Acessibilidade / Reportar erro

Os “dramas” de J. L. Moreno e a filosofia da diferença

Los “dramas” de J. L. Moreno y la filosofía de la diferencia

The J. L. Moreno's “dramas” and the philosophy of difference

Resumos

O objetivo deste ensaio teórico é avançar no deslocamento dos "dramas" de Jacob Levy Moreno de uma política representacional para uma política da diferença. Metodologicamente, desenvolve uma análise conceitual e uma crítica institucional, a partir das filosofias da diferença de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Questionam-se os projetos e a orientação das práticas pelos conceitos de psicoterapia, existência, identidade e liberdade. A gênese social dos dispositivos morenianos é abordada no sentido de elucidar a formação dos impasses relativos a tais projetos e práticas. Conclui-se que as potências do falso funcionam como eixo problemático com vistas a promover o deslocamento objetivado.

Jacob Levy Moreno (1889-1974); filosofia da diferença; análise institucional


El objetivo de este ensayo teórico es avanzar en el desplazamiento de los "dramas" de Jacob Levy Moreno desde una política de representación para una política de la diferencia. Metodológicamente, desarrolla un análisis conceptual y una crítica institucional, a partir de las filosofías de la diferencia de Michel Foucault, Gilles Deleuze y Félix Guattari. Cuestiona los proyectos y la orientación práctica de los conceptos de psicoterapia, existencia, identidad y libertad. La génesis social de los dispositivos morenianos se discute con el fin de elucidar la formación de puntos muertos en estos proyectos y prácticas. De ello se desprende que las potencias de lo falso funcionan como eje problemático para promover el desplazamiento objetivado.

Jacob Levy Moreno (1889-1974); filosofía de la diferencia; análisis institucional


The aim of this paper is to advance the theoretical displacement of Jacob Levy Moreno "dramas" from a representational politics to a politics of difference. Methodologically, it develops a conceptual analysis and an institutional critique, from the philosophies of the difference of Michel Foucault, Gilles Deleuze and Félix Guattari. The projects and the practical orientation by the concepts of psychotherapy, existence, identity and freedom are questioned. The social genesis of morenian devices is approached in order to elucidate the formation of impasses on these projects and practices. It is concluded that the powers of the false function as a problematic axis to promote the displacement objectified.

Jacob Levy Moreno (1889-1974); philosophy of difference; institutional analysis


ARTIGOS

Os “ dramas ” de J. L. Moreno e a filosofia da diferença

Los “dramas” de J. L. Moreno y la filosofía de la diferencia

The J. L. Moreno's “dramas” and the philosophy of difference

Jésio ZamboniI; Sonia Pinto de OliveiraI; Fabiana Davel CanalI; Maria Elizabeth Barros de BarrosI; Poliana dos Santos CordeiroII

IUniversidade Federal do Espírito Santo, Vitória/ES, Brasil

IIUniversidade Federal Fluminense, Niterói/RJ, Brasil

RESUMO

O objetivo deste ensaio teórico é avançar no deslocamento dos "dramas" de Jacob Levy Moreno de uma política representacional para uma política da diferença. Metodologicamente, desenvolve uma análise conceitual e uma crítica institucional, a partir das filosofias da diferença de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Questionam-se os projetos e a orientação das práticas pelos conceitos de psicoterapia, existência, identidade e liberdade. A gênese social dos dispositivos morenianos é abordada no sentido de elucidar a formação dos impasses relativos a tais projetos e práticas. Conclui-se que as potências do falso funcionam como eixo problemático com vistas a promover o deslocamento objetivado.

Palavras-chave: Jacob Levy Moreno (1889-1974); filosofia da diferença; análise institucional.

RESUMEN

El objetivo de este ensayo teórico es avanzar en el desplazamiento de los "dramas" de Jacob Levy Moreno desde una política de representación para una política de la diferencia. Metodológicamente, desarrolla un análisis conceptual y una crítica institucional, a partir de las filosofías de la diferencia de Michel Foucault, Gilles Deleuze y Félix Guattari. Cuestiona los proyectos y la orientación práctica de los conceptos de psicoterapia, existencia, identidad y libertad. La génesis social de los dispositivos morenianos se discute con el fin de elucidar la formación de puntos muertos en estos proyectos y prácticas. De ello se desprende que las potencias de lo falso funcionan como eje problemático para promover el desplazamiento objetivado.

Palabras-clave: Jacob Levy Moreno (1889-1974); filosofía de la diferencia; análisis institucional.

ABSTRACT

The aim of this paper is to advance the theoretical displacement of Jacob Levy Moreno "dramas" from a representational politics to a politics of difference. Methodologically, it develops a conceptual analysis and an institutional critique, from the philosophies of the difference of Michel Foucault, Gilles Deleuze and Félix Guattari. The projects and the practical orientation by the concepts of psychotherapy, existence, identity and freedom are questioned. The social genesis of morenian devices is approached in order to elucidate the formation of impasses on these projects and practices. It is concluded that the powers of the false function as a problematic axis to promote the displacement objectified.

Keywords: Jacob Levy Moreno (1889-1974); philosophy of difference; institutional analysis.

Disposições para conversar

Desejamos que este texto chegue ao leitor como uma conversa entre os dispositivos dramáticos de Jacob Levy Moreno e as filosofias da diferença de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Trata-se de uma conversa que afirma uma política da diferença em luta com a perspectiva representacional do mundo, e, para tanto, convida como intercessor os "dramas" de Moreno. O modo de pensar representacional parte do princípio de que há verdade absoluta para além dos acidentes e variações da vida. Neste ensaio teórico, buscaremos acompanhar os trechos em que o percurso da obra moreniana se associa com a política representacional, a fim de ultrapassá-los. Desse modo, poderemos retomar as forças instituintes dos "dramas" em questão.

Por filosofia da diferença queremos indicar as produções conceituais que se encaminham no sentido de romper com uma política cognitiva transcendente (Deleuze, 2006). A referida política compreende o conhecimento como acesso a um plano ideal, perfeito, imóvel, imutável, ou seja, verdadeiro de uma vez por todas. Por sua vez, a política cognitiva da diferença – ao experimentar romper com esta busca da verdade sempre a mesma, sempre igual a si mesma – postula a diferença como princípio. Nesse aspecto, a filosofia da diferença supõe o primado da invenção, divergindo do pensamento representacional, para o qual a imutabilidade consiste em fundamento.

Pelo fascínio com a possibilidade de criar algo novo, os "dramas" de Moreno – a espontaneidade e a criatividade serão dimensões cruciais para o desenvolvimento de tais dispositivos dramáticos – afirmam a potência de se articularem numa filosofia da diferença. Por distintos trabalhos – que, por vezes, entrelaçam-se, afastam-se e aproximam-se –, Guattari, Foucault e Deleuze constroem esta filosofia. Por isto, eles funcionarão aqui para nós como vetores a forçar os dispositivos dramáticos de Moreno a se deslocarem em direção aos seus limites, onde suas potências instituintes podem emergir pelas próprias bordas inconclusas, que podem se fazer passagens entre distintas máquinas de intervenção coletiva.

Não se tratam de quaisquer intercessores os "dramas" de Moreno, mas uns que nos encantam: talvez pelo nosso amor ao teatro (que belo dispositivo!); talvez também pela força que Moreno traz em seus escritos; ou, ainda, pela metodologia e pelas técnicas que constrói e que em muito tem nos ajudado em nossa lida como trabalhadores sociais ligados à psicologia.

Sempre com a preocupação de não tomar os conjuntos técnico-conceituais como modelos, engajamos uma abordagem que promova o desmonte das estruturações teóricas, forjando passagens entre esses campos de intervenção coletiva. Operaremos aqui uma análise institucional dos "dramas" de Moreno roubando-os da gaveta filosófica que se chama existencialismo, onde eles podem ser reconhecidos, classificados e guardados a salvo de transformações decorrentes dos usos situados que deles fazemos. Cabe destacar que "roubar é o contrário de plagiar, de copiar, de imitar ou fazer como" (Deleuze & Parnet, 1977/1998, p. 13), é fazer uma colagem – dadaísta –, é produzir um duplo que, segundo Machado (1990, p. 16), "significa desembaraçar, desemaranhar os conceitos de seus sistemas de origem para criar um novo sistema, um sistema aberto".

Este sistema, em que queremos situar os dispositivos dramáticos de Moreno, não pretende legitimá-los ou compreendê-los, excluindo outras apropriações possíveis. O que nos interessa é potencializar as variações que os instrumentos técnicos e conceituais sofrem nas intervenções situadas, arranjando-os de maneira que se abram a tais transformações. Devemos, por essa via, perguntar-nos sempre sobre a institucionalização da obra moreniana, assim como a da filosofia da diferença, que, como todas as demais, correm o risco de naturalizar-se, perdendo o mote dos movimentos do desejo, sempre sociais, em que embarcaram pelas suas construções.

Nossa proposta é desenvolver uma conversação entre esses distintos arranjos teóricos, promovendo um deslocamento da produção moreniana relativa à intercessão das práticas dramáticas com as práticas psicológicas, por uma perspectiva da filosofia da diferença. Sendo assim, não se trata de lidar com os terrenos de saber como definitivamente cercados e estabelecidos, como escolas-latifúndios cuja relação dominante seria a de transmissão de um conhecimento funcionando como propriedade privada. É, antes, caso de atravessamentos pela criação de aberturas e comunicações entre tais campos, de acoplamentos de máquinas de intervenção coletiva para hibridizá-las, desarranjando-as para produzir outra coisa em função dos problemas concretos nos quais intervêm. Isto implica uma série de críticas referentes aos conceitos desenvolvidos no conjunto de "dramas" de Moreno (psicodrama, sociodrama, etc.), o que nos conduz, no limite, a uma transformação radical de tal conjunto, bem como das filosofias da diferença que são afetadas por este encontro.

Não pretendemos encerrar nem começar tal empreitada, mas abrir algumas sendas, indicar possibilidades. Diversos outros encaminhamentos para a conversação entre os "dramas" de Moreno e as filosofias da diferença já se fazem (Baremblitt, s.d.; Naffah Neto, 1989; Pavlovsky & Kesselman, 1991). No presente artigo, sem poder articular nossa contribuição com estas outras, visamos contribuir forjando outras picadas nestes matagais teórico-técnicos. E, caso nos dispuséssemos àquela tarefa, sem dúvida a pretensão de unificar os caminhos vários seria de pronto por nós conjurada, pois o que nos interessa é a diferenciação dos modos de conversar, a bifurcação das vias em função das situações problemáticas.

Empreenderemos aqui, por esta conversação, uma crítica dos conceitos – fundamentais ao desenvolvimento dos "dramas" de Moreno – de cura, existência, liberdade e identidade, para, em seguida e em meio a isto, discutir a articulação da psicoterapia com o dispositivo teatral. Esta análise institucional dos dispositivos dramáticos morenianos tecerá como fio condutor as potências do falso perturbando a pretensão da verdade última.

Projetar

Ao iniciarmos, propomo-nos a recusa à busca por uma universalidade metodológica e de praticabilidade perseguida por Moreno (1946/2002, p. 17). Entendemos esta busca como traiçoeira, pois nela se propõe um enrijecimento da própria experiência das ações, quando a preocupação com o método e os fins coloca as falhas, os imprevistos e as diferenciações, em posição negativa, e leva-nos a "tapar os ouvidos" às implicações dos encontros, que perturbam sempre nossas posturas e procedimentos bem definidos. Apesar da multiplicidade de experimentações conceituais e técnicas, Moreno busca, em sua trajetória de trabalho, sistematizar seu pensamento, produzir coerência em meio aos desarranjos pelos quais se forjam seus aparelhos dramáticos. O que nos parece acontecer, então, é um endurecimento que retém e estanca os fluxos de criação. As forças dos processos coletivos, que se dão em diversos graus de intensidade e de contextos em Moreno, tornam-se pouco sensíveis e expressivas quando a máquina de fazer drama dispõe-se a evitar os desalinhos decorrentes dos contratempos. Seu corpo teórico perde potência de vibrar em diversas práticas ao enrijecer-se institucionalmente, ao fixar-se no ideal de universalidade científica.

Saidon (1983, citado por Barros, 2007) ressalta três períodos no trabalho moreniano: o primeiro, em Viena, é marcado pelos seus escritos poéticos, pelo teatro e pela entrada no terreno psicoterapêutico; o segundo, nos Estados Unidos da América (EUA), caracteriza-se pelo interesse nas relações interpessoais e pela criação da sociometria; o terceiro é o da institucionalização do projeto moreniano no cenário das práticas psicoterapêuticas – criação de associações, escolas, regulação ética, em escala mundial. Moreno, formulando o psicodrama a partir do teatro da espontaneidade e de suas experiências na juventude com movimentos existencialistas, dentre outros, desenvolve, a seguir, o sociodrama e outros modos da ação dramática. Integra-os, mais tarde, a projetos político-institucionais baseados no paradigma terapêutico – a sociometria e a socionomia se destacam dentre os mencionados projetos –, produzindo campos de coerência para a obra moreniana.

Nós, entretanto, entendemos que tais divisões e integrações, percebidas historicamente, não expõem as problemáticas dos "dramas" de Moreno em seus processos de criação. Optamos, então, por seguir atentos os movimentos assumidos em sua trajetória, antes que por uma abordagem epistemológica de sua obra. A partir de Figueiredo (1995), que propõe transitarmos "da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos", queremos empreender uma abordagem ética da obra moreniana, em atenção às forças constituintes dos territórios de trabalho em que atua, pela articulação do teatro com a psicoterapia, acompanhando as várias modulações que sofrem por conta do jogo de forças coletivas. Isto desloca para segundo plano, um plano do que é recognoscível, as demarcações relativamente estáveis pelas quais se pode dividir o trabalho de Moreno. Ater-nos-emos aos conflitos constituintes dos desvios pelos quais partem alguns caminhos dos "dramas" de Moreno. E, para tanto, privilegiaremos, inicialmente, a crítica de alguns conceitos utilizados por Moreno a partir da filosofia da diferença.

Curar

Moreno vincula-se fundamentalmente às ideias de psicoterapia, cura e patologia psíquicas herdadas de sua formação psiquiátrica. A noção de cura se dá no campo psicológico a partir da suposta descoberta da causalidade das doenças psíquicas, da desestabilização (Teixeira, 1996). A realidade é restritiva e o sujeito perde seu equilíbrio por não conseguir criar papéis adequados ao mundo social, diz-nos Moreno (1946/2002). Daí surgiria a necessidade de catarse: a cura por meio da qual se daria a integração dos papéis num eu. A estratégia para a cura é a dramatização dos papéis. Esta dramatização permitiria ao indivíduo exteriorizar seus conflitos internos, dando lugar à representação de novos papéis originais e adaptados aos problemas que o confrontam. A liberdade do indivíduo se faria com o exercício da espontaneidade (fator E), em busca de originalidade, visando à adaptação no mundo.

Tal procedimento se fará bloqueador à proposta deleuzeana (Deleuze, 1968/2006, 1969/2007b) de afirmação dos simulacros, formas sem modelos prévios, à medida que se assumir a noção de cura psíquica em rechaço à desestabilização. Ao sinonimizar doença e desestabilização, resvala-se em afirmar a realidade como transcendente à vida em suas variações acidentais na história. Ao nos prendermos às categorias patológicas, estaríamos ainda no campo do negativo, da falta. Não é neste campo que nos propomos passear. Quanto ao processo dramático de cura, se já sabemos a causa, podemos logo saber a maneira de curar – a psicoterapia – e seu desfecho. A peça teatral – sessão psicodramática – está completa, portanto. Todo o processo inventivo se vê aí diante de um impasse: as possibilidades encaixam-se no molde pronto e acabado da psicoterapia que as fará vir à tona.

No entanto, cabe enfatizar que Moreno simultaneamente desponta para uma nova concepção de saúde ao colocar tal noção em questão por meio dos seus dramas. A partir dos encontros nestes dispositivos, a saúde figura como criação e processo. Logo, a contradição que apontamos é, fundamentalmente, um paradoxo. A enfermidade não seria, então, processo, mas parada do processo e o criador, não um doente, mas aquele capaz de curar a si mesmo e ao mundo (Birman, 2000). Mas tudo isso se revela ainda muito nebuloso em Moreno. Convoca-se aqui a atenção à postura que se adota ao utilizar os dispositivos, pois é nas situações concretas de experimentação que o impasse poderá ser desmontado. Esta postura irá facilitar, ou atrapalhar, os movimentos de transformação das estratégias psicodramáticas em função dos desafios contemporâneos, assim como irá facilitar, ou atrapalhar, os movimentos de produção de subjetividade por conta da afirmação de modos de vida singulares e potentes, capazes de romper com as modelizações subjetivas hegemônicas atreladas ao capital.

Existir

Subjetividade, neste sentido, é fabricação social e não uma propriedade privada do indivíduo referida a um eu, a um sujeito separável do mundo. Em circulação nos espaços sociais, a subjetividade é assumida e vivida por nós, cada um, particularmente. Os processos de subjetivação, ou processos de singularização das maneiras de existir, são entendidos como os modos pelos quais os indivíduos ou grupos sociais forjam-se como sujeitos coletivos.

Ao atentarmos para o conceito de catarse, tão central ao psicodrama, percebemos que essa noção é compreendida como a solução de conflitos psíquicos, o "livrar-se da inquietação" (Moreno, 1946/2002, p. 17). A inquietação é vista com uma marca negativa. E a integração do eu é a outra face da moeda, numa busca por estabilização. Vemos aí que outra grande marca do pensamento de Moreno é uma filosofia existencialista. Há, em sua forma de pensar, um objetivo de realização do humano num ponto ideal da existência, no momento em que se externaliza e se integra o eu interior numa existência unificada – individualizada e totalizada.

Não nos parece possível, todavia, encontrar um sentido verdadeiro para a vida, fundamental de uma vez por todas, que esteja fora dela própria em toda a sua imanência, em seu criar e destruir cotidiano, em seus sentidos plurais e produtores de diferenças, nos constantes fluxos e intermitências que a atravessam num movimento intempestivo de criação desses sentidos. Sendo assim, pensar o sentido da vida como integração do eu evoca uma dimensão transcendente, uma situação ideal em que se pode viver plenamente. Ao trabalhar com a noção de sentido, seria preciso abandonar qualquer referência que implique este transcendente existencial, um além do plano de produção da realidade, que tende a nos fazer desembocar numa essência afastada da vida. Por aí, Deleuze (1969/2007b, p. 75) afirma que o sentido

não é algo a ser descoberto, restaurado ou reempregado, mas algo a produzir por meio de novas maquinações. Não pertence a nenhuma altura, não está em nenhuma profundidade, mas é efeito de superfície, inseparável da superfície como de uma dimensão própria.

Sustentamos uma noção de sentido que é sempre plural, assumindo o primado da experimentação no campo da vida concreta, de seus acontecimentos, ou seja, do intempestivo. E por intempestivo entende-se a emergência de uma diferença desestabilizadora das formas vigentes, um acontecimento o qual nos separa do que somos, dos territórios existenciais que habitamos, e coloca uma exigência de criação. Foucault (1971/2011, p. 57) nos aponta que

o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem qualidade, nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos. Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva, que é efeito.

Acontecimento, por conseguinte, é aquilo que a partir das relações de força irrompe desmanchando, desestabilizando territórios existenciais e constituindo outros modos de vida, ao abri-los a novas entradas para outros campos de possibilidades. A noção de território em Guattari (Deleuze & Guattari, 1980/1995; Guattari & Rolnik, 1986/2000) trabalha o conceito de existência como produção, e não como transcendente ao mundo. Os territórios existenciais estão sempre abertos; apesar de, por vezes, linhas duras reterritorializantes lhes demarcarem terrenos como propriedades privadas de um sujeito. A noção de território existencial em Guattari, portanto, sempre terá como força fundamental o movimento de desterritorialização, pelo qual certo modo de existência pode desmanchar-se, abrindo-se para o processo de criação de outras vias de existência.

Há no conceito de território, em filosofia da diferença, uma crítica radical às abordagens existencialistas do mundo no que forjam para a existência um transcendente absoluto que seria sua origem ou fim, fundamento ou sentido, totalizante e unívoco. Trata-se de tomar a existência como um território, em vez de encarar a imanência do mundo como uma força de prisão da existência. A própria essência do existir se faz como construção. A subjetividade é uma paisagem que se habita, em vez de uma interioridade fechada sobre si mesma como uma identidade (Deleuze, 1993/1997, pp. 68-69).

Liberdade e identidade

Abandonamos a perspectiva de trabalhar com um mundo privado do sujeito, em busca da sua identidade, do seu eu essencial, pela tentativa de provocar o sujeito a ser "ele mesmo" a partir do drama. Segundo Guattari (Guattari & Rolnik, 1986/2000), a identidade

é um conceito de referenciação, de circunscrição da realidade a quadros de referência, quadros esses que podem ser imaginários.... a identidade é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência identificável [grifo nosso].

Propomo-nos, ao revés, trabalhar com as singularidades afirmando-as em seu devir, em sua diferença pura; uma diferenciação por si própria, que conjura a possibilidade de um mesmo de si, ou seja, sem fixação a modelos.

Ao rompermos com a postura identitária em relação ao eu, rompemos também com a ideia de liberdade a ela vinculada. A liberdade, em Moreno, é um dos princípios e objetivos da prática psicodramática, pedra de toque que sustenta seu empreendimento e que termina por se vincular à noção de cura: é um conceito que fundamenta os dispositivos criados por ele, seus "dramas". O espaço cênico torna-se local de experimentação da liberdade, no exercício de papéis criativos. No palco, o indivíduo fica livre em relação às tensões insuportáveis do mundo e pode expressar-se. Ali tem liberdade para experimentar e criar papéis que permitam ao sujeito resolver os problemas que o confrontam "lá fora" no mundo e, depois, poder retornar a este mundo. Tal retorno, por suas consequências, é denominado adaptação, adequação.

Com Michel Foucault (1971/2011), entendemos a liberdade como a capacidade de questionarmos nossos modos de existência e criarmos outros registros de referenciação. Ou seja, é a problematização desses modos, a problematização das práticas (sempre sociais) que fazem alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e se constituir como objeto para o pensamento sob a forma da reflexão moral, do conhecimento científico, da análise política, e assim por diante.

Ser livre, portanto, é ser capaz de questionar a política, de questionar a maneira como o poder é exercido, contestando suas reivindicações de dominação. Esse questionamento implica nosso ethos, nossas maneiras de ser ou de tornarmos quem somos. A liberdade é, pois, uma questão ética. (Rajchman, 1993, p. 130, grifo nosso)

A definição foucaultiana de liberdade está crucialmente ligada aos modos de existir imanentes, implicados diretamente com os jogos de força construtores da realidade. Logo, aqui já se impõe uma ruptura no conceito de liberdade desenvolvido por Moreno, pois seria o caso, ao invés de pretender a ausência de relações de força, tomar a luta como dimensão inextrincável da existência. Ao afirmarmos nossas formas de viver, construímos também o mundo em que vivemos como arranjos provisórios em tensionamentos constantes. A resistência aos apelos de dominação – exercício da liberdade para Foucault – acontece no plano imanente das forças, nos jogos de poder, no qual todos estão implicados.

Resistir é questionar o verdadeiro, buscando desmontá-lo em sua constituição como produtor do campo social. A verdade institui-se numa determinada forma que as relações de poder assumiram. Desmontá-la significa criar outras formas, outras relações de poder. Assim, não se trata de escapar das relações de poder de uma vez por todas, mas de escapar entre elas, por elas, afirmando passagens. O princípio ético assumido por Foucault a partir desta compreensão é o da liberdade: o poder é cerceamento e limite ao fluxo da vida, mas, paradoxalmente, é o que possibilita à vida ganhar forma e meio para existir. Cabe-nos questionar incessantemente em que formas e em que registro de existência estamos funcionando, em vez de buscarmos num transcendente à vida o meio ideal de solução dos conflitos. Ser livre é estar neste exercício.

Guattari (Guattari & Rolnik, 1986/2000), por sua vez, sugere que, "ao invés de pretendermos a liberdade (noção indissoluvelmente ligada à consciência), temos que retomar o espaço da farsa, produzindo, inventando subjetividades delirantes que, num embate com a subjetividade capitalística, a façam desmoronar" (p. 30). A sociedade capitalista produziu e continua atualizando processos de subjetivação atrelados ao capital, cuja produção "diz respeito aos comportamentos, à sensibilidade, à percepção, à memória, às relações sociais, às relações sexuais, aos fantasmas imaginários" (p. 28). A economia subjetiva capitalista produz indivíduos, o individual. Resultado de uma produção de massa, os indivíduos são normalizados, normatizados, serializados. A identidade funciona assim como reterritorialização em meio aos fluxos dispersos dos modos de vida.

Guattari propõe, dessa forma, o abandono do conceito de liberdade, ao fazer a análise de sua produção como um axioma da subjetividade capitalística. Considerando o universo de sentidos implicados neste conceito, constituídos na história fortemente atrelados às ideias de livre arbítrio e iniciativa, podemos, com Guattari, abandonar o conceito. Ou experimentá-lo em outros sentidos, como fez Foucault.

Com Foucault (1984/1994), afastando-nos da visão fenomenológica e antropológica, compreendemos que as experimentações acontecem em planos de correlação entre campos de saber (formações do que se pode enunciar), tipos de normatividade (referindo-se aos sistemas de poder que regulam as práticas) e formas de subjetividade (formas pelas quais os indivíduos ou grupos sociais se reconhecem como sujeitos face a questões específicas).

Diante de tais considerações sobre liberdade e identidade, é possível diagnosticar nas práticas psicodramáticas certa impotência ao lidar com as redes de saber-poder-subjetivação, no sentido de transformá-las, quando se limitam a colocar em questão as existências num mundo dado, naturalizado, compreendido como repressivo. O viés tomado neste impasse é não questionar o mundo como construção, mas, meramente, apostar na subjetividade, tomada como transcendente às relações, como capaz de suportar o mundo. A aposta é a de que, à medida que o sujeito puder expressar sua interioridade, sua liberdade estará garantida.

Ao tratar os "dramas" como meios pelos quais se pode acessar um plano de experiência transcendente às relações de saber e poder, Moreno esquiva-se à análise dos aparelhos técnico-conceituais como instituições constituídas por regras, normas e valores. Porém, esta análise é crucial para se desenvolver os dispositivos dramáticos, para que não se tornem "conserva cultural". Se é nisso que passam a consistir, instala-se uma contradição, uma anulação das forças entre si nos "dramas" de Moreno. A conserva cultural, definida por Moreno (1946/2002, pp. 158-159),

propõe-se ser o produto acabado e, dessa maneira, adquiriu uma qualidade quase sagrada. É o resultado de uma teoria de valores geralmente aceita... A conserva cultural passou a ser o mais alto valor que era possível produzir... É uma mistura bem-sucedida de material espontâneo e criador, moldado numa forma permanente. Como tal, converte-se em propriedade do grande público, algo de que todos podem compartilhar. Devido à sua forma permanente, é um ponto de convergência a que podemos regressar a bel-prazer e sobre o qual pode ser assente a tradição cultural. Assim, a conserva cultural é uma categoria tranquilizadora.

Barulho em praças, palcos, ruas, grupos

Ao se perguntar sobre a constituição da sociedade em que vive, Moreno assume uma postura existencial, reduzindo o ser humano a uma abstração em que todos somos livres e iguais em essência. Coimbra (1995) permite-nos concluir que a produção moreniana apresenta, em muitos momentos, os princípios da filosofia liberal-capitalista que coloca todas as pessoas livres e iguais em condições, podendo transcender sua situação, visto que possui capacidade de escolha. A perspectiva de atuação que se encaminha do teatro da espontaneidade à institucionalização do teatro terapêutico é permeada por uma política essencialista do humano. Mas, ainda é Coimbra (1995, p. 246) quem afirma que

até por não entender as técnicas como instrumentos neutros – mas como ferramentas que podem servir para manter e legitimar ou, ao contrário, desnaturalizar ações e transformar realidades, segundo as diferentes formas como são encaradas e manejadas –, torna-se possível às práticas psicodramáticas a produção de espaços singulares, o fortalecimento de movimentos instituintes, mesmo que de forma provisória.

No início do século XX, em Viena, o "drama" moreniano nasce ligado aos movimentos sociais – com crianças, prostitutas, loucos, dentre outros – auxiliando a dar passagem aos fluxos coletivos. Mas, pouco a pouco, especialmente a partir do segundo momento de sua obra e da institucionalização do psicodrama, vão se perdendo as potências disruptivas dos dispositivos morenianos.

Em relação ao entendimento e à utilização do teatro por Moreno, isto vai se tornar problemático. Em sua trajetória, acaba por institucionalizar um lócus estrito de ação, afirmando que

um psicodrama, se necessário, pode ser designado em toda e qualquer parte, onde quer que os pacientes estejam, no campo de batalha, na sala de aula ou no lar. Mas a resolução final de profundos conflitos mentais requer um cenário objetivo, o teatro terapêutico. (Moreno, 1946/2002, p. 18)

Como Moreno chega a tal contraposição entre a prática transformadora situada em diversos meios sociais e a prática destacada do campo social pelo palco terapêutico? Habita nesta proposição moreniana uma (re)lutância que está encarnada nos instrumentos psicodramáticos: investir a diversidade da problemática social onde quer que ela irrompa ou isolá-la num meio ideal, supostamente apartado dos múltiplos tensionamentos da vida, em função de uma cura.

Moreno abandona, como já dito, os encontros cotidianos nas ruas e praças com os marginais, dos primórdios de seu trabalho, ao tentar produzir no teatro tradicional uma forma espontânea de teatralidade. Nesta tentativa ousada, Moreno acaba caindo numa terrível armadilha ao tentar questionar na instituição teatral os limites que a verdade impõe à farsa.

Uma primeira cilada dispara a partir da criação do teatro da espontaneidade (stegreiftheater), em 1922. Até então, a teatralidade acontecia um tanto à revelia do teatro institucionalizado, junto aos bandos de gente em qualquer canto. O teatro da espontaneidade pretende questionar a instituição social do teatro vinculando-se a ela, transformando-a a partir de "dentro". Entretanto, muito deste movimento viu-se enfraquecido e bloqueado ao ser encarado, em muitos espaços, como mais uma abordagem teatral, mais uma configuração teórico-técnica das formas dramáticas. O enquadre teria por efeito neutralizar a perturbação institucional pretendida.

Uma segunda cilada se compõe com a estruturação do teatro terapêutico e do psicodrama pelo teatro da espontaneidade. Esse outro impasse ocorre devido à resistência do público e da imprensa vienenses. Muitos companheiros de trabalho de Moreno abandonam a experimentação no teatro da espontaneidade em virtude das acusações difamadoras de que se trataria de uma simulação, um ludíbrio com o intento de chamar a atenção. A espontaneidade conceituada por Moreno, que a advoga como fundamento para o teatro ligado à vida cotidiana, é encarada como charlatanismo. "Face a face com este dilema, voltei-me 'temporariamente' [grifo nosso] para o teatro terapêutico, decisão esta estratégica e que provavelmente salvou do esquecimento o movimento psicodramático", diz-nos Moreno (1923/1984, pp. 19-20). Contudo, tal decisão ganhou contornos duros de aparente irreversibilidade com o sucesso da proposta psicodramática e, a seguir, com a mudança de Moreno para os EUA. O instante tático ganhou ares de descoberta da verdade terapêutica ao fixar-se o psicodrama num modo instituído, em vez de se retomar o movimento instituinte.

Moreno acaba por compor com a subjetividade vigente à época, nestes embaraços com as forças sociais em jogo, uma aliança apaziguadora e promissora. A articulação do teatro com a proposta de psicoterapia acaba por enfraquecer os vínculos entre os "dramas" de Moreno e as problemáticas imediatamente coletivas. Moreno (1923/1984, p. 20) argumenta que

era mais fácil advogar, num teatro terapêutico, a espontaneidade integral; as imperfeições estéticas de um ator não podiam ser perdoadas, mas as inexatidões e incongruências de um paciente mental que eventualmente se exibissem no palco eram não apenas mais toleradas como esperadas e, muitas vezes, calorosamente bem-vindas.

Moreno assume uma concepção de vida que abarca a doença como anormalidade, imperfeição e irregularidade, como já explicitamos, evocando a piedade como forma de existir em meio à crise que seus movimentos geravam na subjetividade da época. Esta decisão temporária acaba por tornar-se relativamente definitiva. Não se retoma o projeto do teatro da espontaneidade "cem por cento", profundamente vinculado aos movimentos contestadores da subjetividade hegemônica à época, questionadores dos lugares imputados às crianças, às prostitutas, aos loucos, falsários de todos os tipos, simulacros que assolam as modelizações que investem ideais de existência, problematizadores das verdades absolutas do humano. Moreno declara ainda, como "mais evoluída", a forma intermediária do teatro de catarse, como instituição plena do movimento que acabou por ganhar cunho terapêutico em sua síntese de inteligibilidade como psicodrama.

De acordo com Coimbra (1995), no início da década de 1970, no Brasil, o psicodrama faz a crítica aos especialismos, à terapia centrada exclusivamente na fala e operada individualmente (referindo-se à hegemonia da psicanálise nesse período), e ajuda a engrossar as manifestações contestatórias da época. Mas, aos poucos, vai deixando de realizar uma crítica radical das produções histórico-sociais das relações pelas suas práticas de intervenção. Como acabamos de ver, o mesmo se deu com a passagem do teatro da espontaneidade em Viena ao psicodrama que encontrará solo fértil nos EUA. Muito se perdeu da potência de transformação social por estes movimentos.

No Brasil, os sociodramas públicos – um dos "dramas" de Moreno, focado nos conflitos grupais – sofrem grande resistência por parte dos psicodramatistas brasileiros, uma vez que rompem com as práticas de consultório que sustentam o intimismo e o individualismo (Coimbra, 1995). O investimento nos espaços públicos e ao ar livre, caldo efervescente de onde nascem os "dramas" de Moreno, aparece-nos, por sua disruptiva perturbação das práticas psi estabelecidas, como uma via a ser retomada e afirmada. Os sociodramas em espaços abertos podem funcionar como dispositivos potentes para a passagem das singularidades coletivas e a afirmação dos movimentos instituintes na composição de movimentos sociais em luta por liberdades, tal qual nos primórdios do teatro da espontaneidade.

Para tanto, é preciso inventar uma outra ideia de "espaço livre", que, em Moreno, aparece como lugar "fora do mundo", lugar terapêutico. Passar a assumir a liberdade como autonomia inerente aos processos do vivo, afirmando-a em meio aos embates da lida cotidiana, resulta em que abolimos a dicotomia entre mundo e sujeito. A empreitada passa a consistir em pensar como o mundo pode ser afirmado como espaço de existência e criação do vivo, inventando estratégias situadas que permitam ampliar a liberdade como invenção da vida. Assim, o espaço livre, aberto à conflitiva existencial, às lutas na história, figura como ágora do exercício político das instituições sociais, aproximando-se das relações de força do cotidiano, ampliando a ação coletiva no sentido de criar novas formas de experimentação da existência.

Todavia, a abordagem grupal não pode ser encarada como tábua de salvação por si mesma. O grupo terapêutico em Moreno figura como espaço que, cada vez mais, se fortalecerá em oposição às primeiras experiências de encontros espontâneos e dispersivos nas praças e nas ruas. Moreno é titulado nos EUA como "o criador da psicoterapia de grupo". Esse enquadre do trabalho moreniano como começo da terapêutica que intermedeia indivíduo e sociedade pela abordagem grupal, ao revés do que se pode esperar, por vezes subordina os múltiplos movimentos de produção de relações, que de modos diversos emergem nos grupos, ao grupo tomado como uma forma específica.

Dicotomicamente, o indivíduo é compreendido como ser que busca, pela espontaneidade, sua realização na liberdade expressiva e o mundo, como espaço repressor, ao qual o indivíduo está acorrentado. Mundo e sujeito são naturalizados e definidos em duas instâncias distintas, apesar de relacionadas, para além das transformações possíveis na história. Trata-se de uma relação externa aos processos de constituição, já que indivíduo e sociedade são tomados como totalidades. Moreno, mais tarde, pensa a resolução do conflito entre sujeito e mundo pela adequação do organismo ao meio, como já destacamos. Em um meio em rápida mudança, o organismo em crescimento precisa evocar novas respostas. Respostas adequadas (papéis criativos) a situações novas são o que o psicodrama propõe-se a produzir. Responder (sponte) significa "de livre vontade".

O grupo seria como um terceiro elemento nos conflitos entre o social e o individual. Esta concepção de grupo sustenta e reafirma a dicotomia entre sociedade e indivíduo. Heckert, Aragão, Barros e Oliveira (2001) enunciam que "o grupo, bem como o indivíduo e a sociedade, tem funcionado num mesmo registro – um modo que é, ao mesmo tempo, totalizante, individualizante e universalizante" (p. 93). A lógica totalizante se manifesta na ideia de que os problemas e as soluções sempre estão no indivíduo, apesar de a abordagem ser grupal.

É interessante observar que Moreno estabelece uma separação entre psicodrama e sociodrama, embora as duas modalidades se deem no espaço grupal: no primeiro, o protagonista configura-se como um dos membros que, ao trazer sua história pessoal, será trabalhado na presença e com o suporte dos outros membros; no segundo, o protagonista é o próprio grupo nas inter-relações dos seus membros, nas redes de preferência e rejeição que o grupo aciona em sua dinâmica particular, bem como nos conflitos entre grupos. De um lado, individualiza-se "o indivíduo"; de outro, individualiza-se "o grupo": psico, de um lado, sócio, de outro.

Barros (1996, p. 99) assinala ainda que "a esta lógica chamamos molar porque apreende os objetos em seu estado já constituído. Um grupo, entretanto, pode não ser visto apenas em sua configuração molar. Ele é um composto, um emaranhado de linhas". Pensamos, assim, o grupo como um dos possíveis dispositivos de criação para outros mundos singularizantes, como espaço de construção de coletivos. "O trabalho com o dispositivo-grupo se dá no desembaraçamento das linhas que o compõem – linhas de visibilidade, de enunciação, de força, de subjetivação... é da fecunda tensão das linhas que configuram um dispositivo que algo novo poderá advir" (Barros, 1996, p. 99). Portanto, pode-se romper com Moreno em sua sustentação do social em oposição ao indivíduo pela própria abordagem grupal, assumindo os riscos de se sustentar as desordens coletivas sem fechá-las no dispositivo, buscando neutralizá-las. Para tanto, é preciso tomar sociedade e indivíduo como multiplicidades, como espaços de produção de diferenças, e não como instâncias transcendentes aos processos de produção coletivos. Indivíduos e sociedades são, antes de tudo, formas que a potência coletiva assume, ganhando certa visibilidade e definição.

As potências do falso

Nesta conclusão para abrir possibilidades de apropriação dos "dramas" de Moreno, podemos destacar como eixo de problematização as potências do falso em questão pelos dispositivos.

Deleuze (1985/2007a) define as potências do falso como graus de intensidade no processo criativo. O nível mais baixo, mais impotente, seria o da busca da verdade escondida em algum lugar, da instalação de um tribunal como dispositivo para julgar os pretendentes à verdade. O nível mais elevado seria a criação da verdade, a montagem de um meio produtivo onde se possa experimentar e variar simulando. Quebra-se assim a dicotomia entre verdadeiro e falso, afirmando as potências do falso pela invenção de verdades.

Compõe-se, então, uma paisagem problemática para os "dramas" de Moreno pelas potências do falso em que se produz, destacando os impasses relativos a uma série de conceitos. A busca da cura pela psicoterapia, por um equilíbrio a ser alcançado, é o estabelecimento de uma ideia de normalidade como verdade subjacente. A existência, que forja seu sentido numa dimensão transcendente à vida cotidiana com suas relações de força, busca a verdade num além do mundo. A identidade como integração do eu, correspondente do sentido da existência no indivíduo e da cura pela psicoterapia, é a verdade do sujeito, sua verdadeira máscara, ainda que como predisposição. A liberdade, nesses jogos de verdade, acaba por funcionar como procedimento pelo qual o sujeito pode curar-se, identificar-se e existir verdadeiramente ao escapar ao poder.

Toda esta análise conceitual que empreendemos é seguida pelo acompanhamento dos processos de institucionalização dos dispositivos dramáticos morenianos. Neste sentido, pode-se abordar como a gênese conceitual dos "dramas" de Moreno está necessariamente intrincada à gênese social. E, por aí, retomar a crítica conceitual pela análise das emergências históricas dos "dramas" de Moreno.

O encantamento de Moreno com os processos de simulação, com as brincadeiras que evocam os jogos de verdade sobre quem se é, entre os marginais da sociedade com que viveu a juventude, conduzem-no ao teatro para desenvolver as forças instituintes que experimentava, pelo projeto do teatro da espontaneidade. Questionando diversas práticas instituídas no teatro, Moreno (1923/1984, p. 9) propõe eliminar a roteirização prévia da peça teatral fazendo com que todos elaborem o roteiro atuando; fazer desaparecer a divisão entre plateia e atores, provocando todos a assumirem posição ativa na criação dramática; privilegiar a improvisação como estratégia de invenção teatral; romper com os limites do palco instituído, fazendo teatro em todo lugar. Todas essas propostas questionam o regime de produção de verdade pelo teatro: as verdades do texto dramático, da performance do ator, do trabalho de ensaio e do palco como instituição são contestadas.

Contudo, esta radical análise institucional do teatro promovida por Moreno no início do século XX na Europa, ao lidar com os efeitos da experimentação no corpo social, do deslocamento de lugares estabelecidos socialmente, assume táticas que visam demonstrar o valor da espontaneidade dispensando a crítica institucional. O ator profissional e o diretor teatral retomarão seus lugares como funções especializadas, redefinidas no conjunto do dispositivo psicodramático como ego auxiliar e psicoterapeuta. A improvisação será enquadrada por jogos de verdade sobre os procedimentos e técnicas terapêuticas. E, por fim, a dramaticidade coletiva será novamente restrita ao espaço fechado do palco montado. Ao apoiar-se na loucura instituída como doença mental, colocando os loucos para atuarem a fim de que se acredite na verdade de sua espontaneidade, Moreno, com seu "psicodrama" (1946/2002), perde o mote das forças instituintes problematizadoras das verdades e dos poderes em seu tempo.

Neste momento crítico, a questão que emergia em relação ao teatro da espontaneidade era justamente a do estabelecimento de sua verdade. Moreno entra no jogo da verdade e trapaceia sua proposta instituinte, em vez de afirmar uma traição radical em relação aos regimes de verdade no teatro. Psicoterapia e teatro unem-se oficialmente, e isto não causa mais escândalo a ninguém.

Entretanto, não cabe lamentar, nem julgar a obra moreniana. Trata-se, antes, da avaliação de uma obra aberta, de um percurso inconcluso. Por isso, a importância de destacar os impasses e obstruções no caminho. Não objetivamos com este trajeto analítico absolutizar verdades, desqualificando saberes, mas nos perguntamos, principalmente, pelos efeitos engendrados pela prática, pela ética que perpassa cada produção histórica. Ansiamos por outros intercessores, lembrando que por intercessor entendemos aquele ou aquilo que ajuda a dar expressão e forma às inquietações, ao mesmo tempo que pode continuar a existir por meio de nós que levamos a instituição adiante, transformando-a.

O que importa na apropriação dos "dramas" de Moreno, pela nossa perspectiva, é que seja possível assentá-los num movimento conceitual que, em vez de pretender o acesso à verdade, afirme a invenção como princípio da vida, ou antes, a impossibilidade de estabelecer um princípio. Neste sentido, os rearranjos destes dispositivos, suas desmontagens e montagens sempre variantes, são cruciais para que não se conservem fixos, mas pelo movimento de apropriação coletiva.

Submissão em: 05/06/2011

Revisão em: 11/05/2012

Aceite em: 20/06/2012

Jésio Zamboni é Graduado em Psicologia, Mestre em Psicologia Institucional e Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Endereço para correspondência: Avenida Fernando Antonio da Silveira, 168, Santa Rita, Vila Velha/ES, Brasil. CEP 29118-450. E-mail: jesiozamboni@gmail.com

Sonia Pinto de Oliveira é Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. É Professora Aposentada da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: soniapdo@bol.com.br

Fabiana Davel Canal é Graduada em Psicologia e Mestre em Psicologia Institucional pela Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: fabidavel@yahoo.com.br

Maria Elizabeth Barros de Barros é Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Psicologia Escolar pela Universidade Gama Filho, Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pós-Doutora em Saúde Coletiva pela Escola Nacional de Saúde Pública. É Professora do Departamento de Psicologia e dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Institucional (PPGPSI) e em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: betebarros@uol.com.br

Poliana dos Santos Cordeiro é Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo, Mestre e Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: polisantosc@yahoo.com.br

  • Baremblitt, G. F. (s.d.). El "método" de la dramatización en el esquizodrama. Acesso em 14 de agosto, 2011, em http://www.fgbbh.org.br/artigos/artigo_10.htm
  • Barros, R. B. (2007). Grupo: a afirmação de um simulacro Porto Alegre: Sulina.
  • Barros, R. D. B. (1996, junho). Dispositivos em ação: o grupo. Cadernos de Subjetividade, 4(n. spe.), 97-106.
  • Birman, J. (2000). O signo e seus excessos: a clínica em Deleuze. In E. Alliez (Org.), Gilles Deleuze: uma vida filosófica (pp. 463-478). São Paulo: Ed. 34.
  • Coimbra, C. M. B. (1995). Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do "milagre" Rio de Janeiro: Oficina do Autor.
  • Deleuze, G. (1997). Crítica e clínica São Paulo: Ed. 34. (Original publicado em 1993)
  • Deleuze, G. (2006). Diferença e repetição (2Ş ed.). São Paulo: Graal. (Original publicado em 1968)
  • Deleuze, G. (2007a). A imagem-tempo: cinema 2 São Paulo: Perspectiva. (Original publicado em 1985)
  • Deleuze, G. (2007b). Lógica do sentido (3Ş reimpr. da 4Ş ed. de 1998). São Paulo: Perspectiva. (Original publicado em 1969)
  • Deleuze, G. & Guattari, F. (1995). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 1). São Paulo: Ed. 34. (Original publicado em 1980)
  • Deleuze, G. & Parnet, C. (1998). Diálogos São Paulo: Escuta. (Original publicado em 1977)
  • Figueiredo, L. C. M. (1995). Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos São Paulo: EDUC.
  • Foucault, M. (1994). História da sexualidade 2: o uso dos prazeres (7Ş ed.). Rio de Janeiro: Graal. (Original publicado em 1984)
  • Foucault, M. (2011). A ordem do discurso (21Ş ed.). São Paulo: Loyola. (Original publicado em 1971)
  • Guattari, F. & Rolnik, S. (2000). Micropolítica: cartografias do desejo (6Ş ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Original publicado em 1986)
  • Heckert, A. L. C., Aragão, E. M. A., Barros, M. E. B., & Oliveira, S. P. (2001). As sutilezas dos processos de grupo e formação na atualidade. In M. Athayde, J. Brito, M. Y. R. Neves, & M. E. B. Barros (Orgs.), Trabalhar na escola? só inventando o prazer (pp. 91-102). Rio de janeiro: IPUB/CUCA.
  • Machado, R. (1990). Deleuze e a filosofia Rio de Janeiro: Graal.
  • Moreno, J. L. (1984). O teatro da espontaneidade (2Ş ed.). São Paulo: Summus. (Original publicado em 1923)
  • Moreno, J. L. (2002). Psicodrama (8Ş ed.). São Paulo: Cultrix. (Original publicado em 1946)
  • Naffah Neto, A. (1989). Paixões e questões de um terapeuta São Paulo: Ágora.
  • Pavlovsky, E. & Kesselman, H. (1991). A multiplicação dramática São Paulo: Hucitec.
  • Rajchman, J. (1993). Eros e verdade: Lacan, Foucault e a questão da ética Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Teixeira, M. O. L. (1996). Algumas reflexões sobre o conceito de cura em psiquiatria. Cadernos do IPUB, 3, 67-76.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2014
  • Data do Fascículo
    Ago 2014

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2011
  • Aceito
    20 Jun 2012
  • Revisado
    11 Maio 2012
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revistapsisoc@gmail.com