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Acompanhamento terapêutico e reforma psiquiátrica: questões, tensões e experimentações de umaclínica antimanicomial

Therapeutic accompaniment and psychiatric reform: issues, tensions and trials of a antimanicomial clinic

Resumos

O processo de Reforma Psiquiátrica em Aracaju-Sergipe, embora recente, é referência nacional. O município dispõe de uma rede de atenção em saúde mental bem estruturada (um CAPS I, um CAPS i/AD, um CAPS AD III, três CAPS III, quatro residências terapêuticas, assistência ambulatorial, retaguarda de uma urgência mental e do SAMU, articulação do cuidado com Atenção Básica) e alicerçada nos princípios do SUS e da Luta Antimanicomial. Mas quando esse processo começa a se desprender dos fluxos que justificaram sua institucionalidade, sem expressivas participações de movimentos sociais, sobressaindo-se desejos de conservação entre gestores, trabalhadores, usuários, comunidade, entre todos nós, poder-se-ia considerar indicativos de uma institucionalização da Reforma Psiquiátrica? Este artigo discute modos de resistir à institucionalização, destacando a estratégia clínico-política do Acompanhamento Terapêutico, transmutando limites em desafios. Sair, pensar saídas, pensar uma clínica da experimentação, uma forma de conhecer encarnada, um trabalho terapêutico exposto à vida, eis o nosso objetivo.

saúde mental; reforma psiquiátrica; institucionalização; clínica; acompanhamento terapêutico


The process of Psychiatric Reform in Aracaju-Sergipe, although recent, is a national reference. The city has a network of mental health attendance well equipped (one CAPS I, one CAPS I/AD, one CAPS AD III, three CAPS III, four therapeutic residences, outpatient assistance, support of a mental urgency and of SAMU, articulation of care with Primary Health) and based on principles of SUS and of the Antimanicomial Movement. However, when this process begins to self release from the fluxes which justified its institutionalism, without expressive involvement of social movements, over projecting desires of conservation among managers, workers, users, community, among all of us, could it be possible to considerate indicatives of Psychiatric Reform institutionalization? This article discusses ways of resisting the institutionalization, highlighting the strategy clinical - political of the Therapeutic Accompaniment, transmuting limits in challenges. Exiting, think about exits, a clinic of experimentation, a therapeutic work exposed to life, here is our aim.

mental health; psychiatric reform; institutionalization; clinic; therapeutic accompaniment


ARTIGOS

Acompanhamento terapêutico e reforma psiquiátrica: questões, tensões e experimentações de umaclínica antimanicomial

Therapeutic accompaniment and psychiatric reform: issues, tensions and trials of a antimanicomial clinic

Michele de Freitas Faria de VasconcelosI; Dagoberto de Oliveira MachadoII; Manoel Mendonça FilhoII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, Brasil

IIUniversidade Federal de Sergipe, Aracaju/SE, Brasil

RESUMO

O processo de Reforma Psiquiátrica em Aracaju-Sergipe, embora recente, é referência nacional. O município dispõe de uma rede de atenção em saúde mental bem estruturada (um CAPS I, um CAPS i/AD, um CAPS AD III, três CAPS III, quatro residências terapêuticas, assistência ambulatorial, retaguarda de uma urgência mental e do SAMU, articulação do cuidado com Atenção Básica) e alicerçada nos princípios do SUS e da Luta Antimanicomial. Mas quando esse processo começa a se desprender dos fluxos que justificaram sua institucionalidade, sem expressivas participações de movimentos sociais, sobressaindo-se desejos de conservação entre gestores, trabalhadores, usuários, comunidade, entre todos nós, poder-se-ia considerar indicativos de uma institucionalização da Reforma Psiquiátrica? Este artigo discute modos de resistir à institucionalização, destacando a estratégia clínico-política do Acompanhamento Terapêutico, transmutando limites em desafios. Sair, pensar saídas, pensar uma clínica da experimentação, uma forma de conhecer encarnada, um trabalho terapêutico exposto à vida, eis o nosso objetivo.

Palavras-chave: saúde mental; reforma psiquiátrica; institucionalização/ resistência; clínica; acompanhamento terapêutico.

ABSTRACT

The process of Psychiatric Reform in Aracaju-Sergipe, although recent, is a national reference. The city has a network of mental health attendance well equipped (one CAPS I, one CAPS I/AD, one CAPS AD III, three CAPS III, four therapeutic residences, outpatient assistance, support of a mental urgency and of SAMU, articulation of care with Primary Health) and based on principles of SUS and of the Antimanicomial Movement. However, when this process begins to self release from the fluxes which justified its institutionalism, without expressive involvement of social movements, over projecting desires of conservation among managers, workers, users, community, among all of us, could it be possible to considerate indicatives of Psychiatric Reform institutionalization? This article discusses ways of resisting the institutionalization, highlighting the strategy clinical - political of the Therapeutic Accompaniment, transmuting limits in challenges. Exiting, think about exits, a clinic of experimentation, a therapeutic work exposed to life, here is our aim.

Keywords: mental health; psychiatric reform; institutionalization/resistance; clinic; therapeutic accompaniment.

O processo da Reforma Psiquiátrica e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): para além dos muros?

CAPS são serviços que surgem na esteira das tentativas de operacionalização dos pressupostos da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica brasileira. "Legado" da primeira, as bandeiras de desconstrução do modelo biomédico-psiquiátrico enunciam a retirada do caráter apriorístico, atemporal, universal e unifatorial do processo saúde-doença cuidado; e problematizam, com isso, a noção constructo delimitada pelos termos doença mental/ periculosidade/incapacidade/isenção de direitos, o que inspira o debate sobre a segunda. Trata-se de um processo de questionamento, que vem acompanhado da elaboração de propostas de transformação do modelo asilar clássico e do paradigma da psiquiatria, vislumbrando novas possibilidades, novas formas de entendimento e atendimento à loucura, por meio da desconstrução do espaço físico e simbólico do hospício/manicômio (Amarante, 1995; Vasconcelos, Barbosa, & Morschel, 2007).

Mediante municipalização do sistema de saúde brasileiro, possibilitou-se o início de um longo e árduo processo, ainda em curso, respaldado por leis, de efetiva substituição do modelo asilar, de fechamento dos hospícios, hospitais e clínicas psiquiátricas e de implantação de um novo modelo de atenção em saúde mental (atenção psicossocial), centrado na implantação de serviços CAPS. Nessa direção, os CAPS foram preconizados pelo Ministério da Saúde (MS) para garantir um cuidado de base territorial, funcionando como organizadores das redes municipais de atenção em saúde mental (Ministério da Saúde, 2004a, 2004b).

Entretanto, superar a herança asilar - iatrogênica, carcerária e segregatória - do antigo modelo não é processo simples. Apesar de parecermos estar "abertos", assim como parecem os CAPS, muros invisíveis, jalecos mentais, manicômios daqui, dali, de lá, de qualquer lugar insistem em circunscrever a diferença em quadros modelizantes, afastando-a de nós, prevenindo possíveis contaminações.

Em outros termos, com o movimento da Luta Antimanicomial e com a Reforma Psiquiátrica, estamos vivenciando a queda dos muros físicos. Todavia, levando-se em consideração as maneiras como estamos habitando o contemporâneo, as novas formas de poder e as novas políticas de subjetivação que nele se engendram, talvez tenhamos que nos interrogar se tal desmonte não vem indicar um outro modo de clausura, mais sutil, mais sorrateiro. Nesse contexto, por exemplo, vemos despontarem formas não menos 'físicas' de controle como, por exemplo, as tecnologias de rastreamento letrônico, atualizando os muros (Mendonça Filho & Vasconcelos, 2010).

Diante de tais considerações, se o que se intenta é não perder de vista o objetivo de substituição da lógica do modelo asilar, parece ser importante colocar em análise os modos de funcionamento de serviços CAPS: que lógicas, que subjetivações, valores, poderes, dizeres, fazeres e prazeres estariam ali circulando? Que relações de força estariam sendo configuradas? A que outros muros estaríamos presos? Que modos de (re)existência são ali ensaiados?

Outros muros: a Reforma Psiquiátrica e o perigo de institucionalização

A passagem do capitalismo pesado para o leve (Bauman, 2001), da era industrial, fordista, para a era do consumo, das sociedades disciplinares para as sociedades de controle (Deleuze, 1992), da ênfase na fabricação de corpos dóceis para o foco na fabricação de cérebros flexíveis e articulados, os quais, por sua vez, comandam corpos também maleáveis, tem sido mote de muitas discussões correntes.

Segundo Bauman (2001), com a entrada em cena do "capital extraterritorial", as relações de poder tornam-se mais fluidas, mais invisíveis, cada vez menos coercitivas, escorregadias e fugidias, rejeitando, assim, qualquer confinamento territorial. Nessa direção, anuncia-se o fim da era do engajamento mútuo entre supervisores e supervisionados, capital e trabalho, líderes e seguidores. Virtualização do panóptico. Em vez de muros, forja-se um campo não territorial atravessado por práticas de sujeição. Um campo móvel, elástico, que opera a céu aberto. Um espaço de "diferenças uniformizáveis" (Passetti, 2009), um campo de convivência "no confinamento não mais de espaço produtivo, mas de vida" (Passetti, 2003, p. 45).

Se, nas sociedades disciplinares, o objetivo era esquadrinhar toda a população, bloqueando-se, para isso, a saída das pessoas de dentro dos pesados muros das "Instituições Totais" (Goffman, 2001) -escola, quartel, fábrica, hospital etc. -, agora, uma vez que a maioria dos corpos é dispensável por não ter poder/ saber de consumo, os dispositivos de vigilância, fiscalização e controle selecionam os corpos, criando modos de institucionalização segundo o duplo critério dos que se fará viver e dos que se deixará morrer: "Homo Sacer" (Agamben, 2002). Instituições Totais "bloqueadoras do escape desatualizam-se no contato com o espaço do capitalismo global traduzido em volátil, em ciberespaço ... o banco de dados ilustra ... essa [nova] espacialidade e o controle dos que não podem entrar" (Baptista, 2001, p. 81). Nesse contexto, aqueles que não se (auto)regrarem/normalizarem pelas práticas que circulam no ciberespaço de convivência/ confinamento; "aqueles que não conseguirem ser 'domesticados', docilizados e tornados produtivos [consumidores], são mostrados como 'perigo social' e, por extensão, dispensáveis" (Coimbra, 2001, p. 250).

Dessa forma, a passagem acima apontada não se traduz numa oposição, e sim numa intensificação e generalização da lógica disciplinar. Em outras palavras, a crise contemporânea das instituições não significa que os espaços fechados que definiam os espaços limitados das instituições deixaram de existir, de maneira que a lógica que funcionava outrora principalmente no interior dos muros institucionais se estende, hoje, a todo o campo social. (Hardt, 2000, p. 369)

Nesse contexto, de que modo gerir os dispensáveis?

Sob o esplendor de uma era de direitos, o suposto Estado Democrático parece funcionar como um estado mínimo social e máximo penal (Wacquant, 2001). Ao lado da criminalização da pobreza, "da banalização do tratamento penal da miséria social", entrega-se a população à lógica do "cada um por si", do "livre mercado", tratando-se de uma "política do abandono concentrado" (Wacquant, 2001, p. 128). Desse modo, a precariedade das políticas públicas, o sucateamento e ensimesmamentos dos serviços e de seus cotidianos não parecem ser algo que se dá por acaso. Ao contrário, parece tratar-se da instauração proposicional de um dado modo de funcionamento de uma "política pública" que deve servir para e à "pobreza", para e aos outros, outsiders, dispensáveis, para aqueles que não fazem parte dos bancos de dados dos cartões de crédito (Elias, 2000).

Dessa forma, vivemos o paradoxo, no Brasil e no mundo, da ocorrência do boom do encarceramento nas últimas décadas (Wacquant, 2001). Nesse panorama, presenciamos outras formas de confinamento, aliando se a "antigas", das quais o corpo faz parte, na medida em que entendido como um empreendimento, um bem, algo a se possuir e a sempre melhorar, uma fortaleza sitiada na qual o indivíduo deve se proteger das inseguranças atuais e dos outros indivíduos. Assim, sob o consumo da ilusão autoajuda e bioidentitária do "só você pode cuidar de si mesmo", nossos corpos, "realidades biopolíticas" (Foucault, 2001), seguem alvo prioritário da frenética arena disciplina-controle.

O que, afinal, haveria então de revolucionário na descentralização do confinamento? Com a lógica da descentralização burocrático-administrativa, como alerta Deleuze (1992, p. 216), "o que está sendo implantado, às cegas, são novos tipos de sanções, de educação, de tratamento. Os hospitais abertos, atendimentos a domicílio" - os CAPS? Lembremos da pista dada por Oliveira e Passos (2007, p. 270): algumas práticas produzidas nesses serviços substitutivos de atenção à saúde mental, ao invés de desinstitucionalizar, podem "criar existências capturadas 'a céu aberto'".

Com o objetivo de não perder de vista a análise do funcionamento da biopolítica no contemporâneo e sua relação com a implantação de serviços como CAPS, parece importante pensar os reflexos que têm envolvido a designação, pelo MS (2004b), do CAPS como principal estratégia do processo de Reforma Psiquiátrica. Dessa forma, o que tem acontecido é a constituição de redes de atenção psicossocial fundamentadas nas diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental.

Mas, e quando esse processo começa a se desprender dos fluxos que justificariam seu valor de institucionalidade, sem expressivas participações de movimentos sociais; sem produção de sentido pela protagonização dos papéis produtivos que compõem uma determinada função "trabalhadores", os quais têm sofrido os efeitos da seara neoliberal de precarização e flexibilização do trabalho; sem participação e protagonização de "usuários", corpos selecionados sob tal insígnia; e pactuando com a totalização estéril, homogeneização por apagamento e nivelamento, iguais em que todos são incluídos, posta a título de pano de fundo que justifica todo o conjunto: a comunidade? Pode-se pensar em indicativos de uma institucionalização da Reforma Psiquiátrica?

Em aliança com Benevides (2003), concede-se uma certa institucionalidade que garanta e legitime as conquistas efetivadas pela política de superação do modelo asilar. Todavia, paradoxalmente, "corre-se o risco de que a necessária institucionalidade dos CAPS se transforme em institucionalização cronificada e cronificadora, reproduzindo o asilamento do qual se quer escapar" (Benevides, 2003, p.199). Na mesma direção, Oliveira e Passos (2007, p. 271) consideram:

o perigo de uma modulação da relação de tutela operada pelo antigo manicômio para o controle cronificado dos serviços ditos "abertos". Vislumbramos a modulação da série

doença mental - tutela - manicômio

para outra que pode ser não menos perversa:

doença mental - controle - serviços abertos.

A nova série produz perigos, pois a submissão que o controle ... impõe é efetuada no regime das práticas cotidianas.

Os efeitos de cronicidade - que têm valido alguns "apelidos" pouco elogiosos aos CAPS como capsilhas, capscômios, ou ao processo de capscização da rede - parecem apontar a necessidade de um questionamento constante acerca dos rumos que a luta antimanicomial e, sobretudo, a Reforma Psiquiátrica, vem tomando, no sentido de reafirmar ou contrariar o movimento que a inspiraria. Nesse sentido, a resistência-criação que estamos anunciando como necessária não é à "política de SM", mas ao que no cotidiano se apresenta como linhas conservadoras.

Rodrigues (2009, p. 205) interroga se ainda nos lembramos da desinstitucionalização e do que a mesma implica: não a mera desospitalização, mas "uma transformação radical, nos âmbitos epistemológicos, teórico, cultural, jurídico e da ação cotidiana, relativas aos modos de pensar, perceber, viver, sentir a loucura e com a loucura". A autora (2009, p. 205) prossegue:

Ainda nos lembramos disso? Ou passamos apenas a registrar/consumir "novos

serviços

", "oficinas

terapêuticas", "serviços

residenciais

terapêuticos

", "acompanhamentos

terapêuticos", "atenção

(=

assistência

) psicossocial"... como os (talvez surpreendentes) focos atuais de nossas queixas, esquecidos (ou distantes) de

acontecimentos

, ou seja, de uma

produção

que possui em sua emergência a força de uma conspiração, da invenção de um pouco de possível em um mundo no qual se procura regular/ gerenciar a vida na forma de uma mortífera ordem? Aparentemente em lugar de tecer/balançar uma rede de alternativas (substitutivas) à psiquiatria, vemo-nos hoje nas malhas de uma outra rede - a que volta a "manicomializar" nossos modos de pensar, agir e ser, pois se conforma com que "tudo mude para que tudo continue como está.

Todavia, concebendo poder como exercício e combate (Foucault, 2001), há pontos de resistência inscritos sobre a rubrica de política de SM, há outros modos de funcionamento habitando e subvertendo o cotidiano das práticas dos CAPS. Cabe, então, afirmar que o mote da luta antimanicomial precisa ser cotidianamente relembrado: desinstitucionalizar! Nesse sentido, reafirmemos, com Rocha e Aguiar (2010, p. 77), o cotidiano da política e dos serviços de SM como paradoxo: "a depender dos agenciamentos que se efetuam nos processos, o cotidiano pode ganhar densidade pela experiência que provoca o pensamento, nos fazendo criar ... outras práticas".

Sofrendo dos efeitos-cronicidade supracitados e que não são exclusivos desta cidade, os CAPS de Aracaju correm o perigo diário de funcionarem ensimesmados, ilhados e sem a devida articulação, participação e protagonização dos atores sociais que habitam, agenciam, constroem e se constroem por entre a rede de saúde mental: gestores, trabalhadores, usuários, familiares e comunidade. Diante disso, tais serviços arriscam-se entre perder potência para fortalecer/operacionalizar os princípios de territorialização e intersetorialidade, claves para o processo de Reforma Psiquiátrica, e resistir-criar, transmutando o limite em desafio. Há vida no cotidiano e essa pede passagem para novos possíveis, novos modos de pensar, agir e (re)existir que façam conexão com outras redes que não as manicomiais, outros corpos que não se conformam com que "tudo mude para que tudo continue como está" (Rodrigues, 2009, p. 205). Ou, de acordo com apontamentos deleuzianos (1992, p. 220):

a crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio, puderam marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.

Aqui seguimos a intuição inicial de Foucault apontada por Veyne (2008, p. 239), que "não é a estrutura, nem o corte, nem o discurso: é a raridade ...; os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para outros fatos que o nosso saber nem imagina; pois o que é, poderia ser diferente". Com a pista foucaultiana e com o que nos indica Rodrigues (2009, p. 204), que nossos corpos possam "fazer luzir novos agoras", escovando a história da Reforma Psiquiátrica, encarnando uma contramemória (Foucault, 2001), atualizando a memória dos vencidos.

Retirando os jalecos e desconstruindo os muros: a Clínica como estratégia de interferência no cotidiano

Nesse cenário, como resistir-criar? Como não se conformar com um novo que já nasce velho? Acreditamos que um dos ventos que sopram um pouco de possível para não sufocarmos relacionase justamente à experimentação - no cotidiano dos espaços de produção de saúde mental - de estratégias de resistência-criação ao processo de institucionalização da Reforma Psiquiátrica, problematizando a capscização, o capsilha, os efeitos de cronicidade que tendem a atravessar os CAPS. Para isso, dentre tantas questões, dois desafios se apresentam de forma articulada:

1. Colocar em análise, no terreno da Reforma Psiquiátrica, o modo de entender e de fazer clínica, o que passa necessariamente por discutir estratégias de clínica na rua, ações desenCAPSuladas. Mais do que isso, passa por produzir novos territórios geográficos, existenciais, sociais, simbólicos, políticos para a loucura, para o uso de drogas, para nós mesmos e, nesse sentido, passa por produzir "redes quentes" de discussão (Passos & Benevides, 2009).

2. Pensar em como construir, viabilizar, desguetificar o acesso a outras redes que não as moderadas por um capitalismo conexionista, o qual estipula um preço para conexão inacessível para muitos de nós, desplugando-nos até quando nos incluem. Talvez um caminho seja o de produzir redes abertas que façam frente à burocratização, ao tecnicismo e que articulem não apenas as pessoas que compõem os espaços institucionais da rede de saúde mental, menos ainda quando estas mesmas pessoas se enclausuram/protegem em "identidades" profissionais ou institucionais, o que pode ser observado pelas insistentes demarcações entre usuários e técnicos, gestores e trabalhadores, profissionais de nível médio e de nível universitário.

Nesse sentido, momentos de festas, quando não burocratizados, parecem ser muito potentes porque compõem uma paisagem híbrida em que "identidades" institucionais se dissolvem. Momentos de semelhante força são aqueles em que, ao recebermos nos CAPS visitantes, esses confundem usuários e profissionais e estranham a aparente não demarcação entre as categorias profissionais. O objetivo é que essas redes de discussão possam extrapolar os muros dos CAPS e demais serviços de saúde mental e de saúde, articulando outros setores como justiça, educação, trabalho, cultura e extravasando também os espaços de discussão e articulação formais, chegando aos bairros, ruas e casas das pessoas (lembrando que a casa de muitas é a rua). E aqui não estamos falando da veiculação de imagens estereotipadas da loucura e do uso/abuso de drogas pela mídia, via jornais e telenovelas, e sim da circulação encarnada nos espaços formais e informais da cidade de outros modos de viver a e com a diferença.

Luta Antimanicomial é movimento, é espaço de combates, não está dada, não é um dado (Lobosque, 2003). Que ferramentas temos forjado como modos de resistir ao instituído na Reforma Psiquiátrica? Que novas -no sentido forte, disruptivo, criativo do termo - práticas, discursivas e não discursivas, estamos desenhando? Pensamos que a prática clínica é uma das nossas ferramentas de ação (não de reação - no sentido nietzcheano -, como muitas vezes tem sido).

Porém, cabe aqui o aviso de Lobosque (2003, p. 18) de que o nascimento do que intitulamos de clínica dá-se "nos hospitais psiquiátricos, nas fábricas, nas prisões, nos reformatórios, ou seja, justamente naquelas instituições criadas para disciplinar os homens, tratando de reeducá-los, adestrá-los, adequá-los". É nesse sentido que a maioria dos profissionais de saúde, inclusive no contexto da Reforma Psiquiátrica, tende a empregar a palavra "cuidado": articulando e subsumindo o objetivo de promover saúde à promoção do ajustamento social; de incluir ao de adaptar, normalizar, tornar igual. Não nos esqueçamos, "o imperativo da razão a qualquer preço [encontra-se] na origem covarde da violência, eis um lembrete necessário à luta política que é nossa" (Lobosque, 2003, pp. 196-197).

Retomemos, o objetivo é colocar em análise a "rede manicomializante, em sentido amplo" (Rodrigues, 2009, p. 205), na qual tendemos a nos aprisionar:

O manicômio (agora "reformado") prossegue ..., seja como uma instância intra-muros ..., seja como uma instância bem mais difusa, penetrante, insidiosa (pois a cidade parece cada vez mais hostil à

diferença

, permanentemente associada ao risco, à insegurança, ao abalo, ao perigo social). Nós mesmos, tantas vezes, a tememos; ou melhor dizendo, tememos repudiar definitivamente a maior parte daquilo que, a duras penas, aprendemos nos bancos universitários e que nos legitima como

cuidadores

(no sentido duplo de tutela e terapêutica) de uma suposta "desordem" ou "disfunção". (Rodrigues, 2009, p. 204)

Nosso compromisso ético-político-afetivo com a luta antimanicomial incita, assim, alguns questionamentos: Que clínica estamos fazendo nos serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, tais como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)? Como pensar-fazer uma prática clínica coerente com a ideia "por uma sociedade sem manicômios" (Lobosque, 2003)? Qual pode ser o espaço da clínica na transformação de nossas relações com a loucura, com o uso de drogas, conosco?

Na rede de saúde mental de Aracaju, tem-se produzido algumas experimentações clínico-políticas. Compondo tal itinerário, apresenta-se a estratégia do Acompanhamento Terapêutico (AT) como um dispositivo de funcionamento em rede e de produção de redes. Mas, como o AT pode movimentar a rede de SM? Como o AT pode participar da organização da linha e da rede de cuidado? Que agenciamentos o AT pode operar? Que funções pode ter no avanço da Luta Antimanicomial e Reforma Psiquiátrica no município? Sair, pensar saídas, um pensar-fazendo, um fazer-pensando, uma forma de conhecer encarnada, implicada, corporificada, um trabalho terapêutico que promova exposição à vida, expandindo-a.

Embora a proposta do presente texto seja situar a prática do AT "não só como uma tecnologia clínica, um dispositivo ou como a montagem de dispositivos, mas também como uma função presente em qualquer lugar onde a clínica se dá, onde algo acontece" (Araújo, 2005, p. 14), torna-se necessário apresentar algumas especificidades dessa estratégia clínico-política.

De forma geral, o AT se apresenta como um modo relativamente instituído de fazer clínica que se destina ao cuidado de casos graves que, por isso, solicitam assistência intensiva. Tais casos costumam ser caracterizados por: desagregação das relações sociais, falta de manejo no que se refere a atividades práticas da vida cotidiana, ausência de circulação na cidade, isolamento, exclusão, institucionalização. Desse modo, o objetivo central do acompanhante é

colocar as pessoas acompanhadas em contato direto com a vida prática e com o socius. ... Dessa conexão com a vida prática deriva o entendimento da rua como espaço clínico. Uma forma de fazer clínica onde o socius é envolvido de uma forma imediata. (Araújo, 2005, p. 20)

A articulação entre clínica e socius, clínica e vida, é a grande guinada que nos indica o modo de atuação do AT: a clínica se desfoca da doença e se abre para conexões que abarcam não só o indivíduo, e sim uma multiplicidade de pessoas, ambientes, tecnologias, animais, coisas que compõem a cidade:

não se trata de uma clínica somente do indivíduo problemático/doente/necessitado, mas de uma vivificação da subjetividade na cena/cenário público e da própria cena/cenário público se dando num registro ecosófico, ou seja, na articulação de três instâncias: meio ambiente, relações sociais e subjetividade. (Araújo, 2005, p. 20)

Vivificação da subjetividade do acompanhado e do acompanhante, vivificação da clínica: na rua, "as intervenções se tornam múltiplas e imprevistas, não vão unicamente do acompanhante ao acompanhado e sim surgem de todos os lugares" (Araújo, 2005, p. 30).

Aqui cabe colocar em análise o objetivo "terapêutico" de resgate de laços familiares e sociais, laços esses que muitas vezes aparecem na cena compondo formas de sujeição e adoecimento. Por que não falar, então, de invenção de novas relações, inclusive com os mesmos membros familiares? Nesse sentido, não se quer apenas o resgate desses vínculos, e sim a dessegregação das relações familiares, sociais, comunitárias, institucionais, a invenção de mundos e de relações, a produção de outros modos de relação para e com as pessoas que, como efeito do encarceramento em hospitais psiquiátricos, encurtaram sua rede de vínculos sociais, e para nós mesmos, que também encurralamos/enrijecemos/normalizamos nossa rede relacional nesse contemporâneo do confinamento generalizado. Nesse mesmo sentido de articulação com o socius e de construção de um novo socius é que afirmamos que "os coletivos, as experiências em comunidade, a circulação no mundo, o encontro entre diferentes são os melhores dispositivos de tratamento, que passam a ser entendidos como espaços de cuidado, de produção de vida e de autonomia" (Araújo, 2005, p. 116).

Sobre corpos analisadores na e da cidade de Aracaju e a experiência do AT

Aracaju, capitaldo menor estado do Brasil, situada no nordeste do país, povoada por aproximadamente setecentos mil habitantes. Uma cidade de planícies e de arquitetura plana, onde ainda dá para fitar o nascer e o pôr do sol, embora vários arranha-céus comecem a riscar a paisagem; cidade do encontro do rio com o mar, de praias de águas mornas e marrons, de ricos manguezais sendo devastados à medida que a capital "progride". Tendo sido planejada, possui algumas avenidas principais e outras que as cortam: "Aracaju é um tabuleiro de xadrez" (fragmento de fala, Vasconcelos, 2008, p. 109).

Planejadas, pré-fabricadas parecem ser também as formas de existir e de habitar a cidade: tabuleiro urbano, tabuleiro moral, tabuleiro de mentalidades. O slogan "Aracaju, a capital da qualidade de vida" parece retratar, dentre outras coisas, o processo de tamponamento das diferenças que costuma atravessar o lugar em seu cotidiano, tudo isso em nome da vida ativa e normalizada dos empreendedores de si, da saúde e do bem-estar do povo da qualidade de vida. Que qualidade é essa? Destinada a quem? A que corpos? É como se um cordão sanitário e econômico-social invisível esquadrinhasse a cidade, de modo a camuflar as gritantes contradições/desigualdades sociais e culturais, separando em locais bem delimitados geograficamente os que têm poder de consumo dos que não. Os primeiros costumam viver em prédios ou condomínios de casa fechados ou ainda em casas formatadas pela arquitetura da violência, armadas com grades, cercas elétricas e sistema de alarmes. Em Aracaju, funciona assim: estas pessoas, cidadãs consumidoras, quase de modo algum pegam ônibus, restringindo sua circulação a oásis de consumo dos quais corpos dispensáveis que não constam no banco de dados não detêm a senha de entrada, mesmo em locais desprovidos de portas (Vasconcelos, 2008).

Basta circularmos pela tão divulgada e comentada orla da cidade, por sua beleza e sua tranquilidade, tentando observá-la com olhar etnográfico-analista e não de turista consumidor, para constatar rapidamente a divisão: no calçadão, sem nem perceber a presença, ali bem pertinho, de outsiders (Elias, 2000), passeiam, sorridentes e sossegados, turistas e aracajuanos. No lado de lá, por sua vez, nas ruas perpendiculares em frente à orla, encontram-se travestis, profissionais do sexo, usuários/as de drogas. Poucos pedintes, em sua maioria crianças, ousam fazer a travessia (Elias, 2000).

Destaquem-se aqui duas "personagens" que parecem se situar na margem desses dois universos -o dos vagabundos e o dos turistas, no sentido apontado por Bauman (1998) -, aventurando realizar tal travessia, irrompendo na cena instituída de modo a possibilitar desestabilizações, com as quais ousamos dizer que experimentamos o AT.

Personagem 1: Feia, gorda, velha, ela marca sua presença, quase que diária, nos dois shoppings da cidade de Aracaju. Apresenta-se de modo atípico, cheia de sacos plásticos, odor forte, com roupas largas, sujas, rasgadas, sobrepostas, óculos escuros, cabelos armados e endurecidos, cobrindo usualmente o rosto com uma camada grossa de pó, "muda". Sua aparência incomoda, desestabilizando a matrix dos belos consumidores modelizados. Costuma frequentar as mesmas lojas, as quais são, sobretudo, lojas que vendem produtos alimentícios. Casa do Pão de Queijo, Baviera, Primmi Piatti, Casa do Cuscuz, ela segue sua procissão solitária, sem se preocupar com gorduras e calorias, com o mais saudável e o não saudável. Diferente da maioria de nós - mais preocupada em alongar o tempo de vida, na corrida pelo corpo saudável e perfeito - que associa alimento a remédio (Le Breton, 2003), arriscamos dizer que a comida para ela parece ter outros sentidos.

No shopping, em conversas com a tal senhora, ela assinala que "as espiritualidades" é que lhe designam o que comer, que dias e em que horário sair de casa, o que comprar, numa espécie de escape à posição de submissão à "liberdade" de nos "tornarmos peritos, experts de nós mesmos, da nossa saúde, do nosso corpo", à "liberdade" de nos autocontrolarmos, de nos vigiarmos, de nos moldarmos segundo as normas de mercado, as quais nos ditam parâmetros de saúde, de beleza, de corpo (Ortega, 2003, p. 63).

"Fato" é que, apesar de incomodar, nós, lindos e saudáveis, fazemos uma concessão à famosa "velha do shopping", toleramos sua presença. Por que motivos? Porque ela tem dinheiro para consumir? Porque ela, em seu percurso solitário, não atrapalha nossa corrida, também solitária, no "supermercado das identidades" (Bauman, 2001), em busca de etiquetas e modelos mais condizentes com o que "somos"? Porque, nessa corrida atravessada por encontros pontuais e superficiais, por práticas individualistas e apolíticas - no sentido de não terem nenhum objetivo de composição com ideais e fazeres comuns -, ela não incomoda, ou melhor, incomoda menos que, por exemplo, aqueles meninos maltrapilhos que costumam entrar sorrateiramente nos shoppings, nos pedindo dinheiro, tocando nossos corpos, literal e metaforicamente, e, por isso mesmo, sendo expulsos? Sociedade de controle, era do desengajamento social, da competição, do individualismo. "Na sociedade dos consumidores individualizados, tudo o que precisa ser feito, precisa ser feito à la 'faça você mesmo'. O que mais além de ir às compras preenche tão bem esse prérequisito?" (Bauman, 2001, p. 96).

Seu cheiro incomoda, sua lentidão incomoda, sua aparência incomoda, sua permanência incomoda. Presença e singularidade, num espaço em que todos os corpos se reconhecem e são reconhecidos apenas como consumidores assépticos e serializados; permanência, num espaço delimitado para que os corpos ali estejam só de passagem; resistência. "Fato" é que essa senhora, sua estética, a forma como se apresenta, seu silêncio, sua solidão, sobretudo o modo de habitar os espaços públicos privatizados parece funcionar como um analisador dos modos atuais de subjetivação de nossos corpos, "embaralhando formas e modos de funcionamento já dados" (Benevides, 2002, p. 175).

A encomenda do Ministério Público (MP) que, intermediando sua família, solicita ao sistema de saúde, em particular à saúde mental do município, intervenção junto a essa estranha consumidora, também é analisadora. Qual a razão do pedido? Que necessidades de saúde uma pessoa que mora sozinha, administrando sua casa)1 1 Bem depois dessa encomenda é que inferimos todos (profissionais, Ministério Público, familiares e vizinhos) dificuldades em administrar sua casa, as quais colocavam sua vida em risco. Tempos depois, é que constatamos tal dificuldade. , suas despesas, sua vida, que tem boa circulação no território requer? O pedido da família é de internação psiquiátrica, um pedido que, diga-se de passagem, ressoa em outros espaços da cidade. Nela, outras vozes fazem a mesma encomenda: "que se interne a velha do shopping". Com que finalidade? Objetiva-se o "velho" tratamento moral, por meio do qual ela ficaria limpa, cheirosa, arrumada, "boa"? Nessa direção, corroborando a sugestão de internação psiquiátrica, um profissional de um CAPS, em uma das reuniões de encaminhamento desta demanda afirma: "eu particularmente acho que ela está pior, mais bizarra, mais descuidada" (Vasconcelos, 2008, p. 111). O que é mais bizarro? A aparência dessa senhora ou tal sugestão? Talvez o mais bizarro é se considerar a internação como a primeira proposta de cuidado, antes mesmo de realizar uma efetiva vinculação, já que isso leva tempo e o nosso tempo é de urgências e instantaneidade.

Num lugar em que se desfilam corpos modelizados, etiquetados e classificados pela capacidade de consumir os objetos expostos nas prateleiras, corpos tipificados, exibindo vestuário e aparência padronizados, a velha do shopping sinaliza que os corpos, na era do consumo aracajuana, são valorizados não apenas pelo dinheiro de que dispõem. Esse apenas complementa um estatuto de posição social formado por valores e regras de convivência politicamente corretas. Se, por um lado, tais valores e regras nos pedem a "aceitação" da livre circulação dessa "bizarra" porém consumidora velhinha, por outro, o contraste que ela produz com essa mesma rede de valores, tecida por procedimentos de "cuidados" corporais, médicos, higiênicos, publicitários e estéticos, faz com que essa "aceitação" se transfigure num pedido de cuidado para com ela: "internem-na, tirem-na do nosso campo de visão".

A personagem 2 entra em cena utilizando-nos, para isso, do discurso de um profissional que compõe a rede de SM de Aracaju:

Ela não é homossexual e que ... tem transtorno de gênero mesmo. ... Ela não é trans ainda. Ainda, certo? Ela é uma candidata seríssima a ser transexual. Ainda não tá podendo tomar essa decisão sozinha. Mas ela tem o que a gente chama de transtorno de identidade de gênero. O que é isso? Ela tem uma mente masculina presa num corpo feminino. ... Pelo CID 10 é um transtorno, por quê? Porque ele causa sofrimento. Então ele não tá num transtorno, nem como a personalidade, nem como um transtorno de psicótico ou depressivo. Não. Ele está nos transtorno das coisas, das funções fisiológicas. Como um transtorno de apetite, como o transtorno do sono. Então, o que é que a gente pensa? É o seguinte. Ela não consegue conviver bem com um corpo de mulher, tendo uma mente masculina. Então ela não aceita o corpo e toma atitudes que são automutilantes. Isso é um transtorno porque ela se fere.

Deixa só eu te perguntar uma coisa porque aí é ... se em um determinado momento, a homossexualidade tava no CID porque causa sofrimento, não é?

Sim, sim, sim.

Eu fico pensando nessa coisa de identidade de gênero, se não é uma coisa muito mais social que causa esse sofrimento, de identidades muito constituídas, da pessoa não poder desviar, do masculino, do feminino, do homem e da mulher...

Hamham. Eu acho que tem sim uma influência social importante. Mas no caso da identidade de gênero, é mais uma coisa pessoal ... É a coisa que não aceita o corpo que ela tem. É como um transtorno dismórfico corporal, por exemplo, em que eu acho que o meu nariz é muito grande e esse nariz muito grande me causa horror. (trecho de entrevista, Vasconcelos, 2008, p. 102)

Localizando-se no interior do indivíduo (no seu biológico e no seu psicológico) a sede da doença, tende-se a escamotear as relações de poder em jogo, relações essas que têm com objetivo legitimar os "universais" da clínica, o que incorre numa visão positivista, tecnicista, individualizante, reducionista, classificatória, despolitizada e a-histórica. Na fala supracitada, naturalizam-se os sexos (homem e mulher) e os gêneros (masculino e feminino), estabelecendo fronteiras e fixando identidades. O desvio de tais instituições é a causa, individualizada, do adoecimento, ou seja, a adolescente "possui" uma doença, um transtorno de gênero, um transtorno dismórfico corporal, ela possui um funcionamento corporal antinatural (Vasconcelos, 2008, 2010).

-O que você está fazendo no CAPS?

-Me tratando.

- Qual é o seu problema?

-Algum problema mental.

-O que você está buscando?

-Estou buscando ajuda.

- Problema mental? Qual seria o seu?

-Rejeição.

-Que tipo de ajuda?

- Gostaria que todos tivessem compreensão que eu quero ser homem e aceitarem isso. (trechos de conversa, Machado, 2011, p. 83)

-Estou nervoso porque vou ao médico segunda-feira. Gostaria que você, meu amigo, fosse comigo, se não fosse lhe incomodar!

-Por que você gostaria que eu fosse? Por que estás nervoso?

- Porque você pode me dar a sua força. Eu tenho medo de o médico querer me internar de novo. (trechos de conversa, Machado, 2011, p. 80)

Que se interne, então, essa "louca" jovem, que ousa raspar sua cabeça diariamente, usar roupas "masculinas" e afirmar seu desejo de namorar mulheres. Que se interne essa jovem que ousa sugerir que as pessoas a chamem por um nome "masculino", que ousa manchar nossos mapas "purificados", borrando a imaculada equação mulher-heterossexual esposa-mãe e, com ela, uma dada ideia de família: pai, mãe e seus filhinhos (saliente-se que, num outdoor de boas-vindas da cidade de Aracaju, nos idos dos anos de 2007 a 2011, figurava-se uma família "normal" - pai, mãe e filhos - acompanhada do slogan supracitado: "Aracaju, capital da qualidade de vida"). Que se interne essa louca jovem, sendo que os locais destinados ao seu confinamento são o CAPS, sua casa e, algumas vezes, a urgência psiquiátrica.

A velha do shopping, antes mesmo de ganhar esse "apelido", foi internada compulsoriamente. A jovem sem sexo rei (Foucault, 2004) também o foi, sendo que em sua casa mesmo. Quando ela foi impedida de ir à escola por ter tentado "agarrar" sua professora, seus pais limitaram sua circulação à sua casa. Mediante solicitação do conselho tutelar, ampliou-se o confinamento ao CAPS e, por vezes, à urgência psiquiátrica, seguidos de diversos pedidos de internação psiquiátrica por parte de seus pais. Uma das solicitações de seus pais para que fizesse parte de seu tratamento era o banho da jovem, que se recusava a fazê-lo. No CAPS, ela quebrou por vezes o banheiro do serviço.

Todavia, à nova solicitação de internação psiquiátrica da senhora "velha do shopping" realizada pela família com o respaldo do Ministério Público, trabalhadores da rede de saúde mental do município, aos quais tal pedido foi endereçado, respondem: "não". Transmutando limites em desafios, em reunião técnica2 2 Reunião semanal da qual participam os trabalhadores do serviço, gestor local, apoiador institucional e, em algumas discussões, outros membros da gestão municipal de saúde mental bem como trabalhadores e gestores da rede de saúde como um todo e de outras instâncias. Cabe aqui ressaltar o caráter coletivo desse encaminhamento do projeto terapêutico, optando-se pelo AT, sobretudo, nos dois casos aqui discutidos, com a participação das usuárias e de seus familiares. , a equipe do CAPS, referência para o território da senhora, define discutir com o MP e sua família outros modos de cuidado, apostando no AT como dispositivo agenciador de um cuidado em rede, no território, pensando inclusive que ela não precisaria necessariamente, para ser cuidada, frequentar um CAPS. Optam por acompanhá-la nos lugares da cidade que ela costuma habitar e, a partir disso, com ela, ir desenhando uma clínica cartográfica, viva, produtora e não cerceadora de vida. A opção de fazer AT dessa senhora foi discutida, então, com o Ministério Público e com sua família. Nos anos de 2007 e 2008, fizemos o AT3 3 Ressalte-se que, com o objetivo de fornecer laudo psiquiátrico, por conta da necessidade de regularização da situação trabalhista dessa senhora, realizou-se, no shopping, até consulta psiquiátrica. desta senhora no shopping mesmo, experimentando a possibilidade de produzir, dentro mesmo de um oásis de consumo, outros modos de convivência, redes solidárias, as quais fazem frentes sorrateiras à forma individualizante-solitária-zumbi estilo "sozinhos compramos" de ali habitar, forma essa paradoxalmente incorporada pela própria velha do shopping.

Como bifurcar? Como furar o cerco? Presenciamos modos de relações inéditos ali mesmo, no shopping, quando, por exemplo, ela, a famosa velha, solicita aos dois acompanhantes, por escrito, entregando-lhes um bilhete, que lhe comprem uma Coca light, que depois ela lhes pagaria. Ao fazer isso, uma vendedora vem se desculpar com os dois acompanhantes e pedir para que os mesmos não conversassem com a gerente, para que essa não impedisse a velha de naquela loja adentrar, o que a senhora fazia muitos dias na semana. A vendedora alegou ainda que a velha não costuma pedir nada a ninguém.

Descobrimos ali que, mais do que ser reconhecida, a senhora era cuidada, sendo chamada por outros nomes que não só o estereotipado apelido "velha do shopping", o qual já figurou nas páginas do Orkut. Furando o cerco dos olhares curiosos e discriminatórios, falas espantadas tais como "nunca vi ela falar com ninguém", observávamos uma rede de cuidado sendo tecida, independente de nossa intervenção, ali mesmo, no shopping. Essa rede foi crucial para a tessitura das intervenções clínicas realizadas.

Mas também presenciamos falas que alegavam que a circulação de uma "doida fedorenta" ali era um absurdo. Certa vez, ao conversar com a mesma sobre o que deveríamos responder às pessoas que insistentemente perguntavam sobre ela e seu tratamento, ela respondia: "sorria e não responda", assim como ela o fazia. Quando, infelizmente, discutimos com ela a necessidade de "camuflar" seu cheiro forte, sua aparência, o peso de suas sacolas para que conseguisse permanecer ali sem interferência dos familiares e do Ministério Público, entregando-lhe a pauta de discussão redigida pelo MP e conversando sobre os questionamentos realizados por seus familiares, pelo MP e mesmo por alguns membros da equipe do CAPS sobre a efetividade do AT por conta da não mudança dessas e outras questões, ela alega: "vocês querem que eu finja, eu finjo". Das sacolas, agora limpas e carregadas no carrinho, ao cabelo cortado, à interferência na sua casa, ao corte de cabelo, o que isso tudo nos indicava? Melhora? Que espécie de melhora? A da saúde-ajustamento? De toda angústia advinda das "mudanças", algo permanece: sua lentidão - que alguns diziam ser decorrentes de problemas clínicos - e seu mutismo - na reportagem "véia do shopping muda de vida4 4 Mais informações ver: http://www.infonet.com.br/cidade/ler.asp?id=84772& ", todos, menos ela, falam dela e por ela. Resistência? Até o final de sua vida, que se encerra em 2011, essa senhora segue nos provocando o pensamento: de que se trata mesmo quando falamos em produção de saúde e de vida? Produzir saúde é produzir vidas normas-mornas, normalizar corpos, paralisar andanças errantes, trazê-los à luz de nossos conhecimentos tão "refinados", que ao os tirarem da escuridão, lhes tiram a vida, a potência de vida? Por que não segui-los na escuridão de suas andanças e construirmos com esses corpos outra ética do cuidado, inclusive, com as nossas vidas (Baptista, 2010)?

Do mesmo modo, à solicitação de um confinamento mais "modernizado" e "humanizado" para a jovem sem sexo rei (Foucault, 2004), trabalhadores de saúde mental respondem: "não". Frente a um novo diagnóstico para a jovem, qual seja o de transtorno de conduta, a equipe "paralisa". Novamente, num primeiro momento, foca-se na doença e nas dificuldades, apontadas pela "teoria", em se manejar transtorno de personalidade. Em um contexto em que se buscava qualificar o cuidado prestado, a partir de análises realizadas pela equipe, tentando-se perceber os limites e desafios de se construir projetos terapêuticos como forma de fazer frente a essa paralisia, em reunião de equipe técnica5 5 Vide nota 3. do CAPS no qual ela estava inserida, foi discutida a possibilidade de trabalhar com o dispositivo clínico político do AT, tentando, com isso, encontrar outro modo de lidar com o comportamento recorrente da jovem de quebrar o banheiro do CAPS e de quebrar coisas em sua casa. Ao invés da urgência psiquiátrica como único destino possível e da atenção em saúde aparecer como punição, trabalhadores da rede de saúde mental optam por circular com a mesma pela cidade, optam pelo AT. Na cidade, pela cidade, no lugar de forçar banhos institucionalizados, banhos no banheiro de sua casa ou do CAPS, a jovem sem sexo rei é lançada a aventurar-se num banho de mar. Como era de costume, estava com várias frutas e objetos por dentro da bermuda, dando volume, mas que, com a força das ondas, caíam. Tentava pegar, mas era impossível. "Não posso impor ao grande mar os ímpetos de braços e pernas, senão eu afundo, é preciso combinar as nossas forças" (Orlandi, 2009). O corpo já não podia ser homem ou mulher; tinha, antes, que ser corpo em agenciamento com o mar (Machado, 2011).

Vale dizer que essas duas experimentações ocorridas num mesmo CAPS abriram espaço para discussão e aceitação da estratégia do AT junto ao Ministério Público, junto à gestão municipal de SM, aos trabalhadores, familiares e aos usuários. Comparecem, assim, através das ações de trabalhadores, a partir dos problemas que acontecem em seu cotidiano, intervenções desinstitucionalizantes no bojo da política de saúde mental. A presença dessas linhas na composição do campo de forças municipal é importante de ser enfatizada, já que a aposta de densificação do cotidiano (Rocha & Aguiar, 2010) é disputa constante.

Essas experimentações com o AT, as quais forçaram um pensamento disruptivo, tiveram desdobramentos efetivos e resolutivos, o que indicava - e ainda indica - a importância de um aprofundamento nas discussões do AT na rede de SM de Aracaju por meio da construção de espaços coletivos e permanentes de discussão sobre a temática. Nessa direção, em 2007, foram realizadas duas ações: um encontro com trabalhadores de saúde sobre o tema do AT, promovido pela Secretaria Municipal em parceria com a Política Nacional de Humanização e, ainda, um grupo de estudos/discussão quinzenal sobre AT, que aconteceu em diferentes serviços de SM, contando com trabalhadores de diferentes CAPS, com gestores da SM do município e do estado e com estagiários da rede municipal de SM. Nesses encontros, que infelizmente não prosseguiram, numa espécie de escuta coletiva à prática do AT, nova nesta rede, realizada com as duas personagens, aprendíamos desaprendendo modos instituídos de fazer clínica, experimentando uma clínica do entre:

uma clínica proteiforme e nômade que expurgue de si as identidades facilmente capturáveis e devenha produtora de realidades permissivas ao surgimento das alteridades, realidades que possam acolher o outro, dar boas-vindas ao estrangeiro e ao que é estrangeiro, uma clínica do entre ... uma clínica peripatética, em movimento que se faz passeando, que se faz nas passagens, que se dá sem local fixo, sempre em relação com uma paisagem da cidade, do sujeito, da subjetividade, do meio ambiente, da própria clínica. (Araújo, 2006, pp. 31-32)

Abrindo passagem, desdobramentos da saída...

Aaposta no ATcomo dispositivo de agenciamento coletivo deu-se num momento em que a rede de SM aracajuana discutia modos de qualificação dos serviços, da assistência, da rede, do cuidado, apontando-se como uma importante mirada a problematização e potencialização das práticas clínicas. A potência do AT vislumbrada, a qual pôde ser experimentada, era a de uma clínica desinstitucionalizante, o AT abrindo espaço, fazendo irromper, por entre linhas de conservação e seguindo o tracejar de outras linhas e desejos de movimento, uma clínica antimanicomial. Tal clínica tem a potência de produzir novos encontros, outras relações da diferença, da loucura, dos loucos, nossas com os espaços da cidade, para além do medo, da insegurança e do pavor do outro nesses tempos biopolíticos.

Aqui lembramos o primeiro passeio de ônibus com a "jovem sem sexo rei". Sua aparência, a cabeça raspada, as roupas largas e os movimentos lentos e desequilibrados geraram o comentário de uma senhora: "ele é doentinho?", perguntou ela. Ficaram os dois, acompanhante e acompanhado, sem responder. Da pergunta, o que dura é a sensação de que é no contato com as pessoas na rua que nossas práticas podem perturbar sentidos. A réplica para a senhora não saiu, mas o encontro com a resposta se fez. Em frente ao deserto, no meio do ônibus lotado, trafegando pelas ruas da cidade de Aracaju, em um encontro com a institucionalização da loucura, com a produção cotidiana de sua estigmatização, mas não só dela, encontramo-nos também com muitas outras formas de preconceito. No "coletivo", no "circular", essa pergunta se transforma em demanda: "a análise de nossa implicação - a análise de nosso vínculos constitutivos e mantenedores, com nosso pretenso objeto 'natural', 'racionalizado', 'o patológico' (melhor dizendo, a cisão, teórica e cotidiana, entre normal e patológico)" (Rodrigues, 2009, p. 205). Aqui a clínica encontra-se com a cidade, com a ética, com a política: com que linhas queremos compor quando intentamos fazer a loucura circular nas ruas? Circular de que modo?

Em ambos os casos, da "velha do shopping" e da "jovem sem o sexo rei", a experimentação do AT aconteceu quando as alternativas propostas no bojo do modelo psicossocial não conseguiam desdobrar-se em respostas efetivas e resolutivas, condizentes com o objetivo de desinstitucionalização. Nesse momento, pessoas envolvidas em tal modelo aventuraram habitar suas bordas, ousaram inventar, seguir o fluxo de um desejo coletivo que agenciava usuárias-gestores6 6 Um dado importante, é que três gestores municipais tomaram a frente da discussão do AT na rede de municipal de SM e da operacionalização do AT das duas usuárias. Isso na superfície era justificado por maior disponibilidade (40 horas) e flexibilidade de horário para circular pela cidade, principalmente à noite, fora dos horários de trabalho de outros profissionais. Aqui poderia se discutir também o funcionamento ainda hospitalocêntrico da equipe do acolhimento noturno dos CAPS III, questão importante que mereceria ser discutida em maior profundidade, mas não neste artigo. A função AT tendia a ser vista como mais uma atividade de trabalho apesar e não como potente ferramenta clínica de intervenção nos casos supracitados que poderia ser operada pelos próprios trabalhadores do serviço. Tal ferramenta pode se configurar de múltiplas formas, a depender das discussões dos projetos terapêuticos: um ou mais de um acompanhante para o caso, pessoas da equipe ou externas à equipe etc. Os desdobramentos "positivos" dos dois acompanhamentos tiveram efeito de contágio e problematização destes desafios iniciais. trabalhadores-clínica-serviços-cidade, sobretudo o desejo de seguir o fluxo de uma clínica nômade, um desejo antimanicomial. Como ativar nossa CAPScidade de inventar e experimentar saídas?

Ação! O ato de acompanhar, de estar junto, de colocar-se no lugar, entre lugares, de compor entre diferenças; o ato de sair dos muros físicos e mentais dos serviços, mesmo os substitutivos, o ato de se permitir a invenção foi o que possibilitou ousar tais experimentações clínicas. Muito do que foi possível nestes dois casos partiu do desprendimento do próprio modelo psicossocial, de abandonar uma postura reativa que se afirma apenas pela negação do antigo modelo, abrindo-se para o novo, para algo que ainda estaria e está por vir.

Pois bem, sabemos cuidar entre pares, ou seja, com trabalhadores de saúde, com os usuários, com os familiares, enfim, pessoas que de alguma forma estão conectadas com a temática da loucura e a rede de SM, o que não significa que não existam dificuldades e entraves nestas relações. Porém, quando os usuários voltam para casa, têm de enfrentar o impacto que sua situação de saúde produz em sua cultura e sociedade, ou melhor, o impacto que sua sociedade e cultura produzem em sua saúde. Eis um dos grandes desafios para a Reforma Psiquiátrica: produção de contágio e mudança cultural, interferindo bem ali no conjunto das práticas cotidianas. O AT, por possibilitar um circular pela cidade, nos coloca frente a frente com tais questões, nos apresenta situações, oportunidades de discutir e fazer circular o tema da loucura e do uso abusivo e prejudicial de álcool e outras drogas em espaços da cidade que não só o CAPS, ampliandose a rede de SM. Seja no shopping, seja no mar, no Ministério Público, no cotidiano da cidade ou mesmo no CAPS, entramos em contato com a possibilidade de borrar uma tendência à institucionalização da Reforma Psiquiátrica por meio da criação de espaços coletivos de agenciamento. O AT apresentou-se neste cenário como um desses espaços de resistência-criação potencializadores da desinstitucionalização; como um agenciamento por meio do qual se pode arejar, tornar poroso o cotidiano da rede de SM, do CAPS, da clínica, da cidade. Insistências, (re)existências, agenciamentos pelo e com o ato de fazer AT.

Agenciar é justamente "estar no meio, sobre a linha de encontro entre dois mundos. Agenciar-se ... é criar algo que não está nem em você nem no outro, mas entre os dois, neste espaço-tempo comum, impessoal e partilhável que todo agenciamento coletivo revela" (Escóssia, 2009, p. 692). Dessa forma, "as relações aqui ganham o sentido de abordar a vida pelo meio como máxima metódica" (Rocha & Aguiar, 2010, p. 76). O CAPS passa, então, a ser visto como "uma rede de intensidades de implicação coletiva que pode investir tanto na rotina, principalmente pelo lamento, assim como pode agenciar formas de resistência, de luta, construindo outros modos de vida institucional" (Rocha & Aguiar, 2010, p. 76).

Apostando numa micropolítica do cotidiano, almejamos criar estratégias que façam frente aos desejos, inclusive nossos, de conservação que se conformam com o engessamento do modelo substitutivo, não permitindo inovações não previstas por lei e que irrompem na cena instituída a partir dos encontros, das relações, dos afetos, dos problemas que acontecem ali mesmo no cotidiano. Portanto, conforme registrado, a Reforma Psiquiátrica, a Luta Antimanicomial não está dada. É um processo do presente e necessita de envolvimento de todos e de cada um de nós interessados em garantir as conquistas e efetuar os avanços para uma melhor forma de conviver e habitar não só o contexto do cuidado e da política em saúde mental, mas, sobretudo, a vida, nossa, de todos nós, de qualquer um. Dessa forma, estamos falando de uma luta que deve ganhar dimensão de coletivo e de cotidiano, o que nos parece compor com a proposta do acompanhamento terapêutico.

Tais questões nos desafiam e merecem ser debatidas amplamente, com o intuito de que as experiências aqui apresentadas não se traduzam em história "passada", vencida, rasa, que não tenha a força de contagiar, subverter, inundar o presente, uma história "pregressa" restrita aos prontuários dessas duas usuárias. Propomos fazer uma história desses casos que transborde o individual, que abra a possibilidade de analisarmos o caso da clínica antimanicomial (Passos e Benevides, 2006), desenhando uma clínica singular, marcada pela trama histórica do modo de cuidar em saúde mental no município de Aracaju. Em última análise, o acompanhamento terapêutico parece apresentar-se como uma estratégia clínicopolítica agenciadora, uma clínica do contágio, que (se) movimente na cidade e a cidade. Diante deste convite de sair, de pensar saídas, quem nos acompanha?

Notas

Recebido em: 29/06/2009

Revisão em: 03/11/2010

Aceite em: 03/02/2012

Michele de Freitas Faria de Vasconcelos é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Sergipe; mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva/UFBA, bolsista CNPq; doutora em Educação/UFRGS, bolsista CAPES. Pesquisadora do Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero (GEERGE) vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Consultora da Política Nacional de Humanização/MS. Endereço: Faculdade de Educação, prédio n. 12.201, sala 511. Rua Paulo Gama, s/n. Porto Alegre/RS, Brasil. CEP 90046-900. E-mail: michelevasconcelos@hotmail.com

Dagoberto de Oliveira Machado é graduado em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Educação/UFRGS, bolsista CNPq. Professor do Colégio de Aplicação da UFS. Consultor da Política Nacional de Humanização/MS. E-mail: dagoesef@gmail.com

Manoel Mendonça Filho é Professor doutor do Departamento de Psicologia e dos Mestrados em Psicologia Social e Educação da UFS. E-mail: mendoncafilho@ufs.br

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  • Wacquant, L. (2001). As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
  • 1
    Bem depois dessa encomenda é que inferimos todos (profissionais, Ministério Público, familiares e vizinhos) dificuldades em administrar sua casa, as quais colocavam sua vida em risco. Tempos depois, é que constatamos tal dificuldade.
  • 2
    Reunião semanal da qual participam os trabalhadores do serviço, gestor local, apoiador institucional e, em algumas discussões, outros membros da gestão municipal de saúde mental bem como trabalhadores e gestores da rede de saúde como um todo e de outras instâncias. Cabe aqui ressaltar o caráter coletivo desse encaminhamento do projeto terapêutico, optando-se pelo AT, sobretudo, nos dois casos aqui discutidos, com a participação das usuárias e de seus familiares.
  • 3
    Ressalte-se que, com o objetivo de fornecer laudo psiquiátrico, por conta da necessidade de regularização da situação trabalhista dessa senhora, realizou-se, no shopping, até consulta psiquiátrica.
  • 4
    Mais informações ver:
  • 5
    Vide nota 3.
  • 6
    Um dado importante, é que três gestores municipais tomaram a frente da discussão do AT na rede de municipal de SM e da operacionalização do AT das duas usuárias. Isso na superfície era justificado por maior disponibilidade (40 horas) e flexibilidade de horário para circular pela cidade, principalmente à noite, fora dos horários de trabalho de outros profissionais. Aqui poderia se discutir também o funcionamento ainda hospitalocêntrico da equipe do acolhimento noturno dos CAPS III, questão importante que mereceria ser discutida em maior profundidade, mas não neste artigo. A função AT tendia a ser vista como mais uma atividade de trabalho apesar e não como potente ferramenta clínica de intervenção nos casos supracitados que poderia ser operada pelos próprios trabalhadores do serviço. Tal ferramenta pode se configurar de múltiplas formas, a depender das discussões dos projetos terapêuticos: um ou mais de um acompanhante para o caso, pessoas da equipe ou externas à equipe etc. Os desdobramentos "positivos" dos dois acompanhamentos tiveram efeito de contágio e problematização destes desafios iniciais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      29 Jun 2009
    • Aceito
      03 Fev 2012
    • Revisado
      03 Nov 2010
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