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Produção de sentidos sobre saúde em um grupo de discussão com adolescentes de Fortaleza

Production of senses about health in a discussion group with teenagers from Fortaleza

Resumos

O artigo discute o processo de construção de sentidos sobre saúde/doença por adolescentes de um grupo de discussão sobre saúde, em uma escola de Fortaleza-CE. Alinhada à perspectiva da pesquisa-intervenção, a pesquisa se operacionalizou por meio de observações participantes e de um grupo de discussão, sob o formato de oficinas temáticas sobre saúde, em uma instituição escolar da capital cearense. Quanto ao tratamento dos dados, foi realizada uma análise microgenética das interações do grupo, enfocando condições imediatas e histórico-ideológicas ligadas às atividades discursivas entre os participantes, bem como indícios de continuidade e transformação do processo de significação naquelas interações. Os resultados denotam que, naquele grupo, "saúde" figurava como um signo em disputa. Por um lado, entre os próprios adolescentes integrantes do grupo, foi potente a circulação de sentidos que ligam a saúde aos signos do "equilíbrio" e da "prevenção". Por outro, a análise evidenciou reposicionamentos subjetivos mediados pelas interações.

produção de sentidos; saúde; adolescências


The article discusses the process of construction of meaning on health / disease by teens in a group discussion on health in a school of Fortaleza. Aligned to the prospect of intervention research, the research is operationalized through participant observation and a discussion group, under the form of thematic workshops on health, in a school institution in the capital of Ceará. Regarding the treatment of data, a microgenetic analysis of group interactions, focusing on immediate and historical- ideological discursive activities linked to conditions among participants, as well as evidence of continuity and transformation of the meaning of those interactions process was performed. Results suggest that, in that group, "health" as a sign appeared in dispute. On the one hand, among teens group members themselves, there was strong circulation of meanings linking health to the signs of "balance" and "prevention". Second, the analysis showed subjective repositioning mediated by interactions.

production of senses; health; teenage


ARTIGOS

Produção de sentidos sobre saúde em um grupo de discussão com adolescentes de Fortaleza

Production of senses about health in a discussion group with teenagers from Fortaleza

João Paulo Pereira Barros; Veriana de Fátima Rodrigues Colaço

Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/CE, Brasil

RESUMO

O artigo discute o processo de construção de sentidos sobre saúde/doença por adolescentes de um grupo de discussão sobre saúde, em uma escola de Fortaleza-CE. Alinhada à perspectiva da pesquisa-intervenção, a pesquisa se operacionalizou por meio de observações participantes e de um grupo de discussão, sob o formato de oficinas temáticas sobre saúde, em uma instituição escolar da capital cearense. Quanto ao tratamento dos dados, foi realizada uma análise microgenética das interações do grupo, enfocando condições imediatas e histórico-ideológicas ligadas às atividades discursivas entre os participantes, bem como indícios de continuidade e transformação do processo de significação naquelas interações. Os resultados denotam que, naquele grupo, "saúde" figurava como um signo em disputa. Por um lado, entre os próprios adolescentes integrantes do grupo, foi potente a circulação de sentidos que ligam a saúde aos signos do "equilíbrio" e da "prevenção". Por outro, a análise evidenciou reposicionamentos subjetivos mediados pelas interações.

Palavras-chave: produção de sentidos; saúde; adolescências.

ABSTRACT

The article discusses the process of construction of meaning on health / disease by teens in a group discussion on health in a school of Fortaleza. Aligned to the prospect of intervention research, the research is operationalized through participant observation and a discussion group, under the form of thematic workshops on health, in a school institution in the capital of Ceará. Regarding the treatment of data, a microgenetic analysis of group interactions, focusing on immediate and historical- ideological discursive activities linked to conditions among participants, as well as evidence of continuity and transformation of the meaning of those interactions process was performed. Results suggest that, in that group, "health" as a sign appeared in dispute. On the one hand, among teens group members themselves, there was strong circulation of meanings linking health to the signs of "balance" and "prevention". Second, the analysis showed subjective repositioning mediated by interactions.

Keywords: production of senses; health; teenage.

Este artigo visa a abordar o processo de construção de sentidos sobre saúde/doença por participantes de um grupo de discussão sobre saúde, desenvolvido em uma escola pública de Fortaleza.

As últimas décadas do século XX impulsionaram debates sobre novas concepções de saúde, além de transformações importantes no sistema de saúde brasileiro. As atividades de educação em saúde são consideradas fundamentais nesse panorama. Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), a educação em saúde trata-se de "uma combinação de ações e experiências de aprendizagem planejadas com a finalidade de habilitar as pessoas a obterem controle sobre determinantes e comportamentos da saúde" (Santos et al., 2005, p. 339).

No cenário brasileiro, tem-se atribuído crescente relevância à saúde de adolescentes e jovens, o que envolve o campo da educação. Para aproximar as ações do cotidiano dos segmentos infanto-juvenis, as escolas são indicadas como uma das instituições principais para a realização de atividades de educação em saúde. Também contribui para isso o fato de que a saúde, a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais, criados em 1997, deve ser vista como tema transversal na escola.

Grande parte das pesquisas publicadas do final da década de 90 até hoje destaca as repercussões dos grupos de educação em saúde no redesenho assistencial, na aquisição de conhecimentos e na melhoria da qualidade de vida (Belatto, Pereira, Maruyama, & Oliveira, 2006; Gonçalves e Schier, 2005; Queiroz, Dantas, Ramos, & Jorge, 2008; Santos & Lima, 2008; Yunes, Mendes & Albuquerque, 2005).

Contudo, há escassez de investigações que destaquem como as interações em grupos de discussão sobre saúde operam na constituição subjetiva dos participantes, a partir de negociações de posições discursivas e veiculação/apropriação/recriação de sentidos acerca dos processos de saúde/doença/cuidado. Assim, a seguinte questão se torna central às pretensões específicas deste artigo: como as interações em um grupo de discussão sobre saúde, realizado em uma escola pública de Fortaleza, constituem-se mediadoras da produção de sentidos sobre saúde/doença?

Para compreender esse processo, recorremos a estudos do campo da Saúde Coletiva que concebe que os processos de saúde, doença e cuidado são indissociáveis e produzidos socialmente. Ademais, as ferramentas teóricas que deram suporte às análises foram oriundas dos legados da Psicologia Histórico-Cultural de L.S Vigotski e da Filosofia da Linguagem de M. Bakhtin, auxiliando a leitura dos processos de significação naquelas interações.

Metodologia

Natureza da pesquisa

O artigo é proveniente de parte dos resultados de uma pesquisa de mestrado em Psicologia, que teve como propósito principal compreender o caráter mediador das interações em um grupo de discussão sobre saúde nos posicionamentos dos participantes uns frente aos outros e frente aos temas discutidos. Tal pesquisa consistiu numa pesquisa-intervenção, cuja etapa empírica foi executada de agosto a novembro de 2009. A propósito, orientamo-nos pelos argumentos de Aguiar e Rocha (2007), que definem a pesquisa-intervenção como uma investigação que almeja a intervenção na produção de micropolíticas de transformação social. Desse modo, pesquisar e ao mesmo tempo intervir significou, no contexto desta pesquisa, "criar dispositivos de análise coletiva" (Lourau, 1993, p. 30).

Lócus e participantes da pesquisa

O lócus da pesquisa-intervenção foi uma escola pública de ensino fundamental e médio, localizada no bairro Álvaro Weyne, na periferia de Fortaleza. O grupo de discussão formado a partir da pesquisa-intervenção na escola foi composto por 11 participantes: 01 professor de biologia e 10 estudantes de 15 a 17 anos, 03 do sexo masculino e 07 do sexo feminino. A pesquisa foi conduzida dentro de padrões éticos exigidos pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa / Conselho Nacional de Saúde / Ministério da Saúde (CONEP/CNS/MS) no que diz respeito à pesquisa empírica com seres humanos. Tanto os responsáveis legais dos estudantes quanto o professor, que participou do estudo, firmaram seu consentimento para a realização da pesquisa a partir de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará.

Procedimentos de produção dos dados

A pesquisa-intervenção se efetivou a partir de observações-participantes do cotidiano daquela instituição escolar, registradas a partir de diários de campo, e da formação de um grupo de discussão sobre saúde com os 11 participantes supramencionados, operacionalizado a partir da metodologia de oficinas. O grupo de discussão se realizou por meio de 9 oficinas sobre os seguintes temas, escolhidos pelos participantes: "o que é saúde", "saúde mental", "transtornos alimentares", "drogas" e "sexualidade". Cada oficina teve duração de 1h30min, foi facilitada pelo pesquisador e registrada a partir de diários de campo e da videogravação das interações entre os participantes, realizada por uma pesquisadora auxiliar, na época estudante do mestrado em psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Em todas as oficinas, foi realizado um momento de "acolhida", seguido de sensibilização para a temática da oficina, seja por meio de letra de música, dramatizações, colagens, notícias de jornal, seja a partir de outra técnica de trabalho grupal. Após esses dois momentos, adentrava-se na discussão do tema a ser especificamente trabalhado, geralmente a partir de questões suscitadas pelo momento de sensibilização. Por fim, era realizada uma avaliação do encontro, mediante a qual se reiterava a data do encontro seguinte e sua respectiva temática a ser discutida.

Apesar de todas as oficinas seguirem esse percurso, as definições de quais recursos utilizar em cada oficina foram acontecendo a partir da inserção na dinâmica da escola e no curso da intervenção. Desse modo, cada encontro funcionou "como orientador do modus operandi do próximo" (Menezes, Arcoverde, & Libardi, 2008, p. 205).

Neste artigo, em função de seu objetivo, serão analisados episódios interativos de uma das oficinas, cujo tema foi "o que é saúde?", a fim de compreender como os participantes se posicionavam e se reposicionavam frente a esse tema específico.

Análise dos dados

As interações do grupo foram examinadas a partir de uma análise microgenética. Para Góes (2000, p. 9), a análise microgenética se trata da "análise minuciosa de um processo, de modo a configurar sua gênese social", cuja aplicação "requer a atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos, sendo o exame orientado para o funcionamento de sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimentos".

Os seguintes procedimentos compuseram a análise qualitativa das interações: (a) transcrição completa do material vídeogravado a partir das oficinas; (b) leitura do material transcrito acompanhada de revisão do material vídeogravado; (c) definição de categorias de análise, a partir dos objetivos do estudo, dos conceitos teóricos que o subsidiaram e dos dados produzidos e registrados em campo; (d) recorte de fluxos interacionais videogravados, a fim de identificar, selecionar e analisar episódios que fossem mais pertinentes aos objetivos do estudo; e (e) análise pormenorizada de episódios interativos.

Nessa análise, foram enfocadas as trocas entre os participantes nas interações, as condições imediatas e histórico-ideológicas envolvidas na produção dos enunciados. Ênfase especial também foi dada aos indícios de continuidade e transformação do processo de significação nos debates fomentados nas oficinas.

Resultados e discussão

A discussão sobre o tema "o que é saúde?" ocorreu na segunda oficina, a partir de uma atividade em que se solicitou que cada participante escolhesse, dentre dezenas de fotografias dispostas na sala, uma ou duas imagens que julgasse mais relacionadas ao assunto. Mediante a apresentação e discussão das primeiras fotografias escolhidas, os sentidos conferidos ao que seria "saúde" remetiam a uma série de hábitos não saudáveis, relacionando a saúde preponderantemente à ordem biológica.

O seguinte episódio mostra isso e marca o início da discussão sobre o tema. Vale destacar que todos os nomes mencionados nos recortes interacionais que serão apresentados daqui em diante são fictícios:

Pesquisador: Agora, a ideia é que cada um apresente a sua foto escolhida e tudo mais, e diga por que escolheu essa foto e por que acha que essa foto tem a ver com saúde, tá certo?

(Mariana e Renata pedem pra começar. Mariana faz sinal de que cede a vez para que Renata comece)

Renata: Esse menino comendo [exibe a foto de uma criança comendo] Assim, eu escolhi porque hoje em dia muitas crianças e jovens comem coisas que não deveriam comer exageradamente. Futuramente ela pode ter um caso muito sério de saúde.

Professor Ivan: Em relação a essa questão aí, realmente é um ponto que a gente tem que ter muito cuidado! Então assim, tudo que você exagerar futuramente cê vai colher principalmente algo ruim. Então, eu achei interessante a escolha dela por conta disso, do perigo dos alimentos.

Mariana: Até antigamente, nos interiores, iam fazer aquelas pesquisas, né? Aí o maior nível era de... desnutrição. E hoje em dia não, até no interior, no lugar mais precário, é obesidade também.

Professor Ivan:É um problema de saúde pública, né, hoje em dia, a obesidade. E até assim, saúde é você tá com o organismo legal, ou seja, o corpo em forma. E até assim, com o corpo legal, a aparência fica legal também, ajuda nos relacionamentos, né, que os jovens procuram [risos]. Cuidar do corpo é sempre bom em todos os sentidos, valoriza a pessoa.

Pedro: Malhar, fazer esporte. Buscar uma vida mais equilibrada.

Camila: Evitar os excessos, né?

Professor Ivan: Exatamente. Aqui na escola a gente da biologia e da educação física procura estimular a pessoa a se cuidar, a estar em dia com o corpo, informar como ficar em forma, consumir coisas boas. Isso às vezes é chato, mas é saudável.

Camila: Aí, mas às vezes é tão difícil!

(o grupo ri)

Professor Ivan: Difícil é! Mas pra ficar saudável tem que fazer sacrifício!

Laura: E eu acho assim, a saúde é uma questão das escolhas de cada um. Quanto mais informações você tem sobre o que é certo e o que é errado, mais você vai poder escolher o que é melhor pra saúde. Por isso é sempre bom ter a informação... tá antenado mesmo... dicas de saúde, né? Internet, jornal, revista, palestra, tudo isso ajuda que só!

Professor Ivan: E olha só. A educação prepara para o mercado de trabalho, né verdade? E a pessoa que se cuida fica até mais produtiva, fica até mais encaixada no mercado de trabalho. Como é que vai se dar bem num mundo tão competitivo como o de hoje se não escolher uma vida mais saudáveis, pra buscar um equilíbrio, digamos assim?

Tal episódio aponta como a noção de saúde que balizava aqueles enunciados parecia ser a de um funcionamento regular e a de um cuidado de si visando à perfectividade do corpo. Para tanto, os participantes também apontavam como questões-chave para a saúde a aquisição de informações sobre hábitos saudáveis e o discernimento individual para fazer escolhas nesse caminho.

Com base em Vigotski e Bakhtin, é possível afirmar que a construção desses sentidos naquele contexto não era um empreendimento individual, mas sim o resultado da interação dos sujeitos entre si e destes com seus contextos socioculturais. Valendo-se da definição do psicólogo Francês Frederic Paulham sobre a relação entre "significado" e "sentido", Vigotski (2001, p.465) aponta que os "sentidos" podem ser entendidos como:

a soma de todos os fatos psicológicos que ela desperta em nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável.

Por sua vez, o "sentido" se constrói sob a ótica bakhtiniana, mediante múltiplas interações alteritárias do sujeito com o mundo, nas quais acontecem fricções constantes entre aspectos verbais e extraverbais da comunicação. Portanto, para essa abordagem, a produção de "sentidos" é um processo dialógico: "A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro" (Bakhtin, 2002, p. 132).

Essas considerações servem para compreender as atividades discursivas em que estiveram envolvidos os participantes do grupo. Os sentidos sobre o que vinha a ser saúde podem ser concebidos como acontecimentos semânticos particulares constituídos nas relações sociais. Nestas, uma gama de signos é posta em jogo, possibilitando a constituição de processos de singularização em uma trama de interações situada histórica e culturalmente (Barros, Paula, Pascual, Colaço, & Ximenes, 2009).

Na condição de processo interativo e dialógico, a composição de sentidos sobre saúde se dava pela articulação de vozes sociais que atravessavam os enunciados dos participantes. As principais vozes sociais que, até então, marcavam presença nas interações eram as que relacionavam a saúde ao campo biológico e que a tematizavam pelos perigos de se adquirir doenças. Em que pese à importância da situação imediata das interações entre interlocutores empíricos no delineamento do processo enunciativo que falava da saúde pela doença, os enunciados e os sentidos a esse respeito adquirem maior inteligibilidade se forem considerados num interdiscurso. Considerá-los dessa maneira requer compreender algumas condições histórico-ideológicas que proporcionavam a emergência, a circulação e a recriação de sentidos como aqueles.

No tocante a isso, versar sobre saúde a partir da doença tornou-se corriqueiro nas práticas sociais do dia a dia devido ao alcance de uma das mais conhecidas sentenças da teoria bioestatística de Boorse, "a saúde como ausência de doenças" (Almeida Filho & Jucá, 2002, p. 883). Uma das expressões dessa perspectiva bioestatística, também corrente no cotidiano, é o conceito de doença "relacionado ao cumprimento deficiente de uma função biológica que se encontra comprometida porque um dos componentes dessa função acha-se fora da normalidade estatisticamente definida" (Almeida Filho & Jucá, 2002, p. 883).

Além disso, outras vozes sociais habitavam as interações entre os participantes ao discutirem sobre saúde. Ao falarem sobre comportamentos de riscos e ameaças do cotidiano, os participantes apontavam como questões-chave para a saúde a aquisição de informações sobre hábitos saudáveis e o discernimento individual para diariamente fazer escolhas certas. É o que também ilustra o episódio que sucede ao que foi apresentado acima:

(Laura pede para apresentar sua foto: a foto de uma mulher sorrindo com um bebê)

Laura: Próxima foto. Lindo, né? [se referindo ao bebê da foto] Assim, meu sonho de consumo é ser médica, né, mas deixa pra lá... Às vezes tem a mãe que fuma. Fumar faz mal pra criança, porque a nicotina pode trazer, pode causar problema cardíaco, é... respiratório, então, essas informações são importantes pra mãe saber cuidar do filho. Também tem a questão da limpeza, da higiene íntima do bebê, né. Muita gente por aí não sabe como fazer, né. Não deixar o bebê assistir televisão porque faz mal.

Pesquisador: Faz mal assistir televisão até os seis anos de idade?

Laura: Psicólogos dizem, não sei se você vai... concordar, mas criança até seis ano de idade não deve assistir televisão, devido a questão do cérebro, sei lá como é que é. Porque, assim, tem muita mãe de hoje... não é nem porque a pessoa não tem uma... um porte financeiro, a pessoa é rica ou a pessoa é pobre, deve...deve ser desleixada, porque eu vejo mãe na minha rua pelo menos, na minha rua, assim, que deixa a bichinha sem nada, pelada e bota no chão, a criança senta na areia, pega areia e taca na boca, aí a mãe vai lá e bate no menino, "Menino, não faz isso, não". Mas a culpa é dela, a criança não tem noção do perigo, né? Eu vi uma mulher que o menino tava assim aí abaixou e pegou na areia, ela deu tanto no menino. Aí eu falei assim: "Pelo amor de Deus". Ela é que ta com responsabilidade sobre a criança, na mão dela foi colocada.

Pesquisador: É, em relação a essa coisa aí da televisão fazer ou não fazer mal para a criança, isso é realmente uma discussão muito polêmica, né, mas na minha opinião depende de uma série de coisas, do que a criança tá assistindo, por exemplo, do que ela faz além de assistir televisão...enfim, prefiro ficar com a ideia de que depende. E vocês, algum comentário?

Renata: Eu. Eu queria falar da questão da televisão que ela falou. Porque antigamente os desenhos eram educativos. Hoje em dia os desenhos são... são mal influência, alguns. Porque mata uns aos outros, é arma pra cá, é arma pra acolá.

Pedro: Tem que ver que é... desenho, né?

Renata: É, mas tem que ver que são crianças, né. Vê o homem aranha subindo as paredes, aí o menino vai querer subir nas paredes.

Camila: Meu sobrinho, de 10 anos, meu irmão tava brincando com ele. Ele ama o pica-pau, aí ele fica "pou pou pou" [ao falar faz como se tivesse com uma arma na mão] no meu irmão.

(Risos)

Renata: Pois é.

Professor Ivan: Pra gente é normal, porque a gente tem o senso do discernimento, né, então a pessoa pular de uma altura dessa aqui ela vai se machucar, pra uma criança não.

Nesse episódio e no anterior, chama atenção que, em sendo a aquisição de informações um dos principais pontos para se "ter saúde", o discurso da ciência aparecia para pontuar possíveis "riscos" no dia a dia. Nesse último episódio, por exemplo, Laura lança mão do discurso da medicina e da psicologia para conferir contornos normalizadores à questão da saúde, identificando prescrições para "conservá-la" e hábitos que não seriam saudáveis. Como afirmam Góes e Cruz (2006, p. 43), subsidiadas em leituras vigotskianas e bakhtinianas,

o estudo das determinações da formação cultural do indivíduo deve admitir o jogo de forças unificadoras e dispersadoras dos processos coletivos de significação... Também nas teses sobre a internalização e a mediação social, é possível considerar que nem os outros dos encontros face a face nem os outros das inúmeras formas de vivência no grupo social são sujeitos "monossêmicos" e, portanto, a conversão de experiências intersubjetivas não consiste na transformação de algo semioticamente "estável".

Por seu turno, esses apontamentos serviram de recurso analítico para dar conta dos processos de recriação de significados sociais nas interações, tendo em vista o embate de vozes e o jogo de estabilidade e instabilidade que caracterizam os processos de significação. A pluralidade de sentidos que emergiam nas interações entre aqueles jovens podia, entre outros aspectos, ser explicada pelo fato de que, nos processos de significação, há uma tensão entre zonas mais dinâmicas e zonas mais estáveis. Essas zonas mais estáveis são concebidas por Vigotski (2001, p. 465) como os significados propriamente ditos, vistos como "apenas uma pedra no edifício dos sentidos".

Assim sendo, considerar o caráter interativo da produção de sentidos e essa tensão entre zonas mais estáveis e zonas mais instáveis abre novas frestas na análise em curso. A partir de um determinado momento da interação, outras vozes passaram a ser percebidas na atividade discursiva e outros sentidos sobre saúde passam a circular também. Mariana, por exemplo, ao apresentar as imagens que escolhera, traz a ideia de que a saúde envolve também o bem-estar psicológico do individuo, fazendo ecoar vozes que abordam a saúde em seu aspecto emocional, relacional, não a restringindo, então, ao âmbito orgânico.

(Mariana exibe para o grupo duas fotos: a primeira é a foto de uma mulher sorrindo, enquanto a segunda é a foto de um homem, uma mulher e duas crianças sentados à mesa)

Mariana: Minha figura. [Mostra para o grupo especificamente a primeira figura] Eu creio, né, que essa mulher está sorrindo, de uma forma estranha, mas ela está sorrindo. Eu acho que a pessoa sorri, ser feliz é muito importante, né, pra saúde. Porque, com certeza, uma pessoa que é triste e uma pessoa que é feliz tem uma saúde melhor, come melhor, vive a vida melhor, e é isso. Aí eu tinha escolhido essa aqui [aponta para uma imagem que está no chão, de uma mulher correndo], mas eu troquei. Eu troquei por essa [mostra a imagem das quatro pessoas sentadas à mesa para o grupo] que é sobre a família. Que a família também influencia muito na saúde da pessoa, né? A pessoa que tem uma boa família, que a família é unida, aí a família se preocupa mais uns com os outros, com a saúde, com a alimentação, e é isso.

Pesquisador: Então a Mariana pegou, assim, saúde como uma questão também de...

Mariana: Se sentir bem [interrompe e fala de forma enfática].

Pesquisador: Se sentir bem, né?

(Em seguida, Camila pede para falar)

Camila: Deixa eu ir agora, porque o que eu vou falar tem a ver com o que ela disse. Eu escolhi essa foto. [Mostra-nos a foto de um casal: o homem com a parte de cima do corpo abaixada, e a mulher em cima das costas dele] Eu fiquei atenta por causa da posição dos componentes [O grupo ri novamente]. Mas, assim, porque quando a pessoa tá num clima de casal, tem filho, aí acaba esquecendo de alguma coisa. Porque antes delas se casarem precisa se arrumar... é... se vestir bem, e pra um casal não, parece que esquece de algumas coisas e até mesmo da saúde. Pela a foto aqui, pelo que eu tô vendo, eles estão muito bem humorados e ela tá massageando ele e... acho que assim, porque tem casais que não conversam, tão dentro de casa só por tá mesmo, não conversam, e pelo ponto de vista, assim, da foto eles estão interagindo, tendo diálogo, não falando, mas através de gestos.

Pesquisador: Tipo, um relacionamento como esse, pra você, representa saúde, é isso que você ta querendo dizer?

Camila: É.

Pesquisador: Diferente de outros relacionamentos que acabam desleixando e não cuidando dessa parte...

Camila: Porque é um cuidando do outro [fala olhando para a foto]. Eu acho tão bonito a minha irmã que é casada... Eu acho tão bonito quando o marido dela... que ela ta "ai, amor, tô cansada, faz uma massagem em mim", eu acho tão bonito, ele vai e faz uma massagem nela.

Pesquisador: Como se fosse um cuidado...

Camila: É, cuidando. Além de cuidar, conhece mais, não conhece só por causa do tempo que tão juntos, mas cada dia vai descobrindo uma coisa nova. Tem a ver com o que ela colocou, né [referindo-se à Mariana], a questão da pessoa ter um bem-estar não só físico, ne, mas emocional também, ta bem com a família, ne, tudo isso é saúde, na minha opinião também.

Ratificando o caráter interativo da produção de sentidos, um desdobramento que surgiu a partir da foto apresentada por Mariana foi a produção de enunciados que afirmavam outras dimensões do que seria "saúde", até então mais relacionada à dimensão biológica. Como exposto no episódio acima, a intervenção de Mariana modifica o fluxo das interações decorrentes, visto que sentidos sobre saúde ligados ao bem-estar psicológico também passaram a transitar nas interações. Isso fica patente quando outros jovens passam a fazer menção ao comentário da garota, relacionando as imagens que escolheram também a um bem-estar não subsumido ao âmbito físico.

Outro momento que ilustra como a intervenção de Mariana produz reposicionamentos dos participantes frente ao tema em debate foi a discussão sobre saúde e cultura. Tal discussão foi realizada logo em seguida ao episódio supramencionado e girou em torno de uma fotografia de uma mulher com o rosto coberto e com os olhos à mostra:

(Logo após termos discutido sobre a foto de Camila, Pedro levanta o mão para falar)

Pesquisador: Vá lá, vá lá, Pedro.

Pedro: Não sei por que, não sei por que tu achou que alguém escolheria essa foto [aponta e pega a imagem que está no chão e não foi escolhida por ninguém: trata-se de uma mulher com o rosto coberto por um lenço, mostrando somente os olhos]. Eu acho que não tem nada a ver com saúde, a foto do rosto de uma pessoa, sei lá [sorri].

Laura: Não, mas tem a ver com saúde. Tem a ver com o que elas falaram antes [referindo-se à Mariana e à Camila]. Se você for olhar pra saúde psicológica das mulçumanas, é fragilizada por não ter valor no país que elas vivem, o marido valorizar, a família não valorizar, ser tipo objeto de troca e de uso. Então, a saúde psicológica vai influenciar também.

Mariana: Depende do ponto de vista [interrompe Laura].

(Ivan olha para o pesquisador e depois torna a olhar para Laura, fazendo sinal de aprovação com a cabeça, parecendo demonstrar admiração pela percepção de Laura)

Pedro: Aí eu escolhi essa daqui [como se desse por encerrada a discussão, após a argumentação de Laura e a reação de Ivan]...

(O grupo ri da reação de Pedro. Laura prossegue com sua argumentação, numa entonação mais forte, incisiva que a primeira)

Laura: A pessoa nasce, aí o que é que os pais ensinam pros irmãos? "Olha, tem que bater na tua irmã e quanto tu crescer tem que bater na mulher". Se, se, se a mulher erra, erra o ponto do arroz leva uma surra do marido. Anda toda coberta, isso daqui ainda é muito liberal [se referindo à mulher da figura] tem umas que andam com os olhos tampados, vê só pelos furinhos, não pode mostrar o rosto. Isso é vida? Isso é escravidão, viu! Mulher, lá, não tem valor nenhum. Como é que vai ter saúde, se sentir bem?

Pesquisador: Tu tá concordando com ela ou tu tá apresentando outra ideia [fala direcionada à Mariana, a fim de que ela desenvolva a argumentação que começou a fazer, mas que não concluiu]?

Mariana: Concordando com ela [Laura]. Que ela disse que tem a ver com saúde, aí eu disse: depende do ponto de vista da pessoa, depende de onde ela é [olhando para Ivan]

(Enquanto Mariana apresenta sua argumentação, Ivan balança a cabeça sinalizando que concorda com o ponto de vista dela. Mariana aumenta a entoação e conclui seu raciocínio)

Mariana: Se for olhar só pro rosto da mulher realmente não tem nada a ver com saúde [olhando para Ivan]

Laura: Não só lá, mas aqui também, né, quando a mulher leva um chifre acaba com....

Pesquisador: Aqui também?...

(Renata pede pra falar)

Renata: Bem, até onde eu entendi do que elas falaram dos mulçumanos, vamos dizer que é o oposto do que a Mariana escolheu, né, que a Mariana disse que o bem estar faz bem à saúde. Já no modo que elas vivem, lá no país delas, já não faz bem à saúde. Elas vivem, sei lá, tipo pressionadas, tem obrigação de fazer aquilo, se errar fica com medo de levar uma pisa do marido...

Pesquisador: Essa tensão prejudicaria a saúde.

Renata: É.

Professor Ivan: Talvez, assim, a nossa cultura, ser totalmente diferente da cultura deles, a gente pode ter esse ponto de vista. Lá, a partir do momento que eles analisam a nossa cultura, eles acham totalmente diferente, assim, até estranham como a gente ta estranhando a cultura deles. Tem esse lado também, né? Pra eles é altamente normal isso aí. Já pra gente não, é um absurdo. Mas eu concordo como o que tu falou [se referindo a Laura].

Pedro: Acho que pra eles lá saúde é diferente. Eles deve achar que a nossa sociedade é que tá prejudicando a saúde.

Professor Ivan: Mas é porque é uma questão cultural.

Laura: Deus me defenda. Eu morreria num lugar desse [risos].

Professor Ivan: Por quê? Porque você tá numa cultura diferente da deles [dirige-se a Laura].

Pedro: É, então depende do que cada canto acha que é normal.

Até então, chamavam atenção dois pontos concernentes às tensões que entremeiam o processo de significação sobre o que seria saúde. O primeiro diz respeito ao fato de que a análise dos episódios dessa oficina indica mudanças em relação às significações sobre saúde, já que esta passou, por exemplo, a ser relacionada a múltiplas dimensões por parte dos participantes e a ser relativizada em função do contexto em que o indivíduo está. O segundo ponto foi que, primeiramente, as discussões sobre saúde abordavam-na negativamente, centrando-se mais na doença e nos seus perigos, por exemplo; posteriormente, porém, a saúde também passou a comparecer positivamente na discussão, sendo significada como um estado de equilíbrio caracterizado por um pleno bem-estar nas dimensões física, psicológica e social.

Portanto, na medida em que os participantes colocavam-se na discussão, a saúde aparecia como um signo em disputa, como ocorre nas práticas discursivas que se estabelecem em outros espaços sociais. Identificar no cotidiano a associação entre saúde e bem-estar em várias dimensões não é tarefa complicada. Aliás, de acordo com a própria OMS, "a saúde é um complexo estado de bem estar físico, mental e social e não a mera ausência de moléstia ou doença" (Moura, 1989, citado por Caponi, 2009, p. 66). O acento dado à multiplicidade e à complexidade dos aspectos envolvidos no processo saúde-doença-cuidado – que inclusive aparece nos enunciados dos jovens – foi resultado de discussões e movimentos de rupturas que se produziram, sobretudo, a partir da crise da Saúde Pública, em meados da década de setenta, em âmbito internacional (Caponi, 2009). Tal crise trouxe à baila críticas à ideia de que a saúde representaria ausência de doença e ao paradigma biomédico em saúde, calcado em elementos tais como: curativismo, biologicismo, unicausalidade, mecanicismo, especialização e individualismo (Westphal & Santos, 1999).

Todavia, algumas críticas têm sido feitas a essa definição da OMS, oportunizando novas significações acerca do processo de saúde/doença. Para Caponi (2009, p. 71), tal concepção, além de inatingível, "pode resultar politicamente conveniente para legitimar estratégias de controle e de exclusão de tudo aquilo que consideramos como fora do normal, indesejado ou perigoso".

A autora advoga que a saúde também é abertura ao risco, o que faz com que a patologia e os desvios também façam parte do processo de se fazer saudável (Caponi, 2009). Tomando de empréstimo as ideias de George Canguilhem, Coelho e Almeida Filho (1999), bem como Caponi (2009), são destacados que o delineamento do que seria saúde e do que seria doença requer que as relações entre sujeito e contexto sócio-histórico sejam consideradas. Isso, por sinal, vai de encontro à padronização da saúde como algo perfeito e homogêneo a ser buscado por todos os sujeitos.

O embate dessas vozes também se fez sentir nas interações entre os participantes. Outro momento de recriação de sentidos na interação se deu quando a saúde como suposto estado de equilíbrio e completo bem-estar foi alvo de problematizações. Nesse momento, o discurso científico se inseriu naquela discussão como dispositivo voltado à produção de questionamentos, e não para a legitimação de pontos de vistas já estabelecidos:

Pesquisador: Então, vocês falaram sobre vários aspectos que de alguma forma tem a ver com saúde. E aí é por isso que eu queria trazer uma definição da Organização Mundial de Saúde e ver o que vocês acham dela. Não é pra necessariamente concordar nem é pra necessariamente discordar, até porque tem sido muito debatida. Ela diz assim, que a saúde, ela é um complexo estado de bem estar físico, psicológico e social. O que vocês acham dessa definição?

Renata: Bem, até onde eu vi, saúde não é pra ter uma definição... Não dá pra dizer só em uma frase e que é saúde, não dá.

Mariana: Eu não concordo [referindo-se à afirmação de Renata]. Eu acho que essa definição é "a definição" de saúde. Porque, tipo assim, fala tudo. Se você for falar em saúde, se você for falar em alimentação... se você for falar dos malefícios da má alimentação, você vai falar do físico...

Laura: Então tu concorda com a frase? [fala no mesmo tempo em que Mariana desenvolve a ideia]

Mariana: ... da saúde física. Se você for falar... de uma pessoa que tem problema mental, você ta falando do psicológico. Se você vê o psicológico dela, porque que aconteceu essa doença, pode ser pela sociedade, pode ser pela família, pela... por um estado físico mesmo dela não ta bem. Eu acho essa definição boa.

Laura: Eu concordo com a frase. Porque quando se fala de estresse, quando se fala de vida corrida, que você pratica esporte, vai pro social, então estão interligados. Se você pegar... se você isolar físico, social, eles se interligam e tem vários temas um atrás do outro que se encaixam no deles. Então o cara que fez essa definição é um gênio. [risos] E eu concordo que saúde tem definição, sim.

Pedro: Eu também concordo com essa frase, porque se for parar pra pensar tudo que a gente falou tem a ver sim com o psicológico, com o físico e com o social. A gente só falou... definindo tudo que a gente falou, a gente só falou essas três coisas...

Lia: A gente falou tudo sobre tudo isso daí, bem estar, saúde mental, tudo.

Pesquisador: E os demais? O que que pensam sobre isso, assim? Sobre essa definição.

Camila: É o correto, porque, assim, ele ta se sentindo bem físico e social e não tapsicológico, muitas vezes nem a pessoa sabe que ta com doença psicológica, ou sabe e não quer contar pros demais, aí fica fingindo que tá se sentindo bem e não tando.

Pesquisador: Mas deixa eu fazer uma... Então, pelo que eu senti, a maioria concorda com a definição...

Renata: A não ser eu.

A presença de pontos de vista diferentes na discussão e a efervescência de questões trazidas produziram novo questionamento:

Pesquisador: Certo. Mas já que a gente tem aqui algumas opiniões diferentes, né, deixa eu perguntar mais uma coisa pra vocês. É possível ter um bem-estar pleno, um equilíbrio, nessas três coisas [referindo-se às dimensões física, psicológica e social]?

Renata: Não.

Mariana: Não.

Pedro: No mundo de hoje, não.

Pesquisador: É possível ter um bem estar físico, um bem estar psicológico e um bem estar social?

Renata: Ao mesmo tempo não. Isso é impossível.. [interrompida por Lia]

Lia: Porque tem influências. As influências... é... estragam o pensamento da pessoa, a pessoa... é como eu tava dizendo, as pessoas vão muito pelo que os outros pensam. A influência pode mudar totalmente o grau de pensamento da pessoa.

Professor Ivan: A questão está principalmente no social, né?

Lia: Na social...

Professor Ivan: A questão dos jornais, o bombardeio de informações distorcidas, esse tipo de coisa, a mídia massifica, né, as coisas e joga informação que você tem que engolir, entre aspas. Então, assim, eu acho que o social é o principal... é... é onde está a principal questão, onde você não vê nas outras coisas, no caso, no psíquico e no físico.

Pedro: Eu concordo, assim, por causa que, tipo, o social realmente é o principal, por causa... o psicológico... uma pessoa que é de uma família bem estruturada, que tem uma cabeça feita dificilmente um programa policial, uma coisa que aconteceu vai afetar o psicológico dele, ele tendo a cabeça feita. E o físico também, sei lá, a parte da alimentação.

Mariana: Eu acho que a pessoa pode até ta bem no físico e no psicológico, assim, né? Só que quando é um problema social, com a família, aí já afeta o psicológico, aí vai afetando os outros. Eu acho que a pessoa nunca vai tá cem por cento bem, no físico, no social e no psicológico.

Esse episódio apresenta divergências em relação à definição de saúde e sugere o início de um processo de desestabilização da ideia de que a saúde equivale a um estado de equilíbrio permanente. Todavia, o equilíbrio continua a ser colocado, pela maioria, como um ideal de saúde. Com efeito, a influência de amigos e da mídia sobre o indivíduo radica-se como a grande responsável por eventuais desequilíbrios entre os âmbitos físico, psicológico e social, sendo, por isso, danosa à saúde.

Determinadas situações interativas destacadas neste artigo vão ao encontro do que afirma Lavrador (2007, p. 365), segundo a qual, o termo "saúde" ainda hoje é carregado de idealizações. Tais situações empíricas tornam ainda mais pertinentes as provocações da autora, que incidem sobre a sociabilidade contemporânea:

estaríamos hoje diante de um paradoxo em relação à saúde, pois, em nome desta, procura-se extirpar da vida tudo o que a desassossega, tudo o que a desvia, tudo que a faz diferir, tudo o que nos traz desassossego. Cada vez mais se busca e se propaga um ideal de perfeição: uma perfeita saúde, uma perfeita alimentação, um perfeito corpo, um perfeito amor, um perfeito trabalho etc..

Assim, Lavrador (2007) é mais uma autora que faz críticas à concepção de saúde como equilíbrio, sob o argumento de que, nessa perspectiva, não se coloca a possibilidade de variações e multiplicidades nos modos de vida. Ainda de acordo com Lavrador (2007, p. 363), nessa ótica sobre a saúde, inscrita em e justificada por determinadas condições institucionais e históricas, "a Diferença é silenciada como se não fizesse parte da vida".

Silva (2008, p. 141), inspirando-se em Foucault e em Canguilhem, oferece indicações relevantes para entender a construção social da doença na nossa sociedade. Especificamente a doença mental, "correlato de anormalidade, é concebida em relação às normas sociais, sendo, por isso, aplicável aos sujeitos que não se submetem adequadamente a elas". Alverga e Dimenstein (2006), por sua vez, ressaltam que, principalmente a partir da modernidade, desenvolvemos um processo societal ancorado na rejeição de tudo o que não se identificava com a racionalização da vida cotidiana.

Conclusão

A análise microgenética de episódios que marcaram as atividades discursivas do grupo de discussão permitiu denotar que, naquele grupo, "saúde" era um signo em disputa, ratificando a produção dialógica de sentidos. Os enunciados produzidos pelos jovens participantes da pesquisa-intervenção materializavam tensões entre diversas vozes sociais. Isso torna plausível a afirmação de que o contexto sócio-histórico, na condição de "rede de textos da cultura que dialogam de modo contratual e conflitante" (Barros, 2003, p. 5), consiste num importante solo para a produção dos enunciados naquelas interações.

Dessa forma, entre os próprios jovens que integraram o grupo de discussão, foi potente a circulação de sentidos que ligam a saúde aos signos do "equilíbrio" e da "prevenção". Nos enunciados daqueles jovens, fizeram-se escutar também vozes das ações de saúde destinadas à juventude e de vozes de instituições como escola, família e igreja, que, por vezes, concebem quaisquer tipos de risco como algo a ser evitado por quem se pretende "saudável" (Spink, 2007). Para clarificar ainda mais a tensão supramencionada, a análise mostrou também situações nas quais as vozes dos próprios jovens se destacavam frente às outras no processo enunciativo e nas quais reposicionamentos subjetivos puderam ocorrer mediados pelas interações ao longo do grupo de discussão.

Portanto, na condição de espaço de tensão entre vozes e de negociação de sentidos e posições, os processos interacionais apresentavam múltiplas possibilidades de desdobramentos. Em muitos momentos, constituíram-se vetores de reiteração de valores e práticas arraigados socioculturalmente. Já noutros, favoreceram a ressignificação de tais valores, novas inscrições no signo "saúde" e novas possibilidades relacionais.

Por se tratar de uma pesquisa-intervenção, faz-se importante discutir os efeitos dos procedimentos adotados. Dessa forma, para Menezes, Arcoverde e Libardi (2008, p. 221) "na pesquisa-intervenção não temos como ‘controlar’ os efeitos das narrativas de si e do Outro produzidas no contexto do grupo". Assim, as oficinas, na condição de dispositivos de pesquisa-intervenção, puderam se constituir em espaços oportunos para a problematização de situações e discursos cotidianos, permitindo, assim, deslocamentos subjetivos e ressignificações sobre o processo saúde/doença. Portanto, há que se apontar a pertinência de propostas de educação em saúde junto ao segmento infanto-juvenil que, mais do que difundir determinados conhecimentos, destinem-se a problematizar significações e práticas naturalizadas.

Recebido em: 05/04/2012

1a. Revisão em: 2012-05-16

2a. Revisão em: 2012-07-27

Aceite em: 2012-08-14

João Paulo Pereira Barros é Psicólogo, Mestre em Psicologia e Doutorando em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Especialista em saúde mental pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). É professor do Departamento de Psicologia da Universidade federal do Ceará (UFC). Endereço: Rua Eduardo Bezerra, 956, apto 308, Bairro Tauape, Fortaleza-CE, Brasil. CEP 60130-270 Email: jppbarros@yahoo.com.br

Veriana de Fátima Rodrigues Colaço é Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora do Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Email: verianac@uol.com.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2014
  • Data do Fascículo
    2013

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2012
  • Aceito
    14 Ago 2012
  • Revisado
    27 Jul 2012
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