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Vitimação múltipla feminina ao longo da vida: uma revisão sistemática da literatura

Lifetime multiple victimization among women:a systematic review of the literature

Resumos

No contexto internacional assistimos a um crescente reconhecimento científico de que as mulheres, vítimas preferenciais de diferentes formas de vitimação, tendem a coo-experienciar outras formas de vitimação ao longo da vida. Neste artigo realizamos uma revisão sistemática da literatura existente sobre a vitimação múltipla de mulheres ao longo da vida. Conclui-se que predominam os estudos quantitativos de natureza transversal, retrospectivos e com designs descritivos correlacionais, centrados na vitimação múltipla interpessoal, nomeadamente, íntima. Os inventários de autorrelato e as entrevistas semiestruturadas são os instrumentos mais frequentes para avaliar o fenómeno, recorrendo, maioritariamente, a amostras por conveniência, recrutadas em contexto normativo (universitário) ou forense. A prevalência, embora elevada, oscila entre os estudos, reflexo das diferentes amostras e instrumentos utilizados. Quanto ao impacto, os estudos são consensuais na ideia de que quanto maior a vitimação cumulativa, maior o impacto (efeito dose). Finalmente, apresentamos os principais contributos e limitações que derivam desta revisão sistemática.

vitimação múltipla; polivitimação; abuso cumulativo; mulheres; interseccionalidade


There is an increasing scientific recognition that women, primary victims of different forms of interpersonal victimization, tend to co-experience other forms of victimization throughout lifetime. Therefore, we conducted a systematic review of publications on lifetime multiple victimization of women. We found predominantly cross-sectional studies, retrospective and correlational designs, directed to study multiple interpersonal violence, particularly intimate abuse. Self-report inventories and semi-structured interviews were the most commonly strategies used to evaluate the problem, and the most frequent sampling option was convenience samples, recruited in normative (university) or forensic contexts. The prevalence of multiple victimization reported by women, although high, varied between studies, reflecting the different samples and evaluation tools. In terms of impact, the studies were consensual on the idea that the greater the cumulative victimization the greater impact victimization would produce. Finally, we present the main contributions and limitations that draw from this systematic review.

multiple victimization; poly-victimization; cumulative abuse; women; intersectionality


ARTIGOS

Vitimação múltipla feminina ao longo da vida: uma revisão sistemática da literatura

Lifetime multiple victimization among women:a systematic review of the literature

Marlene MatosII; Rita CondeII; Judite PeixotoIII

IUniversidade do Minho, Braga/Minho, Portugal

IIUniversidade do Minho, Braga e Instituto Superior da Maia, Maia/Porto, Portugal

IIIUniversidade do Minho, Braga/Minho, Portugal

RESUMO

No contexto internacional assistimos a um crescente reconhecimento científico de que as mulheres, vítimas preferenciais de diferentes formas de vitimação, tendem a coo-experienciar outras formas de vitimação ao longo da vida. Neste artigo realizamos uma revisão sistemática da literatura existente sobre a vitimação múltipla de mulheres ao longo da vida. Conclui-se que predominam os estudos quantitativos de natureza transversal, retrospectivos e com designs descritivos correlacionais, centrados na vitimação múltipla interpessoal, nomeadamente, íntima. Os inventários de autorrelato e as entrevistas semiestruturadas são os instrumentos mais frequentes para avaliar o fenómeno, recorrendo, maioritariamente, a amostras por conveniência, recrutadas em contexto normativo (universitário) ou forense. A prevalência, embora elevada, oscila entre os estudos, reflexo das diferentes amostras e instrumentos utilizados. Quanto ao impacto, os estudos são consensuais na ideia de que quanto maior a vitimação cumulativa, maior o impacto (efeito dose). Finalmente, apresentamos os principais contributos e limitações que derivam desta revisão sistemática.

Palavras-chave: vitimação múltipla; polivitimação; abuso cumulativo; mulheres; interseccionalidade.

ABSTRACT

There is an increasing scientific recognition that women, primary victims of different forms of interpersonal victimization, tend to co-experience other forms of victimization throughout lifetime. Therefore, we conducted a systematic review of publications on lifetime multiple victimization of women. We found predominantly cross-sectional studies, retrospective and correlational designs, directed to study multiple interpersonal violence, particularly intimate abuse. Self-report inventories and semi-structured interviews were the most commonly strategies used to evaluate the problem, and the most frequent sampling option was convenience samples, recruited in normative (university) or forensic contexts. The prevalence of multiple victimization reported by women, although high, varied between studies, reflecting the different samples and evaluation tools. In terms of impact, the studies were consensual on the idea that the greater the cumulative victimization the greater impact victimization would produce. Finally, we present the main contributions and limitations that draw from this systematic review.

Keywords: multiple victimization; poly-victimization; cumulative abuse; women; intersectionality.

Violência contra as mulheres: da vitimação individual à vitimação múltipla

A violência contra as mulheres tem sido alvo de interesse por parte da comunidade científica internacional, havendo um amplo e rápido crescimento da investigação e da literatura sobre o fenómeno. Em Portugal, ainda que mais tardiamente, a investigação tem seguido um percurso idêntico: iniciando-se nos anos 90 com estudos focados na violência doméstica (e.g., Lourenço, Lisboa, & Pais, 1997; Machado, Gonçalves, Matos, & Dias, 2007), tem-se ampliado a áreas como a violência no namoro (e.g., Machado, Caridade, & Martins, 2009), o stalking1 1 Ver Matos, M., Grangeia, H., Ferreira, C., & Azevedo, V. (2011). Inquérito de vitimação por stalking. Disponível a partir dos autores. , o tráfico de mulheres (e.g., Couto & Machado, 2010) e a violência sexual (e.g., Martins & Machado, 2010).

Na sua maioria, a investigação tem-se centrado na prevalência, nas dinâmicas e no impacto da vitimação mas, mais recentemente, têm sido desenvolvidos estudos sobre as atitudes e os valores culturais acerca da violência (e.g., Machado, Caridade, & Martins, 2009; Machado, Gonçalves, Matos, & Dias, 2007), as atitudes e respostas dos profissionais perante as vítimas (e.g., Machado & Matos, 2007) e as respostas terapêuticas às vítimas de violência (e.g., Machado, 2004). De um modo geral, os estudos têm chamado a atenção para o problema da violência contra as mulheres e têm gerado um vasto conhecimento que tem orientado as políticas públicas e as técnicas de intervenção.

Contudo, recentemente, alguns autores (e.g., Sokolloff & Pratt, 2006; Spalek, 2006) têm tecido críticas ao modelo dominante de investigação na Vitimologia em geral e, em particular, na violência contra as mulheres, nomeadamente: (a) o foco nas formas individuais de vitimação violenta (e.g., violência doméstica, violência sexual), esquecendo a existência de processos de vitimação colectiva (e.g., violência institucional, estrutural – e.g., exclusão social) a que as mulheres, especialmente as socialmente desfavorecidas, também estão sujeitas; e (b) o estudo da violência contra as mulheres unicamente a partir da lente do género, esquecendo a sua interseccionalidade (Crenshaw, 1994) com outras dimensões estruturantes da sua experiência, como sejam a classe ou a etnia, contribuindo para a maior/menor vulnerabilidade (Brandão & Germando, 2009).

Estas críticas, associadas aos resultados dos estudos que indicam que um tipo de violência surge quase sempre associado a outros tipos de violência, sendo rara a experiência isolada de um só tipo de abuso (e.g. Finkelhor, Ormrod, Turner, & Hamby, 2005), despertou o nosso interesse pela violência múltipla feminina ao longo da vida.

Os conceitos avançados pela literatura para designar a experienciação de mais do que um tipo e/ou forma de vitimação têm sido os de vitimação múltipla (Hope, Bryan, Trickett, & Osborn, 2001) e polivitimação (Finkelhor, Ormrod, & Turner, 2007a). É de notar que enquanto o termo vitimação múltipla diz respeito a um ou mais tipo e/ou forma de vitimação, o termo polivitimação implica a experienciação de quatro ou mais tipos de vitimação. Estes dois conceitos distinguem-se do termo revitimação ou vitimação crónica, designando estes a a experienciação de mais do que um episódio do mesmo tipo de violência, num determinado período de tempo (Finkelhor, Ormrod, & Turner, 2007b).

Os estudos internacionais mais representativos sobre a prevalência e impacto psicológico deste fenómeno foram conduzidos no domínio da vitimação infantil (e.g., Finkelhor et al., 2007a, 2007b), indicando que uma percentagem significativa de jovens tinha experienciado múltiplas formas de vitimação, no último ano e ao longo da vida, evidenciando sintomatologia traumática. Do mesmo modo, estudos realizados com estudantes universitários (e.g., Sabina & Straus, 2008) documentam elevadas taxas de prevalência de múltiplos tipos de violência nesta população, sendo a vitimação múltipla um forte preditor de desajustamento psicológico (e.g., depressão, PTSD, dificuldades académicas, problemas relacionais/interpessoais). Em particular, estudos retrospetivos com população universitária (e.g., Clemmons, Walsh, DiLillo, & Messman-Monroe, 2007) concluíram que a vitimação múltipla é um fenómeno frequente e que o historial cumulativo de vitimação na infância/adolescência está significativamente associado ao desajustamento psicológico na idade adulta. Outros estudos (e.g., Leitenberg, Gibson, & Novy, 2004) acrescentam que estas vítimas tendem a recorrer a estratégias de coping desadaptativas para lidar com vários stressores traumáticos no presente e no futuro.

Há ainda uma terceira crítica que tem sido tecida à investigação na Vitimologia: a ênfase no impacto da violência e nas suas consequências adversas, retratando as vítimas como "traumatizadas", "impotentes" e "passivas", negligenciando a compreensão dos seus processos de mudança. Contrariamente, alguma investigação tem sugerido que há vítimas, expostas a altos níveis de adversidade cumulativa, que não desenvolvem problemas de ajustamento psicológico, sugerindo a presença de fatores de resiliência/proteção (DuMont, Widom, & Czaja, 2007), tais como autoestima positiva, suporte social e competências de coping ativo.

Assim, atendendo a que os estudos indicam que as mulheres são vítimas preferenciais de diferentes formas de vitimação ao longo da sua trajetória desenvolvimental, e que a maioria dos estudos sobre a vitimação múltipla tem incidido em crianças e jovens, consideramos que o fenómeno da vitimação múltipla feminina ao longo da vida não pode ser negligenciado, devendo constituir um foco de análise. Além disso, no contexto internacional, o crescente reconhecimento científico do fenómeno da vitimação múltipla, associado às questões da interseccionalidade (que podem contribuir para a maior ou menor vulnerabilidade de determinados grupos de mulheres) e da possibilidade de "ajustamento" e trajetórias adaptativas entre algumas vítimas, vêm sublinhar a necessidade de sistematizar, de forma rigorosa e exaustiva, toda a investigação que tem sido desenvolvida sobre o fenómeno da vitimação múltipla em mulheres ao longo da vida (e.g., prevalência, impacto, coping, intervenção), no sentido de conseguirmos uma compreensão holística do fenómeno.

Neste sentido, o presente trabalho tem como objetivo identificar os trabalhos científicos desenvolvidos com mulheres adultas que foquem o fenómeno da vitimação múltipla ao longo da vida e sistematizar o conhecimento desenvolvido e os principais resultados alcançados. Para tal, procedemos a uma revisão sistemática da produção científica centrada neste fenómeno, tendo como questão de investigação: o que é que a literatura informa sobre a vitimação múltipla feminina ao longo da vida?

Em última análise, pretendemos que este trabalho contribua para o reconhecimento e um maior esclarecimento sobre o fenómeno da vitimação múltipla no âmbito da violência contra a mulher, tanto na comunidade científica como nos profissionais que intervêm junto das vítimas. Esta revisão poderá acarretar implicações significativas para a investigação e, consequentemente, para as políticas públicas e práticas de intervenção dirigidas a mulheres vítimas de violência múltipla.

Metodologia

Procedimentos da pesquisa

A pesquisa foi efetuada nas bases de dados electrónicas BioMed, BioInfo. ScienceDirect e Sage, utilizando-se a combinação das palavras-chave: (multiple victimization OR "poly-victimization") AND (women OR female). Recorreu-se também ao motor de busca Google, utilizando a mesma combinação, no sentido encontrar outros trabalhos relevantes que, eventualmente, não constassem das bases de dados. A pesquisa foi efetuada em Julho de 2012. É de referir que se usaram estas expressões mais abrangentes, dado que não obtivemos nenhum resultado quando tentámos especificar a pesquisa introduzindo a intersecção de outras palavras-chave relevantes: (multiple victimization OR "poly-victimization" OR "lifetime victimization" OR "cumulative abuse") AND (women OR female) AND (excluded OR poor).

Critérios de inclusão e de exclusão

Para orientar a seleção dos estudos, definiram-se critérios de inclusão e critérios de exclusão.

Critérios de inclusão: (a) publicações dos últimos dez anos (2002-2012); (b) estudos escritos em Inglês, Português e Espanhol; (c) estudos com mulheres adultas, com idades compreendidas entre os 18-64 anos - incluem-se neste critério estudos retrospectivos (i.e., estudos desenvolvidos com mulheres adultas mas que focam a vitimação sofrida no passado/na infância) e estudos longitudinais (estudos que, embora iniciados na infância, seguiram as mulheres até à idade adulta); (d) estudos com amostras mistas (homens e mulheres), desde que os dados das mulheres fossem analisados separadamente; (e) estudos que focavam a vitimação múltipla (i.e., ter sofrido dois ou mais tipos de violência ao longo da vida, em diferentes contextos e/ou por diferentes agentes); e (f) estudos quantitativos ou estudos qualitativos ou estudo mistos. Incluíram-se também trabalhos de revisão da literatura ou de discussão teórica sobre a vitimação múltipla, pelo facto de se tratar de um temática pouco explorada, principalmente na idade adulta, e cujas definição e conceptualização não é consensual e carecem de maior clarificação.

Critérios de exclusão: (a) estudos noutras línguas que não o Inglês, Português ou Espanhol; (b) estudos desenvolvidos com crianças ou adolescentes (amostras com idade inferior a 18 anos); (c) estudos que focavam exclusivamente o fenómeno da vitimação múltipla sob o ponto de vista dos cuidados médicos/cirúrgicos (e.g., procedimentos cirúrgicos); (d) estudos que abrangiam apenas um tipo de violência (ou a vitimação repetida ou a revitimação num tipo de violência); e (e) estudos que analisavam vitimação múltipla como factor ou preditor da violência/criminalidade feminina.

Seleção dos artigos

Na pesquisa obteve-se o total de 807 resultados (463 no Google, 178 na ScienceDirect, 107 na Biomed, 53 na BioInfo e 6 na Sage). Considerando os critérios de inclusão e de exclusão definidos, o processo de seleção dos artigos ocorreu em duas etapas (cf. Figura 1 - Fluxograma).


Etapa 1

Fez-se uma primeira seleção dos 807 resultados, com base na leitura dos títulos e/ou dos resumos, excluindo-se 764 resultados. Assim, no motor de busca Google excluíram-se 272 resultados repetidos e 79 resultados que não forneciam dados empíricos ou teóricos (e.g., referências bibliográficas, websites, entre outros) e os restantes foram excluídos por não preencherem os critérios de inclusão. Destes últimos, a grande maioria dos artigos (n = 277) foi excluída por retratar apenas formas singulares de vitimação interpessoal (e.g., violência sexual, violência física). Um número significativo de artigos (n = 77), embora abordasse a questão da vitimação múltipla ou polivitimação, utilizava uma amostra populacional com idade inferior a 18 anos (crianças e/ou adolescentes – e.g., Finkelhor, 2007a, 2007b). O critério temporal (anterior a 2002) motivou igualmente a exclusão de 47 publicações. Foram, ainda, excluídos oito artigos por focarem exclusivamente procedimentos clínicos e/ou cirúrgicos de vítimas de múltiplos traumas, dois artigos excluídos por tentarem estabelecer relações causais entre adversidade cumulativa e a criminalidade feminina e dois por não ser preenchido o critério do idioma. Desta seleção resultaram, assim, 43 artigos.

Etapa 2

Na segunda etapa procedeu-se à leitura integral e à análise detalhada dos 43 artigos resultantes da etapa anterior. Desta análise foram excluídos 26 artigos que não preenchiam os critérios de inclusão: nove artigos por analisarem separadamente vários tipos de violência mas não estudarem a vitimação múltipla; seis por focarem apenas um tipo de vitimação; seis com amostras mistas que não tratavam separadamente os resultados relativos às mulheres; um por se debruçar sobre a criminalidade feminina associada à vitimação múltipla; um outro se tratar de um estudo de validação de um instrumento de avaliação da vitimação múltipla; um por se tratar de um estudo com mulheres adolescentes; um por ser uma publicação anterior a 2002 e, por fim, um artigo que se encontrava repetido em duas bases de dados. Desta segunda etapa de seleção, resultou, assim, a inclusão de 17 artigos para a análise no presente trabalho.

É de referir, ainda, que, considerando os critérios definidos, a seleção dos estudos (i.e., a sua inclusão ou a sua exclusão) nas duas etapas foi efetuada a partir da leitura e análise independente de duas investigadoras, recorrendo-se a uma terceira investigadora em caso de dúvida ou de falta de consenso.

Resultados

Apresentamos os resultados da análise descritiva dos 17 trabalhos selecionados, para a qual procedemos à extração dos dados mais relevantes, tendo em consideração o tipo de publicação: estudo empírico (n = 14) ou revisão de literatura/discussão teórica sobre o tema (n = 3).

No que concerne aos estudos empíricos, foram selecionados dados relativos ao(s) autor(es); ano de publicação; país onde o estudo foi realizado; design do estudo; amostra/participantes; instrumentos de avaliação; dados de prevalência e principais resultados/conclusões. Relativamente às três revisões teóricas (Olsvik, 2010; Scott-Storey, 2011; West, 2004), foram recolhidos dados referentes ao(s) autor(es), ano de publicação e principais conclusões.

Estudos empíricos

Dos catorze artigos de investigação empírica selecionados sobre a vitimação múltipla feminina, doze estudos foram desenvolvidos nos Estados Unidos da América, um no Haiti (Gage, 2005) e um em Portugal (Sousa, 2011). Excetuando o estudo de Sousa, de natureza qualitativa, tratou-se de estudos quantitativos que procuram aferir a prevalência do fenómeno e o seu impacto.

Design

Dos treze estudos quantitativos, doze adoptaram um design transversal e retrospectivo na recolha dos indicadores de vitimação múltipla. Destes, nove estudos procuraram analisar o fenómeno numa perspetiva ao longo da vida (vitimação passada e atual) (e.g., Linares, 2004; Widom, Czaja, & Dutton, 2008) e três utilizaram como período de referência o último ano (Basile, Arias, Desai, & Thompson, 2004; Gage, 2005; Sabina & Straus, 2008). Somente um estudo quantitativo, também desenvolvido nos Estudos Unidos, adotou um design prospetivo e longitudinal (Widom, Czaja, & Dutton, 2008), i. e., contemplou vários momentos de recolha de dados desde à infância até à idade adulta.

Características das amostras

No que se refere à constituição das amostras dos estudos quantitativos, ao nível do sexo, dez estudos utilizaram amostras exclusivas de mulheres e três apresentaram amostras mistas (Hughes, MaCabe, Wilsnack, West, & Boyd, 2009; Sabina & Strauss, 2008; Widom, Czaja, & Dutton, 2008).

Em termos de dimensão das amostras, os estudos variaram entre 63 (Street, Gibson, & Holohan, 2005) e 18020 mulheres participantes (Hughes, MacCabe, Wilsnack, West, & Boyd, 2009). Observou-se também uma elevada variabilidade em termos das faixas etárias abrangidas, havendo estudos que incluíam, por exemplo, apenas mulheres entre os 18-24 anos (e.g., Richmond, Elliott, Pierce, Aspelmeier, & Alexander, 2009) e outros que abrangiam idades entre os 18 e os 64 anos (Street et al., 2005). No global, a média de idades presente nas amostras oscilava entre os 18 anos (Hetzel & McCanne, 2005) e os 48 anos (Cuevas, Sabina, & Picard, 2010). No que concerne ao estudo qualitativo (Sousa, 2011), este englobou oito participantes com idades compreendidas entre os 33 e os 52 anos.

No que se refere à inclusão de outras variáveis sociodemográficas (como a etnia ou o nível socioeconómico), identificaram-se cinco estudos com grupos sociais minoritários: três específicos com o grupo étnico de mulheres latinas imigrantes nos EUA (Cuevas, Sabina, & Bell, 2012; Cuevas, Sabina, & Milloshi, 2012; Cuevas, Sabina, & Picard, 2010), um com mulheres de baixo nível socioeconómico e residentes em zonas de elevada criminalidade (Linares, 2004) e um com minorias sexuais (Hughes, McCabe, Wilsnack, West, & Boyd, 2009). À exceção destes estudos com grupos minoritários, as mulheres que constituíam as restantes amostras eram maioritariamente caucasianas, não havendo estudos que procurassem comparar diferentes grupos étnicos ou culturais.

Contexto de recrutamento e processo de amostragem

Quanto ao contexto de recrutamento, quatro estudos recolheram as amostras em contexto universitário (Elliot, Alexander, Pierce, Aspelmeier, & Richmond, 2009; Hetzel & McCanne, 2005; Richmond, Elliot, Pierce, Aspelmeier, & Alexander, 2009; Sabina & Straus, 2008), quatro estudos recolheram em casas abrigo (Basile, Arias, Desai, & Thompson, 2004; Gage, 2005; Street, Gibson, & Holohan, 2005), um recrutou a sua amostra num hospital pediátrico (Linares, 2004) e três recrutaram as suas amostras a partir da amostra total de mulheres que participou numa investigação de larga escala – o Sexual Assault Among Latinas (SALAS) (Cuevas, Sabina, & Bell, 2012; Cuevas, Sabina, & Millohi, 2012; Cuevas, Sabina, & Picard. 2010). O único estudo longitudinal (Widom et al., 2008) recrutou a sua amostra em centros de atendimento a vítimas sinalizadas e monitorizadas pelas autoridades judiciais.

Apenas cinco estudos estão referenciados como tendo adotado um processo de amostragem aleatório (Cuevas, Sabina, & Milloshi, 2012; Cuevas, Sabina, & Picard, 2010; Cuevas, Sabina, & Bell, 2012; Gage, 2005; Hughes et al., 2009), enquanto os restantes utilizaram amostras de conveniência (e.g., população universitária, mulheres vítimas de violência doméstica).

Instrumentos utilizados

Todos os estudos quantitativos recorrem a medidas de autorrelato, quer para aferir a vitimação quer a sintomatologia. No entanto, observou-se muita variabilidade nos instrumentos utilizados, destacando-se no âmbito da vitimação: (i) o Life Trauma History Victimization (LTHV), presente em quatro estudos (Cuevas, Sabina, & Picard, 2010; Cuevas, Sabina, & Milloshi, 2012; Cuevas, Sabina, & Bell, 2012; Widom et al., 2008); o Conflit Tactics Scale (CTS ou CTS2), utilizado em três estudos, sobretudo para avaliar a vitimação múltipla ou polivitimação pelo parceiro íntimo no último ano (Basile et al., 2004; Gage, 2005; Sabina & Straus, 2008); o Juvenile Victimization Questionnaire – Adult Retrospective Version (JVQ), presente em dois estudos (Elliot et al., 2009; Richmond et al., 2009); e as entrevistas semiestruturadas, construídas tendo em conta os propósitos específicos de cada estudo, estando presentes em três estudos (e.g, Linares, 2004).

No que diz respeito à sintomatologia associada à vitimação múltipla, os instrumentos administrados procuraram avaliar, essencialmente, a presença de sintomatologia psicopatológica ou traumática, principalmente depressão, Perturbação de Stress Pós-Traumático, dissociação e ansiedade (e.g., Symptom Checklist 90 – Revised; Trauma Symptom Inventory).

No estudo qualitativo (Sousa, 2011) o instrumento de recolha de dados privilegiado foi a entrevista semiestruturada que permitiu explorar várias dimensões associadas ao fenómeno (experiências de vitimação múltipla, significado atribuído à experiência de vitimação, fatores de risco e protetores percebidos).

Indicadores de prevalência da vitimação múltipla

A determinação das taxas de prevalência da vitimação múltipla (a experienciação de dois ou mais tipos de violência) assumiu-se como o objetivo empírico comum aos treze estudos quantitativos. Há estudos, no entanto, que procuraram recolher, adicionalmente, indicadores de revitimação, isto é, determinar se as mulheres vitimadas na infância experienciam o mesmo de tipo de vitimação na idade adulta (e.g., Widom et al., 2008) e de polivitimação, ou seja, a experienciação de quatro ou mais tipos de vitimação (e.g., Richmond et al., 2009).

Os dados de prevalência da vitimação múltipla recolhidos situam-se entre os 13% (Gage, 2005) e os 66.2% (Cuevas, Sabina, & Milloshi, 2012). Nos estudos com a população universitária os indicadores de prevalência situam-se entre os 40% (Elliott et al., 2009) e os 50% (Richmond et al., 2009; Sabina & Straus, 2008). Por sua vez, os estudos com minorias étnicas indicam taxas de prevalência da vitimação múltipla feminina entre 37% (Linares, 2004) e os 66.2% (Cuevas, Sabina, & Milloshi, 2012).

A vitimação física e/ou sexual na infância por um familiar direto e a vitimação física, psicológica e sexual na idade adulta perpetrada pelo parceiro íntimo constituía o padrão mais frequente de vitimação múltipla (e.g., Cuevas, Sabina, & Milloshi, 2012; Linares, 2004).

Impacto da vitimação múltipla

Um número expressivo de estudos (n = 11), para além da quantificação do fenómeno da vitimação múltipla, também procurou determinar a relação entre o historial de experiências de vitimação e a sintomatologia psicopatológica, numa lógica de efeito-dose (i.e., quanto maior o número total de experiências de vitimação, maior será o impacto observado). Todos os estudos concluíram que a vitimação múltipla é um forte e consistente preditor de desajustamento psicológico. Há estudos que encontraram uma relação significativa entre vitimação múltipla e psicopatologia, designadamente Perturbação de Stress Pós-traumático (e.g., Basile et al., 2004; Hetzel & McCanne, 2005), depressão (e.g. Sabina & Straus, 2008; Richmond et al., 2009), dissociação (e.g., Cuevas, Sabina, & Picard, 2010), ansiedade (e.g., Cuevas, Sabina, & Picard, 2010), uso de álcool e/ou drogas (e.g., Hughes et al., 2009), desajustamento académico (Elliott et al., 2009) e coping de evitamento (Street et al., 2005).

Factores de risco versus fatores protetores da vitimação múltipla

Apenas dois estudos empíricos, um quantitativo e um qualitativo, abordam os fatores de risco específicos associados à vitimação múltipla. No estudo de Gage (2005) os fatores de risco identificados foram: a baixa escolaridade, a violência na família de origem, a vitimação na infância, a falta de autonomia financeira, a pobreza, o desemprego, o número de filhos e as atitudes legitimadores da violência conjugal. Por sua vez, na análise qualitativa, Sousa (2011) refere a falta de suporte social e a precariedade económica como factores de risco de vitimação múltipla nas mulheres vítimas de violência conjugal.

Adicionalmente, há três estudos (dois quantitativos e o estudo qualitativo) que identificaram um conjunto de fatores protetores capazes de reduzir a probabilidade da vitimação das mulheres e de mitigar o impacto cumulativo da vitimação múltipla, designadamente: a aculturação, no caso das minorias étnicas (Cuevas, Sabina, & Bell, 2012); a independência económica e a qualidade relacional (Gage, 2005); e, por último, a estabilidade económica e o suporte social, relativamente às vítimas de violência conjugal (Sousa, 2011).

Trabalhos de revisão/discussão teórica

Relativamente aos trabalhos teóricos, encontrámos dois de discussão teórica (Olsvik, 2010; West, 2004) e um de revisão da literatura (Scott-Storey, 2011). Os dois trabalhos de discussão teórica abordam o fenómeno da vitimação múltipla em grupos específicos de mulheres – mulheres negras (West, 2004) e mulheres com limitações ou incapacidades físicas (Olsvik, 2010). É de referir que West não utiliza a terminologia "vitimação múltipla", mas foca o fenómeno abordando a intersecção de múltiplas formas de opressão e violência a que estão sujeitas as mulheres negras vítimas de violência por parte do parceiro. O trabalho de revisão da literatura não procede a uma revisão sistemática do fenómeno, mas a uma revisão crítica sobre o tema – ao nível conceptual e ao nível empírico.

Nas discussões teóricas, Olsvik (2010) e West (2004) atribuem uma grande relevância à perspetiva da interseccionalidade na compreensão da maior vulnerabilidade sociodemográfica de determinados grupos sociais para a experienciação de formas interativas e/ou cumulativas de vitimação. Assim, são unânimes em considerar que a interseção de várias formas de opressão (e.g., género, etnia, nível socioeconómico) é um dos fatores explicativos das elevadas taxas de vitimação múltipla de grupos sociais minoritários, tais como as mulheres negras (West, 2004) e as mulheres com deficiência (Olsvik, 2010).

Nesse sentido, Olsvik (2010) procurou discutir a vulnerabilidade das mulheres com incapacidade física na experienciação cumulativa, não só de formas de formas singulares de violência interpessoal, mas também de formas coletivas de vitimação. Da mesma forma, West (2004) procurou demonstrar que também as mulheres de etnia negra, designadamente as afro-americanas, ocupam uma posição de marginalização económica e social na sociedade atual, o que aumenta a probabilidade de vitimação múltipla destas mulheres ao longo da vida, designadamente, a experienciação de abuso físico e sexual na infância, testemunhar violência na comunidade, assédio sexual e racial no local de trabalho e vitimação pelo parceiro íntimo. As mesmas autoras concluem, no entanto, que os estudos empíricos desenvolvidos sobre o fenómeno da vitimação múltipla são ainda muito pouco sensíveis às questões relacionadas com a raça, etnia e cultura.

Na revisão crítica da literatura, Scott-Storey (2011) começa por salientar o reduzido consenso existente na literatura científica sobre a forma como a vitimação múltipla é definida e operacionalizada, apontando distintos conceitos comummente utilizados para designar o mesmo fenómeno (e.g., vitimação múltipla, polivitimação, abuso cumulativo, vitimação ao longo da vida). Seguidamente, descreve a forma como o fenómeno tem sido estudado, nomeadamente, no âmbito do impacto nas vítimas, concluindo a excessiva simplificação na abordagem e na discussão do problema da vitimação múltipla.

Discussão

Contrariamente ao que acontece nas formas individuais de vitimação, o conhecimento sobre o fenómeno da violência múltipla contra as mulheres começa agora a desenvolver-se, estando ainda numa fase embrionária (daí os poucos estudos incluídos no presente trabalho). Importa referir desde logo que há bastante variabilidade na terminologia e conceptualização utilizadas nos estudos e pelos investigadores do domínio (e.g., vitimação múltipla, polivitimação, vitimação cumulativa), tornando a análise deste fenómeno uma tarefa complexa. Há autores que utilizam o termo "vitimação múltipla" (e.g., Hetzel & McCanne, 2005; Linares, 2004), "polivitimação" (e.g., Richmond et al., 2009), "abuso cumulativo" (e.g., Scott-Storey, 2011), "revitimação ao longo da vida" (Widom et al., 2008) e ainda "vitimação ao longo da vida" (e.g., Cuevas, Sabina, & Picard, 2010).

No entanto, desta revisão sistemática da literatura há um conjunto de contributos importantes a extrair.

Existe na literatura uma consciência progressiva de que diferentes tipos e/ou formas de violência tendem a coocorrer, interativa ou cumulativamente, ao longo da vida das mulheres (e.g., Basile et al., 2004; Cuevas, Sabina, & Picard, 2010). Adicionalmente, reconhece-se a necessidade de estudar a vitimação assumindo uma perspetiva longitudinal. Devido aos efeitos persistentes e de longo prazo da violência, muitos consideram imperativo os estudos incluírem, não só recentes experiências abusivas ou experiências de um único tipo de abuso, mas todas as experiências abusivas que ocorrem ao longo da vida (Scott-Storey, 2011).

Efetivamente, da análise realizada, concluímos que o foco empírico dos estudos tende a ser na prevalência da vitimação ao longo da vida, designadamente na infância e na idade adulta (e.g., Cuevas, Sabina, & Milloshi, 2012; Linares, 2004), bem como no seu impacto. Apesar da grande variabilidade de taxas encontradas, reflexo das diferentes amostras e diferentes instrumentos utilizados, as taxas de prevalência indicam números preocupantes em todo o tipo de amostras mas, principalmente, nos estudos desenvolvidos com minorias étnicas. É neste tipo de amostra que se encontram as taxas mais elevadas de vitimação múltipla - 66.2% em imigrantes latinas (Cuevas, Sabina, & Milloshi, 2012). No entanto, é de destacar que os estudos com amostras universitárias apresentam, também, taxas muito elevadas de vitimação múltipla, as quais se situam entre os 40-50% (Elliott et al., 2009; Richmond et al., 2009). É de referir que o estudo que capta a prevalência mais elevada utilizou o Life Trauma History Victimization (LTHV), que avalia diferentes tipos de vitimação ao longo da vida (e.g., violência física, violência sexual, agressão, homicídio, roubo, stalking, restrição da liberdade/rapto/sequestro). Não obstante, também os questionários de autorrelato Revised Conflict Tactics Scale e JVQ–Adult Retrospective Version encontraram taxas elevadas de prevalência, respetivamente 51.5% (Sabina & Straus, 2008) e 49.2% (Elliott et al., 2009), ambos realizados com amostras universitárias.

No que respeita ao tipo de amostragem, verifica-se uma tendência interessante: em termos cronológicos, os primeiros estudos foram, na sua maioria, desenvolvidos com amostras forenses (i.e., mulheres vítimas de violência doméstica, residentes em casas abrigo, etc.) e de dimensões mais reduzidas (e.g., Basile et al., 2004; Street et al., 2005), assistindo-se a um desenvolvimento progressivo dos estudos em dois sentidos: (a) foco em amostras normativas, sobretudo com estudantes universitárias (e.g., Richmond et al., 2009); e (b) foco em amostras étnicas específicas (e.g., Cuevas, Sabina, & Picard, 2010). Em nosso entender, esta tendência corrobora o recente reconhecimento da comunidade científica de que as vítimas de formas individuais de violência interpessoal (e.g., violência doméstica) tendem a coexperienciar formas cumulativas de vitimação. Além disto, revela também o interesse em alargar o conhecimento e caracterização do fenómeno junto da população não forense e, por outro lado, permite introduzir a questão da interseccionalidade nos estudos com grupos sociais minoritários.

Não obstante estes contributos, identificamos um conjunto de limitações na abordagem científica do fenómeno.

É evidente a escassez de estudos sobre a vitimação múltipla desenvolvidos com as mulheres, sendo a grande maioria dos estudos desenvolvidos com amostras de crianças e adolescentes, com o objetivo de prevenir o desajustamento psicológico mais severo na idade adulta (e.g., Finkelhor et al., 2007a, 2007b)

Observa-se, igualmente, a centralização excessiva na violência interpessoal (e.g., violência na intimidade) enquanto objeto de estudo, estando ausentes trabalhos que explorem a concomitância de formas de violência coletiva, tais como a estrutural e a institucional (e.g., exclusão social e discriminação, respetivamente) de que as mulheres, principalmente as mais desfavorecidas, são alvo.

Uma das maiores dificuldades na análise do fenómeno assenta na já referida falta de consenso sobre a conceptualização e operacionalização do termo "vitimação múltipla", estando disponíveis estudos com diferentes definições e termos para se reportarem ao mesmo fenómeno. Não obstante, apesar de alguma ambiguidade, verifica-se que os estudos empíricos analisados conceptualizam invariavelmente a vitimação múltipla como integrando dois ou mais tipos de violência. Há alguma confusão sobretudo na utilização do termo polivitimação - que se refere à experienciação de quatro ou mais tipos de violência (Finkelhor et al., 2007a) - ao ser utilizado como sinónimo de vitimação múltipla.

Por outro lado, os estudos analisados sobrevalorizam os dados relativos ao número de experiências sofridas para reportar a ocorrência de vitimação múltipla, não contemplando outras características do fenómeno, tais como o tipo de vitimação, a severidade, a duração e a frequência. Além disto, o período temporal considerado na vitimação difere entre os estudos: alguns focam a violência no último ano, enquanto outros utilizam como período de referência todo o ciclo de vida. Mesmo quando coincidem no objeto e no período, a observação e a mensuração do fenómeno é feita a partir de medidas diferentes, não sendo conhecidos instrumentos de avaliação transversais ou uniformes. Verifica-se, igualmente, o recurso frequente a instrumentos de autorrelato retrospetivos, o que coloca a possibilidade de eventuais viés mnésicos que podem concorrer para a sub/sobrestimativa do fenómeno.

A predominância quase que exclusiva de estudos de design transversal, em detrimento dos desenhos de investigação longitudinais (da nossa pesquisa resultou apenas um estudo prospectivo/longitudinal), pode comprometer a análise e a compreensão mais aprofundada do abuso cumulativo das mulheres. Assim, e embora os designs transversais tenham o seu reconhecido valor na investigação da violência, simultaneamente dificultam inferências temporais e causais mais consistentes, sobretudo em termos da relação vitimação múltipla-impacto, dado que são retrospectivos e contemplam um só momento de recolha de dados.

No seu conjunto, estas limitações de índole conceptual e metodológica, poderão ajudar a compreender a variabilidade encontrada nas taxas de prevalência de vitimação múltipla. Dessa forma, é mais difícil aproximarmo-nos da real dimensão do fenómeno.

Uma outra restrição prende-se com o foco excessivo no impacto negativo associado à vitimação múltipla. Os estudos realçam o desajustamento psicológico severo decorrente de experiências cumulativas de vitimação, sobretudo a evidência empírica de sintomatologia depressiva e PTSD. Assim, consideramos que a maior parte dos estudos sobre o tema acaba por adotar uma abordagem simplista na análise da relação vitimação-impacto, sob a perspetiva teórica do efeito dose (Scott-Storey, 2011), não contemplando a existência de fatores protetores capazes de mediar esta relação (e.g., coping, resiliência, suporte social).

Considerações finais

Face aos contributos e limitações enunciados, há um conjunto de questões que carecem de estudo e análise. As atuais abordagens conceptuais e metodológicas para a compreensão abuso cumulativo têm sérias limitações que prejudicam a compreensão deste fenómeno importante. Continuar a estudar o abuso cumulativo da mesma forma é restritivo.

Os estudos disponíveis raramente abordam o assunto de vitimação múltipla a partir do ponto de vista da vítima (e.g., significados e dicursos). Paralelamente, existem múltiplas estruturas de subordinação (e.g., classe, etnia) que podem coocorrer na vida das mulheres que moldam a sua experiência de violência e os estudos não são suficientemente sensíveis para essas dimensões. Há certamente uma inter-relação mais complexa entre o número de experiências individuais, as características de abuso e as adversidades da vida. Daí que a perspetiva da interseccionalidade nos pareça fundamental. A violência afeta mulheres de todas as raças e etnias, mas sabe-se que algumas mulheres têm vulnerabilidades adicionais com base em barreiras sociais, económicas e políticas, às vezes entrincheiradas na raça, cultura e etnia (Brandão & Germando, 2009).

A literatura sugere que a vitimação múltipla é muito mais complexa do que a simples soma das experiências de vitimação (Scott-Storey, 2011). "Mais é sempre pior" parece, pois, uma concepção simplista: nem todas as experiências de vitimação são iguais e algumas podem ter um efeito mais nocivo do que outras. Nem todas as mulheres que sofrem abuso apresentam resultados negativos. Existem padrões heterogéneos e é importante explorá-los. Resiliência, coping pessoal e apoio social têm sido reconhecidos como importantes mediadores e moderadores em termos de resultados de saúde, pelo que devem ser estudados no abuso cumulativo e na vitimação múltipla – isto pode representar um contributo significativo para os esforços de intervenção com vítimas, levando a desenhar modelos de intervenção que dependam dos seus recursos e do empoderamento das mulheres.

Agradecimento

Á FCT, pelo financiamento do Projeto "Vitimação múltipla de mulheres socialmente excluídas: intersecção de significados e trajectórias para a mudança" (PTDC/PSI-APL/113885/2009).

Nota

Recebido em: 24/02/2013

Aceite em: 01/09/2013

Marlene Matos é Doutorada em Psicologia da Justiça; Professora Auxiliar na Escola de Psicologia da Universidade do Minho, Portugal. Endereço: Escola de Psicologia, Universidade do Minho; Campus de Gualtar. Braga, Portugal. CEP 4710-053. Email: mmatos@psi.uminho.pt

Rita Conde é Doutorada em Psicologia da Justiça. Investigadora no Centro de Investigação em Psicologia (Cipsi) da Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Professora no Instituto Superior da Maia (ISMAI). Email: ritacondedias@gmail.com

Judite Peixoto é Licenciada em Psicologia e Doutoranda na Escola de Psicologia da Universidade do Minho (no ciclo de estudos de doutoramento em Psicologia da Justiça). Email: juditepeixoto@gmail.com

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      24 Fev 2013
    • Aceito
      01 Set 2013
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