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Vigotski e o estudo da psicologia da arte: contribuições para o desenvolvimento humano

Vygotsky and the study of psychology of art: contribution for de human development

Vygotski y el estudio de la psicología del arte: contribuciones para el desarrollo humano

Resumos

O presente texto resulta de investigação bibliográfica e de um exercício teórico-metodológico sobre a obra Psicologia da Arte, de L. S. Vigotski (1999), visando aprofundar uma reflexão sobre o objeto e método da própria psicologia da arte. Objetiva-se, assim, discutir as possíveis contribuições da arte para o desenvolvimento humano com base na teoria histórico-cultural. Propõe-se que o objeto da psicologia da arte é o estudo da estrutura da obra, que deve provocar uma resposta estética e impactar a psique do fruidor. Considera-se que a arte, por sua estrutura específica e condição de objeto cultural, pode trazer desenvolvimento à psique humana pois, entre outros aspectos, possibilita a duplicação do real no âmbito intrapsiquíco, ao oferecer ao fruidor a vivência, por meio indireto, sobretudo de emoções e sentimentos não cotidianos.

Vigotski; psicologia da arte; arte; desenvolvimento humano


This text results from a bibliographical study and from theoretical and methodological exercise on Vygotsky's work Psychology of Art (1999), aiming to deepen a reflection on the object and method of the psychology of art itself. The purpose is to discuss the possible contributions of art for human development based on the cultural-historical theory. It is proposed that the subject of the psychology of art is the study of the structure of the work, that should provoke a response and an aesthetic impact on the psyche of the spectator. It is considered that art, by its specific structure and condition of being a cultural object, can bring development to the human psyche since, among other things, it enables the duplication of the real on the intrapsychic level, to offer the spectator the experience, by indirect means, above all of emotions and non everyday feelings.

Vygotsky; psychology of art; art; human development


El presente texto está basado en la investigación bibliográfica y de un ejercicio teórico-metodológico sobre la obra de Psicología del Arte, de L. S. Vygotski (1999), buscando profundizar una reflexión sobre el objeto y el método de la propia psicología del arte. Tiene como objetivo, discutir las posibles contribuciones del arte para el desarrollo humano con base en la teoría histórico-cultural. Se propone que el objeto de la psicología del arte es el estudio de la estructura de la obra, que debe provocar una respuesta estética e impactar la psique del fruidor. Se considera que el arte, por su estructura específica y condición del objeto cultural, puede traer desarrollo a la psique humana pues, entre otros aspectos, posibilita la duplicación de lo real en el ámbito intrapsíquico, al ofrecer al fruidor la vivencia, por medio indirecto, sobretodo de emociones y sentimientos no cotidianos.

Vygotski; psicología del arte; arte; desarrollo humano


ARTIGOS

Vigotski e o estudo da psicologia da arte: contribuições para o desenvolvimento humano

Vygotski y el estudio de la psicología del arte: contribuciones para el desarrollo humano

Vygotsky and the study of psychology of art: contribution for de human development

Sonia Mari Shima Barroco e Tatiane Superti

Universidade Estadual de Maringá, Maringá/PR, Brasil

RESUMO

O presente texto resulta de investigação bibliográfica e de um exercício teórico-metodológico sobre a obra Psicologia da Arte, de L. S. Vigotski (1999), visando aprofundar uma reflexão sobre o objeto e método da própria psicologia da arte. Objetiva-se, assim, discutir as possíveis contribuições da arte para o desenvolvimento humano com base na teoria histórico-cultural. Propõe-se que o objeto da psicologia da arte é o estudo da estrutura da obra, que deve provocar uma resposta estética e impactar a psique do fruidor. Considera-se que a arte, por sua estrutura específica e condição de objeto cultural, pode trazer desenvolvimento à psique humana pois, entre outros aspectos, possibilita a duplicação do real no âmbito intrapsiquíco, ao oferecer ao fruidor a vivência, por meio indireto, sobretudo de emoções e sentimentos não cotidianos.

Palavras-chave: Vigotski; psicologia da arte; arte; desenvolvimento humano.

RESUMEN

El presente texto está basado en la investigación bibliográfica y de un ejercicio teórico-metodológico sobre la obra de Psicología del Arte, de L. S. Vygotski (1999), buscando profundizar una reflexión sobre el objeto y el método de la propia psicología del arte. Tiene como objetivo, discutir las posibles contribuciones del arte para el desarrollo humano con base en la teoría histórico-cultural. Se propone que el objeto de la psicología del arte es el estudio de la estructura de la obra, que debe provocar una respuesta estética e impactar la psique del fruidor. Se considera que el arte, por su estructura específica y condición del objeto cultural, puede traer desarrollo a la psique humana pues, entre otros aspectos, posibilita la duplicación de lo real en el ámbito intrapsíquico, al ofrecer al fruidor la vivencia, por medio indirecto, sobretodo de emociones y sentimientos no cotidianos.

Palabras clave: Vygotski; psicología del arte; arte; desarrollo humano.

ABSTRACT

This text results from a bibliographical study and from theoretical and methodological exercise on Vygotsky's work Psychology of Art (1999), aiming to deepen a reflection on the object and method of the psychology of art itself. The purpose is to discuss the possible contributions of art for human development based on the cultural-historical theory. It is proposed that the subject of the psychology of art is the study of the structure of the work, that should provoke a response and an aesthetic impact on the psyche of the spectator. It is considered that art, by its specific structure and condition of being a cultural object, can bring development to the human psyche since, among other things, it enables the duplication of the real on the intrapsychic level, to offer the spectator the experience, by indirect means, above all of emotions and non everyday feelings.

Keywords: Vygotsky; psychology of art; art; human development.

Introdução

As elaborações teóricas de L. S. Vigotski (1896-1934) a respeito da aprendizagem e do desenvolvimento de pessoas com e sem deficiência vem ganhando notoriedade entre os estudiosos da psicologia e da educação. Sua teoria pautada na defesa da constituição social do psiquismo apresentou nova dimensão para a formação e a atuação de profissionais vinculados a essas áreas. Contudo, há uma produção vigotskiana no campo da arte que também merece atenção.

No presente texto, decorrente de estudos da teoria histórico-cultural em geral e do livro Psicologia da Arte (Vigotski, 1999), em particular, objetivamos expor aspectos teórico-metodológicos apresentados pelo autor a respeito do objeto e método da psicologia da arte e discutir, com base na teoria histórico-cultural, as possíveis contribuições da arte para o desenvolvimento humano.

Vigotski, psicologia e arte

Para Vigotski (1999), a arte está em permanente relação com a realidade objetiva, compreensão que lhe permitia enxergar a potencialidade dessa elaboração humana para aqueles anos iniciais do século XX, nos quais a sociedade marchava para a construção da nova sociedade e de um novo homem, comunista - objetivos que deveriam ser alcançados após a Revolução Russa de 1917. Sob essa perspectiva, a arte está intrinsecamente ligada à vida, às relações sociais de determinada época, de modo que se pode entender que o material para o conteúdo e estilo artísticos são apreendidos da realidade e trabalhados a partir dela. Mesmo assim, a obra de arte não se constitui em cópia fiel da realidade objetiva, mas em algo novo, fruto de ação criativa que se transforma em produto cultural. Como escreve Vigotski (1999, p. 308), "A arte está para a vida como o vinho para a uva– disse um pensador, e estava coberto de razão, ao indicar assim que a arte recolhe da vida o seu material mas produz acima desse material algo que ainda não está nas propriedades desse material."

A partir desta concepção da estreita relação da arte com a vida e tomando-a como produção elevada do trabalho humano o autor rejeita explicações místicas ou religiosas a respeito da arte, afirmando que ela não tem origem divina, celeste ou de qualquer outra ordem além da humana. Por isso, também, os efeitos dela só podem ser processados ou elaborados no próprio corpo do homem.

Com base nos mesmos princípios, Vigotski (1999) refuta a concepção da arte como contágio. Esta concepção, encontrada e defendida, por exemplo, por L. Tolstói (1828-1910), considera que a função máxima da arte é a de atingir as pessoas por meio do contágio daquilo que expressa, como, por exemplo, o medo e/ou a alegria. A partir do que defende Tolstói, este célebre autor e literato, Vigotski discute o quanto a função da arte vai além do simples contágio: a arte não altera apenas o humor imediato dos indivíduos, mas objetiva sentimentos e outras potencialidades humanas. Ela é capaz de provocar alterações no psiquismo dos sujeitos. Ela propicia-lhes nova organização psíquica, o que possibilita a cada um a elevação à condição de indivíduo particular, organismo até certo ponto simplista e fruto da evolução natural, à de gênero humano universal. Neste caso, a arte encontra-se em condição de síntese entre o biológico e o cultural, contendo em si o conjunto das características humanas mais complexas, construído ao longo da história por meio do trabalho e da atividade.

Neste sentido, a arte pode ser entendida como produto cultural, mediador entre o indivíduo e o gênero humano. Ou seja, quem a produz nela cristaliza complexas atividades mentais, as quais podem ser apropriadas pelos demais seres humanos. No entanto, tal apropriação não é mecânica ou passiva. É necessário que se dê a mediação das relações sociais junto ao fruidor, de modo que nele sejam projetados os movimentos que a arte suscita. Tais relações sociais podem ser planejadas e executadas por diferentes mediadores, como o professor, que ensinaria o complexo sistema teórico e histórico dos signos estéticos; pelo psicólogo, o qual poderia usar a arte como ferramenta para promover desenvolvimento de diferentes funções psicológicas e da própria personalidade; bem como, conforme o próprio Vigotski (1999) anuncia, pelo crítico de arte, cuja explicação teórica do que foi produzido pode conduzir à melhor apropriação da obra.

Diante disto, temos que o autor destaca a necessidade de uma íntima relação entre psicologia e arte, pois considera que esta exprime a sociedade que lhe dá origem e objetiva na obra, objeto cultural, características psicológicas complexas. Ao mesmo tempo, possibilita a apropriação de tais características humanas pelos indivíduos. Podemos entender que a natureza social da arte traz em si a relação com a psicologia, uma vez que a sociedade e toda realidade humana é forjada pelos homens nas relações sociais, por meio do trabalho e, neste mesmo movimento, as funções psicológicas superiores são elaboradas e objetivadas, isto é, deixam de ser funções meramente biológicas. Assim, ao se produzir arte e ao dela se apropriar, funções psicológicas dos sujeitos também são formadas e desenvolvidas.

Esta constatação nos permite identificar quanto a psicologia estabelece contato com a estética e exige explicações daquela ciência para fundamentação desta filosofia, não no sentido de que a ciência psicológica encerre a estética, mas que deve fazer contribuições, assim como a sociologia, que revelaria as condições sociais (materiais) que determinam dialeticamente a obra e estão contidas nela. Diante da necessidade da interlocução entre psicologia e arte, Vigotski (1999), calcado em apropriações de produções em ambas as áreas, desenvolve um método de análise e compreensão da obra de arte que parte da estrutura da obra de arte, a qual postula ser composta pela síntese entre forma e conteúdo, para alcançar o que ela objetiva.

Achamos que a ideia central da arte é o reconhecimento da superação do material da forma artística ou, o que dá no mesmo, o reconhecimento da arte como técnica social do sentimento. Achamos que o método de estudo desse problema é o método analítico objetivo, que parte da análise da arte para chegar à síntese psicológica: o método de análise dos sistemas artísticos dos estímulos. (Vigotski, 1999, p. 3, grifos nossos)

Vale aqui recuperarmos o que Fischer (1976), reconhecido estudioso da arte, escreve: a arte pode ser considerada tão antiga quanto o homem porque ela figura no desenvolvimento do trabalho, na dominação do mundo natural e na necessidade criada de expressar a experiência humana. Por meio dela, o homem pode se apropriar do que já foi vivido, constituindo-se em forma de conhecer a si e ao mundo.

O desejo do homem de se desenvolver e se completar indica que ele é mais do que um indivíduo. Sente que só pode atingir a plenitude se se apoderar das experiências alheias que potencialmente lhe concernem, que poderiam ser dele. E o que um homem sente como potencialmente seu inclui tudo aquilo de que a humanidade, como um todo, é capaz. A arte é o meio indispensável para essa união do indivíduo como o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associação, para a circulação de experiências e ideias. (Fischer, 1976, p. 13)

Ainda conforme Fischer (1976, p.19):

Podemos concluir que, com evidencia cada vez maior, a arte em sua origem foi magia, foi um auxílio mágico à dominação de um mundo real inexplorado. A religião, a ciência e a arte eram combinadas, fundidas, em uma forma primitiva de magia, na qual existiam em estado latente, em germe. Esse papel mágico da arte foi progressivamente cedendo lugar ao papel de clarificação das relações sociais, ao papel de iluminação dos homens em sociedades que se tornavam opacas, ao papel de ajudar o homem a reconhecer e transformar a realidade social.

Assim, com Fischer (1976), podemos observar que conforme a sociedade vai se complexificando, desenvolvendo novas forças produtivas e relações sociais, a arte torna-se mais distante da magia e assume novas funções, contando com a elaboração de novas técnicas, de novas formas e aumentando o domínio do homem sobre o mundo. Ao mesmo tempo, vai se processando a "humanização do mundo", visto que a arte possibilita apreender e deixar registrada de modo criativo as experiências e relações humanas travadas. Isso se constitui em condição que enriquece o homem e amplia o seu poder de ação ou, dito de outro modo, amplia e torna cada vez mais rica, posto que complexa, a atividade que desenvolve. Ao longo de sua existência o homem elabora novos instrumentos, pelos quais pode desvendar e intervir sobre o mundo, que passa a não mais se lhe apresentar como algo mágico, constituído puramente por forças celestes ou naturais indomáveis, mas como ambiente que é passível de ser por ele transformado.

Vigotski (1999) concebe a arte de forma semelhante, como ação humana intencional que recria a realidade material e transforma o próprio sujeito, sob a concepção da natureza essencialmente social e histórica do psiquismo. Uma consequência imediata dessa concepção reside em não se compreender a arte como fruto de um homem só, o artista, mas como um objeto cultural, elaborado sob dada técnica construída socialmente, com dada temática para objetivar os sentimentos e, entendemos, as demais capacidades mentais tipicamente humanas. Conforme Vigotski (1999, p.315):

A arte é o social em nós, e o se o seu efeito se processa em um indivíduo isolado, isto não significa, de maneira nenhuma, que suas raízes e essência sejam individuais. ... O social existe até onde há apenas um homem e as suas emoções. ... A refundição das emoções fora de nós realiza-se por força de um sentimento social que foi objetivado, levado para fora de nós, materializado e fixado nos objetos externos da arte, que se tornaram instrumento da sociedade.

Apropriação, objetivação e a formação do psiquismo humano

Duarte (1999) esclarece que para Vigotski o processo de formação do psiquismo na ontogênese é explicado por meio do processo dialético de objetivação e de apropriação do legado histórico. É por meio do trabalho que o homem constrói suas características humanas e as fixa fora do seu corpo, nos objetos da cultura, como os instrumentos, a linguagem, a ciência, a arte e a filosofia. Este se trata do processo de objetivação, que permite a posterior apropriação e recriação das características humanas nos demais indivíduos que entram em relação com tais objetivações. A apropriação de produtos e processos implica numa duplicação dos mesmos nos indivíduos, passando a servir-lhes como matéria prima para novas objetivações (Barroco, 2007).

Vale aqui ressaltarmos que na perspectiva do materialismo histórico dialético, trabalho é atividade vital humana, atividade material que medeia sua relação com a natureza. Em Manuscritos Econômicos-Filosóficos, Marx (2003) expõe que, ao contrário do animal que se identifica com sua atividade vital, não se distingue dela, o homem domina a sua atividade vital por sua vontade e consciência. Daí pode-se entendê-lo como ente-espécie e a sua atividade como livre.

Para Marx (2003), os animais constroem ou produzem, porém, somente o que lhes é indispensável, na única direção da satisfação da necessidade física direta, produzindo a si mesmos. Os frutos da sua produção atrelam-se aos seus corpos físicos. O homem, de modo diverso, produz universalmente, e tanto mais produz quanto mais livre estiver da necessidade física; ele não produz só a si, mas reproduz toda a natureza. O homem constrói para além das condições imediatas e sem um padrão biológico pré-determinado.

Conforme o exposto, por meio da sua atividade vital, os homens criam as condições para sua existência, transformando o mundo e criando a natureza humanizada. Ao criar as condições para a existência, produzem objetos, instrumentos, linguagem e relações sociais, satisfazendo dadas necessidades sociais, concomitantemente à produção de novas necessidades. Podemos dizer que nos produtos criados estão impressas, em suas estruturas e em seus significados, as características humanas geradas social e historicamente.

Com base em Leontiev (2004), definimos denomina educação justamente esse processo dialético de levar às novas gerações o já criado no intuito de formá-las. As marcas do que é propriamente humano não estão nas células ou, mais especificamente, no DNA, mas no processo de apropriação dessas objetivações, e das consequentes novas objetivações. É por esse duplo e contínuo processo que o homem se humaniza, transformando-se subjetivamente. Dito em outras palavras, as funções mentais conquistadas pelos homens ao longo de toda a história da humanidade, ou da sua humanização enquanto sujeito singular, não se atêm ao cérebro, embora dependam dele e do restante do sistema nervoso central para se processarem. Contudo, elas se materializam ou se objetivam para fora do homem.

É por meio da atividade que os homens se apropriam das funções já constituídas pela humanidade e as tornam suas. Destacamos, com isso, que se o plano biológico se apresenta como condição inicial para o indivíduo nascer no mundo; é somente pelo plano cultural que ele adquire as aptidões para viver nesse mundo plenamente como humanizado e que forma os órgãos sociais de sentido. Por exemplo: não basta que tenha acuidade visual, é preciso aprender a "ler" o mundo. Nesse sentido, a arte literária, por exemplo, não somente estimula o decifrar dos signos, mas veicula significados, oferece ao leitor elementos para que faça novas composições, novas objetivações.

Entendemos, portanto, que o processo dialético de objetivação-apropriação leva à formação do humano no ser; transforma a ação do homem na realidade por esta se constituir em uma ação mediada que implica transformação psíquica e impõe novas necessidades, além das de sobrevivência.

Generalização e consciência: impactos da arte literária

Além dos processos de apropriação e de objetivação, é necessário abordar a respeito da generalização. Esta pode ser compreendida como processo de organização da consciência a partir de leis extraídas de dadas situações ou experiências, sendo ela (a consciência) entendida como síntese das funções superiores, pautada em vínculos hierárquicos semânticos, construídos com base na apropriação dos significados das palavras. É possível dizermos que o processo de generalização altera toda relação do indivíduo com o mundo, posto que eleve as representações das coisas e as relações a níveis mais complexos, ampliando o significado e o domínio do homem sobre os objetos, as relações sociais e sobre si mesmo. A generalização expressa uma característica fundamental do pensamento humano: a capacidade de poder apreender o real e, justamente por desvendar suas leis gerais, pode intervir sobre ele, operando junto a essas leis intencional e conscientemente.

Acerca da consciência, além de algo que demanda o funcionamento fisiológico, ela diz respeito à atividade psíquica propriamente humana. A consciência é formada a partir da ação do homem sobre o mundo, e vice-versa, sob a mediação do signo em sua complexidade (considerando a capacidade analítica, de síntese e de generalização que a ação mediada pelo signo pode implicar).

A consciência, assim, se manifesta e se forma contando com diferentes elaborações, sendo a arte uma delas. Numa concepção de homem por inteiro e que deve ser formado inteiramente, como temos na psicologia de Vigotski, a riqueza do psiquismo em relação ao aspecto cognitivo não se opõe aos âmbitos do sentimento e da emoção. Em outras palavras, o homem não se subdivide, e para a sua apreensão não pode ser tomado de modo cindido, salvo com finalidades didáticas, para delimitação do campo de estudos.

Toassa (2006), ao abordar sobre o conceito de consciência na obra vigotskiana, escreve que na concepção madura e melhor elaborada em aspectos de fundamentação teórica o autor considera a consciência como um sistema psicológico composto pelas funções psicológicas superiores, ou seja, uma estrutura formada por outras estruturas, as quais mantêm entre si a relação dialética entre totalidade e partes. Assim, a consciência é desenvolvida por meio das relações sociais que introduzem no sujeito a linguagem e torna possível a apropriação dos objetos culturais, condição que viabiliza a formação das funções superiores, cuja transformação dos vínculos que ligam uma função à outra - vínculos neuronais organizados a partir do desenvolvimento dos significados das palavras - produz alteração na consciência, da mesma forma que a transformação na estrutura geral da consciência implica em novo arranjo nas funções psicológicas superiores.

Novamente, sobre o processo de generalização, Vigotski (2004, p. 189) esclarece que: "A generalização é a desconexão das estruturas tangíveis e a conexão nas do pensamento, nas do sentido". Desse modo, o compreendemos como a transposição das relações concretas para as relações abstratas do pensamento por meio do signo e do significado das palavras. Estes últimos evoluem ao longo da história e do desenvolvimento ontogenético. No indivíduo particular, a construção dos significados implica nos movimentos internos de categorização do real, que podem ser desde os mais simplistas e concretos aos mais complexos e abstratos. Os significados podem ser tomados, então, como elementos que articulam e categorizam a realidade, possibilitando que a materialidade seja apreendida em vários graus de articulação e análise conforme o desenvolvimento interno do significado. Dito de outro modo, o significado é a unidade de generalização, que permite apreender a realidade, refletir suas relações psiquicamente e elevar o pensamento, como também demais funções e a consciência, a níveis altamente abstratos e voluntários.

Postos esses elementos, de acordo com Vigotski (1999), podemos entender que a arte é a objetivação dos sentimentos humanos, uma técnica elaborada pelos homens que permite aos indivíduos socializar determinado sentimento, como também, ao mesmo tempo, torná-lo pessoal, parte do psiquismo. O autor explica ainda que na obra de arte são utilizados signos, compondo uma estrutura, criada com a intenção de suscitar emoção estética. Estes aspectos explicitam que a arte contém e opera por meio de conteúdos e processos psicológicos. Por esse modo, podemos pensar que a arte, no caso, a literária, é capaz de provocar novas generalizações nos sujeitos que apreenderem a síntese entre forma e conteúdo expressada na obra, generalização que atinge, sobretudo, os sentimentos, considerando o homem como unidade. Isto é, a arte poderia provocar uma nova organização psíquica mais elaborada, por ser instrumento cultural, o qual objetiva, em sua forma e conteúdo, elevadas forças humanas como: abstração, criatividade, percepção, emoção e imaginação.

Assim, como afirmamos anteriormente, a arte pode ser entendida como um instrumento cultural mediador entre o indivíduo e o gênero humano. A função desse instrumento é reproduzir no indivíduo as características humanas conquistadas por meio do trabalho ao longo da história. Esta reprodução acontece psiquicamente com a transformação das funções mentais primitivas, elementares, basicamente orgânicas, em funções superiores, culturais e voluntárias. Tal alteração psíquica envolve o duplo processo de objetivação e de apropriação, e fomenta a generalização que provoca a ampliação qualitativa da consciência, tornando mais complexos os vínculos semânticos que a compõem.

Concluímos, então, que a arte, com sua estrutura específica, carrega um legado humano; por meio dela o sujeito vivencia experiências alheias, que não seriam possíveis na sua vida particular, enriquecendo seu próprio repertório, sua visão de mundo e humanidade.

Arte e formação social dos sentidos e das emoções

A percepção, a emoção, a criatividade e a imaginação são citadas por Vigotski (1999) como processos psicológicos em estreita relação com a arte. O processo de perceber a forma artística exige determinado modo de funcionamento do psiquismo e humanização dos sentidos. O autor afirma que a obra de arte é uma síntese, uma unidade composta por elementos específicos que, para sua apreensão, faz-se necessário compreendê-los em relação dialética, contando com atividade tanto do pensamento– razão– como das emoções. Marx (2003) afirma que só por meio dos objetos culturais, no caso também a arte, é que o homem tem seus sentidos plenamente desenvolvidos; assim, sua ação pode ser livre das necessidades orgânicas e estritamente práticas ligadas ao contexto imediato.

Desse modo, a arte e os instrumentos culturais servem à humanização dos homens e ao desenvolvimento de sentidos novos como os amores, as paixões, a amizade. Portanto, somente com a construção dos objetos culturais e artísticos é que ficam afirmadas as características estritamente humanas, com necessidades além das naturais. Marx (2003) nos leva a entender o quanto a arte contribui para o refinamento dos sentidos, tornando o homem ainda mais livre dos instintos e das necessidades imediatas, dando liberdade de criar sob novos princípios, como os da beleza. Além disso, a arte afirma elevadas características humanas, possibilitando não apenas a humanização dos cinco sentidos biológicos, mas, contando com eles, possibilita o desenvolvimento dos sentimentos.

Só por meio da riqueza objetivamente desenvolvida do ser humano é que em parte se cultiva e em parte se cria a riqueza da sensibilidade subjetiva humana (o ouvido musical, o olho para a beleza das formas, em resumo, os sentidos capazes de satisfação humana e que se confirmam como capacidades humanas). Certamente não são apenas os cinco sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.), ou melhor, a sensibilidade humana e o caráter humano dos sentidos, que vêm à existência mediante a existência do seu objeto, por meio da característica humanizada. A formação dos cinco sentidos é obra de toda a história mundial anterior. (Marx, 2003, pp. 143-144)

Em Psicologia da Arte (Vigotski, 1999), encontramos a afirmação: os estímulos artísticos são dispostos para provocar determinada emoção, esta, por ser suscitada pela obra de arte, é dialeticamente antagônica, expressando a oposição entre forma e conteúdo. Machado, Facci e Barroco (2011), ao abordarem a Teoria das Emoções em Vigotski, mais especificamente trataram do livro que leva tal título, buscaram esclarecer as contribuições deste autor sobre o tema, e as concepções e bases filosóficas criticadas por ele. Com isso, temos que Vigotski observou que as produções da psicologia do século XX, ao abordar as emoções, o faziam sob influência das ideias evolucionistas darwinianas, ou seja, explicitavam a origem biológica-animal das emoções humanas, colocando-as em condição natural ou instintiva. Nesta concepção darwiniana das emoções, notamos o materialismo evolucionista, porém não dialético. Em oposição a esta perspectiva evolucionista, primando pela dialética e em contato com a filosofia monista de Espinosa (1632-1677), que lhe deu também base para conceber o psiquismo como unidade, Vigotski tomava as emoções como um fenômeno psicológico cultural, ativo e mutável, que desencadeia ações, ligando demais fenômenos psicológicos uns aos outros.

Para Vigotski, as emoções são funções psicológicas superiores, portanto, culturalizadas e passíveis de desenvolvimento, transformação ou novas aparições. Além disso, a concepção vigotskiana de emoção coloca esse processo psicológico em estreita relação com outros do psiquismo humano (Machado et al., 2011, p.651– grifos nossos).

Considerando o legado filogenético, que dota o homem de aparelho sensor, Vigotski não desconsiderava o aspecto biológico e orgânico, mas ao mesmo tempo, não o tomava como único determinante para o desenvolvimento das emoções; levou em conta o desenvolvimento histórico e cultural também para a formação e a transformação das emoções, assim as explicou e descreveu, dentro dos limites do livro Teoria das Emoções, como função psicológica superior, em interação dialética com as demais, compondo a unidade do ser. Machado et al. (2011), buscando em Smirnov, importante teórico russo e contribuidor da psicologia histórico-cultural, fazem a distinção entre emoção e sentimento, discutindo que a primeira corresponde mais às necessidades orgânicas, ligadas às sensações, enquanto o sentimento corresponde às necessidades culturais e sociais lapidadas ao longo do processo histórico e do trabalho. No entanto, no homem, vivente em sociedade, nenhuma das funções psíquicas são puramente orgânicas e instintivas, por isso, mesmo as emoções guardam caráter cultural.

Destacamos que, em Psicologia da Arte (Vigotski, 1999) - produção anterior ao livro Teoria das Emoções (Vigotsky, 2004) - as expressões sentimento e emoção não são utilizadas de modo rigoroso, ou bem delimitado, que nos permita fazer distinção clara entre os termos. Levando em conta as possíveis diferenças psicológicas entre eles, inclusive, por vezes, podemos notar que são empregados como sinônimos.

Em exercício de interpretação, entendemos, pelo pensamento do autor, que a arte suscitaria emoções contraditórias, e que a sua superação provocaria um salto qualitativo, uma nova organização psicológica, tornando as emoções mais complexas e conscientes e, assim, as transformaria em sentimento, trazendo, no mesmo movimento, alteração da própria estrutura da consciência. Prestes (2010, p. 117) afirma que as expressões emoção e sentimento na versão em português de Vigotski (1999) dizem respeito ao termo original em russo "perejivanie" o qual, conforme a autora, significa vivência.

Segundo Prestes (2010, p.117), "as buscas de Vigotski envolviam a compreensão da função da arte na sociedade e na vida da humanidade". A afirmação " a arte é o social em nós" implica considerar que "a arte tem a função de superação do sentimento individual e o aspecto criativo da arte está no fato de ela possibilitar a transferência de uma vivência em comum".

O movimento de superação das emoções contraditórias que a arte suscita articula as demais funções psicológicas superiores, como a abstração e, por conseguinte, a própria criatividade, utilizando-se de recursos da imaginação. Por isso, Vigotski (1999) afirma que a emoção artística é inteligente, não provoca uma resposta motora imediata, mas resolve-se na articulação com outras funções psicológicas, como a imaginação. Nisto está a diferença da emoção causada pela arte, além de ser suscitada por uma estrutura específica, pela oposição entre forma e conteúdo, a sua superação, a sua transformação, envolve outras funções psíquicas, sobretudo a imaginação.

Para Vigotski (1998), a imaginação é uma atividade superior capaz de criar e combinar fatos, percepções e imagens a partir do que já foi vivido, ou seja, a experiência serve de base para a imaginação, mas o produto desta distancia-se do imediatamente percebido. A imaginação é uma função psicológica superior e, como tal, é mediada pelo signo, o qual traz ao psiquismo a capacidade de simbolização, de representar mentalmente o ausente, condição necessária ao desenvolvimento da imaginação a níveis cada vez mais complexos e livres do imediato.

Com o que foi dito, temos que a percepção da obra de arte exige humanização dos sentidos, ao mesmo tempo em que a própria arte tem impacto sobre eles. Ao perceber, ao entrar em contato com a obra, as demais funções psicológicas superiores são colocadas em movimento. A estrutura da obra objetiva e suscita emoções, as quais são transformadas, pelo processo de catarse, em sentimentos e são reorganizadas, em vínculo semântico mais complexo, valendo-se da imaginação. Essas transformações impactam também na consciência.

Por esse entendimento, consideramos que a obra de arte pode provocar transformações na medida de generalidade da consciência ou mesmo provocar salto qualitativo nas relações de generalidade entre as funções superiores. Ou seja, pode suscitar uma nova organização das funções psicológicas superiores e da consciência. Nossa interpretação toma por base a relação entre percepção, emoção e imaginação que Vigotski esboça em seus estudos sobre arte, como também as contribuições que o autor deixa em sua fase de elaborações mais sistematizadas sobre o desenvolvimento da linguagem e a formação social da mente.

No entanto, já em Psicologia da Arte (Vigotski, 1999), podemos considerar que o aspecto criador da arte está em transformar o material ordinário, comum, em nova forma, compondo uma síntese inédita entre forma e conteúdo, na qual estão cristalizadas as funções psicológicas superiores empregadas e que passarão do plano individual, isto é, do artista que trabalhou a obra, para além da emoção inspiradora, para o plano social, processo possível por meio da catarse, da transformação da emoção ao sentimento. Do mesmo modo, a fruição da arte deve refazer, acompanhar, este movimento criativo.

Vigotski e a psicologia da arte: objeto e método

Cabe à psicologia da arte, revelar as características do ato criador e criativo desvendando a estrutura da obra artística. Isso porque,

Por si só, nem o mais sincero sentimento é capaz de criar arte. Para tanto não lhe falta apenas técnica e maestria, porque nem o sentimento expresso em técnica jamais consegue produzir uma obra lírica ou uma sinfonia; para ambas as coisas se faz necessário ainda o ato criador de superação desse sentimento, da sua solução, da vitória sobre ele, e só então esse ato aparece, só então a arte se realiza. Eis que a percepção da arte também exige criação, porque para essa percepção não basta simplesmente vivenciar com sinceridade o sentimento que dominou o autor, não basta entender da estrutura da própria obra: é necessário ainda superar criativamente o seu próprio sentimento, encontrar a sua catarse, e só então o efeito da arte se manifestará em sua plenitude. (Vigotski, 1999, p. 314)

Conforme as contribuições de Vigotski (1999), podemos considerar que o objeto da psicologia da arte refere-se à análise da estrutura da obra de arte, buscando apreender as funções psicológicas tipicamente humanas, inclusive o sentimento, que a obra suscita. Vigotski (1999) chama de método objetivo analítico a investigação da psicologia da arte por meio da estrutura da obra, com vistas ao tipicamente humano, cristalizado no objeto cultural criado. A psicologia da arte revelaria, então, as funções psicológicas colocadas em movimento pela estrutura da obra, demonstrando, assim, as leis de funcionamento da resposta estética no psiquismo, bem como as transformações provocadas no indivíduo. Assim, podemos pensar que a psicologia da arte parece ter dois objetivos essenciais: (a) revelar a vivência psicológica que a obra de arte objetiva e (b) explicar as consequências da resposta estética no psiquismo do homem.

De acordo com a fundamentação filosófica e concepções de arte contidas em Vigotski (1999), podemos compreender que, para o autor, a estrutura da obra de arte é composta por conteúdo e forma. O conteúdo que a arte encerra é o material, apreendido das condições objetivas, ou seja, das relações sociais de determinada sociedade que são transformados pelas leis da estética. Em outras palavras, este conteúdo objetivo é submetido a uma forma artística, a uma composição que, então, é chamada de enredo. No entanto, a ligação com a realidade ainda permanece não idêntica a ela. Assim, a forma diz respeito ao arranjo, à composição da obra de arte, enquanto o conteúdo, ou o material, a constitui; porém, não de modo a somar, mas compondo uma unidade contraditória entre forma e conteúdo. Essa unidade é a estrutura de uma obra artística.

Em oposição às teorias psicológicas que até então haviam tratado de aspectos da arte, partindo ora do expectador, ora do artista, Vigotski (1999) encontra na estrutura da própria obra de arte o objeto da psicologia da arte. Este objeto está baseado na concepção de que a arte não é fruto de um homem só (fruidor ou artista), mas da história da humanidade. Desse modo, a própria obra pode revelar as características nela fixada, bem como a psicologia que lhe cabe.

Com isso, o autor nega as tendências subjetivistas de entender a arte como produto das profundezas psíquicas do homem/artista, ou como um estímulo para percepção que gera uma resposta como outra qualquer; nega, então, as tendências psicológicas da época sobre arte, superando-as, ao afirmar que a arte é produto da humanidade e expressa a síntese entre forma e conteúdo, de modo que a análise dessa unidade revela a psicologia da obra de arte. Ao tratar da estrutura da narração de um conto, aponta que:

É de suma utilidade distinguir, como o fazem alguns autores, o esquema estático de construção da narração, como uma espécie de anatomia dessa narração, do esquema dinâmico de sua composição, como uma espécie de fisiologia desta. Já esclarecemos que toda narração tem sua estrutura específica, diferente da estrutura do material que lhe serve de base. Mas é patente que cada procedimento poético de enformação do material é racional ou dirigido; é introduzido com algum fim, cabe-lhe alguma função a ser exercida no conjunto da narração. E eis que o estudo da teleologia do procedimento, ou seja, da função de cada elemento estilístico, do encaminhamento racional e do significado teleológico de cada componente nos explica a vida pujante da narração e transforma a sua construção morta em organismo vivo. (Vigotski, 1999, p. 182)

Para analisar as estruturas das obras de arte, Vigotski voltou mais atenção à literatura, mas fez considerações também sobre a música, artes plásticas e arquitetura, destacando que elas têm algo em comum: a contradição entre conteúdo e forma. Conteúdo e material aparecem como sinônimos ao longo do livro Psicologia da Arte (Vigotski, 1999). Vamos utilizar os exemplos da análise literária realizada neste livro para expressar o pensamento do autor. Como se pode observar no trecho a seguir, o conteúdo pode ser entendido como a realidade imediata, as situações da vida cotidiana que servem de base para a elaboração artística:

devemos entender por material tudo o que o poeta usou como já pronto– relações do dia-a-dia, histórias, casos, o ambiente, os caracteres, tudo o que existia antes da narração e pode existir fora e independente dela, caso alguém narre usando suas próprias palavras para reproduzi-lo de modo inteligível e coerente. (Vigotski, 1999, p. 177)

Já a forma é o arranjo desse material conforme as leis da construção estética. A forma se apropria do material, do que traz sobre a realidade, negando-o e transformando-o em algo novo, numa realidade não imediata.

Nessa interpretação a forma é o que menos lembra um invólucro externo, uma espécie de casca de que se reveste o fruto. Ao contrário, a forma aqui se manifesta como um princípio ativo de elaboração e superação do material em suas qualidades mais triviais e elementares. (Vigotski, 1999, p. 177)

Com isso, o autor demonstra que o conteúdo representa as relações do cotidiano de modo linear, ao passo que a forma representa saltos, curvas e digressões, produzindo além do material, algo inteiramente novo. Nisto fica evidente a concepção de oposição entre estes dois elementos e não de harmonia.

Parece que chegamos à conclusão de que na obra de arte há sempre certa contradição subjacente, certa incompatibilidade interna entre material e forma, de que o autor escolhe como que de propósito um material difícil e resistente, desse que resiste com suas propriedades a todos os empenhos do autor no sentido de dizer o que quer... E aquele aspecto formal de que o autor reveste esse material não se destina a desvelar as propriedades contidas no próprio material... mas justamente ao contrário: destina-se a superar esses propriedades, a fazer o horrendo falar a linguagem do leve alento, o sedimento da vida em um ressoar sem fim como o vento frio da primavera. (Vigotski, 1999, p. 199)

A contradição entre forma e conteúdo é o fundamento da resposta estética.

Em tal contradição estão expressas emoções antagônicas que vão se revelando na obra; descobrir esse movimento e sua intenção é tarefa da psicologia da arte. Assim, podemos entender que revelar a estrutura psicológica de uma obra é revelar os recursos estilísticos que expressam a oposição entre forma e conteúdo, de modo que a síntese objetiva um sentimento, ou demais características humanas, o que pode ter uma intencionalidade deliberada. Esta contradição entre forma e conteúdo resolve-se no ponto culminante da obra, no ponto em que o conflito, por incorporação e negação, é superado em uma nova unidade que pode ser representada por um desfecho da tragédia, um herói, um tom na música ou uma mínima pincelada que dá vida ao quadro.

O que traz de novo o herói trágico? É evidente que em cada momento dado ele unifica ambos os planos e é a suprema unidade permanentemente dada da contradição que serve de base à tragédia. Já indicamos que toda tragédia é sempre constituída do ponto de vista do herói; logo, ele é a força que unifica as duas correntes opostas, força essa que reúne sempre os dois sentimentos opostos em uma vivência atribuída ao herói. (Vigotski, 1999, p. 244)

Encontra-se na própria obra a superação da contradição. Podemos compreender que a obra, por possibilitar a catarse, eleva as emoções antagônicas à condição de sentimento, no sentido de ser social, intencional e universal, na perspectiva de gênero humano. No indivíduo, pode provocar um salto qualitativo na organização psicológica, uma vez que a estrutura artística suscita emoções dialeticamente antagônicas, expressando a oposição entre forma e conteúdo, superadas por meio do processo de catarse, o qual promove a transformação dessas emoções. Conforme Vigotski (1999) a própria obra de arte deve oferecer em sua estrutura as condições para a catarse, ou seja, para a superação das emoções conflitantes trabalhadas na obra. A catarse, nesse sentido, diz respeito à transformação das emoções suscitadas em um novo sentimento.

Leontiev, no prefácio do livro em espanhol (Vygotsky, 1972, p.11), escreve que, ao referir-se à catarse, Vigostki parece usar palavras ou conceitos que não são genuinamente seus ou marxistas. O próprio Vigotski (1999) admite usar o termo catarse por falta de outro melhor, mas procura esclarecer que o pretendido com o termo em questão é expressar a superação de emoções opostas, e a transformação destas em algo novo, como uma síntese dialética. Nessa linha de pensamento argumenta que:

Mas apesar da imprecisão do seu conteúdo e da manifesta recusa à tentativa de esclarecer o seu significado no texto de Aristóteles, ainda assim supomos que nenhum outro termo, dentre os empregados até agora na psicologia, traduz com tanta plenitude e clareza o fato, central para a reação estética, de que as emoções angustiantes e desagradáveis são submetidas a certa descarga, à sua destruição e transformação em contrários, e de que a reação estética como tal se reduz, no fundo, a essa catarse, ou seja, à complexa transformação dos sentimentos. (Vigotski, 1999, p.270)

Considerações finais

Pelo que expusemos, podemos dizer que a arte não desencadeia uma ação, um comportamento, mas uma transformação das emoções determinada pela estrutura da obra; e que, tomando o psiquismo como unidade, podemos entender que tal transformação não se restringe aos aspectos da emoção, mas à totalidade do funcionamento psicológico:

A arte é antes uma organização do nosso comportamento visando ao futuro, uma orientação para o futuro, uma exigência que talvez nunca venha a concretizar-se, mas que nos leva e aspirar acima da nossa vida o que está por trás dela. (Vigotski, 1999, p.320)

O autor revela que a lei da reação estética, a estrutura da obra de arte, contém emoções antagônicas que se superam em um ponto culminante da própria obra, provocando a catarse, ou seja, a transformação das emoções. Podemos entender que essa transformação tem relação com a elevação das emoções, ou outras funções mentais, ao nível consciente, social e universal. Ao estudar a arte literária, com análise de obras de Krilov e Hamlet, e de artigos e notas de revistas, Vigotski (1999) expõe a catarse como contradição afetiva.

Podemos considerar ainda que a catarse, além de acumular energia e preparar o indivíduo para ações posteriores, contribui para que a vivência artística tenha função organizadora do comportamento, ou seja, possibilita um processo de generalização que amplia o domínio do sujeito sobre si e o mundo. No que se refere à organização psicológica que a arte provoca, Schühli (2011, p.139) discute que, na perspectiva vigotskiana, a arte deve ser considerada em sua capacidade organizadora do comportamento. Entre outros elementos, a catarse pode ser tomada "como curto-circuito emocional advinda das contradições construídas pela estrutura da obra". Tal curto-circuito permite a superação das emoções postas na obra, "podendo levar inclusive à descoberta e aprofundamento de sentimentos, e não somente à propagação quantitativa dos sentimentos do autor".

Avaliamos que, quando Vigotski escreveu Psicologia da Arte (1999), as teorias sobre a formação social do psiquismo e do desenvolvimento humano ainda não estavam plenamente elaboradas. Assim, não ficam esclarecidas neste livro as contribuições da arte para o desenvolvimento geral do psiquismo. Todavia, subsidiados pela concepção dialética e pelas pistas que o livro deixa, concluímos que a obra de arte, enquanto instrumento cultural, por sua estrutura específica e pelos processos criativos e de catarse implicados tanto na produção quanto na fruição, pode suscitar uma nova organização psíquica.

Vigotski (1999) refere-se à transformação da emoção que a arte suscitaria. No entanto, pela concepção de emoção que Machado et al. (2011) apresentam, entendemos que a transformação desta provoca também avanços às demais funções psicológicas superiores como, por exemplo, ao pensamento verbal. Isto porque a arte opera também por meio de signos e significados, sobretudo a literatura, os quais são os principais mediadores, agentes, entre o social e o psíquico, componentes e organizadores da consciência. Por isso, a apropriação da obra de arte suscita transformações qualitativas na totalidade do ser, alterando, por exemplo, as funções de percepção e consciência de si e do mundo.

Concluímos que a arte tem uma estruturação específica, diferenciando-se de outros objetos culturais, como a filosofia e a ciência, embora operando também com signos e significados. Diferencia-se por lidar de modo intencional e por colocar em movimento, sobretudo, as emoções e sentimentos, objetivados nas obras, cuja apropriação pode trazer transformações tanto para as funções psicológicas específicas, como para a consciência. Desse modo, a obra de arte, por sua estrutura específica e condição de objeto cultural, pode trazer nova organização psíquica ao indivíduo, considerando que oportuniza a vivência indireta de emoções, sentimentos e relações sociais.

Referências

Barroco, S. M. S. (2007). Psicologia educacional e arte: uma leitura histórico-cultural da figura humana. Maringa: Eduem.

Duarte, N. (1999). A individualidade para si: contribuição a uma teoria histórico-social da formação do indivíduo. Campinas, SP: Autores Associados.

Fischer, E. (1976). A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

Leontiev, A. L. (2004). Desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro.

Machado, L. V., Facci, M. G. D., & Barroco, S. M. S. (2011). Teoria das emoções em Vigotski. Psicologia em Estudo, 16(4), 647-657.

Marx, K. (2003). Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret.

Prestes, Z. (2010). Quando não é quase a mesma coisa: análise das traduções de Lev Seminovicht Vigostki no Brasil repercussões no campo educacional. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de Brasília, Brasília, DF.

Schühli, V. M. (2011). A dimensão formativa da arte no processo de constituição da individualidade para-si: a catarse como categoria psicológica mediadora segundo Vigotski e Lukács. Dissertação de Mestrado, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba.

Toassa, G. (2006). Conceito de consciência em Vigotski. Psicologia USP, 17(2), 59-83.

Vigotski, L. S. (1998). La imaginación e la arte en la infancia. Madri: Akal.

Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes.

Vigotski, L. S. (2004). Teoria e Método em Psicologia. São Paulo: Martins Fontes.

Recebido em: 22/08/2013

Revisão em: 05/02/2014

Aceite em: 07/02/2014

Sonia Mari Shima Barroco possui pós-doutorado pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (Instituto de Psicologia - USP) e doutorado em Educação Escolar (UNESP/Araraquara). Docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (PPI-UEM). Endereço: Universidade Estadual de Maringá- UEM. Avenida Colombo, 5790 - Zona 7 - Bloco 10 - Sala 10. Maringá/PR, Brasil. CEP 87020-900. E-mail: contato@soniashima.com.br

Tatiane Superti possui graduação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Especialização em Teoria Histórico-Cultural pelo Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (PPI-UEM). E-mail: tsuperti@hotmail.com

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2014
  • Data do Fascículo
    Abr 2014

Histórico

  • Aceito
    07 Fev 2014
  • Revisado
    05 Fev 2014
  • Recebido
    22 Ago 2013
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