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Ética e estética da alteridade em Horkheimer, Adorno e Freud: comentários a partir de “elementos do anti-semitismo” e “o inquietante”

Ética y estética de la alteridad en Horkheimer, Adorno y Freud: comentarios desde “elementos de lo anti-semitismo” y “lo ominoso”

Ethics and aesthetics of alterity in Horkheimer, Adorno and Freud: comments from “elements of anti-semitism” and “the uncanny”

Resumos

Ao adotar como foco inicial a referência, feita por Horkheimer e Adorno em "Elementos do Anti-Semitismo: limites do esclarecimento", ao texto de Freud denominado "O Inquietante", o presente trabalho pretende estabelecer alguns pontos de contato entre si no que se refere ao importante campo de estudos voltado ao preconceito. Nestes termos, propõe uma ética e uma estética da alteridade que, voltadas à dissonância de uma estranha-familiaridade, aparecem pautadas pela valorização da negatividade em detrimento de uma filosofia positiva cujas luzes podem conduzir à mais absoluta cegueira totalitária. A aposta aqui reside na possibilidade de que, remetendo às fraturas do contato do homem com o que lhe parece real, tal movimento traga consigo o resgate de uma tragicidade que resista em se deixar apropriar pelos anseios de domínio e comodidade representativa tão caros à razão instrumental e, com ela, aos discursos de intolerância para com as diferenças.

ética; estética; alteridade; psicanálise; teoria crítica


Enfatizando la referencia, hecha por Horkheimer y Adorno en "Elementos del Antisemitismo: límites de la ilustración" al texto de Freud nominado "Lo Ominoso", el presente artículo pretende establecer algunos puntos de contato entre ellos en lo que concierne al importante campo de estudios voltados al prejuicio. Así, propone una ética y una estética de la alteridad que, direccionadas a la disonancia de una estraña-familiaridad, valorizan la negatividad en detrimento de una filosofía positiva cuyas luces pueden conducir a la absoluta ceguera totalitária. La apuesta aquí reside en la posibilidad de que ese movimiento restituya una tragicidad que resista dejarse llevar por los anseos de dominación y comodidad representativa tan próximos a la razón instrumental e, con ella, a discursos de intolerancia para con las diferencias.

ética; estética; alteridad; psicoanálisis; teoría crítica


Adopting as a starting point the reference made by Horkheimer and Adorno in Elements of Anti-Semitism: limits of enlightenment, to the text of Freud named The Uncanny, this work intends to establish some points of contact between them in the important field of studies dedicated to the phenomenon of prejudice. In these terms, it proposes an ethics and aesthetics of alterity that, privileging the dissonance of a strange familiarity, valorize negativeness instead of a positive philosophy whose lights can conduce to absolute totalitarian blindness. The aim here resides in the possibility that, when remitting to the fractures of men's contact to what he takes for real, this movement rescues a tragicity that resists to be appropriated by the longings of dominion and representative commodity adopted both by instrumental reason and by the speeches of intolerance to differences.

ethics; aesthetics; alterity; psychoanalysis; critical theory


ARTIGOS

Ética e estética da alteridade em Horkheimer, Adorno e Freud: comentários a partir de “ elementos do anti-semitismo ” e “ o inquietante ”

Ética y estética de la alteridad en Horkheimer, Adorno y Freud: comentarios desde “elementos de lo anti-semitismo” y “lo ominoso”

Ethics and aesthetics of alterity in Horkheimer, Adorno and Freud: comments from “elements of anti-semitism” and “the uncanny”

Mauricio Rodrigues de SouzaI; Joel BirmanII

IUniversidade Federal do Pará, Belém/PA, Brasil

IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil

RESUMO

Ao adotar como foco inicial a referência, feita por Horkheimer e Adorno em "Elementos do Anti-Semitismo: limites do esclarecimento", ao texto de Freud denominado "O Inquietante", o presente trabalho pretende estabelecer alguns pontos de contato entre si no que se refere ao importante campo de estudos voltado ao preconceito. Nestes termos, propõe uma ética e uma estética da alteridade que, voltadas à dissonância de uma estranha-familiaridade, aparecem pautadas pela valorização da negatividade em detrimento de uma filosofia positiva cujas luzes podem conduzir à mais absoluta cegueira totalitária. A aposta aqui reside na possibilidade de que, remetendo às fraturas do contato do homem com o que lhe parece real, tal movimento traga consigo o resgate de uma tragicidade que resista em se deixar apropriar pelos anseios de domínio e comodidade representativa tão caros à razão instrumental e, com ela, aos discursos de intolerância para com as diferenças.

Palavras-chave: ética; estética; alteridade; psicanálise; teoria crítica.

RESUMEN

Enfatizando la referencia, hecha por Horkheimer y Adorno en "Elementos del Antisemitismo: límites de la ilustración" al texto de Freud nominado "Lo Ominoso", el presente artículo pretende establecer algunos puntos de contato entre ellos en lo que concierne al importante campo de estudios voltados al prejuicio. Así, propone una ética y una estética de la alteridad que, direccionadas a la disonancia de una estraña-familiaridad, valorizan la negatividad en detrimento de una filosofía positiva cuyas luces pueden conducir a la absoluta ceguera totalitária. La apuesta aquí reside en la posibilidad de que ese movimiento restituya una tragicidad que resista dejarse llevar por los anseos de dominación y comodidad representativa tan próximos a la razón instrumental e, con ella, a discursos de intolerancia para con las diferencias.

Palabras clave: ética; estética; alteridad; psicoanálisis; teoría crítica.

ABSTRACT

Adopting as a starting point the reference made by Horkheimer and Adorno in Elements of Anti-Semitism: limits of enlightenment, to the text of Freud named The Uncanny, this work intends to establish some points of contact between them in the important field of studies dedicated to the phenomenon of prejudice. In these terms, it proposes an ethics and aesthetics of alterity that, privileging the dissonance of a strange familiarity, valorize negativeness instead of a positive philosophy whose lights can conduce to absolute totalitarian blindness. The aim here resides in the possibility that, when remitting to the fractures of men's contact to what he takes for real, this movement rescues a tragicity that resists to be appropriated by the longings of dominion and representative commodity adopted both by instrumental reason and by the speeches of intolerance to differences.

Keywords: ethics; aesthetics; alterity; psychoanalysis; critical theory.

Ainda que já tradicionalmente estabelecido desde a década de 1930, o diálogo entre psicanálise e teoria crítica continua se revelando uma importante ferramenta para a abordagem de problemas que, excedendo em muito o mero formalismo acadêmico, infelizmente se fazem sentir de maneira bastante recorrente no cotidiano tanto do campo quanto dos grandes centros urbanos. Dentre si, destacam-se variados exemplos de grande desrespeito, intolerância e mesmo violência física ou psicológica diante da expressão das diferenças – sejam elas de gênero, cor ou classe social –, os quais são diariamente passados em revista pelos meios de comunicação de massa.

Assim, ao adotar como ponto de partida a referência, feita por Horkheimer e Adorno (1947/1985) em "Elementos do Anti-Semitismo", ao texto de Freud (1919/1976c) denominado "O Inquietante", o presente trabalho tem como objetivo principal não apenas circunscrever, mas também ampliar o alcance e as possibilidades decorrentes do diálogo entre estes autores no importante campo de estudos voltado ao preconceito. De maneira a tentarmos nos aproximar das referidas metas, apresentaremos nas páginas seguintes leituras separadas dos dois escritos supramencionados, as quais servirão como base para o estabelecimento de alguns pontos de contato entre si. Como veremos mais adiante, será privilegiada em tal movimento a dimensão psíquica da prática da diferença, intimamente vinculada, por sua vez, a uma estética que é também uma ética da alteridade.

Acerca de "Elementos do Anti-Semitismo: limites do esclarecimento"

Antes de iniciarmos quaisquer comentários mais sistemáticos acerca dos diversos e contundentes argumentos expostos em "Elementos do Anti-Semitismo", cabe situar o escrito em questão em seu contexto mais amplo, cujos contornos começam a tomar forma ainda em 1931, quando, ao assumir a direção do Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, Max Horkheimer estabelece as diretrizes básicas que acabariam por ordenar os estudos posteriormente conduzidos pelos seus afiliados. Tais diretrizes aparecem fundamentalmente ligadas a um necessário entrelaçamento de reflexão teórica e empiria no sentido mesmo da coleta e interpretação de dados acerca dos fenômenos sociais a serem pesquisados, visando com isto a realização de diagnósticos e prognósticos mais precisos e de natureza prática (cf. Horkheimer & Adorno, 1956/1973).

Com efeito, como lembra Duarte (2001), a redação das hipóteses presentes em um texto como "Elementos do Anti-Semitismo" não pode ser desvinculada do material coletado em campo por projetos outros, como, por exemplo, aquele sobre autoridade e família conduzido ainda na Alemanha no início da década de 1930 (cf. Horkheimer, Fromm & Marcuse, 1936/1987). Também exerceu o mesmo papel a pesquisa mais ampla sobre o antissemitismo desenvolvida por Adorno, Horkheimer e colaboradores como Leo Löwenthal e Norbert Guterman já em seu exílio nos Estados Unidos (cf. Adorno, 1941/1994a), a qual foi pautada pela análise discursiva (inclusive, com larga utilização do instrumental teórico da psicanálise) de uma série de panfletos e discursos radiofônicos produzidos por ativistas políticos norte-americanos de extrema direita, resultando, de maneira mais ou menos direta, em diversos e importantes trabalhos publicados ao longo das décadas de 1940 e 1950 (cf. Adorno, 1946/1994b, 1951/1991, 1943/2000; Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson, & Sanford, 1950; Horkheimer & Adorno, 1956/1978; Löwenthal & Guterman, 1949).

Pois bem, uma vez minimamente situado o contexto da publicação de "Elementos do Anti-Semitismo" e, junto consigo, a importância do binômio constituído por reflexão teórica e pesquisa empírica nos estudos conduzidos pelos pesquisadores costumeiramente associados à "escola de Frankfurt", retornemos ao nosso principal foco de interesse nessa primeira etapa do presente artigo, qual seja, a análise da estrutura e de algumas das principais ideias contidas no trabalho de Horkheimer e Adorno (1947/1985). Assim, destaquemos inicialmente que este escrito -o qual, vale acrescentar, contou com a colaboração do sociólogo alemão Leo Löwenthal -aparece dividido em sete partes não nomeadas, mas que retratam aspectos específicos ligados aos pensamentos e práticas antissemitas. Dentre eles se apresentam aqueles de ordem ideológica, social, econômica e religiosa, os quais ocupam efetivamente as etapas iniciais do trabalho como um todo.

Embora resguardada a sua relevância, o que a caracterização desses quatro primeiros elementos parece tornar cada vez mais evidente para Horkheimer e Adorno (1947/1985) é o fato de que a racionalidade per se não fornece argumentos suficientes para uma compreensão que se pretenda ampla acerca da feroz perseguição ao judeu que ganhou corpo na Alemanha da República de Weimar e que culminou no nazi-fascismo. Com efeito, tanto em termos do volume de páginas escritas quanto no que se refere à sua originalidade e importância, podemos considerar como núcleo central de "Elementos do Anti-Semitismo" a análise da dimensão psíquica da discriminação à figura do judeu.

Ao levarmos isso em conta, cabe então que nos desloquemos a partir de agora rumo à quinta parte do texto, a qual se inicia com o destaque conferido por Horkheimer e Adorno (1947/1985) à idiossincrasia como principal justificativa dos antissemitas para o seu comportamento. Ao analisarem mais detidamente tal expressão, porém, os frankfurtianos observam em primeiro lugar que, neste caso, o que se toma por natural é apenas o naturalizado. Com efeito, não haveria de fato nenhum repúdio natural ao judeu, e sim a padronização forçada de uma prática que se tornou interessante para uma sociedade que, ao mesmo tempo em que engendrou tanto o capitalismo monopolista quanto o nazi-fascismo, tornou-se cada vez mais intolerante com qualquer particular que, na sua dissonância em relação a um todo marcado pela funcionalidade, remeteria esta mesma sociedade que hoje se pretende científica ou asséptica ao seu passado mítico, caracterizado pelo medo e pela pequenez do homem diante da natureza.

É nesse sentido que, no parágrafo seguinte, Horkheimer e Adorno (1947/1985) afirmam que as razões às quais responde a idiossincrasia fascista remeteriam às origens, a momentos da proto-história biológica do homem relacionados a um princípio fundamental: aquele da mimese. Ou seja, uma irrefletida recriação imitativa da natureza com sentido eminentemente adaptativo e, importante, preservador do humano como espécie. Nestes termos, ainda segundo os autores, a civilização haveria atravessado um processo evolutivo no qual a mimese orgânica propriamente dita seria substituída, em primeiro lugar, pela sua manipulação organizada (fase mágica) e, em seguida, pelo trabalho como práxis racional.

Em tal movimento, a mimese originária estaria cada vez mais proscrita. Todavia, a identidade produzida pelas suas versões posteriores não se livraria de todo do terror, cabendo à sociedade "esclarecida" e sua ciência positivista o papel dialético de reatualizações da natureza ameaçadora e da magia, as quais, repercutindo no indivíduo, conduziriam-no a um novo mimetismo cego, autoconservador e predatório. Com a cegueira causada por tanto esclarecimento, porém, os reflexos de tal herança mimética nas ações supostamente racionalizadas teriam sido relegados ao esquecimento e não seriam percebidos de maneira imediata. Para tanto, tornar-se-ia necessária a mediação de um outro que, ele sim, tal qual uma espécie de inusitado fóssil vivo, representasse os resíduos indeléveis de uma natureza que se tornou vergonhosa, insuportável e digna de exterminação.

Eis aí quando surge a passagem específica dos Elementos que muito nos interessa no presente trabalho, já que, pela via de uma nota de rodapé, remete o leitor tanto à figura do judeu quanto ao texto de Freud (1919/1976c). Vamos a ela: "O que repele por sua estranheza é, na verdade, demasiado familiar" (Horkheimer & Adorno, 1947/1985, p. 170). Exemplos deste processo poderiam ser percebidos no toque e no aconchego, emergências indesejáveis de um contato demasiadamente próximo e, assim, represado por uma civilização orientada por relações pessoais já reificadas.

Aqui vale a pena resgatarmos a referência anterior de Horkheimer e Adorno (1947/1985) ao progressivo movimento de racionalização que a mimese haveria sofrido ao longo da história do homem, marcado primeiramente pela sua forma defensiva incontrolável, depois pela sua organização na forma da magia e, finalmente, na sua substituição pela prática racional do trabalho. Assim poderemos dar um passo adiante e, acompanhando o movimento dos autores, compreender a relação proposta por si entre a mimese original em relação à natureza e uma outra, exercida como pastiche ou escarnecida paródia por parte dos antissemitas, a qual tomava como objeto o que entendiam como os modos de ser e de se expressar do judeu.

Pois bem, é essa mimese da mimese ou falsa-mimese que aparece discutida nos "Elementos do Anti-Semitismo" como um resgate controlado (racionalizado) da primeira, ocasionando, pela via da identificação direta dos indivíduos com o sistema totalitário encarnado na figura do Führer, uma idiossincrasia em massa que se relevaria absolutamente útil ao fascismo. Afinal, ao mesmo tempo em que justificaria o extermínio de uma alteridade agora naturalizada (já que reduzida à qualidade de "raça"), propiciaria ainda a satisfação regularizada daquele impulso original de identificação com a natureza severamente interditado, reprimido e então projetado pelos "civilizados" no judeu e em todos aqueles que de alguma forma se revelassem contrários ao discurso da razão esclarecida.

Se seguirmos os argumentos de Horkheimer e Adorno (1947/1985), porém, veremos que a adesão cega ao regime totalitário – este elemento fundamental da atitude antissemita tornado possível mediante a reapropriação de uma tendência mimética que acompanharia a espécie humana desde a sua proto-história -não se sustentaria apenas pela introjeção irrefletida de valores impostos de fora. Far-se-ia necessária, então, a utilização, por parte da rex machina, de outro mecanismo psíquico eminentemente complementar: aquele da projeção, degenerado em falsa projeção.

Foco principal da sexta e penúltima parte dos Elementos, a falsa projeção aparece definida inicialmente como contraponto da mimese genuína que, como vimos há pouco, fora substituída no antissemitismo fascista por uma imitação de si mesma. Assim, é mais uma vez em meio a um jogo de espelhos que envolve os polos complementares da familiaridade e da estranheza que somos apresentados à seguinte afirmação:

Se o exterior se torna para a primeira (a mimese original) o modelo ao qual o interior se ajusta, o estranho tornando-se familiar, a segunda (a falsa projeção) transpõe o interior prestes a saltar para o exterior e caracteriza o mais familiar como algo de hostil. Os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto, lhe pertencem são atribuídos ao objeto: a vítima em potencial. (Horkheimer & Adorno, 1947/1985, p. 174)

Trata-se aqui, portanto, de uma metamorfose imaginária do mundo que, de acordo com os frankfurtianos, seria orientada por impulsos (ou, mais precisamente, pulsões) tão antigos quanto o ideal de civilização. Estes, embora reprimidos ao longo da história da espécie humana, teriam permanecido tão ativos a ponto de impulsionarem não somente indivíduos isolados, mas a Alemanha de Hitler, sociedade esta marcada por acentuados traços paranoicos1 1 Torna-se obrigatória aqui uma referência ao "caso Schreber", célebre estudo da paranoia feito por Freud (1911/1976a), o qual, ainda que nas entrelinhas, aparece como interlocutor privilegiado da sexta etapa do texto de Horkheimer e Adorno (1947/1985). Para uma análise mais específica de algumas das suas características, recomenda-se a leitura de Niederland (1959/1979), onde, além de uma detalhada reconstituição histórica da infância de Schreber -e, importante, do nada desprezível papel exercido por seu "simbiótico" pai ao longo desta –, é enfatizado um aspecto deveras interessante para a compreensão da psicopatologia que o acometeu. Trata-se do Zeitgeist, do espírito da época em questão. Nestes termos, Niederland (1959/1979), precedendo em quase quarenta anos o hoje conhecido livro de Santner (1996), propõe uma relação entre as rígidas vigilância e disciplina impostas ao pequeno Schreber (as quais, vale lembrar, resultaram em um ulterior processo de despersonalização com graves distorções da imagem corporal e, concomitantemente, do teste de realidade e das relações objetais) e algumas das ideias que circulavam na sociedade alemã da segunda metade do século XIX, as quais, alguns anos mais tarde, contribuiriam para conduzi-la à intolerante paranoia nazi-fascista. . Por exemplo, a projeção de desejos que, embora nascidos no seio do próprio, tornam-se insuportáveis, sendo então deslocados rumo ao exterior, o inchaço megalômano do Ego e, ainda, a mania de perseguição diretamente relacionada aos dois fatores anteriores. Fundamentalmente, porém, cabe destacar que a conjunção destes três elementos conduz a um desvio delirante em relação ao princípio de realidade que passa a ser tomado como a própria realidade.

Nesses termos, Horkheimer e Adorno (1947/1985) se voltam a um breve histórico da projeção como procedimento arcaico ligado à sobrevivência. Podemos pensar aqui no aprendizado decorrente da inter-relação de impressões sensoriais e reflexão de acordo com o seguinte movimento: os objetos são percebidos e, em seguida, refletidos pelo sujeito com base no acúmulo de experiências anteriores visando ao estabelecimento de um campo mínimo de previsibilidade na relação com a natureza (bastante útil, por exemplo, em termos de ataque e defesa). Temos aí um processo de retroalimentação que não pode prescindir do retorno projetivo do sujeito em relação ao objeto, recriando-o, inclusive.

Uma pergunta crucial, porém, ainda pairaria no ar: como tal mecanismo projetivo pôde ser manipulado e então se degenerar, vindo a fornecer uma das bases do antissemitismo? É o que Horkheimer e Adorno (1947/1985) tentarão compreender nos parágrafos seguintes, quando, aprofundando a sua discussão, convidam-nos a um passeio pela teoria do conhecimento que privilegiará a noção de "esquematismo". Atrelado à filosofia de Kant e ao seu interesse pela nossa capacidade de julgamento, tal conceito diz respeito à possibilidade de estabelecermos relações entre as percepções dos sentidos e determinadas categorias fundamentais do entendimento, incluindo assim exemplos específicos no interior de regras de caráter mais geral.

Pois bem, conforme Horkheimer e Adorno (1947/1985), tal apreensão da realidade seria viabilizada por relações entrecruzadas entre sujeito e objeto. Nelas a ordenação das impressões recebidas pelos sentidos seria efetuada pelo entendimento graças a imagens perceptivas que, afastando-se de qualquer ideal de neutralidade, já conteriam em si conceitos e juízos. Com efeito, entre o interior do sujeito e a realidade material permaneceria um abismo a ser preenchido pelo intérprete (uma recriação reflexiva do mundo, por assim dizer) com base em experiências ou categorias inerentes à sua história de vida. Resta então acrescentar que este processo de retroalimentação envolveria não só a (re)criação sintética do mundo a partir da inserção de eventos que se apresentam como diversos na unicidade de conceitos ou categorias específicas, mas também, por derivação, envolveria ainda a organização do próprio ego como unidade diferenciada.

De qualquer forma, alertam Horkheimer e Adorno (1947/1985), não deveríamos perder de vista o fato de que, ainda que definido por uma aparente autonomia, o ego inevitavelmente refletiria o que o objeto é para si. Assim, ao mesmo tempo que a riqueza interior deste mesmo ego seria inseparável da riqueza da percepção exterior, qualquer rompimento da delicadeza deste diálogo constante resultaria em um grave prejuízo: aquele do sacrifício do espírito graças à perda da afetação, da maleabilidade na relação com a alteridade. Como consequência, restaria ao sujeito o enrijecimento, a petrificação.

Alcançamos, então, a relevante afirmação, feita por Horkheimer e Adorno (1947/1985), de que a causa psicológica do antissemitismo fascista não é a projeção – ou melhor, qualquer projeção. Afinal, como vimos há pouco, esta sempre foi uma ferramenta de defesa e ataque que, tendo se revelado adaptativa, passou a ser utilizada tanto pelos animais em geral quanto pelo animal humano como medida de sobrevivência diante das forças da natureza. Com efeito, o tipo de projeção criticada pelos frankfurtianos -aquela com a marca do "esclarecimento" – representa uma perversão da projeção original, eminentemente ligada à natureza. Sua marca fundamental se revela em uma paranoica ausência de reflexão por parte daqueles que a praticam: indivíduos cujo mundo interno se encontra deveras doente ou empobrecido e que são corrompidos pelo simulacro de um sistema de ordenação do mundo que os leva a utilizar seu aparelho perceptivo-intelectual na perseguição do próprio homem.

Em tal diagnóstico da degeneração da projeção natural (aquela de caráter reflexivo) em prol de uma formação paranoica, a mania de perseguição, já preconizada por Freud (1911/1976a) em casos particulares como aquele do Dr. Schreber, aparece, segundo Horkheimer e Adorno (1947/1985), associada no totalitarismo à produção em série de indivíduos absolutamente identificados com a sociedade em que vivem. Incapazes de refletir as suas relações objetais, estes sujeitos (melhor seria dizer "assujeitados") se tornam incapazes também de refletir sobre si mesmos e de discriminar o que é próprio ou particular daquilo que é outro ou que é geral. Com isto abdicam do controle sobre as suas próprias vidas, condenando-se a uma estúpida repetição do mesmo que se dá pela via de um delírio, da recriação da realidade a partir da projeção descontrolada no mundo exterior de elementos incutidos por um sistema alucinatório que é tomado como norma e que se aproveita precisamente da quebra ou falência reflexiva anteriormente mencionada para promover a destruição de objetos irreais.

Um pouco mais adiante somos apresentados a algumas novas referências à psicanálise em um longo parágrafo que vale a pena ser observado de perto. Ele se inicia com a relação, proposta pelos frankfurtianos, entre a projeção patológica, característica da paranoia, e a noção freudiana de superego. Nestes termos, compreendamos que é para atender a uma exigência deste último que o ego projetaria para o mundo exterior os impulsos -de natureza sexual ou violenta, por exemplo -advindos do id, os quais não poderiam ser tolerados por ameaçarem a própria integridade do sujeitoTorna-se deveras interessante notar aqui a afinidade entre o superego e o sentimento de culpa por aquilo que, embora oriundo do próprio, não pode ser aceito por ele. Afinal, é tal aproximação que nos remete ao lado mortífero deste mesmo superego, o qual, na falsa projeção, associa-se a uma absoluta intolerância para com a alteridade.

O diálogo de Horkheimer e Adorno (1947/1985) com a psicanálise prossegue com uma nova afirmação. Desta feita, de que a paranoia estaria ligada a impulsos de natureza homossexual que, uma vez condenados, seriam então projetados e transformados em agressão. Como aponta Birman (1999), a intuição de Freud (1911/1976a) acerca da relação entre paranoia e homossexualidade pode ser pensada como advinda da forma como ele concebeu a relação do sujeito com a diferença sexual. Aqui a megalomania e o delírio interpretativos característicos do paranoico são tomados como decorrentes da fixação do sujeito no registro do eu ideal ou narcisismo primário. Portanto, sem a possibilidade, estabelecida a partir da passagem pela castração, de um exercício sublimatório de alteridade que caminha lado a lado com a submissão a leis externas (o ideal do eu). É nestes termos que a recusa – e consequente projeção – da homossexualidade imanente, característica da paranoia, aparece como a recusa da diferença e da passividade em termos da submissão à lei exterior que aquela (a diferença) representa.

Contudo, qualquer tentativa de compreensão de tal recusa nos obriga ainda a retornamos a um momento anterior deste processo. Destarte, concordando com Freud (1914/1976b) que o registro do eu seria uma formação secundária (e não originária), a projeção paranoica da homossexualidade alcança o status de negação do possível retorno a uma condição primeva de dispersão corporal (pulsional). Trata-se daquela presente no registro do autoerotismo, do eu real originário anterior à ilusão de completude fornecida pelo narcisismo primário. Ou seja, teríamos aí uma defesa, centrada no registro fálico, contra a fragmentação, contra o poder do outro e, junto com ele, contra o horror da feminilidade e do desamparo enquanto condições por excelência do humano.

Pois bem, uma vez feitas tais considerações, retornemos aos "Elementos do Anti-Semitismo" para logo constatarmos que os encontros dos frankfurtianos com a psicanálise ainda não se encerraram, o que pode ser atestado pela proposição que fazem de que, para além do impulso homossexual há pouco mencionado, a compreensão da paranoia não poderia prescindir da observação de outro movimento, oriundo de um indelével resíduo do ódio dirigido ao pai castrador. No delírio paranoico, tal rancor reprimido retornaria sob a forma de "prazer de castração" (Kastrationlust), expresso, por sua vez, no anseio por uma destruição generalizada cujos objetos de fixação e ataque seriam tão intercambiáveis quanto as figuras paternas da infância.

De qualquer forma, falamos aqui de um conhecimento que não é digno deste nome, já que o paranoico se relaciona com o mundo por meio de um esquema próprio – isto é, não partilhado -, o qual orienta a sua ação de extermínio. É levando isto em conta que os parágrafos seguintes dos Elementos trazem consigo a afirmação de que neste retorno paranoico de um ódio homossexual anteriormente reprimido e dirigido à figura paterna -o qual, impossível de ser reconhecido, é agora projetado como agressão exterior -o psiquismo ultrajaria uma trabalhosa e radical conquista do homem como espécie: a consciência de si.

Nesse sentido, alertam Horkheimer e Adorno (1947/1985), ao desconsiderarmos que o conhecimento da realidade é necessariamente mediado pela imaginação, qualquer um de nós pode vir a tomar uma ilusão doentia como verdade, confundindo o sistema categorizante com a própria coisa. Segundo eles, tal armadilha se torna ainda mais perigosa pelo fato de que certa dose de arbitrariedade seria parte constituinte tanto da projeção "sadia" quanto da paranoica, pois ambas impõem um fim subjetivo que é estranho ao objeto, gerando sobre si uma violência primeira que, então, apenas aguardaria uma confirmação de ordem prática (uma dupla violência, portanto). Em outros termos, assim como Freud (1911/1976a), os frankfurtianos propõem aqui uma questão de grau, e não de gênero, em tal comparação que estabelecem entre a projeção ligada ao conhecimento normal e aquela outra, patológica e próxima à paranoia, considerando em ambas a inevitabilidade de um movimento de reificação do objeto (movimento este flexibilizado no primeiro caso e absolutizado no segundo).

Por outro lado, a possibilidade de escapar de tal poder alucinatório se apresentaria no pensamento consciente como aquele que, ao invés da mera reprodução, metaboliza efetivamente os conceitos que mediam toda percepção projetiva, liberando-os, assim, da sua força apenas intuitiva. Isto pressupõe a maleabilidade de uma autonegação, de uma desconfiança de si mesmo como possível representante da ameaça totalitária estranhamente-familiar a todo discurso propositivo.

Esses são, em termos gerais, os argumentos apresentados pelos frankfurtianos na sexta parte dos "Elementos do Anti-Semitismo", onde, como vimos, o mecanismo psíquico da projeção foi alçado à qualidade de importante aspecto a ser levado em conta para a análise da intolerante mobilização nazi-fascista diante das diferenças. Assim, guardemos conosco estas ideias para com elas retornarmos a Freud. Desta feita, concentrando o nosso foco no texto que, como vimos, mereceu uma deferência particular por parte de Horkheimer e Adorno (1947/1985), o qual atende pelo inusitado título de "O Inquietante".

Acerca de "O Inquietante"

Originalmente publicado por Freud em 1919, na quinta edição da revista Imago, "O Inquietante" tem início com algumas considerações de ordem estética, ainda que seu autor saliente não ser este um terreno muito comum para intervenções psicanalíticas. Para si, contudo, estas se justificariam quando da abordagem de temas um tanto quanto obscuros ou mesmo negligenciados, já que pouco afeitos a aproximações com o que então se convencionava chamar de belo ou grandioso. Dentre tais temas teríamos aquela capacidade da obra de arte – na literatura, por exemplo – de provocar em seus apreciadores sentimentos como o de uma desconfortável inquietude.

Ou seja, trata-se da experiência daquilo que atrai e seduz, mas que, ao mesmo tempo, também choca e/ou aterroriza, provocando repulsa. Portanto, subvertendo a lógica da não-contradição que caracterizou a filosofia aristotélica e, junto consigo, o tipo de reflexão estética predominante no início do século XX, ainda bastante influenciado pelo ideal oitocentista de beleza desenvolvido por teóricos como Alexander Baumgarten, entramos aqui no curioso terreno de uma espécie de fascínio exercido pela liminaridade do sentimento do negativo. Este, por seu turno, relativo a uma fratura, à dissonância de uma intensidade sem palavras, à angústia do que não pode ser descrito, circunscrito e, principalmente, controlado, mas apenas vivenciado.

O texto de Freud (1919/1976c) sugere então duas vias possíveis para um estudo apropriado da acima referida sensação de desassossego despertada pela criação artística. Primeiro, uma pesquisa histórico-comparativa voltada ao desenvolvimento filológico desta palavra no contexto de variadas culturas. Em segundo lugar, a procura da elucidação de uma essência do "sinistro" a partir da reunião de características particulares de coisas, pessoas e vivências com poder suficiente para despertarem em nós esta impressão.

Ambos os caminhos, todavia, revela o autor de antemão, acabarão por nos conduzir a um mesmo resultado: "O inquietante é aquela variedade do aterrorizante que remonta ao há muito conhecido, ao há muito familiar" (Freud, 1919/1976c, p. 220)2. Com efeito, há aqui a aposta de que por detrás do aparentemente incompreensível ou atemorizante se esconderia algo há muito conhecido, ainda que reprimido e, digamos assim, deslocado para uma penumbra não contemplada pela luz do dia.

Ao dar início à primeira das abordagens que propôs para o estudo do adjetivo (un)heimlich, Freud (1919/1976c) nos remete à sua etimologia tanto na língua alemã quanto em outros idiomas, como o latim, o grego, o inglês, o francês e o espanhol. Tal esforço acabaria por revelar um interessante paradoxo: dentre os variados matizes de heimlich, pelo menos um em específico coincidiria com o seu oposto imediato – unheimlich. Eis o que conduz o autor à afirmação de uma constante presença do inominável na sombra do aparentemente conhecido: "Então, heimlich é uma palavra que desenvolveu seu significado seguindo uma ambivalência que, por fim, coincide com seu oposto, unheimlich. De alguma forma, unheimlich é uma variedade de heimlich" (Freud, 1919/1976c, p. 226).

Conforme anunciado anteriormente, após essa incursão pela filologia, Freud (1919/1976c) alcança a segunda parte da sua pesquisa, quando passa em revista algumas impressões e/ou experiências particularmente ligadas ao inquietante. Assim, o primeiro exemplo utilizado por ele para discutir a vivência concreta deste sentimento recai sobre os autômatos ou bonecos de cera como possíveis causadores da dúvida sobre um ser animado estar realmente vivo ou não.

É precisamente tal questionamento que reconduz Freud (1919/1976c) ao universo das obras de arte, visto que adota como exemplo privilegiado da sua análise o conto "O Homem da Areia", de E. T. A Hoffmann (1817/1993), relativamente famoso, entre outras coisas, por uma de suas personagens: Olímpia. Em dado momento da narrativa, esta última, dada a sua graça, beleza e aparente vivacidade, torna-se objeto da paixão de Natanael, um jovem assombrado por fantasmas do passado. O desenrolar da história, porém, revela ao nosso candidato a Romeu o fato de que Olímpia não passa, na verdade, de uma boneca, descoberta esta que provoca no leitor certa estranheza.

Entretanto, Freud (1919/1976c) não se satisfaz com essa associação entre o sentimento unheimlich e a não-familiaridade em termos de incerteza intelectual. É assim que voltará sua atenção a outro personagem que, também presente no conto de Hoffmann (1817/1993), confere-lhe o próprio título: "O Homem da Areia". Para alcançá-lo, contudo, Freud (1919/1976c) retorna ao há pouco referido Natanael para verificar na sua história a ocorrência de um antigo trauma. Trata-se da morte de seu pai, associada, por sua vez, a duas outras figuras: Coppelius, soturno e assustador advogado que costumava fazer visitas noturnas ao falecido e, finalmente, ao Homem da Areia, espécie de bicho-papão que, na cultura alemã, servia para auxiliar as mães a mandarem seus filhos para a cama. Isto sob a ameaça de terem seus olhos feridos com um punhado de areia e/ou roubados para todo o sempre.

A análise freudiana do conto de Hoffmann (1817/1993) aborda essa angustiante possibilidade da perda dos olhos como um terror em estado bruto (logo, sem representação psíquica). Assim, poder-se-ia notar em tal história um contato de Natanael com o limite da palavra, o que o incapacitaria de construir uma imagem concreta do mundo. Em decorrência teríamos ainda presentes no drama do personagem uma confusão de identidades, uma espécie de fim dos limites entre o eu e o outro, com a ficção avançando demasiadamente a ponto de sobrepujar a própria vida.

Como se pode notar, a experiência do inquietante nos remete a uma série de elementos, como o susto e a perda de sentido e realidade, vivências relativas ao desamparo infantil que não se ligam a nenhuma significação. Daí o surgimento da angústia como representante pulsional afetivo indeterminado. Estritamente associada a estes aspectos temos a essência da interpretação freudiana de "O Homem da Areia", a qual privilegia o Complexo de Castração. Nestes termos, tal entidade sobrenatural aparece como uma reedição da figura paterna que, estrangeira por excelência, ao se interpor em meio à ilusão de completude que inicialmente caracterizaria a relação mãe-bebê, imprimiria no psiquismo infantil a ambivalência de sentimentos como amor, ódio e temor.

Após se ocupar de "O Homem da Areia", Freud (1919/1976c) busca em seguida testar a plausibilidade da associação entre o sentimento do sinistro e um fator de ordem infantil pela possibilidade ou não de aplicá-la a outros contextos. Assim, remete-nos ao fantasmático fenômeno do duplo (Doppelgänger) como confusão de identidades pautada pela mútua identificação entre diferentes sujeitos, confusão esta aliada à duplicação, divisão e intercâmbio do eu.

Tal mote da repetição do igual é então privilegiado para a análise da experiência do inquietante. Desta maneira, somos remetidos a situações que, embora vinculadas ao cotidiano, acabariam por extrapolar este contexto, tornando-se inusitadas por se aproximarem de estados oníricos nos quais se estabeleceria certa confusão entre realidade psíquica e realidade material. A título de ilustração, Freud (1919/1976c) cita a coincidência de, em um curto espaço de tempo, depararmo-nos com situações ligadas a um mesmo número ou nome de pessoa, algo que, sobretudo para os indivíduos mais supersticiosos, certamente poderia adquirir um secreto ar de sina ou maldição.

Aqui, embora reafirme a vinculação do inquietante retorno do igual a elementos da psicologia infantil, Freud (1919/1976c) se isenta de comentários mais aprofundados sobre o assunto, sugerindo aos eventuais leitores interessados a leitura de "Além do Princípio de Prazer" (Freud, 1920/1996d), escrito na mesma época. De qualquer forma, sustenta algo de suma importância: que a vida psíquica é essencialmente pulsional. Ou seja, dominada por um excesso de sentido intimamente vinculado, por sua vez, a um impulso de repetição impassível de simbolização pela via da linguagem e que, portanto, teimaria em reaparecer sob a forma do sinistro.

Em seguida, ao se voltar mais uma vez à coleta de casos que comprovassem a hipótese anteriormente mencionada de que Das Unheimliche diria respeito a um tipo de medo ou angústia que aludiria ao anteriormente familiar, Freud (1919/1976c) nos convida para um passeio por terrenos aparentemente bastante distintos. Dentre eles aparecem, por exemplo, alguns versos de Schiller, a neurose obsessiva e o popular "mau-olhado", sendo extraído de si um único elemento em comum: a chamada onipotência de pensamento, associada tanto a uma supervalorização narcísica do sujeito quanto dos seus processos mentais.

Em uma palavra, temos aí o caráter unhemlich provocado por qualquer sensação de indistinção entre imaginação e realidade. Portanto, assim como no conto de Hoffmann (1817/1993), trata-se novamente de uma (con)fusão entre o eu e o mundo para além do campo da linguagem representacional, quando: "Aparece diante de nós como real algo que havíamos tomado por fantástico, quando um símbolo assume a plena operação e significado do simbolizado..." (Freud, 1919/1976c, p. 244).

De modo geral, esses são os argumentos utilizados por Freud (1919/1976c) em defesa da aplicabilidade da sua hipótese, a qual, como vimos ao longo desta exposição, associa a sensação unheimlich ao retorno de um conteúdo familiar anteriormente reprimido. Neste sentido, longe de se localizar em um exterior, o estrangeiro inaugurado por si desconcerta por repousar naquilo que temos de mais íntimo – ou melhor, de estranhamente familiar: o próprio inconsciente.

Diante disso, passemos agora à última etapa do nosso trabalho, voltada a algumas aproximações entre as experiências de alteridade debatidas por Freud (1919/1976c) e Horkheimer e Adorno (1947/1985). A partir delas tentaremos extrair possíveis lições em termos do estabelecimento de uma prática da diferença mais comprometida com a tolerância e, junto consigo, com a corajosa noção de que o movimento e a vivacidade do pensamento não podem prescindir do novo, de uma desafiadora dissonância que, mais do que estrangeira, pode adquirir contornos estranhamente familiares.

Considerações finais

Se retomarmos um pouco do nosso percurso, veremos que um primeiro ponto a ser destacado em termos de aproximações entre os trabalhos de Horkheimer e Adorno (1947/1985) e Freud (1919/1976c) diz respeito ao trato com o outro (incluindo-se aí, é claro, o outro de si mesmo). Mais precisamente ao estabelecimento de uma importante dialética entre familiaridade e estranheza, ligada, por seu turno, ao retorno de impulsos – de natureza sexual ou agressiva, por exemplo -que, impassíveis de reconhecimento no seio do próprio (leia-se também: da sociedade "esclarecida"), são costumeiramente projetados em figuras como aquela do judeu.

Levando em conta tal perspectiva, podemos entender como a reatualização fascista deste movimento (expressa na "falsa mimese") se torna curiosa. Afinal, acaba por unir o que se pretende diferente precisamente pela via da sua negação -por exemplo, na imitação burlesca do outro -e, ao fazê-lo, revela em si mesma a ânsia de identificação com uma natureza que, ainda que projetada, insiste em retornar. Em termos psicanalíticos, temos aí um claro exemplo da falibilidade da repressão, da permeabilidade entre os registros da consciência e do inconsciente e, mais ainda, um argumento bastante favorável à aposta de que a razão instrumental é apenas um efeito de superfície construído sobre um indômito oceano pulsional.

Outro interessante ponto de aproximação entre os trabalhos analisados aqui se refere à perda de sentido ou realidade, que aparece definida por Horkheimer e Adorno (1947/1985) como um elemento psíquico do antissemitismo fascista. Neste sentido, lembremo-nos do tipo de unidade prometida pelo sistema totalitário, a qual, absorvendo elementos de ordem regressiva do tipo filo e ontogenético, conduziria o "civilizado" a um retorno, mesmo que efêmero, à mimese arcaica com uma natureza severamente reprimida e, ao mesmo tempo, desejada.

Pois bem, é essa mesma sensação de (con)fusão entre o eu e o outro, entre o particular e o mais geral, que é tomada por Freud (1919/1976c) como exemplo privilegiado da vivência unheimlich. Veículo de angústia e/ou horror, tal situação poderia ser pensada como uma espécie de retorno ao chamado narcisismo primário, marcado pela ausência de castração ou, se preferirmos, por latências psicóticas que também constituem o funcionamento psíquico considerado normal. De qualquer forma, importa percebermos que tanto a intolerante paranoia fascista quanto o sentimento inquietante aparecem ligados a uma delirante supervalorização narcísica da realidade psíquica em detrimento da realidade material – aqui pensada na qualidade de veículo de alteridade.

Complementando esse quadro de aproximações entre os elementos psíquicos do antissemitismo propostos por Horkheimer e Adorno (1947/1985) e a vivência da inquietante-estranheza exposta por Freud (1919/1976c), temos em ambos os casos uma compulsiva repetição do igual que, como vimos, associa-se na análise freudiana ao retorno de um reprimido impassível de reconhecimento ou elaboração que, por isso mesmo, frequentemente adquire traços doentios ou mortíferos. Já de acordo com os frankfurtianos, tal redução do múltiplo ao unitário se expressaria no indivíduo reificado, incapaz de discernir as ideias e propensões que lhe são próprias daquelas outras que lhe são incutidas e que, assim, projeta no real compulsiva e repetidamente nada mais que fantasmas, conferindo ao outro, ao diferente – objeto em potencial de uma perseguição igualmente mortífera -qualidades ao mesmo tempo virtuais e imutáveis. Em uma palavra, trata-se da falência reflexiva que, conduzindo a uma cega repetição do mesmo, acaba por atender aos interesses tanto da indústria cultural quanto da sociedade de mercado.

Para concluirmos, resta relembrar que, para Horkheimer e Adorno (1947/1985), o antídoto diante desta tendência mercadológica ao mesmo tempo delirante, fascista e unificadora residiria no exercício do pensamento como experiência da alteridade que não pode prescindir de uma possível negação de si mesma. Já em Freud (1919/1976c) tal movimento é vislumbrado a partir da castração, elemento fundamental da análise da vivência do sinistro que, embora doloroso (ou precisamente por isto), torna-se fundamental à medida que favorece a substituição da confusão entre o eu e o mundo, característica do narcisismo primário e também, vale acrescentar, dos sistemas totalitários, pelo início de uma subjetividade mais genuína: aquela marcada pelo reconhecimento das potencialidades – mas também dos limites -do próprio.

Dito de uma maneira distinta, trata-se de compreendermos que se a castração (e a angústia dela decorrente) causa incômodo por se associar a limites, pelo menos os referidos limites fornecem contornos, lugares de um possível amparo do sujeito na sua relação com o mundo. Já a lógica "esclarecida" que sustentou o fascismo e continua a sustentar o que hoje chamamos de civilização – ou seja, a sociedade globalizada, regida pelas leis de mercado e pelo monopólio dos grandes conglomerados econômicos -, embora fascinante na promessa que faz de um gozo pleno, coloca exatamente aí a sua armadilha, uma vez que esta sedutora aura de completude pode se mostrar incapaz de fornecer lugar ao particular, aprisionando-o ou excluindo-o sob o olhar vigilante de sempre renovados Big Brothers.

Tal perspectiva revela as potencialidades dos tipos de ética e de estética privilegiadas por Freud (1919/1976c), as mesmas que, alguns anos mais tarde, seriam reapropriadas por Horkheimer e Adorno (1947/1985). Elas operam nos terrenos da sombra e da dissonância, sendo pautadas por uma dialética que valoriza a negatividade em detrimento de uma filosofia positiva cujas luzes conduziram à mais absoluta cegueira. Assim, remetem-nos às fraturas do contato do homem com o que lhe parece real, trazendo consigo o possível resgate de uma tragicidade que resiste em se deixar apropriar pelos anseios de domínio e comodidade representativa tão caros à razão instrumental e, com ela, aos discursos de intolerância para com as diferenças.

Notas

2 As citações literais de Freud (1919/1976c) aqui utilizadas foram traduzidas livremente a partir da edição castelhana das suas obras completas, produzida por J. Etcheverry e publicada na Argentina pela editora Amorrortu.

Agradecimento

O presente trabalho contou com o apoio do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica – Ação Novas Fronteiras da CAPES (Edital 21/2009) e foi produzido ao longo de um estágio de pós-doutorado realizado junto ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Submissão em: 03/11/2011

Revisão em: 21/10/2012

Aceite em: 16/11/2012

Mauricio Rodrigues de Souza é Psicólogo, doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo e professor adjunto na Faculdade de Psicologia e nas Pós-Graduações em Psicologia e Filosofia da Universidade Federal do Pará. Endereço: Faculdade de Psicologia da UFPA-Rua Augusto Correa, nº 01 (Núcleo Universitário), Bairro do Guamá, Belém/PA, Brasil. CEP 66075-900. E-mail: mrsouza@ufpa.br

Joel Birman é Psicanalista, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pesquisador Associado do Laboratório "Psicanálise e Medicina" da Universidade Paris VII. E-mail: joelbirman@hotmail.com

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  • 1
    Torna-se obrigatória aqui uma referência ao "caso Schreber", célebre estudo da paranoia feito por Freud (1911/1976a), o qual, ainda que nas entrelinhas, aparece como interlocutor privilegiado da sexta etapa do texto de Horkheimer e Adorno (1947/1985). Para uma análise mais específica de algumas das suas características, recomenda-se a leitura de Niederland (1959/1979), onde, além de uma detalhada reconstituição histórica da infância de Schreber -e, importante, do nada desprezível papel exercido por seu "simbiótico" pai ao longo desta –, é enfatizado um aspecto deveras interessante para a compreensão da psicopatologia que o acometeu. Trata-se do
    Zeitgeist, do espírito da época em questão. Nestes termos, Niederland (1959/1979), precedendo em quase quarenta anos o hoje conhecido livro de Santner (1996), propõe uma relação entre as rígidas vigilância e disciplina impostas ao pequeno Schreber (as quais, vale lembrar, resultaram em um ulterior processo de despersonalização com graves distorções da imagem corporal e, concomitantemente, do teste de realidade e das relações objetais) e algumas das ideias que circulavam na sociedade alemã da segunda metade do século XIX, as quais, alguns anos mais tarde, contribuiriam para conduzi-la à intolerante paranoia nazi-fascista.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Ago 2014
    • Data do Fascículo
      Ago 2014

    Histórico

    • Recebido
      03 Nov 2011
    • Aceito
      16 Nov 2012
    • Revisado
      21 Out 2012
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