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Michel Foucault na imprensa brasileira durante a ditadura militar: os "cães de guarda", os "nanicos" e o jornalista radical

Michel Foucault in brazilian press during the military dictatorship

Resumos

Como parte da pesquisa "Michel Foucault no Brasil: presença, efeitos e ressonâncias", são focalizados os modos como o filósofo apareceu seja na grande imprensa, seja na imprensa alternativa, durante sua visita ao Brasil no ano de 1975 e, mais brevemente, no de 1976. No primeiro caso, especial destaque é dado à conduta de Foucault quando do assassinato do jornalista Vladimir Herzog nos porões da ditadura militar. No segundo, à vigilância exercida sobre o filósofo pelos serviços de informação, bem como à participação da imprensa alternativa, notadamente a anarquista, na divulgação de suas conferências e ideias. Embora Foucault nunca tenha escrito um trabalho específico sobre a imprensa, sua concepção de filosofia como jornalismo radical é posta em correlação com tais ocorrências, numa tentativa de articular narrativa histórica e crítica do presente.

Foucault; Brasil; imprensa; imprensa alternativa


As part of the research "Michel Foucault in Brazil: presence, effects and resonances", the ways the philosopher appeared in both mainstream media and in the alternative press are focused. We privileged Foucault's visit to Brazil in 1975 and, more briefly, in 1976. In the first case, a special emphasis is given to the conduct of Foucault when the journalist Vladimir Herzog was murdered in the basements of the military dictatorship. In the second case, the monitoring carried out on the philosopher by the intelligence services is emphasized, as well as the role of the alternative press, notably the anarchist one, in the divulgation of his lectures and thoughts. Although Foucault had never written a particular work about media, his conception of philosophy as radical journalism is put in connection with such events in an attempt to articulate historical narrative and criticism of the present.

Foucault; Brazil; press; alternative press


ARTIGOS

Michel Foucault na imprensa brasileira durante a ditadura militar – os "cães de guarda", os "nanicos" e o jornalista radical

Michel Foucault in brazilian press during the military dictatorship

Heliana de Barros Conde Rodrigues

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

RESUMO

Como parte da pesquisa "Michel Foucault no Brasil: presença, efeitos e ressonâncias", são focalizados os modos como o filósofo apareceu seja na grande imprensa, seja na imprensa alternativa, durante sua visita ao Brasil no ano de 1975 e, mais brevemente, no de 1976. No primeiro caso, especial destaque é dado à conduta de Foucault quando do assassinato do jornalista Vladimir Herzog nos porões da ditadura militar. No segundo, à vigilância exercida sobre o filósofo pelos serviços de informação, bem como à participação da imprensa alternativa, notadamente a anarquista, na divulgação de suas conferências e ideias. Embora Foucault nunca tenha escrito um trabalho específico sobre a imprensa, sua concepção de filosofia como jornalismo radical é posta em correlação com tais ocorrências, numa tentativa de articular narrativa histórica e crítica do presente.

Palavras-chave: Foucault; Brasil; imprensa; imprensa alternativa.

ABSTRACT

As part of the research "Michel Foucault in Brazil: presence, effects and resonances", the ways the philosopher appeared in both mainstream media and in the alternative press are focused. We privileged Foucault's visit to Brazil in 1975 and, more briefly, in 1976. In the first case, a special emphasis is given to the conduct of Foucault when the journalist Vladimir Herzog was murdered in the basements of the military dictatorship. In the second case, the monitoring carried out on the philosopher by the intelligence services is emphasized, as well as the role of the alternative press, notably the anarchist one, in the divulgation of his lectures and thoughts. Although Foucault had never written a particular work about media, his conception of philosophy as radical journalism is put in connection with such events in an attempt to articulate historical narrative and criticism of the present.

Keywords: Foucault; Brazil; press; alternative press.

O presente trabalho talvez pareça, a princípio, algo distante do foco deste evento, a judicialização da vida1 1 O texto preserva, na medida do possível, a tonalidade da apresentação oral no Primeiro Colóquio Internacional Michel Foucault – A judicialização da vida. . Envolvida em uma pesquisa voltada à análise das cinco visitas – 1965, 1973, 1974, 1975 e 1976 – de Michel Foucault ao Brasil, ao receber o convite ao colóquio não pude deixar de a ela me reportar. Rapidamente inventei um título e elaborei um breve resumo, sem muito me ocupar de eventuais dissonâncias – minha angústia com mesas-redondas só cresce... às vésperas.

Porém esta semana, durante uma aula sobre Foucault, lembrei-me de um episódio, pouco importa se real ou não, que me foi contado há tempos. Telefona a mãe, aflita, ao pediatra: "Doutor, meu filho Fulaninho ameaça ficar gripado". Ao que retruca o médico, um crítico, por mais que improvável, dessa desenfreada medicalização: "Senhora, então ameace dar uma aspirina a ele!". Esse divertido relato remeteu-me ao que deveria hoje apresentar, pois, no caso da judicialização da vida, o "ameaçar" nada carrega de postura crítica: ameace denunciar algo ao Conselho Tutelar, às Organizações Não-Governamentais, aos organismos de segurança, às unidades da Polícia Pacificadora, aos agentes socioeducativos, aos conselhos de comunidade etc... e tal virtualidade imediatamente se atualizará em "periculosidade". Principalmente, e é aqui que encontro a conexão para uma entrada menos disparatada neste colóquio, se tal "ameaça" vier acompanhada de uma passagem às páginas da imprensa, ou à mídia em geral. Muito nos referimos a elas em nossas análises da governamentalidade neoliberal, da biopolítica, do disciplinamento de corpos e almas, dos controles a céu aberto, ou como se venha a chamar o que aqui nos reúne. Um murmúrio difuso por vezes procura resistências na Internet – sempre, é claro, com as devidas ressalvas.

Ora, o que me propus a discutir fala de um momento em que, para usar uma expressão ao gosto de Foucault, "práticas divisórias" instauram uma cisão na imprensa brasileira: a cisão entre os "cães de guarda" da ditadura militar e a imprensa "alternativa" ou "nanica".

A expressão inicial me foi sugerida pelo título do livro de Beatriz Kushnir (2004), Cães de guarda2 2 "Cães de guarda" é também o título de uma obra de Paul Nizan que, em 1932, a utilizou para criticar o idealismo dominante na filosofia francesa. . Jornalistas e censores do AI-5 à constituição de 1988. Por outro lado, entre 1964 e 1980, nasceram (e feneceram) no Brasil cerca de 150 periódicos conhecidos como alternativos ou nanicos (Kucinski, 2003). O primeiro desses termos ressalta sua intransigente oposição ao governo militar; o segundo, o formato tabloide adotado pela maior parte deles.

À época de suas passagens pelo Brasil, acrescente-se, Foucault expressou inúmeras vezes a intenção de abandonar a filosofia e o lugar sacralizado do intelectual, a fim de voltar-se para o diagnóstico do presente mediante o exercício de um jornalismo radical, eventualmente evocado sob denominações outras: pirotecnia, explosivos, ferramentas, fogos de artifício, escrita pontual sem rebuscamentos etc. (cf. Foucault, 1975/2006). Ou mesmo através do que chamou, numa entrevista concedida a Sergio Augusto, para a revista Veja, de prática de "artesão": "Fabrico tamancos e encontro nisso um prazer quase erótico, porque fico contente quando alguém enfia os pés neles" (Foucault, 1973, p. 78).

Sendo assim, talvez esses tamancos – sabots em francês, vale lembrar e associar à palavra sabotagem – possam ter algo a ver com o desejo de "emperrar" a maquinaria judicializante que nos afeta a todos. Sem mais justificativas, passemos, portanto, ao que apresento na forma de uma narrativa histórica, instigada pela seguinte afirmação foucaultiana: "Ficciona-se a história partindo de uma realidade política que a torna verdadeira; ficciona-se uma política que ainda não existe partindo de uma verdade histórica" (Foucault, 1977/1994a, p. 236).

Em função do tempo/espaço disponível, focalizarei predominantemente o ano de 1975, com breves incursões ao de 1976.

Descontinuidades inesperadas

Em 1975, Foucault retorna à Universidade de São Paulo (USP), onde já estivera 10 anos antes (cf. Rodrigues, 2010). Pouco antes da partida para o Brasil, juntamente com Yves Montand, Régis Debray, Costa-Gravas e outros companheiros, viajara a Madri para protestar contra a condenação à morte, por um tribunal de exceção, de 11 militantes antifranquistas. Conseguiram ler uma declaração, com a presença da imprensa internacional, sendo depois escoltados pela polícia ao aeroporto e despachados de volta a Paris (Eribon, 1990, pp. 244-247).

Foucault chega a São Paulo em 5 de outubro. O projeto de trabalho na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) prevê conferências sobre psiquiatrização e antipsiquiatria. Aparentemente, o combinado o aborrece: "Freud e Marx ao infinito. O trabalho político vem de antigos quadros sindicais ou intelectuais" – escreve a Daniel Defert (2002, p. 48). A julgar pelos termos da carta, lamenta que seus explosivos (tamancos) não cheguem a ultrapassar os muros acadêmicos.

Mas Foucault se engana ao ver apenas continuidades. Não tanto, decerto, em função do que se pode reconstituir em termos de datas e fatos; porque se o governo Geisel prometia "distensão" e se os censores começavam a deixar as redações dos jornais (inicialmente a do velho Estadão3 3 Alcunha pela qual é conhecido o jornal O Estado de São Paulo. ), no porão prosseguiam a tortura e o assassinato: "Em 1974 foram assassinadas cerca de cinquenta pessoas, a maioria nas matas e nos cárceres militares do Araguaia. Nas cidades, o aparelho de repressão ... exterminava o que sobrara da militância armada e avançava sobre o Partido Comunista" (Gaspari, 2004, p. 20). Ao longo de 1975, esse aparelho dera início a uma busca de militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) supostamente "infiltrados" nos órgãos de comunicação. Pois será exatamente um episódio dessa estratégia que, entre outros fatores, propiciará – e não só para Foucault – uma inesperada descontinuidade de percurso.

O jornalista Vladimir Herzog tinha ingressado na TV-Cultura no começo de setembro de 1975. Dias depois, a emissora transmitiu um documentário sobre o chefe vietnamita Ho Chi Minh. A primeira reação não veio da censura oficial do regime, mas dos "cães de guarda" da imprensa. O jornalista Cláudio Marques, responsável pela seção "Coluna Um" no jornal Shopping News, ali imediatamente comentou: "Eu acho que o pessoal do PC da TV Cultura pensa que isto aqui virou o fio..." (citado por Gaspari, 2004, p.172).

Embora informado de que passara a fazer parte de uma lista de suspeitos, Herzog continuou sua vida regular. No dia 24 de outubro, foram à emissora para prendê-lo. Pediu tempo para concluir um telejornal e se prontificou a comparecer ao DOI-CODI4 4 Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna. na manhã seguinte. E assim efetivamente procedeu, para, segundo pensava, prestar esclarecimentos. Conforme registra Gaspari (2004),

foi acareado com dois colegas. Negou que pertencesse ao PCB e ficou a sós com um interrogador numa sala do andar térreo. Os dois colegas, num corredor contíguo, ouviram seus gritos e a ordem para que fosse trazida a máquina de choques elétricos. Um rádio, em volume alto, abafava os sons. A certa altura, o noticiário informou que o generalíssimo Francisco Franco, ditador da Espanha desde 1936, recebera a extrema-unção. ... No meio da tarde fez-se um grande silêncio na carceragem. (p.174)

Vlado, apelido pelo qual o jornalista era conhecido, estava morto. Segundo a Agência Oficial do Serviço Nacional de Informações (SNI), suicidara-se. "Era o 38° suicida, o 18° a enforcar-se, dessa vez com uma 'tira de pano'" – anota Gaspari (2004, p.174). E prossegue, num trecho que, em suas grandes linhas, poderia ter sido escrito por Foucault:

Horas depois da confirmação de sua morte, começou um daqueles processos em que reações individuais e desarticuladas desembocam em comportamentos que, sem coordenação ou planejamento, constroem os grandes fatos históricos. Em todos os casos, teve-se de decidir por onde passava a linha a partir da qual o medo reprime a revolta. O medo era tanto que foi desafiado. (Gaspari, 2004, p.176)

Na segunda-feira, 27 de outubro, após o funeral de Vlado, irrompe uma greve na USP. Foucault suspende seu curso e lê um texto sobre o assassinato do jornalista, logo transformado em panfleto pelos estudantes. Ainda desconhecemos o teor desse escrito. Mas temos acesso às palavras de Foucault, mais tarde publicadas, descrevendo os acontecimentos de 31 de outubro, nas exéquias de Herzog – impressionante narrativa de uma contraconduta, para usar o termo que, no intuito de caracterizar a agonística das relações de poder, ele virá futuramente (Foucault, 1978/2008, p. 266) a propor:

a comunidade judaica não ousou fazer exéquias solenes. E foi o arcebispo de São Paulo5 5 Trata-se de D. Paulo Evaristo Arns. ... que promoveu, na catedral metropolitana, uma cerimônia, aliás ecumênica, em memória do jornalista: o evento atraiu milhares de pessoas à igreja, à praça etc. O cardeal, de vestes vermelhas, presidia a cerimônia: caminhou diante dos fiéis e os saudou exclamando "Shalom, shalom". A praça estava cercada por policiais armados e na igreja havia diversos policiais à paisana. A polícia recuou: não podia fazer nada contra isso. (citado em Voeltzel, 1978, p. 157)

Imprensas, políticas e micropolíticas

Não obstante se considerasse, desde então, vigiado pela polícia, Foucault permaneceu no Brasil até 11 de novembro. Segundo alguns dos entrevistados de nossa pesquisa, esteve, quase informalmente, na Universidade do Estado da Guanabara (atual UERJ), e também na UNICAMP, neste caso a convite do Centro Acadêmico. O que aqui nos interessa mais de perto, porém, é seu contato com a imprensa alternativa: uma entrevista concedida a um grupo de colaboradores de Versus é divulgada no primeiro número (outubro de 1975) desse periódico, sob o título "Hospícios, sexualidade, prisões". Nela, Foucault fala de sua microfísica em contraposição às perspectivas marxistas e estruturalistas; elogia as rupturas com a psiquiatria realizadas por Laing, Cooper, Bettelheim e Szasz; refere-se a 1968 como o momento em que, sem ligação ou comunicação prévia, a contestação ao modo de vida do presente se espalhou entre os estudantes de todo o mundo; recusa-se a legislar sobre os eventuais benefícios das psicoterapias, embora revele ter abandonado sua própria análise, totalmente entediado; aclama O Anti-Édipo como a primeira crítica de esquerda dirigida à Psicanálise na França; rejeita a hipótese reichiana de ser a sexualidade reprimida com vistas à constituição do corpo humano como força de trabalho, acrescentando que a "irregularidade sexual" já é, à época, perfeitamente tolerável; defende com vigor as lutas particulares (de prisioneiros, mulheres etc.), cujo escamoteamento, a seu ver, dá lugar a totalitarismos de diversos matizes; afasta o intento de Vigiar e Punir, há pouco publicado, de uma mera reforma das prisões, associando-o ao questionamento de todos os micropoderes vigentes. Porém, e em nossa perspectiva principalmente, analisa suas implicações como intelectual e professor universitário.

Em resposta a uma pergunta sobre seus métodos de trabalho, diz ele então: "O que importa é o que acontece, não o que alguém faz. ... Minha história pessoal não tem grande interesse. A não ser pelos meus encontros, ou situações em que vivi" (Foucault, 1975/2007, p. 32). Mais adiante, contestando uma série de indagações sobre a Universidade, assevera: "Depois de 1968, todos foram unânimes em dizer que a Universidade estava morta. Morta, sim, mas como o câncer – se propagando. ... Ao mesmo tempo, desaparece o papel de 'profeta universal' do intelectual" (Foucault, 1975/2007, pp. 33-34). Concluindo o encontro, provocado por uma questão sobre a necessidade de uma síntese de saberes e lutas, Foucault corta e recorta:

O que faz a síntese é o processo histórico, a síntese é feita pela coletividade. Se o intelectual quiser fazer a síntese dessas várias atividades ele retomará o seu velho papel solene e inútil ... Não falo da síntese como algo que faz falta, mas de uma conquista: enfim nos livramos da síntese, da totalidade. (Foucault, 1975/2007, p. 34)

Nada melhor do que essa radical rejeição à síntese poderia ser oferecido a um nanico como Versus. Qual grande parte de seus confrades, o periódico surgira sob o signo do acontecimento:

O drama de Herzog na prisão coincidiu com a impressão da primeira edição do jornal, em torno de 12000 exemplares ... Distribuído precariamente de mão em mão, em bancas de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras poucas cidades, ... Versus calou fundo na sensibilidade dos leitores, e iria mais longe do que o esperado. (Barros Filho, 2007, pp. 10-11)

A despeito dessas condições minoritárias, de 1975 a 1979 Versus publicou 33 edições regulares, 3 edições-extra de histórias em quadrinhos, além de 2 outras em fuga à periodicidade oficial – uma relacionada ao Golpe do Chile e outra ao 1o de maio no ABC paulista. Mais do que esses dados que, atualmente, com a quase divinização do mercado e do capital, soam impressionantes, importa-nos uma aproximação a Versus como analisador6 6 Para a Análise Institucional, analisador é um acontecimento que condensa as instituições em jogo em determinado momento ou situação. das perspectivas presentes na esquerda brasileira. Porque é em relação a algumas delas que o discurso contrassintético de Foucault compõe uma singular aliança.

Diz-nos Maria Paula Araújo (2000) que, no Brasil, a primeira metade dos anos 1970 carreou, para a esquerda, uma nova definição tática: a "luta de resistência" como autocrítica, na prática, da luta armada e de sua derrota (p.124). Essa postura, associada à defesa cotidiana das liberdades, não gozava, entretanto, de unanimidade. Certos setores de oposição ao regime militar a acusavam de diluidora:

A crítica de reformismo antes dirigida ao PCB e ao PCdoB voltou-se contra as organizações que haviam aderido à luta de resistência. Dessa forma, uma nova polaridade desenhou-se no interior da esquerda brasileira: de um lado, os que concordavam com uma luta de resistência ... de outro, militantes e organizações que consideravam essa proposta uma reedição do reformismo do comunismo tradicional brasileiro. (Araújo, 2000, p. 124)

Articulada à nova polaridade encontrava-se a ação das minorias – movimentos de mulheres, negros, homossexuais etc. – que então surgiam (ou ressurgiam): enquanto os que aderiam à luta de resistência acolhiam essas iniciativas pela valorização da diferença – com ou sem tentativas de "aparelhamento" –, a perspectiva (agora) tradicional da ação política alegava que dividiam a oposição, conduzindo a uma indesejável fragmentação da utopia revolucionária.

Segundo Araújo (2000), com quem concordamos, "esse debate pode ser rastreado no espaço legal das páginas da imprensa alternativa", pois "as discussões políticas começavam a sair do âmbito estrito das organizações clandestinas e ganhavam espaço e público maiores" (p. 128). Nesse sentido, conquanto não se deva identificar imprensa alternativa e esquerda alternativa, a trajetória de Versus nos ajudará a esboçar uma análise do contraponto em pauta.

Entre 1975 e 1977, não faltaram ao periódico motivos para lutas de resistência: depois de Vlado, o líder operário Manuel Fiel Filho foi assassinado, em 1976, nas dependências do Exército e, no mesmo ano, a estilista Zuzu Angel, que vinha denunciando o massacre do filho Stuart Angel Jones, morreu em um acidente de carro suspeito. Paralelamente, atentados a bomba começaram a ser praticados contra organizações como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Organização dos Advogados do Brasil (OAB), logo seguidos de outros voltados aos espaços nanicos que vendiam imprensa nanica, as bancas de jornal.

A linguagem e a estética de Versus eram um condensado desse momento: "o jornal buscava uma forma de expressão que representasse justamente o terror e a angústia ... Por outro lado, intelectualmente, era ... próximo dos ares do Maio de 1968 francês, encarando a política como uma manifestação estética" (Araújo, 2000, p. 132). Apesar da ênfase nos temas do pânico e da morte – o primeiro número, além da entrevista com Foucault, exibia matérias como "Conversas sobre o medo", "Necrotério Raul Soares7 7 O Raul Soares era um dos grandes hospitais psiquiátricos de Belo Horizonte. ", "450 anos de genocídio" e "Diário de minha morte" –, Versus era considerada uma publicação extremamente bonita:

De visual dramático, transmitindo ao mesmo tempo beleza e tensão, valendo-se de todos os recursos, do quadrinho à foto, ... diferia esteticamente de tudo o que já havia sido feito antes na imprensa alternativa. ... Um de seus principais artistas gráficos vivia assumidamente a cultura da droga e valia-se das experiências com novos modos de expressão para a criação. (Kucinski, 2003, p. 255)

De acordo com Marcos Faerman, editor de Versus, essa estética-política pretendia fazer nascer, para o público brasileiro, uma ainda desconhecida América Latina, toda ela medo e terror: "Era tudo passado, usávamos o passado para falar do presente" (citado por Kucinski, 2003, p. 256). A frase de Faerman em tudo evoca procedimentos adotados por Foucault, e tal orientação não se altera quando apreciamos o seguinte comentário de Kucinski (2003): "Apenas para o público habituado à linguagem pedagógica, e em busca de rigor doutrinário, Versus era insuficiente" (p. 256).

Mas como se dava o processo cotidiano de produção do periódico? A um núcleo inicial descapitalizado, que assinava promissórias na gráfica de Pinheiros para financiar as edições, juntaram-se jovens jornalistas, em geral fascinados com o primeiro número. Colaboravam igualmente intelectuais e artistas veteranos, brasileiros e latino-americanos, assim como uma nova geração de desenhistas e criadores de quadrinhos. Aparentemente, o grupo não tinha qualquer administração, tampouco preocupação com direitos autorais: "roubava" textos de revistas estrangeiras ou os recebia de presente de seus congêneres destruídos por ditaduras outras. Além disso, pela temática e estética, atraía exilados e, inclusive, abrigava-os em sua sede, quando necessário.

A síntese, quando existe, é feita pela coletividade – dissera Foucault na entrevista a Versus. É preciso acrescentar, contudo, que a síntese nem sempre se constitui, para o filósofo, em algo desejável: "As utopias consolam; ... as heterotopias inquietam", afirmara ele também, muitos anos antes, no prefácio de As palavras e as coisas (Foucault, 1966/1999, p.XIII). Em 1977, Versus está no apogeu: vende cerca de 35000 exemplares por edição; congrega gente de todos os partidos de esquerda; obtém o apoio de um show, assistido por cerca de 15000 pessoas, no Congresso Alternativo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizado em São Paulo em face da proibição do evento oficial em Brasília. Nessa mesma época, no entanto, através dos exilados que acolhera, recebe a Liga Operária, organização que não muito depois virá a lançar, no interior do jornal, o movimento Convergência Socialista. Trata-se de um percurso repleto de peripécias, que não detalharemos, limitando-nos a resumi-lo, talvez exageradamente, como enfrentamento entre utopia fragmentada e utopia totalizadora; ou, para usar termos foucaultianos, entre heterotopia e utopia.

Com a anistia, a Convergência não precisa mais de Versus. Em junho de 1979, lançam ... Cadernos para o socialismo ... uma grande reportagem ... sobre a vitória dos socialistas na Nicarágua ... Em outubro ... sai a última edição ... Simultaneamente, a Convergência lança seu jornal próprio, não mais para lutar por um Partido Socialista, mas para lutar pelo poder dentro do PT, como tendência organizada. (Kucinski, 2003, pp. 267-268)

Quando da vinda ao Brasil, em 1975, Foucault não está alheio a essas aventuras e desventuras. Em tempos recentes, tivera relações de proximidade (e tensão) com La cause du peuple, publicação dos maoístas franceses. A partir de 1971, estreitara vínculos com a Agence de Presse Libération (APL), cujos objetivos algo se assemelhavam aos de nossa imprensa alternativa. Ao final de 1972, a APL decide lançar um diário popular "que reflita as lutas sem ser o órgão de uma corrente política" (Eribon, 1990, p. 233). Na redação, reúnem-se maoístas, não-maoístas e intelectuais extrapartidários. Foucault participa ativamente, pois deseja ocupar-se de uma "crônica da memória operária" que faculte ao saber dos trabalhadores a entrada e difusão no sistema de informação. Como iniciativa pioneira, entrevista por duas vezes José, um operário da Renault – diálogos publicados em um dos diversos números "zero" que dão corpo, de início, à invenção jornalístico-política. Mas logo percebe que ser jornalista de Libération implicaria dedicar todo o seu tempo ao periódico; os responsáveis pela publicação, por sua parte, não parecem ver com bons olhos a presença constante dos intelectuais. A respeito, dirá mais tarde Maurice Clavel: "Lembro-me de ter tido uma modesta participação na criação de um jornal de esquerda, Libération, com uma equipe marxista unida, corajosa, entusiasmada. Ora, eles logo deixaram de se amar" (citado por Eribon, 1990, p. 235). Também Claude Mauriac transcreverá conversas com Foucault relativas a Libération, em que este último fala "de sua tristeza em ver esse jornal mentir todos os dias, tal qual a imprensa de direita mais empenhada em deturpar os fatos" (citado por Eribon, 1990, p. 235). Sendo assim, por mais que Foucault expresse, à época, o desejo de abandonar a escrita acadêmica para dedicar-se ao jornalismo, a ausência de "veridicção", ou seja, do "dizer verdadeiro" que ele reivindica, parece contê-lo.

Cumpre notar que Foucault concedeu ainda outra entrevista, em 1975, à imprensa brasileira. No caso, não a um nanico, mas a um órgão que diríamos "híbrido", o Jornal da Tarde (JT). Lançado em 1966, pretendia ser um vespertino graficamente revolucionário, ágil e divulgador de grandes reportagens. Era, porém, um subproduto de O Estado de São Paulo, circunstância que lhe definia os limites. Acerca das revoluções de forma aspiradas pelo JT, é oportuno lembrar a talvez mais famosa delas, não obstante ousadias estéticas fossem o que menos a determinavam: durante os anos de censura prévia à imprensa, o jornal publicava receitas de bolo nos espaços em que atuara a tesoura do censor.

Avaliando essa estratégia, Frei Betto (2000), que foi colaborador do JT, afirma que atenuava a cumplicidade com a mentira oficial, evitando a autocensura – o corte antes do corte (p.99). Já a recepção do público é discutível. Enquanto alguns dos entrevistados da pesquisa de Kushnir (2004) relatam que pessoas telefonavam ao jornal reclamando que as receitas não davam certo, outros asseguram que, com o tempo, o sentido da manobra como forma de resistência tornou-se claro para todo mundo. Certo é que o Jornal da Tarde, da família Mesquita, ficou conhecido como "mais à esquerda ou menos à direita" do que seu rival, a Folha da Tarde, da família Frias – a partir do Ato Institucional no 5 (AI-5) um "cão de guarda" da ditadura, uma espécie de sucursal midiática da Operação Bandeirantes (OBAN), a ponto de não publicar uma linha sequer sobre as exéquias de Herzog.

É difícil precisar o quanto sabia Foucault a respeito das conivências e resistências da imprensa brasileira. Porém a entrevista concedida a Cláudio Bojunga e Reinaldo Lobo, publicada em 1o de novembro de 1975, faculta apreciar tanto a ordem discursiva que preponderava no Jornal da Tarde quanto a eventual desordem que Foucault nela conseguiu imprimir. No canto inferior esquerdo da página 12, o box intitulado "A história e a cultura vistas por um pensador profundo, inteligente, original, demoníaco. Com a palavra, Michel Foucault"... não lhe dá imediatamente a palavra. Quem a tem é Reinaldo Lobo, que, após algumas ironias – "Michel Foucault é uma vedete"; "Alguns chegaram a ler seus livros" –, dedica-se a explicar longamente aos pobres leitores o sentido de As palavras e as coisas. Somente depois disso, aparentemente certo de que suas considerações seriam previamente lidas8 8 No jornalismo, esse procedimento – trecho introdutório de uma notícia, geralmente em destaque – é denominado lead. O termo vem do verbo to lead, que pode ser traduzido como "conduzir, guiar", e também como "persuadir, induzir". A presença desse modelo na imprensa brasileira intensificou-se durante os anos da ditadura militar, a ponto de se falar então em uma "ditadura do lead". , afirma que "precisamos dar-lhe [a Foucault] a palavra". À direita da página 12 e na página seguinte, o filósofo responde aos entrevistadores. Os temas não diferem muito dos abordados em Versus, embora no JT as questões sejam formuladas de modo quase erudito, ao invés de se sucederem, como no periódico alternativo, qual em uma animada conversa. Mas Foucault sabe como ninguém inclinar o que lhe indagam na direção do que deseja afirmar. Assim, quando lhe pedem que esclareça o sentido do que denomina "confissão" em suas pesquisas genealógicas, dispara sobre o presente (brasileiro?):

Se é verdade que a extorsão selvagem da confissão é uma prática policial habitual e que a justiça, em princípio, a ignora ... é também verdade que, atribuindo um tal privilégio [a produção da verdade] à confissão, o sistema judiciário é um pouco cúmplice dessa prática policial que consiste em arrancá-la a qualquer preço ... Para dizer a verdade, a infelicidade do sistema é que existe, entre a justiça e a polícia, um acordo tácito e é a justiça que, sem o dizer, suscita frequentemente as práticas policiais. (Foucault, 1975, p. 13)

O próprio Foucault, por sinal, não escapa à necessidade de repetidamente confessar – ou reparar, qual em uma interminável penitência – a ousadia de haver um dia atacado a sacrossanta figura do homem. A pergunta é previsível: "E o homem? Existe?" – indagam os entrevistadores. Paciente, ele contesta:

É claro que existe. O que é preciso destruir é o conjunto de qualificações, especificações e sedimentações pelas quais algumas essências humanas foram definidas a partir do século XVIII. Meu erro não foi dizer que o homem não existe, mas que seria fácil demoli-lo. (Foucault, 1975, p. 13)

A resposta abre caminho à provocação final. Sabendo que Foucault se mostra um incansável defensor das minorias, perguntam-lhe se tal postura poderia escapar a alguma forma de humanismo. Novamente mirando o presente, o filósofo fecha o diálogo:

Se essas lutas são conduzidas em nome de uma essência determinada de homem ... diria que são lutas perdidas. Porque serão conduzidas em nome do homem abstrato, do homem normal, de boa saúde, que é o precipitado de uma série de poderes ... Fazer uma crítica política em nome de um humanismo significa reintroduzir na arma de combate a própria coisa que combatemos. (Foucault, 1975, p.13)

Viajante contumaz, Foucault segue para Nova Iorque – "insuportável depois do Brasil", escreve a Daniel Defert (2002, p.48). Ali, participando de um debate sobre "Medicina, violência e psiquiatria", lembrou-se de nós e fez com que se lembrassem de nós, dizendo:

Perdoem-me por esta digressão que não parece falar senão incidentalmente dos asilos e não da medicina quando, de fato, nessa nova técnica de tortura foi introduzido um personagem, hoje constantemente presente no ritual de tortura: esse personagem é o médico. Praticamente em todas as torturas importantes, hoje, está presente um médico que tem por função, em primeiro lugar, dizer quais são as torturas mais eficazes; em segundo lugar, ele faz exames médicos para saber se o doente corre o risco de morrer – Herzog, morto na prisão há 10 dias, não foi suficientemente examinado – e, em terceiro lugar, o médico dá injeções de diferentes tipos para reanimar o paciente de modo que este possa suportar fisiologicamente e psicologicamente as torturas. (citado por Defert, 2002, p. 48)

Malhas e manhas do poder

Tantas manifestações, no Brasil e no exterior, não terão passado despercebidas a censores de todos os matizes – dos serviços de informação à imprensa guardiã da ordem ditatorial. Após o assassinato de Herzog, conforme assinalamos, Foucault passou a sentir-se vigiado e temia que o regresso a nosso país lhe fosse interditado. Retorna, no entanto, ainda uma vez, em 1976. Nesse momento, contorna os chamados "grandes centros" – a viagem prevê conferências unicamente em Salvador, Recife e Belém.

Memórias da professora Ieda Tucherman (2007) assim se referem à breve passagem do filósofo pelo Rio de Janeiro, quando recém-chegado:

Foucault ... acabou por participar também de uma conversa menos formal na Aliança Francesa de Botafogo; nas casualidades da vida, eu trabalhava então na Delegação Geral das Alianças Francesas no Brasil, ... e não apenas participei como ajudei a organizar esta conversa e ainda cuidei do transporte do conferencista, que então confessou que havia temido não obter a permissão do governo brasileiro para esta viagem. (p. 117)

Nessas circunstâncias, a última presença de Foucault no Brasil tenderia a ser ignorada pela imprensa, não fosse a cisão que vimos enfatizando entre os "cães de guarda" e os "nanicos". Pois as conferências na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), além de receberem algum destaque local, são minuciosamente cobertas por Opinião9 9 O número 211 de Opinião, além da cobertura das conferências (Amaral, 1976), divulga um artigo de Katz (1976) e outro do próprio Foucault (1976). , um periódico alternativo. Mais do que isso, a íntegra de uma delas, sob o título "As malhas do poder", será futuramente publicada pelo nanico anarquista Barbárie, dividida por duas edições do periódico (Foucault, 1981, 1982). Outro nanico anarquista, O inimigo do rei, além de chamadas de capa que evocam ideias de Foucault10 10 Na capa do n.7, ano 3, vê-se a foto de um homem atrás das grades e, ao lado, a legenda: "Preso comum, também quero sair!". , divulgará uma de suas aulas no Collège de France, intitulando-a "As manhas do poder" (Foucault, 1979a)11 11 Traduzida do espanhol pelo periódico, a mesma aula será posteriormente publicada na coletânea Microfísica do poder, sob o título "Soberania e disciplina". . Já Invasão, alternativo baiano que teve uma única edição, trará à cena uma extensa entrevista com o filósofo, realizada por professores universitários, jornalistas e psiquiatras12 12 A entrevista (Foucault, 1977) incorpora, em alternância ao diálogo com o filósofo, trechos das conferências na UFBA. .

Essa cobertura alternativa e principalmente anarquista terá, porém, sua contraparte "guardiã". A Folha de São Paulo, na única menção que até o momento localizamos, por parte da grande imprensa do eixo Rio-São Paulo, sobre a presença de Foucault no Brasil em 1976 parece voltada à desqualificação, sob vestes presumidamente (e desastradamente) humorísticas. A notícia, assinada por Renato de Moraes, tem por título "Foucault, na Bahia, atrás de Eros":

Envolto num proposital anonimato, o "maitre à faire" Michel Foucault desembarcou dias atrás em Salvador ... E por lá continua, despreocupado, sem explicar os motivos reais (se é que existem) desta sua nova incursão ao Brasil. ... As mais recentes escavações do "arqueólogo do saber" estão agora voltadas para outra de suas curiosas teorias, a da diferenciação entre a arte erótica (tipicamente oriental) e a prática erótica (tipicamente ocidental). ... Na Bahia, sabe-se, as coisas se passam de modo único e diferente. Iconoclasta nato, o francês Foucault não está deixando por menos em seu périplo baiano: a única companhia por ele julgada conveniente em seus momentos de relax tem sido um guapo rapaz, culto e belo, conhecido naquelas plagas como Paulete. Elementar, diria, para quem costuma afirmar ter um prazer quase erótico em sua "artesania". (Moraes, 1976, p. 33)

Sobre as passagens por Recife e Belém, conquanto escasseiem as notícias na grande imprensa carioca e paulista, são abundantes as memórias, principalmente no que tange à vigilância. Em Recife, muitos dos encontros com Foucault, previamente agendados pelos organizadores da estada, são subitamente cancelados, aparentemente devido ao temor, por parte de intelectuais e profissionais da cidade, de terem seus nomes associados ao do filósofo. Já em Belém, uma entrevista do Professor Benedito Nunes é eloquente acerca dos acontecimentos que se sucederam às conferências proferidas na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará:

Menos de uma semana depois que Foucault foi embora, fui chamado pelo diretor, ... me dizendo que o SNI estava pedindo a relação dos frequentadores. Eu disse "eu não dou a relação". Saí de lá e fui diretamente falar com o reitor. Ele foi muito correto, e até corajoso. Ele me disse para não dar a lista. ... Havia uma vigilância até nesse ponto. Não era uma invenção dizer que o SNI estava infiltrado. (Nunes, 2008, p.22)

Portanto, se ao que parece Foucault não teve problemas para voltar ao Brasil em 1976, aqueles que dele se aproximaram poderiam tê-los experimentado, não fosse a conduta ética – "a coragem do silêncio", ousamos dizer – de alguns universitários de Belém.

Considerações finais: narrativa histórica e crítica do presente

Como vimos, nas passagens de 1975 e 1976 pelo Brasil, Foucault foi assediado por "cães de guarda", mais ou menos ferozes; paralelamente, "nanicos" de variados matizes dele se acercaram em busca de alianças – quer na forma de entrevistas, quer mediante a intempestiva divulgação de conferências e cursos.

À mesma época, conforme igualmente ressaltamos, Foucault por diversas vezes expressou a intenção de abandonar a filosofia (e a forma de escritura a ela associada) para dedicar-se a um jornalismo radical. Nessa linha, virá a cunhar, poucos anos depois, a expressão "reportagens de ideias". Ele as apresentará então com indisfarçável entusiasmo, remetendo a uma prática em que o intelectual e o jornalista trabalhariam no exato ponto de cruzamento entre ideias e acontecimentos13 13 Essa experiência será efetivada através da série de reportagens realizadas por Foucault, em 1978/1979, para o jornal italiano Corriere della Sera, sobre a revolução iraniana. Elas muito lhe custaram em termos de opróbrio, o qual, vale frisar, se prolonga até o presente através de sempre renovados "cães de guarda". 13 Essa experiência será efetivada através da série de reportagens realizadas por Foucault, em 1978/1979, para o jornal italiano Corriere della Sera, sobre a revolução iraniana. Elas muito lhe custaram em termos de opróbrio, o qual, vale frisar, se prolonga até o presente através de sempre renovados "cães de guarda". :

Há mais ideias sobre a terra do que os intelectuais imaginam. E essas ideias são mais ativas, mais fortes, mais resistentes e mais apaixonadas do que pensam os políticos. É preciso assistir ao nascimento das ideias e à explosão de sua força ... Não são as ideias que conduzem o mundo. Mas é porque o mundo tem ideias ... que ele não é conduzido passivamente segundo aqueles que o dirigem ou aqueles que gostariam de ensiná-lo a pensar de uma vez por todas. (Foucault, 1978/1994b, p. 707)

Foucault não alimentava, entretanto, qualquer ingenuidade sobre a imprensa, o jornalismo ou a mídia. Para percebê-lo, em acréscimo aos já mencionados desencontros com La cause du peuple e Libération, pode-se evocar a entrevista intitulada "O olho do poder", originalmente publicada como introdução à tradução francesa de O Panóptico. Nesse texto, cujo objetivo inicial é o esclarecimento do modo como (re)descobrira a importância da obra de Jeremy Bentham para uma "história dos espaços/ história dos poderes", Foucault põe a mídia em foco. Questionando o lirismo dos revolucionários – Rousseau em particular –, que acreditavam na constituição de uma sociedade transparente para cada um de seus membros, assim se expressa:

Eles desconheciam as condições reais da opinião, as media, uma materialidade que obedece aos mecanismos da economia e do poder em forma de imprensa, edição, depois de cinema e televisão. ... Eles acreditavam que a opinião era justa por natureza, que ela se difundiria por si mesma e que seria um tipo de vigilância democrática. No fundo, foi o jornalismo – invenção fundamental do século XIX – que manifestou o caráter utópico de toda esta política do olhar. (Foucault, 1977/1979b, p. 224)

Apesar de tudo isso, e talvez paradoxalmente, Foucault nunca publicou um trabalho específico sobre o jornalismo14 14 Referências ao jornalismo e à mídia estão dispersas pelos escritos foucaultianos, e não é intenção do presente trabalho recenseá-las. Como simples indicação, sugerimos os textos que se voltam para os modos de pesquisa (e de divulgação) do Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP), bem como a análise da literatura policial (inclusive folhetinesca) e da imprensa operária do século XIX presentes em Vigiar e Punir. . Mas, sabendo-o avesso às totalizações abstratas – em Foucault, se há regra no pensar, esta é a da especificidade das problemáticas e da inescapável bifurcação que comportam –, pode-se especular, sem grandes receios, que não o glorificaria nem o condenaria de maneira peremptória.

A frase com que finaliza "O olho do poder" é, nesse aspecto, elucidativa. Após ouvir as críticas foucaultianas à "brava e velha 'lógica' da contradição" (Foucault, 1977/1979b, p. 226), segundo a qual tudo estaria aprioristicamente explicado, Michelle Perrot, uma das entrevistadoras, lhe pergunta se não teria sentido, para os prisioneiros, apoderar-se da torre central do panóptico. Ao que Foucault, breve e certeiro, contesta: "Sim. Contanto que este não seja o objetivo final da operação. ... Você acredita que será muito melhor assim que com os vigias?" (Foucault, 1977/1979b, p. 227).

Na mesma direção antitotalizadora encaminhou-se o presente trabalho. Narrativa histórica acerca das visitas de Foucault ao Brasil em 1975 e 1976, nela procuramos trazer à cena elementos aptos a favorecer uma reflexão sobre a presença da mídia na normalização e judicialização da vida. Mas, principalmente, também elementos que julgamos preciosos para sustentar a perspectiva de uma singular agonística das relações de poder; pois o resistencial e/ou o contracondutual a tais normalização e judicialização estão invariavelmente presentes e atuantes – na coragem do silêncio, na intensidade da imprensa alternativa e, em especial, na dos nanicos anarquistas.

Cabe a nós, críticos do/no presente, intensificá-los, quiçá "pirotecnicamente", frente a nossos novos problemas e com nossos novos recursos.

Notas

Agradecimentos

A todos os entrevistados e colaboradores da pesquisa, especialmente, em razão do focalizado no artigo, Guilherme Castelo Branco (UFRJ), Luís Orlandi (UNICAMP), Armando Boito Júnior (UNICAMP), Gustavo Simões (PUC-SP), Cláudio Luiz Pereira (UFBA), Silke Weber (UFPE) e Ernani Chaves (UFPA). O artigo é parte da pesquisa "Michel Foucault no Brasil: presença, efeitos e ressonâncias", desenvolvida com apoio da UERJ (bolsa Prociência), da FAPERJ (auxílio APQ-1) e do CNPq (auxílio do Edital Ciências Humanas e Sociais).

Recebido em: 07/01/2012

Revisão em: 09/03/2012

Aceite em: 09/03/2012

Heliana de Barros Conde Rodrigues é professora dos cursos de graduação em Psicologia, especialização em Psicologia Jurídica e Pós-graduação em Psicologia Social da UERJ. Doutora em Psicologia Escolar pela USP. Pesquisadora do CNPq. Endereço: Avenida São Sebastião, 256; Urca. Rio de Janeiro/RJ, Brasil. CEP 22291-070. Email: helianaconde@uol.com.br

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  • Voeltzel, T. (1978). Vingt ans et après Paris: Grasset.
  • 1
    O texto preserva, na medida do possível, a tonalidade da apresentação oral no Primeiro Colóquio Internacional Michel Foucault – A judicialização da vida.
  • 2
    "Cães de guarda" é também o título de uma obra de Paul Nizan que, em 1932, a utilizou para criticar o idealismo dominante na filosofia francesa.
  • 3
    Alcunha pela qual é conhecido o jornal O Estado de São Paulo.
  • 4
    Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna.
  • 5
    Trata-se de D. Paulo Evaristo Arns.
  • 6
    Para a Análise Institucional, analisador é um acontecimento que condensa as instituições em jogo em determinado momento ou situação.
  • 7
    O Raul Soares era um dos grandes hospitais psiquiátricos de Belo Horizonte.
  • 8
    No jornalismo, esse procedimento – trecho introdutório de uma notícia, geralmente em destaque – é denominado lead. O termo vem do verbo to lead, que pode ser traduzido como "conduzir, guiar", e também como "persuadir, induzir". A presença desse modelo na imprensa brasileira intensificou-se durante os anos da ditadura militar, a ponto de se falar então em uma "ditadura do lead".
  • 9
    O número 211 de Opinião, além da cobertura das conferências (Amaral, 1976), divulga um artigo de Katz (1976) e outro do próprio Foucault (1976).
  • 10
    Na capa do n.7, ano 3, vê-se a foto de um homem atrás das grades e, ao lado, a legenda: "Preso comum, também quero sair!".
  • 11
    Traduzida do espanhol pelo periódico, a mesma aula será posteriormente publicada na coletânea Microfísica do poder, sob o título "Soberania e disciplina".
  • 12
    A entrevista (Foucault, 1977) incorpora, em alternância ao diálogo com o filósofo, trechos das conferências na UFBA.
  • 13
    Essa experiência será efetivada através da série de reportagens realizadas por Foucault, em 1978/1979, para o jornal italiano Corriere della Sera, sobre a revolução iraniana. Elas muito lhe custaram em termos de opróbrio, o qual, vale frisar, se prolonga até o presente através de sempre renovados "cães de guarda".
  • 14
    Referências ao jornalismo e à mídia estão dispersas pelos escritos foucaultianos, e não é intenção do presente trabalho recenseá-las. Como simples indicação, sugerimos os textos que se voltam para os modos de pesquisa (e de divulgação) do Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP), bem como a análise da literatura policial (inclusive folhetinesca) e da imprensa operária do século XIX presentes em Vigiar e Punir.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      07 Jan 2012
    • Aceito
      09 Mar 2012
    • Revisado
      09 Mar 2012
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