolvidas; portanto, só podem ser compreendidas quando tomadas em relação.

Nessa concepção, existe uma relação dinâmica e permanente entre consciente e inconsciente, de tal forma que o inconsciente atua em nosso comportamento, e é a partir destas manifestações que é possível identificar as leis que o regem. Consciente e inconsciente são tomados como qualidades diferentes de um mesmo objeto, formas diferenciadas do psiquismo. Ambos vivem

uma relação de mediação, na qual um não se dilui no outro, cada qual mantendo sua identidade, ainda que um não exista sem o outro. Pode-se afirmar, portanto, que o inconsciente é parte constitutiva da consciência e vice-versa. Nessa medida, convém ressaltar que também o inconsciente é histórico e social, a despeito de, ao mesmo tempo, ser individual, singular. (Aguiar, 2000, p. 137)

A consciência, consequentemente, existe no antagonismo com a inconsciência, ou seja, um é o contrário que garante e possibilita a existência do outro aspecto do psiquismo. Assim como a consciência, o inconsciente movimenta-se, é ativo, interage com todas as Funções Psicológicas Superiores e constitui-se como um elemento a mais na dinâmica psíquica.

Dessa forma, o inconsciente, para nós, não é uma instância absoluta e inatingível do psiquismo, que existe a priori. Estas duas esferas do psiquismo não podem ser concebidas como separadas por um muro intransponível: o inconsciente contém aspectos conscientes, ainda que sob a forma de potencialidades (o inconsciente pode vir a ser consciente); e os processos e conteúdos conscientes também possuem características inconscientes. Além disso, por meio da atividade e da apropriação de conteúdos culturais, o inconsciente pode vir a se tornar consciente (e vice-versa), adquirindo com isso outras configurações. Tal afirmação só pode ser compreendida tendo em vista que Vigotsky (citado por Sirgado, 2000) indica que as formas superiores de comportamento do homem derivam das condições proporcionadas pela prática social e suas concepções organizadas, que constituem a cultura. Essa, por sua vez, será apropriada pelos sujeitos particulares, que usarão estes conteúdos para orientar a sua atuação: essa é a característica do comportamento consciente. Ora, se tomamos a consciência como o domínio de elementos culturais, determinado conteúdo inconsciente será superado quando o sujeito apropriar-se das produções culturais que o caracterizam; e essa apropriação só é possível por meio da atividade.

Ao longo deste artigo, evidenciaremos como concebemos o inconsciente sócio-histórico, em especial no que tange à sua relação com a consciência. E, para concluirmos, indicaremos a necessidade de se aprofundarem os estudos acerca desta instância do psiquismo humano sob a ótica do materialismo histórico-dialético.

O inconsciente e a consciência sócio-históricos

A psicologia sócio-histórica é uma teoria psicológica que parte do entendimento dos homens como seres ativos que, ao atuarem sobre o mundo, constituem sua subjetividade. Tal ciência psicológica foi desenvolvida por Lev Semionovich Vigotsky e colaboradores, em especial Alexander Romanovich Luria e Aléxis Leontiev, e que tinham como objetivo o desenvolvimento de estudos e pesquisas que garantissem o entendimento e a construção de sujeitos ativos, transformadores de seu ambiente. Uma psicologia dialética, na qual o homem fosse compreendido em todas as suas particularidades e com base na sua existência material, real e atuante no mundo em que vive. Esses deveriam ser, de acordo com Vigotsky (2004), os pressupostos que serviriam de guia para a construção de uma ciência psicológica. Duarte (2000, p. 81) afirma que:

a construção da psicologia marxista era vista por Vigotski não como o surgimento de mais uma entre as correntes da psicologia, mas sim como o processo de construção de uma psicologia verdadeiramente científica. Essa psicologia científica não seria, entretanto, construída através da justaposição de citações extraídas dos clássicos do marxismo a dados de pesquisas empíricas realizadas por meio de métodos fundamentados em pressupostos filosóficos contraditórios ao marxismo. Vigotski entendia ser necessária uma teoria que realizasse a mediação entre o materialismo dialético, enquanto filosofia de máximo grau de abrangência e universalidade, e os estudos sobre os fenômenos psíquicos concretos.

A ciência psicológica desenvolvida por Vigotsky exige também a compreensão de que a materialidade do mundo existe independente do sujeito e esta tem influência direta na forma como ele irá construir as suas funções psicológicas superiores, que são os meios estruturais que compõem e promovem o funcionamento psicológico humano. Entretanto, não ocorre uma simples transposição dos conhecimentos e práticas sociais para os indivíduos; ao contrário, trata-se de um complexo processo no qual o indivíduo apropria-se desses conteúdos. Sobre isso, Leontiev (2004, p. 290) destaca que

as aquisições do desenvolvimento histórico das aptidões humanas não são simplesmente dadas aos homens nos fenômenos objetivos da cultura material e espiritual que os encarnam, mas são aí apenas postas. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptidões, 'os órgãos da sua individualidade' a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante através de outros homens, isto é, num processo de comunicação com eles. Assim, a criança aprende a atividade adequada. Pela sua função este processo é, portanto, um processo de educação.

Leontiev (2004, p. 286) indica ainda que, ao apropriar-se de determinado aspecto da cultura, o indivíduo forma faculdades específicas, que o caracterizam como humano. Para que ocorra a apropriação "dos objetos ou dos fenômenos que são o produto do desenvolvimento histórico, é necessário desenvolver em relação a eles uma atividade que reproduza, pela sua forma, os traços essenciais da atividade encarnada, acumulada no objeto".

A apropriação, portanto, pressupõe a existência de transformações, modificações que dependerão da atividade do sujeito que está em relação com os conteúdos socialmente produzidos e que tornará as produções sociais algo para si, participando assim da constituição de sua subjetividade; ou seja, refere-se ao "domínio, pelo indivíduo, do patrimônio cultural criado pela humanidade ao longo do processo histórico" (Eidt & Duarte, 2007, p. 54).

Assim, o sujeito entra em contato com a realidade na qual está inserido e cuja produção cultural materializou-se sob as mais diversas formas e apropria-se desses conteúdos, o que pressupõe transformações, modificações e em alguns momentos a interiorização1 1 Utilizamos este termo para nos referirmos à transformação que a cultura sofre ao ser apropriada pelo indivíduo, ou seja, quando ela é modificada, de acordo com a atividade do sujeito, e torna-se algo para si. Existem algumas traduções que se referem a esse processo como internalização; entretanto, concordamos com Smolka (2000) que este termo parece indicar a existência de duas realidades distintas, a externa e a interna, sendo que a última é cópia, uma sobreposição da primeira. Isso não condiz com o processo descrito pelos autores da Psicologia Sócio-histórica, uma vez que esta pressupõe que a cultura sofre modificações e transformação para que possa tornar-se algo próprio do indivíduo. sem que ocorra a apropriação deles, ou seja, sem que se tornem funções psicológicas superiores. Isso implica que alguns desses elementos transmitidos, embora interiorizados pelos sujeitos, não serão significados em toda a sua complexidade e, portanto, essas produções culturais não comporão os processos psíquicos que orientarão as suas atividades na realidade. São estímulos que são captados pelos órgãos do sentido, mas não passam pelo canal da simbolização. Como indica Vigotsky, existe uma gama de impressões que são captadas pelos órgãos sensoriais, mas que não se transformam em conteúdos conscientes. Sobre isso, ele faz uma comparação na qual explica que

nosso sistema nervoso lembra ... as portas de um grande edifício, em direção aos quais se lança a multidão num momento de pânico; pelas portas passam apenas algumas poucas pessoas; as que conseguiram atravessá-las com sucesso são um número reduzido em comparação com as que morreram esmagadas. Isso reflete melhor o caráter catastrófico da luta do processo dinâmico e dialético entre o mundo e o homem (Vigotsky, 2004, pp. 68-69)

Esses aspectos constituirão o consciente individual.

Para prosseguirmos com essa explicação, é necessário que melhor caracterizemos a consciência, que é um dos principais conceitos da teoria psicológica sócio-histórica. De acordo com Krapivine (1986, p. 120),

a consciência apareceu antes de tudo em forma de conscientização pelos antepassados do homem do seu ser e da sua própria existência, separação do mundo exterior e determinação da sua atitude face a este último. O homem pré-histórico, cuja razão fora iluminada pela consciência, começou a compreender que existe e como existe, assim como o que se passa a sua volta.

A possibilidade de sua existência é dada pela linguagem, uma vez que a consciência "é semioticamente estruturada, resultado dos próprios signos, ou seja, de instrumentos construídos pela cultura e pelos outros, que, quando internalizados, se tornam instrumentos subjetivos da relação do indivíduo consigo mesmo" (Aguiar, 2000, p. 130).

Podemos definir a consciência como um conjunto de funções e processos que permite ao indivíduo o conhecimento do mundo (Leão, 1999). Trata-se de uma estrutura composta por outras estruturas (Toassa, 2006) e configura-se por ser um "sistema de mecanismos transmissores de certos reflexos para outros, que funcionam corretamente em cada momento consciente" (Vigotsky, 2004, p. 14). Atende ao caráter social das relações estabelecidas pelo sujeito, a partir das quais é possibilitado o seu desenvolvimento, e caracteriza-se por compor e promover o funcionamento psíquico.

É, portanto, um conceito complexo e que abarca uma série de funções e processos (tais como memória, percepção etc.) que permite o conhecimento do mundo. Ele é uma instância intangível, não material, embora seja construído sobre uma base material, que é o desenvolvimento anátomo-fisiológico que foi desenvolvido ao longo da evolução. Esse entendimento implica reconhecer que a consciência não é um depósito, mas uma instância da subjetividade que faz alterações na materialidade ao criar uma representação dessa (Maheirie, 2002). É necessário destacar que a materialidade refere-se aos condicionantes presentes na realidade e que é resultado das diferentes formas de atuação do homem, cujo trabalho social, ao longo da história, resultou na construção de um ambiente que escapa às determinações naturais. Assim, a materialidade é constituída pelas transformações práticas da realidade, ou seja, toda alteração que o homem realiza tanto na materialidade quanto na subjetividade para o atendimento de suas necessidades; essas incluem a vida social, a forma como se estabelecem as relações cotidianas e que possuem papel determinante no desenvolvimento do sujeito.

Além disso, o conceito de consciência pressupõe que a relação entre o sujeito e o ambiente altera a subjetividade e, portanto, a consciência é sempre parcial, uma vez que existem os limites dados pela própria existência material.

Vigotsky (2004) encontrou nesse conceito a possibilidade de superar os dualismos presentes na Psicologia. Isso porque, ao buscar o elemento que garante a unicidade do homem com a sociedade, ofereceu as bases para uma teoria na qual pudessem ser englobados tanto os aspectos sociais e objetivos quanto os aspectos individuais e subjetivos presentes na estrutura psíquica humana. A consciência engloba estes dois polos em uma relação dialética, na qual o indivíduo é social, por fazer parte de um grupo e depender desse para a satisfação de suas necessidades, e ao mesmo tempo é único, por sua subjetividade ser formulada a partir da sua própria experiência na realidade. Assim, o homem é captado em sua multiplicidade, sem ser reduzido a nenhum dos aspectos que compõem o seu psiquismo e nem aos aspectos sociais que lhe são inerentes.

Ao abordar a dialeticidade da consciência, Vigotsky (citado por Werstch, 1988) contempla duas direções que foram ignoradas por outros dentro da Psicologia: (a) por possuir um caráter histórico-social, a consciência deve ser concebida a partir da inter-relação entre o que é socialmente instituído e o que é próprio do sujeito em si; e (b), é impossível tomar cada um dos processos ou funções psicológicas separadamente e, portanto, é preciso abarcar todas essas funções e, principalmente, o movimento que permite que uma constitua/determine, enfim, esteja em relação com as demais. Assim, desenvolve um conceito de análise da subjetividade na qual seus elementos integrantes não são estanques e no qual o psiquismo não é cindido.

A consciência objetiva-se no comportamento do indivíduo, por meio da atividade. Essa objetivação só é completada quando o grupo apreende o comportamento emitido pelo sujeito e o significa, garantindo que sua ação configure-se novamente como significado, socialmente estabelecido e aceito. Ou seja, é por meio da dialética objetividade-subjetividade-objetividade que a consciência é estabelecida, num processo contínuo e pautado pelas mediações. Podemos perceber nesta definição o caráter de unicidade quando Vigotsky (2004, pp. 24-25) afirma que "a psique não existe fora do comportamento, assim como este não existe sem aquela, ainda que seja apenas por se tratarem do mesmo".

Assim como a consciência, o inconsciente também se manifestará por meio do comportamento; entretanto, os conteúdos conscientes permitem que o comportamento seja direcionado, explicado e compreendido pelo sujeito que o realiza. Ou seja, o sujeito tem controle sobre o que fez. Ao fazer determinada ação de forma inconsciente, esse controle lhe escapa. Sobre essa relação, Vigotsky (1987, p. 78,) explica, utilizando o exemplo de um nó:

acabei de dar um nó – fiz isso conscientemente mas não sei explicar como o fiz, porque minha consciência estava concentrada mais no nó do que nos meus próprios movimentos, o como de minha ação. Quando este último torna-se objeto de minha consciência, já terei me tornado plenamente consciente. Utilizamos a palavra consciência para indicar a percepção da atividade da mente – a consciência de estar consciente.

Destacamos que existem situações nas quais o sujeito não chega a esta percepção da atividade da mente. Dei o nó, mas não sei indicar os motivos que me levaram a realizá-lo de tal maneira. O inconsciente, ao manifestar-se no comportamento, indica a impossibilidade de perceber os motivos do que se faz, como se faz, por que se realiza determinada ação. Como indica Vigotsky (2004, p. 151):

pode parecer que fazemos algo por uma causa determinada, mas na realidade a causa é outra. Podemos supor, com toda a convicção que nos dá a vivência direta, que gozamos de liberdade de vontade e nos equivocarmos cruelmente a esse respeito.

A consciência tem como uma de suas características a objetividade, ou seja, a capacidade de observar a si mesma sem que a imagem da realidade se confunda com a imagem criada pelo próprio sujeito. É fruto de uma evolução que desenvolveu nos homens uma forma superior de psiquismo, diferente dos demais animais, principalmente pela sua capacidade de abstração, ou seja, da criação de uma realidade interior que não se confunde e não se limita à realidade oferecida em um dado momento. O inconsciente, ao contrário, está relacionado ao não-verbal; à impossibilidade de abstrair de forma a compreender como a realidade exterior está afetando o sujeito.

Portanto, se a consciência representa a síntese da relação que se estabelece entre sentido e significado, é a ausência destes dois que caracteriza o inconsciente. Esse, por sua vez, é formado primordialmente por tônus emocional, como um direcionamento que o sujeito não pode compreender (e, por conseguinte, explicar), mas que interfere na forma como ele atua na realidade. Destacamos que tônus emocional refere-se à intensidade dos estados sentimentais que direcionam o indivíduo a dado objeto, ao sinalizar o interesse do sujeito. Entretanto, trata-se de uma avaliação da atividade anterior à reflexão cognitiva das reações que a promoveu. Além disso, "dá-se ainda no nível da representação sensorial direta da situação ou do pensamento e, portanto, está baseada no sentimento que permite apenas a vivência do que foi sentido emocionalmente" (Leão, 1999, p. 63).

É necessário considerar que ainda que o sentido extrapole o significado e esse se constitua apenas como a zona mais estável e precisa do sentido, ele não pode ser considerado isolado desse. Afinal, "sentido – é o que faz parte do significado (resultado do significado) as não foi fixado pelo signo. Formação de sentido – resultado, produto do significado" (Vigotsky, 2004, p. 186). Entretanto, o sentido pode ficar inconsciente porque não ganha representação na forma de um signo – como uma palavra ou uma imagem, que possibilitam a sua representação consciente. Ou seja, posso não saber a qual emoção se refere o tônus que me impulsiona a aproximar ou me afastar de alguém; posteriormente, posso ter a consciência que foi um sentimento de rejeição à pessoa devido a uma informação que recebi a seu respeito, mas que não me recordava. Então, o sentido que construí sobre e para essa pessoa é inconsciente, devido à impossibilidade de representá-la plenamente: com sentido e significado.

Essa relação será melhor apreendida quando considerarmos o sentido, o significado e como esses se relacionam com a consciência e com o inconsciente.

O significado é socialmente construído. Ao modificar a realidade, os homens representaram tais atividades em construções simbólicas que foram transmitidas para os demais membros da coletividade que, ao utilizá-las, as reconfiguram, até tornarem-se uma explicação social, comum, da realidade circundante. Essas construções são o processo de formação da realidade cristalizada, a experiência e a prática social da humanidade. Elas se tornam a significação social da realidade.

Assim, um contexto social onde os indivíduos estão inseridos se torna objetivo, com explicações, concepções, normatizações, enfim, uma representação historicamente construída e dada sob a forma dos significados.

Os significados, portanto, são objetivações que portam o movimento social, que os constituem como uma generalização cristalizada da realidade em uma representação simbólica, normalmente sob a forma de palavras ou conjunto de palavras. Conquanto sejam abstrações, as construções simbólicas possuem uma existência material; afinal, "não podemos esquecer que todo signo pressupõe um elemento que é material, da ordem do sensível (som, imagem, impressão química, térmica, etc.) que é justamente o que permite servir de sinal de alguma coisa para alguém" (Sirgado, 2000, p. 57). É este caráter material das construções simbólicas que permite aos indivíduos tomá-las para servir de base para as próprias explicações da realidade, durante um período histórico determinado.

Para poder atuar no ambiente, satisfazer suas necessidades e desenvolver-se, é necessário que cada sujeito apreenda estas representações socialmente desenvolvidas e as utilize na solução de sua vida, o que o obriga a constituir a sua própria significação da realidade. Este processo é o de construção do sentido, que

é a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência. É um todo complexo, fluido e dinâmico, que tem várias zonas de estabilidade desigual. O significado é apenas uma das zonas de sentido, a mais estável e precisa. (Vigotsky, 1987, p. 125)

O sentido é construído tendo como base o significado, mas extrapola os limites desse ao possibilitar uma série de reorganizações das construções sociais que determinam o caráter individual, único, particular de percepção da realidade. É necessário destacar que essas operações de organização e reorganização são processos de pensamento orientados por sentimentos e, portanto, são conscientes; mas podem gerar resultados e ideias inconscientes caso o sujeito não as transforme em linguagem, não as apresente na forma de signos sociais.

O sentido refere-se, portanto, ao conjunto dos processos de pensamento e afetivos que permitem ao indivíduo uma representação própria da realidade, construída a partir da atividade que ele realiza; entretanto, é necessário considerar que nem todos os processos presentes na realização da atividade se tornam conscientes, como no caso dos motivos e algumas vezes das necessidades a que correspondem. Assim, o sentido representa a parcialidade da consciência individual e permite a compreensão de como os fenômenos e construções sociais são subjetivadas em um indivíduo particular. Se o significado é o que uma palavra quer dizer, o sentido é o que essa mesma palavra quer dizer para mim: os diferentes vínculos que foram construídos ao longo da minha vida, as lembranças e emoções que evocam, a forma como eu me relaciono com tal significado. O sentido em geral parte da atividade, que como indicamos anteriormente é carregada de possibilidades e elementos inconscientes; por isso, ainda que esteja relacionado ao significado, ele não se restringe a ele e pode até mesmo negá-lo, pois é construído a partir da minha relação com a materialidade e, portanto, também carrega as contradições dela.

O sentido não pode ser compreendido em termos abstratos, mas no binômio sentido-significado, que nos possibilita a compreensão da dialética objetividade-subjetividade na consciência individual. A mediação semiótica, ou seja, a mediação realizada por meio dos símbolos e signos, é o mecanismo que explica o social convertido em pessoal, sem que o indivíduo perca a sua singularidade (Sirgado, 2000). Como afirmamos, os significados são portadores das explicações elaboradas historicamente e mantêm relativa estabilidade; configuram-se, pois, como a objetividade dos fenômenos históricos transformados em simbolizações. Por meio da atividade, o indivíduo entra em relação com os significados e se apropria deles; entretanto, essa apropriação é parcial, uma vez que depende das experiências anteriores, do tipo de atividade desenvolvida, do domínio de mediadores culturais tais como a linguagem. Assim, esses significados são modificados e passam a compor a estrutura interna da consciência.

O sentido possui relativa independência dos processos simbólicos e emocionais no qual foi desenvolvido, pois assim que o indivíduo se apropria dos elementos culturais, o sentido decorrente desta apropriação constitui-se como a totalidade da experiência individual. As explicações individuais construídas em um determinado contexto passam a mediar todas as outras relações que o sujeito estabelecerá. Leite (2005, p. 52) afirma que:

se as significações enlaçam os sujeitos com a realidade objetiva, o sentido pessoal os vinculam com a realidade de suas próprias vidas, com seus motivos: o sentido pessoal é que cria a parcialidade da consciência humana, através do recorte. Só será apropriado o que o indivíduo conseguir perceber, aquilo de que o sujeito conseguir se aproximar.

É, pois, a possibilidade de atribuição de sentido pessoal à realidade um dos fatores que delimita o que se tornará consciente. Entretanto, o sentido (anterior) determina quais dos conteúdos serão ou não apropriados. E quando o sujeito interioriza conteúdos, mas não lhe atribui significado, esses passarão a compor o inconsciente. Entretanto, a dinamicidade da construção do sentido faz com que ele possa alterar-se, e o inconsciente pode transmutar-se em consciente, bem como pode ocorrer o contrário: a reorganização do sentido pode fazer com que alguns significados sejam retirados da consciência e, com isso, o que anteriormente era consciente passa agora a compor o inconsciente. Portanto, nessa relação, o sentido é a força motriz que realiza a conversão do inconsciente em consciente e que também faz o movimento inverso, por ser carregado de componentes emocionais e afetivos, que mediatizam a relação do indivíduo com a realidade e, nesse processo, determina o que será apropriado e a forma como tal apropriação se configurará.

O sentido reorganiza a consciência ao definir quais as funções necessárias a dada atividade, quais comportamentos emitir, quais estímulos selecionar, enfim, como se portar no ambiente que está apresentado em um momento específico. Ao fazê-lo, o sentido também seleciona quais os aspectos que, mesmo chegando até o indivíduo, não serão tornados conscientes para fazer parte da atividade naquele contexto; ainda que permaneçam presentes e, portanto, influam no comportamento. Escolhe, portanto, quais dos elementos não serão dotados de componentes emocionais conscientes, seja porque não são necessários naquele momento, seja porque o indivíduo não possui a capacidade de apreender o fenômeno, diante do qual está, em toda a sua complexidade.

Portanto, o sentido, carregado de componentes emocionais e afetivos, faz a transmutação do inconsciente em consciente (e também o movimento inverso) e atua como a força motriz dos conteúdos que terão tal ou qual qualidade. Assim, ele tem a possibilidade de determinar quais dos conteúdos inconscientes poderão ser resgatados para a satisfação de uma necessidade que se apresenta ao sujeito em dado momento e quais os que ficarão, ainda que temporariamente, no nível inconsciente. Esta transformação ocorre quando a atividade do sujeito estabelece novas relações com o ambiente e essas exigem a reorganização da sua consciência, atribuindo novos sentidos àqueles elementos com os quais ele já tinha entrado em contato, mas que não haviam sido tomados em toda a sua complexidade.

O sentido depende de uma série de variáveis. Possui também caráter social, o que pode ser explicado por dois motivos complementares: (a) o significado que o sujeito constrói por meio de sua atividade é socialmente estabelecido, pois decorre das características, principalmente do modo de produção da vida de diferentes épocas, das instituições, enfim, distintos contextos implicarão diversas formas de explicação da realidade. Portanto, os sentidos que serão constituídos pelos indivíduos no decorrer das suas atividades particulares, embora sejam específicos desses, únicos, dependem daquelas explicações sociais condensadas nos significados e também dos grupos sociais e das diferentes relações que este sujeito estabelece em sua vida.

Em outros termos, a sociedade oferece as possibilidades e também os limites das explicações individuais para a realidade. Além disso, (b) o sentido, assim como o significado, precisa ser objetivado sob a forma de comportamento e referendado por aqueles que compõem o mesmo grupo social. Quando isso não ocorre, ou seja, quando o comportamento que expressa o sentido não é aceito pelo grupo, os elementos que o compuseram passam a compor o inconsciente; o que implica que a capacidade de ser um comportamento aceito e referendado pelo grupo pode fazer com que aquilo que foi produzido internamente também produza conteúdos inconscientes. Isso ocorre quando a expressão das emoções é limitada pelo contexto social, por exemplo, quando alguém diz para que nos controlemos, ou seja, para que reprimamos as reações emocionais que foram desencadeadas. As emoções são uma importante forma de comunicação, na qual exponho ao grupo do qual participo como a realidade está me afetando e, a partir disso, tenho a possibilidade de utilizar os diferentes instrumentos que meu grupo oferece para atuar na resolução dos sentimentos que foram desencadeados por um determinado afeto (Lane & Sawaia, 1995). Entretanto, caso essas emoções não possam ser comunicadas, o que é comum em diversos ambientes de uma sociedade que não reconhece a importância da emoção, como a nossa, eu não deixo de ser afetado pelo ambiente. Entretanto, a emoção que não pode ser comunicada perde o caráter comunicador e passa a constituir o inconsciente (Lane & Araújo, 1999).

Entretanto, é necessário considerar que esta reversibilidade não é uma mera transposição de um para outro polo. Quando um conteúdo consciente passa para o inconsciente é modificado, transformado. O processo que possibilita esta conversão é transformador e configura-se como um movimento da psique no qual a atribuição de um novo sentido, que permita ao sujeito um entendimento do processo ou da representação, é o elemento mediador que garante a força motriz que possibilitará a transformação do inconsciente em consciente e vice-versa.

Afirmar que o inconsciente caracteriza-se pela ausência de sentido e significado não significa que para eliminar o inconsciente bastaria ampliar as experiências dos sujeitos. Isto porque a construção do sentido é mediada tanto pelos sentidos anteriormente construídos como pelas características dos demais elementos mediadores que constituem o psiquismo, como a atividade e a linguagem, além do ambiente no qual o sujeito se desenvolve e dos significados que lhe serviram como base. É necessário que reforcemos que a atividade contém aspectos inconscientes, e esse é um dos fatores que leva à interiorização de sentidos sem significados; mas a linguagem é antes de tudo significado, e é por isso que a ausência de sentidos com significados caracteriza o inconsciente.

Dependendo de como foram transmitidos pela sociedade e apropriados pelos sujeitos, os significados não poderão atuar na construção de sentidos de alguns aspectos ou características que existem na sociedade, o que não permitirá a apropriação das significações. Assim, permanecerão inconscientes porque, apesar de existirem na sociedade, os sujeitos não adquiriram os elementos mediadores que permitiriam que se relacionassem com esses conteúdos de forma a torná-los conscientes.

Essa impossibilidade de apropriação se dá pela divisão da sociedade em classes; pela forma que a educação, particularmente a institucionalizada, é realizada; pelos diferentes grupos que o indivíduo participa; pela impossibilidade que o trabalhador tem, no capitalismo, de participar de algumas das construções culturais; enfim, pela forma como a nossa sociedade é organizada. Portanto, alguns conteúdos não chegam nunca à consciência. Não porque não podem, não porque é absoluto ou domine a consciência, tal como indica a concepção psicanalítica, mas porque o sujeito não dispõe dos elementos culturais que permitiriam tal transformação. Ou seja, um aspecto essencial do inconsciente sócio-histórico é o seu aspecto cultural, o fato de ser resultado de uma organização social específica na qual a produção e o domínio da cultura são realizados por indivíduos de classes distintas.

Para prosseguir no entendimento do inconsciente, é necessário que diferenciemo-lo da alienação, dada a condição epistêmica comum entre as análises acerca das condições sociais e a ontogenia na teoria marxista e a teoria sócio-histórica.

A alienação é um conceito importante e amplamente discutido na obra marxista e que se refere à dissociação que existe entre o trabalhador e os instrumentos de trabalho, o que resultou também na separação do trabalhador daquilo que ele produz. Para a filosofia marxiana, a alienação configura-se sob a forma de ocultamento da realidade que leva a um estranhamento do trabalho no modo de produção capitalista (Marx, 1987). De acordo com Lane (1994, p. 42):

a alienação se caracteriza, ontologicamente, pela atribuição de "naturalidade" aos fatos sociais; esta inversão do humano, do social, do histórico, como manifestação da natureza, faz com que todo conhecimento seja avaliado em termos de verdadeiro ou falso e de universal; neste processo, a "consciência" é reificada, negando-se como processo, ou seja, mantendo a alienação em relação ao que ele é como pessoa e, conseqüentemente, ao que ele é socialmente.

A alienação é resultante da forma como a sociedade se organiza para o trabalho, o qual se transformou em sacrifício, tormento, tortura. Para compreender a alienação é necessário explicitar como, no modo de produção capitalista, o trabalho adquire um caráter duplo; é, ao mesmo tempo, "criação e tédio, miséria e fortuna, felicidade e tragédia, realização e tortura dos homens" (Codo, 1985, p. 09).

O trabalho é uma ação especificamente humana de transformação da natureza para a satisfação das próprias necessidades. É por meio dele que o homem produz sua própria existência, relaciona-se com a realidade social, materializa-se nos frutos de sua produção. O produto do trabalho contém as características de quem o realizou; é a objetivação da subjetividade daquele indivíduo.

Mas ele não é realizado individualmente, de acordo com as vontades e decisões de um sujeito em particular. Ele é determinado pela maneira com que a sociedade na qual este sujeito está inserido organiza-se para a realização de trabalho; ou seja, a divisão social do trabalho faz com que cada indivíduo viva da própria produção e também daquilo que o outro produz. Codo (1985, p. 33) destaca que o trabalho é "uma via de identificação com o outro, nos insere num grupo, numa espécie, nos iguala e nos diferencia dos outros indivíduos; pela via do trabalho eu significo algo para o outro e o outro significa algo para mim".

Entretanto, o nível que a divisão do trabalho atingiu no modo de produção capitalista dissociou o trabalhador do produto do seu trabalho, de tal forma que não há a possibilidade de o sujeito reconhecer-se naquilo que ele produz. Uma das consequências deste modo de organização para o trabalho é o fato de o trabalhador vender a sua força de trabalho para outro sujeito e, nesse processo, o produto que ele constrói não pertence a ele, mas àquele que detém os meios de produção. Codo (1985, p. 34) afirma que, quando o produto do nosso trabalho nos é privado, "nos distanciamos, nos estranhamos, nos alienamos da nossa própria humanidade. O capital rouba do homem a sua própria transcendência, a sua historicidade, o reconhecimento de si mesmo como ser universal e histórico".

Esta impossibilidade de reconhecer-se no seu trabalho e de reconhecer-se como partícipe de uma ação social, em uma relação de interdependência com os demais indivíduos, é a alienação. No Capitalismo eu não tenho o produto do meu trabalho, eu tenho um salário, que me permite (ou não!) consumir. O outro indivíduo não é meu semelhante, não é alguém que pode auxiliar na produção da minha existência, ao mesmo tempo em que eu faço o mesmo com ele; é, sempre e antes de tudo, um concorrente. Portanto, no trabalho alienado a identidade entre os diferentes trabalhadores se "transforma em antagonismo, o outro se apresenta a mim como um ser estranho, independente, irreconhecível. A alienação inventa a solidão humana, transforma cada um de nós em seres irreconhecíveis perante o outro, sem par perante a própria espécie" (Codo, 1985, p. 33).

O ocultamento das relações de trabalho faz com que o trabalhador encontre outras explicações ou motivos que justifiquem o desenvolvimento das suas atividades produtivas. A religião, a moral, os valores sociais são construções ideológicas que permitem que o sujeito veja o trabalho como sofrimento necessário, dignificante justamente por ser sacrifício. Ocorre, portanto, uma dissociação entre o significado e o sentido da ação: o significado verdadeiro, a produção da realidade como forma de satisfação da própria vida é ocultada, impedindo a construção de um sentido que permita uma atuação criativa na realidade. Isso resulta, ainda, na contínua desigualdade entre os sujeitos, subordinados a determinações que ele próprio desconhece.

Partindo dessas explicações, é possível perceber que enquanto o inconsciente apresenta-se como a impossibilidade de estabelecimento de sentidos e significados frente a uma situação, a alienação configura-se como a construção de sentidos distorcidos por serem baseados em construções ideológicas para o ocultamento da realidade. A ideologia é um conjunto de ideias que é verdadeira para uma classe e não o é para a outra; essa ideologia, entretanto, é o significado com o qual o sujeito irá entrar em atividade na construção de seu próprio sentido.

O inconsciente pode ser resultado de instituições alienantes, mas não se iguala e não se resume a ele. Por instituições alienantes estamos nos referindo às instituições sociais, tais como igrejas, a família e a educação, que transmitem aos seus grupos as ideologias dominantes, as explicações da realidade que são resultado da divisão em classes, em especial da forma como essa divisão se dá no do modo de produção capitalista. Assim, essas instituições, ao transmitirem ideologia, ocultam a realidade; realidade essa com a qual o indivíduo entrará em contato, mas não saberá como reagir por não ter o domínio dos instrumentos adequados para isso.

Portanto, a alienação também cria o inconsciente. Isso porque é necessário considerar que no capitalismo a alienação é intensificada pela criação de obstáculos que impedem que o indivíduo tenha disponível a cultura que ele mesmo produziu. Codo (1985, p. 68), ao relacionar a alienação e o inconsciente, pergunta-se:

Freud garante que trazemos em nós um outro que nos escapa, do qual somos porta-vozes involuntários. Mas o que será o inconsciente? O homem privado de sua existência pela voz do outro ou o ser social do homem, castrado pelo animal que a alienação inventa?

No modo de produção capitalista ocorre a "apropriação privada da cultura material e intelectual produzida coletivamente e que deveria constituir-se em patrimônio de todos os seres. ... Indivíduos, classes, grupos e nações inteiras vêem-se impossibilitados de se apropriarem dessa cultura" (Duarte, 2004, p. 60); ou seja, a alienação impossibilita o trabalhador de reconhecer-se e ter acesso aos produtos que ele mesmo construiu. Entretanto, algumas dessas construções são apropriadas pelo indivíduo de forma fragmentada, cindida, caótica. Esse é o inconsciente enquanto resultante da alienação, que indica ao trabalhador que há algo além daquilo que ele domina, algo que lhe é privado por conta de sua classe social.

Considerações finais

Percebemos, portanto, que o entendimento do inconsciente é condição para a compreensão da totalidade da subjetividade. O inconsciente é social, e as mediações possuem papel determinante na eleição de quais conteúdos serão conscientes e quais não terão esta qualidade. Por serem construções sociais, as mediações não são escolhidas ao acaso pelo indivíduo, mas determinadas de acordo com as necessidades e características do contexto no qual ele está inserido. É preciso considerar que assim como os instrumentos são criados pela cultura, a interiorização deles e a forma como modificarão o comportamento e as alterações que provocarão no psiquismo possuem esse mesmo caráter. Considerando que cada mediador produz uma síntese diferente, ao determinar quais os mediadores (e quais as características deles) que farão parte do psiquismo, a cultura influencia quais aspectos permanecerão inconscientes para o indivíduo por tomá-los como desnecessários ou prejudiciais à ordem vigente.

Assim, sendo a mediação a condição para a constituição da consciência, suas determinações histórico-sociais influenciam nos aspectos que permanecerão inconscientes para alguns indivíduos. E a atividade e a linguagem, bem como as mediações intrapsicológicas delas resultantes, tais como a emoção, são construídas pela sociedade e dependentes das exigências do momento histórico ao qual pertencem (Lane, 1994; Lane & Sawaia, 1995; Vigotsky, 2004).

Podemos verificar que no modo capitalista de produção é necessário que os trabalhadores não tenham consciência da exploração que sofrem, bem como da complexidade das relações que se estabelecem no ambiente de trabalho. Ter consciência disso poderia resultar na transformação deste sistema. Para evitar que tal transformação ocorra, um dos mecanismos utilizados pelas classes dominantes é o controle da transmissão da cultura.

Assim, ao trabalhador é oferecido apenas o necessário para a realização do trabalho, enquanto o produto mais elaborado, refinado lhe é negado. Assim, ele não desenvolverá os mediadores a ponto de ter domínio da realidade. Tendo mais conteúdos inconscientes, ele acaba sendo dominado por esta realidade, ao invés de utilizar-se dela para a satisfação de suas necessidades. Aqui, é necessário reforçar que não se trata de uma relação linear. Não podemos perder de vista que a subjetividade não é mero reflexo das construções culturais e, portanto, a atividade individual é determinante neste processo. A forma como os sujeitos particulares se inserem nesta realidade, as apropriações que eles realizam por meio de sua atividade, enfim, as relações cotidianas das quais ele participa e que atuam diretamente na constituição de seu psiquismo devem também ser consideradas ao tratarmos dos aspectos inconscientes. Caso contrário, corremos o risco de um reducionismo no qual apenas os fatores sociais são considerados, perdendo com isso toda a dinâmica das relações entre indivíduo e sociedade, tal como as concebe a obra vigotskiniana. Mas isso não nega de forma alguma o que consideramos anteriormente. Seria demasiado injusto, para não dizer irreal, afirmar que depende exclusivamente do indivíduo romper com as limitações que a sociedade de classes lhe impõe.

Por isso é necessário aprofundar o entendimento do inconsciente, a partir de uma concepção materialista histórico-dialético. Porque quando tomamos o inconsciente como a impossibilidade de atuação para a satisfação das próprias necessidades, resultado de uma forma de organização social, afirmamos que o inconsciente limita os indivíduos de tal forma que eles não podem ter uma atuação criativa. Quando existem muitos conteúdos inconscientes que não podem transmutar-se em conscientes pela ausência de domínio daquele aspecto da cultura, os comportamentos tendem ser fragmentados, desconexos, de alguma forma limitantes. Evidenciar as características do inconsciente é condição para a superação desta forma de inserção na realidade.

Nota

Recebido em: 16/02/2011

Revisão em: 28/08/2012

Aceite em: 07/10/2012

Lívia Gomes dos Santos é Psicóloga, Mestre em Educação pela UFMS e doutoranda em Psicologia Social pela PUC-SP. Membro do GEPAPET – Grupo de Estudos e Pesquisa sobre os Aspectos Psicossociais da Educação e do Trabalho. Foi aluna bolsista da CAPES. Endereço: Rua Capitão Otávio Machado, 950/11B. São Paulo/SP, Brasil. CEP 04718-002. Email: liviagomess@hotmail.com Inara Barbosa Leão é Psicóloga, Doutora em Psicologia (Psicologia Social) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora no Ensino de 3º Grau, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, nos cursos de Graduação Formação de Psicólogo. Professora nos Cursos de Pós-Graduação de Mestrado e Doutorado em Educação na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Coordenadora do GEPAPET – Grupo de Estudos e Pesquisa sobre os Aspectos Psicossociais da Educação e do Trabalho. Endereço: UFMS, Centro de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de Ciências Humanas. Cidade Universitária, Caixa Postal 549. São Paulo/SP, Brasil. CEP 79070-900. Email: inarableao@hotmail.com

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  • 1
    Utilizamos este termo para nos referirmos à transformação que a cultura sofre ao ser apropriada pelo indivíduo, ou seja, quando ela é modificada, de acordo com a atividade do sujeito, e torna-se algo para si. Existem algumas traduções que se referem a esse processo como internalização; entretanto, concordamos com Smolka (2000) que este termo parece indicar a existência de duas realidades distintas, a externa e a interna, sendo que a última é cópia, uma sobreposição da primeira. Isso não condiz com o processo descrito pelos autores da Psicologia Sócio-histórica, uma vez que esta pressupõe que a cultura sofre modificações e transformação para que possa tornar-se algo próprio do indivíduo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      16 Fev 2011
    • Aceito
      07 Out 2012
    • Revisado
      28 Ago 2012
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