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Cultura, identidade e subjetividade quilombola: uma leitura a partir da psicologia cultural

Quilombola culture, identity and subjectivity: a cultural psychology perspective

Cultura, identidad y subjetividad quilombola: una lectura a partir de la psicología cultural

Resumos

A partir de uma análise histórico-cultural, o texto aborda a relação entre a cultura, a identidade e a subjetividade quilombola, baseando-se no imaginário social construído sobre esses sujeitos. Devido a um passado de escravidão, lutas, fugas e constituição de quilombos, o universo simbólico analisado nos permite delinear uma lógica social em que a interação, o convívio e o isolamento influenciam na construção de uma identidade cultural. Questionar como a cultura influencia na organização social e incide sobre a identidade e a subjetividade dos sujeitos em questão é um caminho possível para a psicologia cultural, ao tratar de significados, costumes e símbolos próprios de determinada comunidade ou sociedade.

quilombolas; cultura; identidade; subjetividade


From a cultural-historical perspective, this essay approaches the relations between the quilombola culture, its identity and subjectivity, based on the social imaginary built upon these subjects. Due to a past consisting of enslavement, fighting, escaping, and quilombo's settlement, the analysis of this symbolic universe outlines a social logic in which interaction, acquaintanceship and isolation play an important role on their cultural identity construction. Examining how culture influences these individuals' social organization and how it reflects their identity and subjectivity is one possible path for Cultural Psychology to cast a look upon meanings, mores and symbols of a particular community or society.

quilombola; culture; identity; subjectivity


A partir de un análisis histórico-cultural, el texto plantea la relación entre la cultura, la identidad y la subjetividad quilombola, basándose en el imaginario social construido sobre esos sujetos. Debido a un pasado de esclavitud, luchas, fugas y constitución de quilombos, el universo simbólico analizado nos lleva a delinear una lógica social en que la interacción, el convivio y el aislamiento influyen en la construcción de una identidad cultural. Cuestionar como la cultura afecta en la organización social e incide sobre la identidad y la subjetividad de los sujetos en cuestión es un camino posible para la psicología cultural, al tratar los significados, costumbres y símbolos propios de determinada comunidad o sociedad.

quilombolas; cultura; identidad; subjetividad


ARTIGOS

Cultura, identidade e subjetividade quilombola: uma leitura a partir da psicologia cultural

Cultura, identidad y subjetividad quilombola: una lectura a partir de la psicología cultural

Quilombola culture, identity and subjectivity: a cultural psychology perspective

Marcella Brasil Furtado; Regina Lúcia Sucupira Pedroza; Cândida Beatriz Alves

Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil

RESUMO

A partir de uma análise histórico-cultural, o texto aborda a relação entre a cultura, a identidade e a subjetividade quilombola, baseando-se no imaginário social construído sobre esses sujeitos. Devido a um passado de escravidão, lutas, fugas e constituição de quilombos, o universo simbólico analisado nos permite delinear uma lógica social em que a interação, o convívio e o isolamento influenciam na construção de uma identidade cultural. Questionar como a cultura influencia na organização social e incide sobre a identidade e a subjetividade dos sujeitos em questão é um caminho possível para a psicologia cultural, ao tratar de significados, costumes e símbolos próprios de determinada comunidade ou sociedade.

Palavras-chave: quilombolas; cultura; identidade; subjetividade.

RESUMEN

A partir de un análisis histórico-cultural, el texto plantea la relación entre la cultura, la identidad y la subjetividad quilombola, basándose en el imaginario social construido sobre esos sujetos. Debido a un pasado de esclavitud, luchas, fugas y constitución de quilombos, el universo simbólico analizado nos lleva a delinear una lógica social en que la interacción, el convivio y el aislamiento influyen en la construcción de una identidad cultural. Cuestionar como la cultura afecta en la organización social e incide sobre la identidad y la subjetividad de los sujetos en cuestión es un camino posible para la psicología cultural, al tratar los significados, costumbres y símbolos propios de determinada comunidad o sociedad.

Palabras clave: quilombolas; cultura; identidad; subjetividad.

ABSTRACT

From a cultural-historical perspective, this essay approaches the relations between the quilombola culture, its identity and subjectivity, based on the social imaginary built upon these subjects. Due to a past consisting of enslavement, fighting, escaping, and quilombo's settlement, the analysis of this symbolic universe outlines a social logic in which interaction, acquaintanceship and isolation play an important role on their cultural identity construction. Examining how culture influences these individuals' social organization and how it reflects their identity and subjectivity is one possible path for Cultural Psychology to cast a look upon meanings, mores and symbols of a particular community or society.

Keywords: quilombola; culture; identity; subjectivity.

O presente trabalho tem como objetivo analisar a cultura quilombola como campo simbólico propício para identificações e posicionamentos de seus sujeitos, relacionando-os ao contexto histórico-cultural. A cultura quilombola, enquanto esfera social, permite aos indivíduos expressarem seus valores e princípios e vincularem-se de forma simbólica e afetiva ao grupo. Por ser um espaço de trocas e compartilhamento de conteúdos simbólico-afetivos, permite aos sujeitos que se sintam pertencentes a esse universo particular e se apropriem de valores e conteúdos inerentes à realidade em questão.

A análise histórico-cultural realizada neste trabalho baseou-se na força aglutinadora dos costumes existentes nas comunidades quilombolas. A interação e o convívio de sujeitos que vivem em comunidades que permaneceram isoladas durante certo período de tempo nos leva a questionar o papel da cultura, o que ela desempenha na vida social e como incide sobre a identidade e a subjetividade dos quilombolas.

Estendendo essa análise para a cultura à procura de significados, buscaremos construir um caminho possível para a psicologia social ao falarmos sobre os quilombolas. A cultura e seu caráter semiótico podem ser compreendidos a partir de uma teia de significados criados pelo próprio homem. Em meio a um contexto de particularidades histórico-culturais, esses sujeitos vêm habitando o Brasil, permeados por um imaginário social que remete aos tempos de escravidão com histórias de resistência e luta.

Cultura, identidade e subjetividade

A cultura é o que nos faz e nos torna o que somos ao crescermos em um determinado ambiente. Trata-se da forma autêntica e local de cada povo se constituir e resistir à força globalizante que busca homogeneizar as diferenças. A proposição comum a muitos estudos sobre esse tema é a de que cada cultura consiste em um universo simbólico em si mesmo, de cada povo, organizado socialmente de maneira coerente e limitada. Dessa maneira, haveria padrões discretos de comportamentos, cognição e valores compartilhados entre os membros componentes de cada grupo em contraste com os membros de outros grupos (Mathews, 2002).

A cultura deve ser compreendida como campo simbólico, por possibilitar aos sujeitos uma complexa rede de relações sociais capaz de significações por meio de símbolos, signos, práticas e valores. Nesse contexto, as comunidades passam a ser compreendidas a partir de suas singularidades, individualidades próprias e estruturas específicas. A cultura é percebida, portanto, como um sistema de códigos que comunicam o sentido das regras a fim de orientar as relações sociais. Dessa forma, é definida como a totalidade de reações subjetivas e sociais que caracterizam a conduta dos indivíduos componentes de um grupo, coletiva e individualmente, em relação ao seu ambiente natural, a outros grupos, a membros do mesmo grupo e de cada indivíduo consigo mesmo.

Por sua vez, a identidade pode ser entendida como o produto da ação do próprio indivíduo e da sociedade, de tal maneira que se forme na confluência de forças sociais que operam sobre o indivíduo e na qual ele próprio atua e constrói a si mesmo (Baró, 1989, citado por González Rey, 2003). A subjetividade, por outro lado, apresenta-se como um sistema complexo, produzido de forma simultânea no nível individual e social, independentemente de que em ambos os momentos de sua produção reconheçamos sua gênese histórica-social. Nesse sentido, deve ser associada não somente às experiências atuais de sujeito ou instância social, mas à forma em que uma experiência atual adquire sentido e significação dentro da constituição subjetiva da história do agente de significação, que pode ser tanto social como individual (Gonzáles Rey, 2003).

A subjetividade é um conceito que busca explicar como o indivíduo produz e organiza sentidos e significados subjetivos, que operam no nível social. Desse modo, busca-se compreender os processos a partir de uma perspectiva sistêmica e articulada com a realidade em seus diversos níveis, tanto individual como social, em um diálogo permanente. Os indivíduos, ao fazerem parte de um grupo e reconhecerem-se nele, mesmo diferentes entre si e carregando um sentimento de singularidade que os constitui subjetivamente, compartilham uma identidade com outros indivíduos, o que revela uma teia de intricada complexidade (Deschamps & Moliner, 2009).

O sujeito se constitui diante de uma rede de informações complexas e zonas de sentido que operam simultaneamente e transitam entre identificações e metamorfoses. A instância social é uma configuração geradora de sentidos que são produzidos a partir da experiência do sujeito, e atua como produtora de sentido a partir da história do sujeito e de seu sistema de relações. A dialética do sujeito se expressa na maneira simultânea de representar-se singularmente e enquanto ser social. Assim, é imbuído de um caráter complexo em que os sujeitos estão implicados em uma relação recursiva plurideterminada e simultaneamente manifesta pela ação do outro (Gonzáles Rey, 2003).

A identidade entrelaça o sujeito ao contexto no qual está inserido, em que alinha sentimentos subjetivos a lugares objetivos que ocupa nas relações sociais e culturais. Dessa forma, nos projetamos em nossas identidades culturais, ao mesmo tempo em que absorvemos seus significados e valores, tornando-os parte de nós mesmos (Hall, 2000). A identidade seria, portanto, algo que se move em direção às diferentes representações a que somos interpelados pelos sistemas culturais. A dimensão social da identidade pode ser compreendida como um posicionamento coletivo, em que estão compreendidas as dimensões pessoais de cada sujeito no grupo. O posicionamento coletivo refere-se, então, à noção do "nós-mesmos" de acordo com o contexto social, histórico e cultural, contendo as afirmações e negações, como o que somos e o que não somos, de forma dinâmica ao longo do tempo. Por sua vez, a dimensão pessoal da identidade pode ser compreendida como uma noção psíquica do "si-mesmo", de tal forma que se encontrem nela as afirmações e negações sobre a identidade do sujeito, o que se é e o que não se é. Podemos supor, também, que essas observações de si cambiam e interagem com o contexto histórico-social onde o sujeito se insere ao longo do tempo.

Nesse sentido, podemos compreender os conceitos de identidade, subjetividade e cultura atrelados aos de alteridade, em que características de indivíduos ou grupos específicos se definem em oposição aos que não possuem tais características (Cassab, 2004). A constituição da identidade se dá por um grupo de indivíduos ao compartilharem significados e objetos simbólicos como língua, história, religião, interesses, gostos e cultura, em oposição aos que não partilham e se colocam, portanto, no lugar de alteridade.

A subjetividade é, ao mesmo tempo, associada dinamicamente à apreensão singular pelos sujeitos dos objetos compartilhados e se constitui enquanto identidade, sendo produzida de forma discursiva e dialógica. Portanto, é notório o enfraquecimento da linha divisória entre social e psíquico ou entre exterior e interior, ao levarmos em consideração a cultura. Contudo, devemos pensar que as identificações são construídas pelas relações sociais através da representação, como resultado de identificações e posicionamentos entre os discursos culturais (exteriores) e nossos posicionamentos em relação a tais.

Assim, o conceito de identidade quilombola se dá a partir das representações e interpelações nas quais os sujeitos em questão estão inseridos, e a partir de suas identificações com valores e significados construídos socialmente. O posicionamento coletivo diante desse contexto histórico-cultural ocorre pelo reconhecimento dos sujeitos enquanto grupo, por partilharem histórias, valores e costumes que os remetem a um passado comum e, portanto, a uma identidade compartilhada. A subjetividade quilombola, por sua vez, compreendida por meio de sentido e significação atribuídos, nos remete a discursos e narrativas sobre a história do grupo, sendo construída por representações e relações sociais.

A análise histórico-cultural proposta baseia-se na interpretação da cultura quilombola, com suas particularidades e singularidades inerentes ao contexto em questão. A cultura, compreendida como uma construção de significados criados pelos sujeitos imprime autenticidade ao universo simbólico analisado, e nos permite perceber a lógica social envolvida. Assim, em busca de um caminho possível para compreender a cultura quilombola, deve-se partir do imaginário social construído por seus sujeitos, que nos remete a um passado comum de escravidão, lutas, fugas e constituição de quilombos.

Quilombos, constituição e relações com a terra

O Brasil traz em sua história o tráfico e comércio de africanos e africanas vindos de várias partes da África. Foi o país que por último aboliu legalmente a escravidão, e o que mais importou escravos. Cerca de 40% dos africanos escravizados tiveram como destino o Brasil e atualmente 65% da população negra nas Américas é constituída por brasileiros. Os primeiros africanos chegaram ao Brasil em 1554. Foram, portanto, 316 anos de escravidão, o que marca os últimos séculos da história brasileira e representa 63% do tempo desde que os portugueses aqui chegaram até os dias de hoje. Os escravos brasileiros constituíam-se, em sua maioria, por negros africanos e, ainda que existissem índios, estes eram escassos nos trabalhos mais pesados. Os anos de escravidão refletiram, e continuam a refletir, de forma veemente na realidade sócio-econômica-cultural da sociedade brasileira. Os mais de trezentos anos de práticas exploratórias colonialistas imbuíram na memória social brasileira traços e costumes próprios de nossa identidade (Souza, 2008).

Durante o período da escravidão, foram muitos os protestos e insurreições contra essa dominação, em busca pela sobrevivência em um país com costumes diferentes dos oriundos da África. Só foi possível manter o escravismo diante de uma vigilância ferrenha e uma violência de punição preventiva, estruturadas nas relações produtivas diante dos quadros de protestos e resistências por parte dos escravos (Ribeiro, 2006).

Essa lógica de castigos e repressões era necessária para o funcionamento da ordem escravocrata, pois, caso contrário, o escravo poderia recusar-se a trabalhar e se rebelaria ao cativeiro. Havia legislação, tanto no período colonial como no imperial, que reprimia a tentativa de fuga e rebelião e penalizava os que assim se comportassem. O colonialismo escravista encontrava respaldo em práticas europeias de tempos anteriores, em que era permitido que pessoas fossem consideradas propriedades dos seus senhores (Souza, 2008).

A manifestação típica da insubordinação negra foi o que se convencionou chamar de Quilombo, sendo esta uma forma de sobrevivência e luta contra a escravidão diante das repressões evidenciadas. Inúmeros negros foragidos organizaram-se em localidades distantes o suficiente para resistirem ao sistema escravista imposto, constituindo-se, assim, os quilombos, lugar de refúgio desses negros. Essa era a alternativa possível diante do quadro de escravidão: refugiar-se em local de difícil acesso e manter-se em posição defensiva, lutando para sobreviver (Freitas, 1984).

Em decorrência das punições do sistema repressor, os escravos criaram estratégias de defesa clandestinas e fugas em busca de liberdade. Os quilombos representaram formas de resistência e luta contra a opressão vivenciada por africanos e seus descendentes ao longo da história brasileira, tendo emergido diante de uma situação de confronto e conflito. Tido como elemento que caracterizava a libertação, o quilombo assinalava uma reação à existência desse sistema forçado de trabalho.

A Lei Áurea de 13 de maio de 1888 instituiu formalmente a proibição da escravidão, porém não significou o acesso de negros e negras a direitos ou o fim da segregação desses sujeitos pela sociedade. Ao contrário disso, os ex-escravos foram expulsos das terras em que viviam (Leite, 2000). Com a Abolição da Escravidão, em 1888, restaram aos escravizados duas possibilidades: fixarem-se nas periferias urbanas, opção escolhida por muitos ex-escravos urbanos, ou refugiarem-se nas comunidades quilombolas, embrenhando-se na mata atrás de refúgio. Esta última opção foi eleita pela maioria daqueles pertencentes à área rural. Houve também casos de escravos abandonados por seus senhores e que se organizaram em comunidades para buscar sobrevivência. Consequentemente, os que buscaram refúgio nas áreas rurais, acabaram por se isolar em comunidades quilombolas distantes das cidades, tendo como justificativa o medo de que a Lei Áurea viesse a ser revogada e que o sistema escravocrata retornasse ao país (Barreto, 2006).

A existência dos quilombos evidencia a ideia de que a escravidão ocorreu a partir de relações violentas e hostis. Além disso, a distribuição dos escravizados e o tráfico se deram em grandes proporções em nosso território, o que ressalta a relevância da escravidão para a constituição e formação histórico-cultural da identidade brasileira. Esses aspectos, nem sempre visíveis, são relativos à história e à trajetória de inúmeros indivíduos, e não se referem exclusivamente às noções de raça ou de etnia, mas demarcam relações de hierarquia e fronteiras sociais presentes na sociedade brasileira.

Há registros de que a palavra quilombo foi trazida para o Brasil e a toda a América por negros africanos escravizados, assumindo sentidos diversos em épocas e regiões diferentes. Esse vocábulo, juntamente com seu conteúdo militar e sociopolítico, remete-se a povos africanos de línguas bantu, como os Imbangala, os Mbundu, os Kongo, os Ovimbundue e os Lunda, apesar de ser originariamente da língua umbundu. A palavra quilombo possui uma conotação que envolve migrações, alianças e guerras em que homens, membros que não se distinguem por filiação ou linhagem, eram submetidos aos rituais de iniciação. Esses rituais os retiravam da proteção de suas linhagens e os integravam em uma organização como co-guerreiros e super-homens imunes às armas de seus inimigos (Calheiros & Stadtler, 2010).

No Brasil, os quilombos, tidos como núcleos paralelos de poder, organização social e produção de subsistência, eram considerados a expressão mais radical de ruptura com o sistema latifundiário e escravista, e tinham como emblema principal o Quilombo de Palmares. Foram descritos pela legislação da época, com elementos como: fuga, autoconsumo, moradia precária, número mínimo de pessoas, isolamento geográfico e proximidade de uma natureza selvagem que não era considerada como civilização. A resistência e luta contra o sistema colonialista escravocrata que os oprimia colocava os negros em uma posição ativa diante do contexto em que estavam inseridos (Miranda, 2012).

Apesar da repressão e do empenho do Estado para conter a oposição ao sistema escravista, a resistência se manteve e pôde ser observada em diversos locais onde havia escravidão. Nos morros, chapadas e serras, próximos a engenhos e fábricas de alimentos, os quilombolas abriam suas estradas avançando fronteiras em áreas de plantações e pastagens. Nas inúmeras e diferentes regiões brasileiras, esses ex-escravos criavam estratégias para adaptarem-se e formarem suas comunidades, predominantemente constituídas por negros. No entanto, também foi constituída uma mescla de etnias com brancos e indígenas. Viviam preponderantemente de atividades agrícolas, extrativismo e garimpagem, mas possuíam também relações comerciais com a sociedade que os rodeava (Souza, 2008).

A historiografia aponta a diversidade na formação das referidas comunidades, e a ligação com um universo simbólico permeado por fugas e lutas. O difícil acesso a seus territórios é uma característica fundamental, pois, ao embrenharem-se nas matas e nas serras, dificultavam a entrada das incursões de caçadores de escravos, milícias ou quaisquer outros que viessem os privar da custosa liberdade. Acidentes geográficos naturais das localidades, formações rochosas íngremes, rios intransponíveis ou abismos foram usados como barreiras ou obstáculos que dificultavam a aproximação e visualização do perseguidor, além de propiciar tempo para possíveis fugas.

Muitas comunidades quilombolas buscavam estabelecer relações econômicas com outras comunidades vizinhas e, para isso, procuravam constituir-se em regiões próximas a locais onde pudessem realizar trocas mercantis, mesmo que clandestinas. Contavam com a proteção de pequenos lavradores, donos de bodega e alguns negros que ainda encontravam-se na condição de escravos. Em muitas regiões, houve uma integração socioeconômica envolvendo as práticas camponesas dos ex-escravos e dos que ainda permaneciam nessa condição, diante da parcela de terra e tempo destinados pelos senhores. O cultivo de pequenas roças e o acesso a um comércio informal foram a base da construção da economia quilombola, tipicamente camponesa e compartilhada por comerciantes, lavradores, escravizados e libertos (Souza, 2008).

Os quilombos reafirmavam uma ruptura com a lógica vigente na escravidão, quando os negros ex-escravos se apossavam de pequenos pedaços de terra. A legislação da época excluía qualquer possibilidade de aquisição de terra que não fosse pela compra. Mesmo diante desses impedimentos legais, os negros quilombolas tomavam posse de pedaços de terras e estabeleciam moradia e trabalho. Dessa forma, revogavam, por meio da luta, a legislação imposta pela classe dominante e colonizadora, que os excluía da condição de possuidores de terra (Rocha, 1998).

A Lei das Terras de 1850 buscou instituir a noção de propriedade privada da terra e excluiu outras formas de usufruto, ditas coletivas, comum entre os indígenas e os quilombolas. O simples ato de gozar de um espaço para viver foi transformado em ato de luta e guerra. Os negros foram sistematicamente expulsos ou removidos dos lugares que haviam escolhido para viver, mesmo quando a terra chegou a ser comprada ou herdada dos antigos senhores através de testamento lavrado em cartório, pois a referida lei excluía a possibilidade de aquisição de terra que não se desse por compra (Leite, 2000).

Atualmente, há registros de comunidades que, mesmo tendo documentos comprobatórios da posse da terra, sofrem expropriações de seus territórios, devido a pressões de fazendeiros residentes em regiões vizinhas ou grileiros interessados no valor desses territórios. O registro de posse, não sendo um registro formal de propriedade de terra, não garante a propriedade às famílias habitantes das regiões por inúmeras gerações. Essa realidade nos remete a esse passado de exclusão e à antiga Lei das Terras, que alijava esses sujeitos dos direitos de possuir a terra. Mesmo quando herdada e com testamentos lavrados em cartório, os negros eram expulsos e removidos de seus territórios, fato similar ao contexto atual das comunidades quilombolas nas diversas regiões do território brasileiro.

A questão territorial, ao remeter os quilombolas a um passado de luta, os faz reviver memórias e sentimentos relatados por seus antepassados e reafirma uma situação de instabilidade e injustiça, comum desde o passado desses sujeitos. Em momentos anteriores, ligados às narrativas do período da escravidão e à constituição dos quilombos, em que era comum a exclusão dos ex-escravos do direito de posse da terra, esses indivíduos buscaram isolamento como estratégia para reafirmar seus valores e cultura de origem africana.

A existência de quilombos como espaço de convivência livre para os escravizados possibilitava o encontro com outros sujeitos na mesma condição e com raízes culturais próximas, mesmo não que não fossem originariamente da mesma região da África, de onde vieram deportados pelos traficantes de escravos. O quilombo era um espaço em que os ex-escravos reafirmavam sua cultura, seu modo de vida comunal e coletivo, e também a sua religiosidade. As relações próximas, propiciadas pela vida no quilombo, reafirmavam suas identidades pelo compartilhamento de símbolos, valores e costumes comuns. A possibilidade de assumir sua identidade permitia ao indivíduo colocar-se de forma diferente perante a sociedade, em uma posição ativa de resistência, luta e discordância com o tratamento de submissão e exclusão imposto aos escravos.

Quilombolas na atualidade e o imaginário social

As comunidades quilombolas no Brasil, atualmente, são múltiplas e variadas e se encontram distribuídas em todo o território nacional. Há comunidades que se localizam no campo e outras na cidade, e se constituem por meio de fortes laços de parentesco e herança familiar. Os quilombos, desde Palmares, no passado, até as comunidades quilombolas na atualidade, afirmam a luta pela liberdade. Podem ser entendidos também como uma forma de instituição, que demonstra a rebeldia e a tenacidade do povo africano e afrodescendente na luta contra a opressão. Apesar da predominância de negros, os quilombos se constituem como espaços interétnicos habitados por indígenas e até por brancos em situações de extrema pobreza e exclusão (Freitas, 1984).

A fuga e a memória da escravidão estão presentes em muitas narrativas dessas comunidades (Moura, 1997). Além do imaginário dos quilombolas em relação a essas lutas e fugas, encontramos outras narrativas de comunidades constituídas por terras doadas e pela ocupação de terras desabitadas, sem ligações diretas com esses elementos. Existem registros de comunidades que se formaram a partir de aglomerados de pequenas propriedades de negros libertos e produziam o modelo de agricultura de subsistência. Segundo Moura (1997), a maioria dos quilombos apresentava esse tipo de agricultura e era uma comunidade que valorizava tradições culturais de antepassados, o que permanece até os dias atuais, em que essas tradições são recriadas.

Elementos como a territorialidade, as relações sociais comunais e a formação econômica e social imprimem nessas comunidades características específicas e uma identificação étnica própria. Para os quilombolas, pensar em território é considerar um pedaço de terra para usufruto coletivo, como uma necessidade cultural e política de se distinguirem, de se diferenciarem de outras comunidades e decidirem seu destino próprio. Os territórios que habitam são tidos como tradicionais, ou seja, são espaços indispensáveis para a reprodução econômica, social e cultural da comunidade, sendo utilizados de forma permanente ou temporária (Decreto n. 6.040, 2007).

A invisibilidade é outra dimensão fundamental para a compreensão do contexto das comunidades quilombolas no período pós-abolição, pois, no imaginário nacional, o conceito de quilombo teria desaparecido com a abolição da escravidão. A justificativa para isso é que só haveria quilombos e resistência ao escravismo durante a sua vigência, não se justificando quando a lógica produtiva passou a ser outra. Em decorrência disso, as comunidades negras descendentes quilombolas tiveram que se tornar invisíveis simbólica e socialmente para sobreviverem (Souza, 2008).

Diante desse quadro, o Programa Brasil Quilombola (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2005) objetivou reverter tal lugar de invisibilidade ao instituir o conceito de comunidades remanescentes de quilombo. Segundo a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), no Programa Brasil Quilombola (2005), esse conceito refere-se

aos indivíduos, agrupados em maior ou menor número, que pertençam ou pertenciam a comunidades, que, portanto, viveram, vivam ou pretendam ter vivido na condição de integrantes delas como repositório das suas tradições, cultura, língua e valores, historicamente relacionados ou culturalmente ligados ao fenômeno sociocultural quilombola. (p. 11)

O Programa Brasil Quilombola, lançado pelo governo federal com o objetivo de consolidar políticas públicas para os quilombolas e constituir uma Agenda Social Quilombola, caracteriza essas comunidades pelo "uso comum de suas terras concebidas como um espaço coletivo e indivisível, ocupado e explorado por meio de regras consensuais aos grupos familiares e cujas relações são permeadas por solidariedade e ajuda mútua" (p.11). A identidade desse grupo se define pelo imaginário social construído a partir de vivências e valores compartilhados. Trata-se de uma referência histórico-cultural comum e compartilhada por meio de versões e experiências de uma trajetória, e de sua continuidade enquanto grupo (SEPPIR, 2005).

O termo quilombola induz a estereótipos que indicam quilombos e comunidades do passado que, supostamente, tenham desaparecido depois da abolição da escravidão em 1888, ou ainda a comunidades que possuam uma africanidade intocada. Porém, esse termo foi reformulado para "remanescentes de quilombos" como uma negociação decorrente das inúmeras maneiras de acesso à terra pela população negra escravizada, incluindo: heranças, doações, fugas e ocupação de terras livres, permanência em terras cultivadas no interior das grandes propriedade e recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado (Miranda, 2012). Discutiremos no próximo tópico as implicações de uma identidade entendida como "remanescente".

Na atualidade, existem definições normativas que definem essas comunidades, como podemos observar no decreto nº 4.887 de 2003:

consideram-se remanescentes das comunidades de quilombos, para fins deste decreto, os grupos étnicos-raciais, segundo os critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. (Decreto n. 4.887, 2003)

As comunidades remanescentes de quilombos são grupos que passaram a contar com um reconhecimento oficial de sua cultura e identidade, porém continuam em conflitos fundiários e nos remetem a um passado associado às lutas por suas terras. Território negro, mocambos, terras de preto, entre outras denominações, são acepções que buscam uma definição coerente com a realidade dessas comunidades e que ultrapassam a definição de quilombos históricos e descendência. A forma de se relacionar com a terra, a produção coletiva, as relações sociais comunais e a valorização positiva de traços culturais ressaltam a importância da categoria "território" a esses sujeitos impregnados de significações identitárias.

Além disso, o estigma da invisibilidade, atribuído a um passado histórico em que era necessário esconder-se para continuar existindo diante de um sistema colonialista opressor, é questionado na atualidade, pois essas comunidades tiveram que se tornar visíveis para reivindicar seus direitos perante o Estado. Direito como a posse da terra, o que faz da luta pela garantia dos territórios a principal bandeira do movimento quilombola da atualidade. Assim, os remanescentes de quilombos têm enfrentado inúmeras questões perante a sociedade, e pressionado o Estado por espaços nas políticas públicas (Miranda, 2012).

Atualmente, essas comunidades sofrem com a falta de infraestrutura como: escola, saneamento básico, estradas asfaltadas, transporte público, etc. Pelo fato de a maioria ser constituída por agricultores, sofrem com invasões de grileiros e com incipientes financiamentos, pois muitos não possuem títulos de suas terras. Tem-se registro da existência de comunidades quilombolas em áreas devolutas, de preservação permanente, da Marinha, terras de particulares, entre outras. No Brasil, no ano de 2005, havia o registro de 2.228 comunidades remanescentes de quilombo, sendo a Bahia, Maranhão, Pará e Minas Gerais os estados com o maior número de registros (Barreto, 2006).

A importância do território, a forma comunal de se relacionar com a terra, a produção coletiva, a religiosidade, entre outras características, são elementos que participam da construção da identidade quilombola, ao mesmo tempo em que ressaltam o imaginário social dos sujeitos sobre sua cultura e possibilitam significações identitárias entre os membros do grupo. As dificuldades a que estão sujeitos, diante de insuficientes políticas públicas, os remetem ao passado de exclusão e omissão dos direitos que possuem, e que perdura até os dias atuais. Além disso, os quilombolas são tratados, em muitos casos, de maneira depreciativa e desqualificados do direito de posse do território que habitam devido a interesses de posseiros, grileiros ou fazendeiros sobre suas terras.

Identidade e cultura quilombola hoje

Como resposta ao tratamento hostil e violento empregado aos escravos, os quilombos, ressaltam a escravidão na constituição e formação da identidade dos quilombolas, da representação de suas culturas e da introjeção de aspectos pertinentes à subjetividade desses indivíduos. Da mesma forma, aspectos relativos ao contexto histórico-cultural dessa época foram relevantes para a formação social, demarcando relações de hierarquia e fronteiras sociais presentes na sociedade brasileira.

Pode-se dizer que, no Brasil, assim como em outros países que sofreram com a colonização, ocorreu um epistemicídio dos saberes de povos não-brancos, pois estes foram tidos como primitivos, ignorantes, supersticiosos e relegados ao esquecimento. Esse ataque aos saberes se refletiu, igualmente, na constituição identitária e subjetiva desses sujeitos, pois se traduziu na internalização, pelo não-branco, da superioridade da civilização branca. Tal condição o fez, em grande medida, aceitar e até mesmo desejar possuir e internalizar tais valores– tidos como inquestionavelmente corretos– concomitante a uma negação de si como não-branco, como possuidor de outra cultura.

No entanto, práticas de resistência podem ser observadas. Os quilombos existentes ainda hoje no Brasil configuram-se como tentativas de não absorção da identidade hegemônica. Assim como no passado colonial, a identidade quilombola se constrói, ainda atualmente, como uma identidade de luta e resistência: antes, contra a captura e a escravização; hoje, contra a invisibilidade e a negação da existência desses sujeitos enquanto quilombolas.

A identidade, compreendida como resultado da confluência de forças sociais que operam sobre o indivíduo e na qual ele próprio se constrói, pode ser entendida como produto de sua ação ou, ainda, da sociedade. A assunção de uma identidade permite ao indivíduo colocar-se de forma diferente perante a sociedade, individualmente ou como grupo. Nessa esfera, é essencial a possibilidade de ser diferente de outros setores da sociedade. Denominar-se ou reconhecer-se como quilombola resulta de uma identidade construída socialmente, em um contexto que demarca relações de poder e em que resistem a uma posição estigmatizada, desde a escravidão até a atualidade (Calheiros & Stadtler, 2010).

Tida como social, a subjetividade é produzida de forma simultânea no nível individual e social, com o reconhecimento da gênese histórico-social no momento de sua produção. Assim, ao considerarmos a subjetividade dos quilombolas, devemos compreendê-la não somente associada às experiências atuais do sujeito, mas como adquirindo sentido e significação dentro da constituição subjetiva da história do agente de significação. Ou seja, adquire sentido ao longo da história e por meio da transmissão de conteúdos, de forma simbólica e ao longo de gerações, por relatos de feitos heróicos, lutas, músicas, dentre outros. Os sujeitos, no caso, os quilombolas, ao denominarem-se como um grupo, e ao se reconhecerem como tal, compartilham valores, crenças e, acima de tudo, uma identidade com outros indivíduos, constituindo-se e reconhecendo-se como tal, simultaneamente.

Nesse sentido, a expressão "remanescentes de quilombos", cunhada nos documentos jurídicos brasileiros, traz a dubiedade que permeia a identidade desses povos nos dias de hoje. Ligados ao passado, em um presente que frequentemente os invisibiliza, os quilombolas agonizam entre uma identidade histórica, que os constitui socialmente e os permeia de sentidos e símbolos, e uma ameaça à própria existência enquanto quilombolas. Ao serem constituídos no universo hegemônico como "remanescentes", correm o risco de serem destituídos de uma identidade social. Tal imposição já foi igualmente colocada sobre indígenas quando, nas décadas de 1930 e 1940, eram nomeados como "remanescentes indígenas". Os "primeiros acadêmicos ao se dedicarem à temática indígena procuravam naquelas comunidades apenas os traços de suas supostas culturas ancestrais" (Arruti, 1997, p. 12).

Assim, corre-se o risco tanto de engessar a identidade social do grupo, quanto de determinar sua trajetória. Nesse sentido, Arruti (1997) chama a atenção para o fato de que: "Apesar das exigências do termo, os 'remanescentes' não são sobras de antigos quilombos prontos para serem identificados como tais, presos aos fatos do passado por uma continuidade evidente e prontamente resgatada na 'memória coletiva' do grupo" (p.23). Tal pensamento nos remete à complexidade inerente à constituição identitária.

Os quilombos, constituídos a partir das mais diversas formas de reação à dominação instituída pelo processo colonial escravista, e abrangendo práticas e experiências amplas, carregam sentidos e desdobram-se com eles (Leite, 2008). Podem ser compreendidos como instâncias sociais e, portanto, como geradores de sentidos produzidos a partir da experiência de sujeitos, de sua história e de seu sistema de relações, e como posicionamentos coletivos. Esse posicionamento se refere à noção do grupo relativo ao contexto social, histórico e cultural a que pertencem, interagindo e mudando ao longo do tempo conforme a complexidade de cada momento.

Por outro lado, a identidade coletiva não deve ser entendida como uma anulação do sujeito que, destituído da possibilidade de uma identidade individual, é absorvido pelo grupo. A identidade é um fenômeno marcado pela fluidez e pela flexibilidade. É importante, portanto, que quilombolas tenham espaço simbólico e subjetivo para transitarem entre uma identidade que remonta ao passado, mas que também se projeta sobre um futuro.

Em outras palavras, as dimensões social e pessoal da identidade convivem de maneira dinâmica, devido ao fato de a constituição do sujeito ocorrer em determinado contexto social, cultural e político, sendo modificada e modificando-o simultaneamente. O ato de identificar-se e de compartilhar com um grupo determinado conjunto simbólico envolve a percepção dos indivíduos enquanto sujeitos no mundo e na relação afetiva com ele. Sendo assim, o sujeito atua sobre esse mundo e o altera com sua marca singular (Ciampa, 1983).

A compreensão da identidade parte do entrelaçamento da estrutura ao sujeito, em que são relacionados sentimentos subjetivos e lugares objetivos ocupados nas relações sociais e culturais. Compreendida como o posicionamento subjetivo eleito em relação a uma realidade histórica e social, a identidade se dá pelo sentimento de pertença do sujeito, ao compartilhar conteúdos simbólico-afetivos com outros, definindo-se, portanto, como um grupo. Esse posicionamento assinala o caráter ativo do sujeito e de uma subjetividade dinâmica que é, ao mesmo tempo, dependente de fatores situacionais, históricos e sociais para se constituir enquanto identidade.

Portanto, também na cultura quilombola, os conteúdos simbólico-afetivos emergem dentro de maneira distinta para cada indivíduo, a partir de experiências sociais e pessoais, sendo carregados de valor e afeto. Os significados são construídos socialmente, e por serem simbólicos se constituem enquanto elementos culturais. Dessa forma, podemos nos referir a representações, crenças, valores, memórias e, ainda, à língua, à religião, história, festas públicas, datas comemorativas, etc. Diante disso, devemos ressaltar que pertencer a um grupo depende do compartilhamento desses conteúdos, de forma idiossincrática e individual, uma vez que a percepção depende do entendimento subjetivo, das afinidades e semelhanças de cada sujeito. Ainda assim, vale dizer que é por meio da interação dialética com o contexto cultural e histórico que se constroem tais conteúdos.

Assim, junto com a proteção jurídica e política, surgem também uma série de implicações identitárias para o grupo. A ação de autointitular-se como "remanescente de quilombos" não deixa de entrar na dialética complexa da nomeação que, por um lado, simbolicamente delimita e restringe uma realidade e, por outro, abre novas possibilidades.

Considerações finais

A cultura quilombola, por ser um espaço de trocas e compartilhamento de conteúdos simbólico-afetivos, e por se dar em relação a um contexto social, cultural e político específico, enfatiza as particularidades dos sujeitos que a constituem. É uma instância que preserva elementos culturais carregados de um passado histórico e social e que propicia um posicionamento subjetivo do sujeito ao reconhecer-se nesse passado.

A identificação de pertencimento do indivíduo diante dos valores e conteúdos inerentes à realidade histórico-cultural própria desse contexto incide em sua identidade e possibilita que ele se reconheça enquanto sujeito quilombola, pertencente a um todo maior, à cultura quilombola. Por outro lado, as instâncias políticas devem ser cuidadosas para não engessar as possibilidades identitárias quilombolas, seja por as fixarem a um passado ou por lhes traçar um futuro.

É essencial que a psicologia, tão interessada em questões relativas à identidade e à subjetividade, volte-se também para o estudo de processos de subjetivação não-hegemônicos, como é o caso dos quilombolas. A relação com o passado, o vínculo com o território, as negociações com a sociedade circundante são questões que envolvem a dinâmica de constituição identitária quilombola e que podem lançar luz aos estudos sobre os processos identitários e de subjetivação tão frequentemente restritos aos espaços urbanos e hegemônicos.

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Recebido em: 13/03/2013

Revisão em: 30/09/2013

Aceite em: 09/11/2013

Marcella Brasil Furtado é Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Processos do Desenvolvimento Humano e Saúde do Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília. Endereço: Quadra 208 sul, Lote 10, Apt 401 B. Águas Claras. Brasília/DF, Brasil. CEP 71926-500. E-mail: marcellabrasil@gmail.com

Regina Lúcia Sucupira Pedroza é professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. E-mail: rpedroza@unb.br

Cândida Beatriz Alves é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Processos do Desenvolvimento Humano e Saúde do Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília. E-mail: candida.alves@gmail.com

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2014
  • Data do Fascículo
    Abr 2014

Histórico

  • Aceito
    09 Nov 2013
  • Recebido
    13 Mar 2013
  • Revisado
    30 Set 2013
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