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Valores do trabalho e incubação de empreendimentos solidários: a experiência da associação Terra do Marolo

Work values and solidary enterprises' incubation: the experience of Terra do Marolo association

Los valores de trabajo y la incubación de empresas solidarias: la experiencia de la asociación Terra do Marolo

Resumos

O presente estudo teve como objetivo identificar os valores atribuídos ao trabalho pelos membros de uma associação em processo de incubação. Com esse propósito, foram realizadas reuniões de grupo focal junto aos 17 associados. O material coletado foi submetido à análise de conteúdo estruturada com base nos fatores da Escala de Valores do Trabalho (Porto & Tamayo, 2003). Os resultados apontaram que as categorias identificadas se organizaram em uma hierarquia de importância na qual prevaleceram os valores de "Realização no Trabalho", seguidos daqueles de "Relações Sociais", "Estabilidade" e "Prestígio". Os achados revelaram-se úteis para orientar as ações desenvolvidas na continuidade do trabalho realizado junto ao grupo e sinalizam para a relevância de se atentar para os valores laborais priorizados pelos participantes em empreendimentos solidários no decorrer do processo de incubação. As limitações e contribuições do estudo são discutidas, com sugestões para pesquisas futuras.

valores do trabalho; incubação tecnológica; empreendimentos solidários


The aim of the study was to identify the work values among members of an association in process of incubation. For this purpose focus group meetings were conducted with the 17 associates. The collected material was submitted to the content analysis, which was structured based on the factors of the Work Values Scale (Porto & Tamayo, 2003). The results showed that the categories identified were organized according to the following hierarchy of importance: Realization at Work, Social Relations, Stability and Prestige. The findings proved to be useful to guide the actions developed in the continuity of the work with the group and point to the importance of attending to the work values prioritized by participants in solidary enterprises during the incubation process. The limitations and contributions of the study are discussed, with suggestions for future research.

work values; technologic incubation; solidary enterprises


El presente estudio buscó identificar los valores asignados al trabajo por los miembros de una asociación en el proceso de incubación. Se llevaron a cabo reuniones de grupos focales con 17 miembros. El material colectado fue sometido a análisis de contenido estructurado con base en los factores de la Escala de Valores del Trabajo (Porto y Tamayo, 2003). Los resultados mostraron que las categorías identificadas se organizan en una jerarquía de importancia en que han prevalecido los valores de "Realización en el Trabajo", seguidos por los de "Relaciones sociales", "Estabilidad" y "Prestigio". Los hallazgos demostraron su utilidad para guiar las acciones desarrolladas en la continuidad del trabajo realizado junto con el grupo y apuntan para la importancia de dirigir la atención a los valores de trabajo priorizados por los participantes durante el proceso de incubación. Se discuten las limitaciones y las contribuciones del estudio, con sugerencias para futuras investigaciones.

valores de trabajo; incubación tecnológica; empresas solidarias


ARTIGOS

Valores do trabalho e incubação de empreendimentos solidários: a experiência da associação Terra do Marolo

Los valores de trabajo y la incubación de empresas solidarias: la experiencia de la asociación Terra do Marolo

Work values and solidary enterprises' incubation: the experience of Terra do Marolo association

Virgínia D. Carvalho; Ewerton Martinho Villas Boas; Ana Carolina Guerra; Thaisa Andrade Freitas

Universidade Federal de Alfenas, Varginha/MG, Brasil

RESUMO

O presente estudo teve como objetivo identificar os valores atribuídos ao trabalho pelos membros de uma associação em processo de incubação. Com esse propósito, foram realizadas reuniões de grupo focal junto aos 17 associados. O material coletado foi submetido à análise de conteúdo estruturada com base nos fatores da Escala de Valores do Trabalho (Porto & Tamayo, 2003). Os resultados apontaram que as categorias identificadas se organizaram em uma hierarquia de importância na qual prevaleceram os valores de "Realização no Trabalho", seguidos daqueles de "Relações Sociais", "Estabilidade" e "Prestígio". Os achados revelaram-se úteis para orientar as ações desenvolvidas na continuidade do trabalho realizado junto ao grupo e sinalizam para a relevância de se atentar para os valores laborais priorizados pelos participantes em empreendimentos solidários no decorrer do processo de incubação. As limitações e contribuições do estudo são discutidas, com sugestões para pesquisas futuras.

Palavras-chave: valores do trabalho; incubação tecnológica; empreendimentos solidários.

RESUMEN

El presente estudio buscó identificar los valores asignados al trabajo por los miembros de una asociación en el proceso de incubación. Se llevaron a cabo reuniones de grupos focales con 17 miembros. El material colectado fue sometido a análisis de contenido estructurado con base en los factores de la Escala de Valores del Trabajo (Porto y Tamayo, 2003). Los resultados mostraron que las categorías identificadas se organizan en una jerarquía de importancia en que han prevalecido los valores de "Realización en el Trabajo", seguidos por los de "Relaciones sociales", "Estabilidad" y "Prestigio". Los hallazgos demostraron su utilidad para guiar las acciones desarrolladas en la continuidad del trabajo realizado junto con el grupo y apuntan para la importancia de dirigir la atención a los valores de trabajo priorizados por los participantes durante el proceso de incubación. Se discuten las limitaciones y las contribuciones del estudio, con sugerencias para futuras investigaciones.

Palabras clave: valores de trabajo; incubación tecnológica; empresas solidarias.

ABSTRACT

The aim of the study was to identify the work values among members of an association in process of incubation. For this purpose focus group meetings were conducted with the 17 associates. The collected material was submitted to the content analysis, which was structured based on the factors of the Work Values Scale (Porto & Tamayo, 2003). The results showed that the categories identified were organized according to the following hierarchy of importance: Realization at Work, Social Relations, Stability and Prestige. The findings proved to be useful to guide the actions developed in the continuity of the work with the group and point to the importance of attending to the work values prioritized by participants in solidary enterprises during the incubation process. The limitations and contributions of the study are discussed, with suggestions for future research.

Keywords: work values; technologic incubation; solidary enterprises

Introdução

A expansão das iniciativas econômicas solidárias é um fenômeno que tem atraído o interesse de estudiosos e que vem sendo focalizado sob diversos ângulos, com destaque para as discussões acerca da configuração das relações de trabalho nesse espaço de atuação. Estruturadas a partir da utilização intensiva de trabalho, tais iniciativas normalmente visam à geração de renda, por meio da união e da organização dos trabalhadores. De acordo com Gaiger (2006), inerentemente às formas de produção solidárias, haveria uma racionalidade fundamentada na comunidade de trabalho, firmada em vínculos de reciprocidade que deveriam nortear os comportamentos e minimizar as diferenças entre interesses individuais e coletivos.

Tal racionalidade expressaria os princípios de cooperação, solidariedade e valorização do trabalhador, os quais, segundo Lechat e Barcelos (2008, p. 100), representam "o propósito de trabalhar na criação ou compreensão de outra cultura de vida e de convivência que não é a hegemônica na sociedade". Em outras palavras, um propósito de substituir uma cultura de individualismo e competição por outra de solidariedade e cooperação, implicando, portanto, o desafio de lutar contra a hegemonia e a racionalidade do mercado.

A esse respeito, França Filho (2001) já salientara que a abordagem da economia solidária não deveria partir do pressuposto de que se trata de um setor à parte, mas de sua vocação para interagir com o Estado e o mercado, "numa perspectiva de elaboração de arranjos particulares de princípios econômicos diversos, a fim de subordinar a lógica mercantil a outros imperativos da ação organizacional ou coletiva – por exemplo, uma dinâmica reciprocitária ou um projeto associativo" (p. 252). Como o estabelecimento de tal dinâmica mostra-se uma tarefa complexa, tendo em vista que os indivíduos são educados em um sistema que lhes ensina a exercer a solidariedade apenas entre familiares e pessoas mais próximas (Castanheira & Pereira, 2008), seria necessário um esforço de sensibilização junto aos sujeitos atuantes em tais empreendimentos, o que envolve, de modo especial, as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares – ITCPs –, entidades que atuam oferecendo apoio e orientação à constituição de cooperativas e associações solidárias, visando ao crescimento e ao desenvolvimento de tais empreendimentos e à emancipação política e social de seus membros.

São comuns os relatos de autores (Barreto & Paula, 2009; Cavedon & Ferraz, 2006; Santos & Ribeiro, 2011; dentre outros) que apontam as dificuldades de implantação da autogestão no âmbito de empreendimentos solidários. Nesse sentido, esforços têm sido envidados e os estudos em Psicologia Social e do Trabalho têm prestado significativa contribuição (Barfknecht, Merlo, & Nardi, 2006; Dal Magro & Coutinho, 2008; Meira, 2012; Nardi, Yates, Fernandes, & Rodrigues, 2006), uma vez que possibilitam resgatar as experiências dos trabalhadores inseridos nos empreendimentos econômicos solidários, "assessorando-os na construção de uma consciência crítica, propondo novas formas de experienciar o trabalho, reconstruindo vínculos e reivindicando direitos" (Coutinho, Beiras, Picinin, & Lückmann, 2005, p. 7). Ao compreender as iniciativas solidárias como espaços laborais passíveis de constituir modos singularizados de trabalhar (Veronese & Guareschi, 2005), a Psicologia Social e do Trabalho pode, assim, auxiliar em sua consolidação, seja atuando no conjunto organizacional ou com cada trabalhador em particular (Coutinho et al., 2005).

Dentre as possibilidades acenadas, coloca-se, como uma alternativa a subsidiar o desenvolvimento das ações de incubação de cooperativas e associações solidárias, a identificação dos valores atribuídos ao trabalho pelos incubados. Mostra-se uma iniciativa promissora a compreensão e a conscientização acerca de tais valores, tendo em vista que estes se constituem como princípios que guiam a vida do indivíduo no trabalho (Porto & Tamayo, 2003).

Pautado nesses pressupostos, o presente estudo teve como objetivo identificar os valores atribuídos ao trabalho pelos membros de uma associação em processo de incubação, cujos membros se mobilizaram em virtude de seu trabalho com o marolo, fruto típico do bioma cerrado, muito difundido e consumido em municípios da região Sul de Minas Gerais, dentre eles o de Paraguaçu, onde assume grande expressividade econômica e cultural. Com esse objetivo, o artigo estrutura-se de modo a apresentar, inicialmente, uma breve revisão de literatura acerca da economia solidária e dos valores no contexto do trabalho, seguidas da descrição da metodologia adotada, da discussão dos resultados e das considerações finais, em que são apontadas as limitações, contribuições e implicações do estudo.

Economia solidária

As cooperativas e as associações que se inserem na proposta da economia solidária vêm se disseminando crescentemente como uma alternativa de geração de renda aos trabalhadores social e economicamente excluídos, em virtude das transformações ocorridas no mundo do trabalho. É corrente a noção de que as atividades em tais empreendimentos devem ser baseadas na autogestão, de forma que preservem a simetria nas relações entre os atores sociais, conferindo-lhes o direito de participar igualmente dos processos de gestão e distribuição de resultados (Gaiger, 2006; Singer, 2003). Por essa razão, tem se discutido, como uma contribuição desses empreendimentos, a possibilidade de configurarem uma realidade laboral distinta, que promova a transformação individual e social, ainda que em âmbito local, modificando as perspectivas de realização pessoal e geração de renda por meio do trabalho (Coelho & Godoy, 2011; França Filho, 2001; Paula et al., 2011).

Muitas, entretanto, são as críticas dirigidas a essa proposta, algumas delas contundentes ao defender a concepção de que a economia solidária consiste apenas em mais uma forma de precarização do trabalho (Faria, 2009; Menezes, 2007; Sousa, 2008; Wellen, 2008). Inserindo-se nesse debate, alguns estudiosos da Psicologia Social e do Trabalho (Coutinho et al., 2005; Dal Magro & Coutinho, 2008; Meira, 2012; Nardi et al., 2006; dentre outros) ponderam que os empreendimentos econômicos solidários, embora encontrem dificuldades em promover o questionamento e a superação dos padrões capitalistas de organização do trabalho, têm cumprido a função de geração de renda e alternativa de sobrevivência para sujeitos excluídos do mercado formal e informal de trabalho.

Meira (2012), por exemplo, ao buscar identificar os mecanismos em operação na construção dos vínculos sociais em empreendimentos econômicos solidários, propõe que seja relativizada a certeza a respeito de uma suposta transformação social a ser protagonizada por tais iniciativas, uma vez que considera mais plausível pensar que a causa a defender nesse projeto passe antes pela própria existência dos sujeitos envolvidos do que pela tese da solidariedade, cooperação e autogestão. Assim, embora não defenda que tal tese deva ser abandonada, o autor entende que é necessário assumir a indeterminação que é própria dos projetos gestados pelos grupos inseridos na proposta da economia solidária.

Coutinho et al. (2005), por sua vez, compreendem que a autogestão em sua expressão radical não seria possível no capitalismo, de modo que as formas organizativas solidárias seriam apenas inspiradas nos princípios autogestionários. Continuando nessa linha de raciocínio, Dal Magro e Coutinho (2008) pontuam que os empreendimentos solidários são incapazes de se transformarem em alternativas de reforma gradual em direção à superação do capitalismo ou de promoção da emancipação social. A despeito de tal constatação, salientam que tais práticas "permitem uma maior distribuição da renda no seio destes empreendimentos, na medida em que viabilizam a posse coletiva dos meios de trabalho por parte dos trabalhadores cooperados" (p. 710) e que podem "fazer grande diferença para os sujeitos específicos, que de algum modo têm suas vidas modificadas pela oportunidade de reinserção no mercado de trabalho e minimização da sua condição de pobreza" (p. 710) e consequente sofrimento psicossocial.

Tal posição é, de certo modo, compartilhada por Nardi et al. (2006) que, em estudo desenvolvido acerca da forma de inserção profissional e implicação no trabalho de jovens no campo da economia solidária, observaram que imperava, nos empreendimentos estudados, o envolvimento por necessidade de sobrevivência, "sendo raro o engajamento por motivação política, como é desejado pelos idealizadores do movimento da economia solidária" (p. 327). A despeito da ocorrência de uma diversidade nas formas de implicação profissional dos participantes, constataram que se evidenciava a provisoriedade do vínculo, configurada tanto sob a forma de alternativa ao desemprego quanto de reconhecimento social, dada a possibilidade de passar a ser visto como trabalhador e não desempregado.

Reconhecendo os limites e os desafios impostos à prática do ideário da autogestão no interior dos empreendimentos solidários, compreendendo a importância do apoio externo para sua sobrevivência e atentando para as possíveis contribuições advindas do campo da Psicologia Social e do Trabalho, a orientação aqui adotada foi de que a compreensão dos valores laborais dos sujeitos envolvidos em iniciativas solidárias em processo de incubação poderia subsidiar o trabalho desenvolvido pelas ITCPs. Dado que a problemática dos valores que norteiam a atuação dos envolvidos em organizações solidárias assume centralidade nesse contexto e que o trabalho é o operador central de tais iniciativas, a discussão empreendida pelos estudiosos dos valores relativos ao trabalho pode prestar valiosa contribuição.

Valores do trabalho

Valores podem ser definidos, de modo geral, como crenças transituacionais hierarquicamente organizadas e que servem como critério para o comportamento (Rokeach, 1973) ou como concepções, socialmente compartilhadas, sobre o que é bom, correto e desejável (Knafo, Roccas & Sagiv, 2011). Algo que é apresentado como bom e que assume valor para uma pessoa é estimado e desejado, e algo desejável se converte em um motor da conduta com objetivo de possuí-lo (Sanchez & Beut, 2000). Por essa razão, os valores colocam-se como uma das variáveis mais relevantes na explicação do comportamento humano em termos de escolha entre diferentes cursos de ação, sendo tema recorrente de estudos.

A estrutura de valores de um indivíduo, embora tenda a ser estável, pode sofrer, ao longo da vida, algumas modificações, em resposta a mudanças nas circunstâncias pessoais e sociais (Rokeach, 1973; Schwartz & Sagiv, 1995). Bardi e Goodwin (2011) argumentam que os valores podem ser modificados tanto automaticamente quanto por meio de um esforço consciente. Abordando o processo de transmissão de valores, Porto e Tamayo (2006, p. 152) explicam que é "necessário para a formação dos valores do indivíduo e para a socialização dos membros do grupo social" e que envolve a transferência de informação entre indivíduos e grupos. Assim, a comunicação e a aprendizagem social por meio de observação, condicionamento ou educação, são requeridas para a transmissão de valores, realizada pelos pais, professores, amigos, religião e mídia, dentre outros (Cavalli-Sforza, 1993; Schönpflug, 2001), destacando a importância do meio na construção das prioridades axiológicas.

Na busca de identificar uma estrutura universal de valores pessoais, Schwartz e colaboradores (Schwartz & Bilsky, 1987, 1990; Schwartz, 1994) dedicaram-se à construção de uma teoria, que se tornou muito difundida e aceita na literatura, inspirando outras pesquisas, inclusive aquelas orientadas a contextos mais específicos, como o trabalho. Sua teoria parte do pressuposto de que os valores representam, na forma de metas conscientes, as respostas que os indivíduos devem oferecer a três requisitos universais: as necessidades individuais de natureza biológica, os requisitos de interação social coordenada e os requisitos para o bom funcionamento e a sobrevivência de grupos (Schwartz, 1994). Desses três requisitos universais, são derivados dez tipos motivacionais de valor, organizados numa estrutura que compreende duas dimensões bipolares: valores de "abertura à mudança", opondo-se aos de "conservação"; e valores de "autopromoção" (poder e realização), opondo-se aos de "autotranscendência". Tal estrutura permite identificar as relações dinâmicas entre os valores e deixar claro que a realização de cada tipo de valor têm consequências psicológicas, práticas e sociais, que podem ser conflitantes ou compatíveis com a realização de outros tipos de valor.

A adaptação de tal teoria para o estudo dos valores no contexto de trabalho foi realizada, primeiramente, por Ros, Schwartz e Surkiss (1999), os quais sugeriram um modelo composto por quatro tipos motivacionais: valores intrínsecos (relacionados aos de abertura à mudança), valores extrínsecos ou materiais (relacionados aos de conservação), valores sociais ou afetivos (relacionados aos de autotranscendência) e valores de prestígio (relacionados aos de autopromoção). A mesma dinâmica de compatibilidade e conflito identificada para os valores gerais de Schwartz foi também verificada entre os valores laborais. Assim, os quatro tipos motivacionais formam polos opostos de duas dimensões, em que os valores sociais opõem-se aos de prestígio e os valores intrínsecos opõem-se aos extrínsecos.

Posteriormente, Porto e Tamayo (2003), também sob a perspectiva de Schwartz (1994), e com base na experiência de Ros et al. (1999), passaram a se dedicar ao estudo dos valores do trabalho. Para estes autores, os valores do trabalho representam princípios ou crenças sobre metas desejáveis, organizadas hierarquicamente, buscadas por meio do trabalho e que guiam as avaliações sobre resultados, comportamentos e escolhas relacionadas ao trabalho. A partir desse pressuposto, eles desenvolveram e validaram uma escala para a identificação de valores nesse contexto.

Denominada Escala de Valores do Trabalho (EVT), esta permite identificar as mesmas quatro dimensões, anteriormente referidas, e que foram assim definidas: (a) Realização no Trabalho (relacionada aos valores de abertura à mudança) – envolve a busca de prazer, realização profissional, independência de pensamento e ação no trabalho, por meio da autonomia; (b) Relações Sociais (relacionada aos valores de autotranscendência) – refere-se à busca de relações sociais positivas e de contribuições para a sociedade, por meio do trabalho; (c) Prestígio (relacionada aos valores de autopromoção) – abrange a busca de autoridade, sucesso profissional e poder de influência no trabalho; e (d) Estabilidade (relacionada aos valores de conservação) – concerne à busca de segurança e de ordem na vida, alcançadas por meio do trabalho, possibilitando suprir, materialmente, as necessidades pessoais.

De acordo com Tamayo (2007), o modelo utilizado na construção dessa escala tem o mérito de inserir os valores laborais no contexto da teoria dos valores humanos e o instrumento de medida proposto contribuiu para o desenvolvimento da pesquisa relativa aos valores laborais no Brasil. Porto e Pilati (2010) apontam que a EVT partiu de um esforço de compreensão da cultura local por meio dos sujeitos nela inseridos, buscando compreender os valores do trabalho de brasileiros, através de entrevistas com os próprios brasileiros.

Desde sua divulgação, a EVT tem sido utilizada em vários estudos no Brasil: Paschoal e Tamayo (2005), por exemplo, aplicaram-na para investigar a influência dos valores do trabalho sobre o estresse ocupacional, chegando à conclusão de que não há relação entre ambos; Porto e Tamayo (2006), para investigar a influência dos valores laborais de pais e colegas de curso sobre os valores laborais de estudantes universitários, observando que a valorização da "Realização no Trabalho" e da "Estabilidade" pelos estudantes refletia os valores de seus pais e de seus amigos; Porto e Tamayo (2007), novamente, para testar a relação entre as estruturas de valores pessoais gerais e laborais, identificando que, quanto mais os valores gerais forem importantes para a pessoa, mais ela os buscará no contexto do trabalho; Rodrigues (2008), com o objetivo de identificar os fatores que influenciam mudanças na hierarquia de valores do trabalho ao longo da carreira, não obtendo resultados conclusivos; Barrella (2008), visando observar a relação entre valores do trabalho e competências gerenciais, identificando correlações positivas moderadas entre ambos, especialmente no que tange aos valores de "Realização no Trabalho"; Silva, Mendonça e Zanini (2010), para investigar a hierarquização de valores laborais de acordo com o gênero, observando diferenças quanto à "Estabilidade" e à "Realização no Trabalho". Porto e Pilati (2010), ainda, utilizaram a EVT e a aperfeiçoaram, apresentando uma nova versão, a EVTR (Escala de Valores do Trabalho Reformulada). Hoch, Andrade e Fossá (2009), embora não tenham utilizado, diretamente, a EVT, partiram do modelo da escala para delinear um estudo em que buscaram identificar diferenças na atribuição de valores ao trabalho por parte de homens e de mulheres, em cargos de gerência, numa agência bancária. Nessa mesma linha, considerando-se a ampla aceitação da EVT na literatura de valores do trabalho, o presente estudo propõe-se a utilizar o seu modelo para a estruturação de sua estratégia de pesquisa, visando identificar as prioridades axiológicas referentes ao trabalho entre os membros de uma associação em processo de incubação.

O método

Participantes do estudo

O presente estudo foi realizado junto a 17 sujeitos (nove mulheres e oito homens), os quais constituíam a totalidade dos membros de uma associação em processo de incubação, denominada Associação Terra do Marolo – ATM. Tais participantes, cuja faixa etária varia de 19 a 84 anos, desenvolvem diversas atividades relacionadas ao fruto do marolo: culinária, artesanato, plantio, colheita, venda do fruto, resgate da tradição cultural e preservação ambiental. Entre os participantes, o nível de instrução predominante (46,7%) é o ensino superior completo, e a renda familiar oscila entre três e cinco salários mínimos (42,9%), e entre seis e dez salários mínimos (35,7%).

Instrumentos utilizados

Com a finalidade de obter os dados sobre o perfil dos indivíduos, aplicou-se uma ficha sociodemográfica junto à população envolvida. O levantamento de informações acerca dos valores atribuídos ao trabalho pelos sujeitos envolvidos no estudo foi realizado por meio da técnica de grupo focal, para a qual foi utilizado um roteiro de questões estruturado com base no estudo desenvolvido por Porto e Tamayo (2003), no processo de construção da Escala de Valores do Trabalho – EVT. Assim, tanto o referencial tomado como base para a construção da EVT quanto os seus próprios itens foram utilizados como subsídios para a construção do roteiro adotado na condução do presente estudo.

Coleta de dados

As informações sobre o perfil sociodemográfico dos indivíduos envolvidos na criação da associação já haviam sido levantadas desde o início do processo de incubação, haja vista a necessidade de caracterização dos interessados, e também de seu contexto, para que se iniciasse o trabalho junto a eles. A identificação dos valores atribuídos ao trabalho pelos incubados, por sua vez, veio a ocorrer quando o processo de incubação já se encontrava em andamento e foi realizada por meio de utilização da técnica de grupo focal, que consiste na reunião de pessoas em uma série de pequenos grupos, os quais possuem determinadas características e que produzem dados qualitativos sobre uma discussão focalizada (Krueger & Casey, 2000). No desenvolvimento dos grupos focais, que envolveram todos os 17 associados, seguiram-se as recomendações de Krueger & Casey (2000) para o planejamento, a organização e a condução das discussões, as quais foram orientadas conforme roteiro previamente elaborado e gravadas com o consentimento dos participantes.

Procedimentos de análise dos dados

Os dados coletados na ficha sociodemográfica foram tabulados e analisados por meio de procedimentos estáticos descritivos (média, desvios padrão e frequências), de forma a delinear o perfil da população envolvida. As gravações das discussões dos grupos focais foram transcritas e as informações, submetidas à análise de conteúdo (Bardin, 1977).

Para orientar tal processo de análise, tomou-se, como base para a estruturação das categorias e subcategorias utilizadas, os itens e fatores da EVT (Porto & Tamayo, 2003). A cada fator, foi atribuída uma categoria e, a partir delas, foram estruturadas as subcategorias, que se basearam tanto nos itens da EVT quanto nas informações que emergiram das discussões. O processo de realização das análises de conteúdo contou com a colaboração de três juízes. Os resultados obtidos foram quantificados de modo a se obter as frequências das categorias e das subcategorias encontradas, para, então, caracterizar a hierarquia de valores do trabalho, conforme a prioridade atribuída aos diferentes valores pelos participantes.

Resultados

Os resultados abordam as prioridades axiológicas relativas ao trabalho identificadas entre os membros da Associação Terra do Marolo – ATM, sendo os valores organizados em termos de categorias e subcategorias. Assim, primeiramente, serão apontadas e discutidas as categorias de valores do trabalho identificadas e sua hierarquização, em grau de importância. Tendo sido estruturadas com base nos fatores da EVT (Porto & Tamayo, 2003), serão aqui denominadas conforme designadas no modelo: "Realização do Trabalho", "Relações Sociais", "Prestígio" e "Estabilidade". Na sequência, serão apresentadas e discutidas as subcategorias que descrevem os valores agrupados em cada uma dessas categorias e sua organização, numa hierarquia de importância dada pelos participantes do estudo, os quais serão referidos como M1, M2,... M17, com a finalidade de preservar sua identidade.

As categorias de valores do trabalho identificadas organizaram-se segundo uma ordem de prioridades em que se sobressaem os valores de "Realização no Trabalho" (50,3%), seguidos daqueles de "Relações Sociais" (23,9%), de "Estabilidade" (18,9%) e de "Prestígio" (6,9%), o que indica que, para os participantes do empreendimento, a busca pelo prazer e pela realização pessoal e profissional tende a se colocar como prioritária na orientação de suas ações no âmbito da associação. Buscando tecer uma comparação destes resultados com aqueles verificados em estudo desenvolvido junto às publicações sobre economia solidária, por Carvalho, Freitas e Vilas Boas (2013b), observou-se que a organização hierárquica dos valores laborais pelos membros da ATM mostrou-se diversa daquela preconizada nas concepções da economia solidária, a qual se caracterizou, por maior relevância, ao polo de "Relações Sociais", seguido daqueles de "Estabilidade" e de "Realização no Trabalho". Observa-se que tal diferenciação consiste, praticamente, de uma inversão de prioridades axiológicas entre os participantes da ATM e a proposta da economia solidária. A identificação desse resultado enquanto o grupo encontrava-se em processo de incubação propiciou uma reorientação das ações, haja vista as possibilidades, ainda abertas, de realizar um trabalho de conscientização junto aos associados.

As categorias de "Relações Sociais" e de "Estabilidade", pela pequena diferença de frequência e de ênfase na fala dos participantes, podem ser consideradas equivalentes em termos de relevância, com ligeira prioridade às "Relações Sociais". Quanto à categoria "Prestígio", esta se mostrou bem pouco frequente e valorizada pelos participantes, o que se revelou um aspecto positivo em termos de aproximação da proposta da economia solidária. Observou-se, portanto, a partir de tais resultados, que alguns aspectos ainda precisam ser trabalhados exaustivamente na continuidade do processo de incubação, tais como a busca por relações mais solidárias e de cooperação no interior do grupo, a forma de estruturação e de funcionamento da associação, bem como as ações para o alcance dos objetivos e o desenvolvimento e fortalecimento da ATM.

Para cada uma das quatro categorias encontradas, foram identificadas subcategorias. Em relação à categoria "Realização no trabalho", esta apresentou seis subcategorias (Tabela 1), dentre as quais "Satisfação no Trabalho" e "Reconhecimento" obtiveram frequências mais elevadas (28,7% e 23,8%, respectivamente).

Considerando o perfil do grupo, foi possível inferir que tanto a prioridade axiológica concedida à categoria "Realização no Trabalho" quanto às subcategorias de valores nela agrupadas mostrou-se relacionada ao fato de se tratar de um conjunto de pessoas que, ao contrário do que ocorre na maioria dos empreendimentos econômicos solidários, não se encontra em situação de exclusão econômica e social. Esses sujeitos buscam, assim, por meio do trabalho, a satisfação de necessidades de realização, já que têm suas necessidades materiais básicas já satisfeitas – daí a ênfase nos aspectos de "Satisfação no Trabalho", "Reconhecimento" e "Realização Pessoal", como fica evidente nas falas a seguir:

É claro que o trabalho da gente tem ossos, né? ... eu não só faço aquilo que eu gosto ... agora, me joga dentro de uma propriedade rural, conversar com o produtor, me joga pra fazer um mapeamento, sabe? Aí eu gosto. Aquilo me satisfaz pessoalmente. Então eu trabalho porque eu gosto. (M7)

Eu acho que o que você recebe de satisfação pessoal, das pessoas que te reconhecem e tal... Isso vale muito mais, às vezes, do que eu pegar assim – te dou dois mil reais na mão aqui! Às vezes, não tem tanto valor como o reconhecimento. (M1)

Eu descobri que eu gosto do que eu faço, principalmente quando eu faço alguma coisa pra alguém e essa pessoa vem e fala: olha, muito obrigada, aquilo ficou muito bom, nunca tinha comido aquilo antes, entendeu? ... É isso que vale a pena. (M2)

"Fico feliz assim quando, por exemplo, chega a época do marolo. Tá tudo bonito! O pessoal compra, fica satisfeito. Isso me deixa muito feliz no meu trabalho" (M 10).

A subcategoria "Ocupação" (15%) expressa o quanto o trabalho é fundamental na vida de cada indivíduo. Para eles, o tempo ocioso, em excesso, é considerado fator depressivo, ou seja, o não fazer nada é encarado como prejudicial à saúde, pois alegam que produz pensamentos negativos. Encerrando esse conjunto de subcategorias, a "Identificação com o Trabalho" (7,5%) e a "Honestidade" (7,5%) mostraram-se valores apontados com menos frequência. Estes valores expressaram a relevância atribuída à honestidade, tanto na realização do trabalho quanto pelo próprio fato de se estar trabalhando, o que alguns apontaram como uma forma de ser honesto. Quanto à "Identificação com o Trabalho", observaram-se casos em que foi mencionado o quão importante é, para os participantes da pesquisa, a sensação de unidade com o trabalho, de se sentir a ele integrado, como na fala de M4: "... quando eu trabalho numa coisa que eu gosto, é a mesma coisa de eu não estar trabalhando".

No que se refere às quatro subcategorias de valores de "Relações Sociais" identificadas (Tabela 2), nota-se que as três consideradas mais relevantes foram mencionadas com a mesma frequência (28,9%): "Contribuição à Sociedade", "Convívio Social" e "Cooperação no Trabalho". Tem-se, portanto, um quadro que sinaliza tanto para a importância da comunidade, do município nas relações sociais, quanto do convívio entre os colegas e a cooperação entre os mesmos no âmbito do trabalho. Esse equilíbrio na valorização de relações sociais mais próximas (convívio) e mais amplas (sociedade/município) pode estar sendo favorecido pelo tamanho do município, que, por ser pequeno, facilita essa visão do todo.

Tomando-se os valores de "Contribuição à Sociedade", observou-se o anseio dos associados em colaborar para o crescimento e o desenvolvimento do município, em termos econômicos, sociais e ambientais, haja vista que sempre destacam o quanto valorizam a ideia de que seu trabalho na ATM possa criar oportunidades que se estendam além das próprias atividades com o marolo, aquecendo o setor de serviços, resgatando tradições culturais locais e fomentando o manejo consciente do marolo, com vistas à preservação ambiental.

Porque eu penso assim: vai ser bom pra mim, vai ser bom pra cidade, vai ser bom pra todo mundo. Quanto mais a gente fizer e o marolo, em si, der certo, a nossa cidade vai dar certo, outras pessoas através de nós vão dar certo. (M2)

A associação é uma coisa única aqui na região, e isso vai ser importante... eu acho que vai vir muita coisa atrás disso, eu acho que pra um futuro tão próximo acho que vai estar, todo mundo, se orgulhando aí dessa festa que vai ser, vai fazer parte de um roteiro, dentro da cidade, da própria comunidade aqui. (M9)

"Eu penso muito na proteção do meio ambiente porque eu vejo que lugares que tinha pé de marolo e não tem mais e quando eu era criança meu avô tinha o sítio, né?" (M3)

Os valores de "Convívio Social" e de "Cooperação no Trabalho" apareceram muito conectados, numa noção de que a cooperação desejável seria alcançada por meio da criação e da manutenção de laços de proximidade. Foi possível observar, também, que muitos buscam, no trabalho, a oportunidade de se aproximar de pessoas da cidade, ampliando a rede de contatos e fazendo novos amigos.

"Eu espero que as pessoas sejam unidas, que tenha essa união, esse clima bom, porque aqui agora a gente tá meio que no sonho ainda. A gente tá discutindo". (M13)

mas é, você sabe que, essa convivência nossa aqui é uma das coisas muito importante. Eu acho muito bom... A gente quando fica mais de idade é da igreja em casa e recebendo a família. Agora, com a reunião a gente convive com mais pessoas, no fim a gente faz novas amizades, que é muito bom. (M17)

"A reunião... Eu gosto demais da reunião! Convívio com os amigos, ai..." (M15).

Também relacionada à "Cooperação no Trabalho", a subcategoria de "Solidariedade", embora menos frequente na discussão, apontou que os membros do grupo valorizam o apoio mútuo entre os colegas no trabalho e entendem que tal postura é fundamental para o êxito do empreendimento. A ideia é a de que a ação individual, ou de poucos, não propiciaria a força necessária, alcançada por meio da sensibilização para as demandas do outro, o que geraria uma ação conjunta em benefício de todos os envolvidos, conforme M11: "...a gente tem que unir pra fazer todas essas coisas, porque um sozinho não cresce".

Considerando, por sua vez, as subcategorias de valores de "Estabilidade" (Tabela 3), curiosamente, tem-se a "Geração de Renda" e a "Subsistência" como as mais valorizadas pelo grupo (frequências de 44% e 30%, respectivamente). Conforme salientado, não se tratam de sujeitos em situação de exclusão social e econômica. Entretanto, embora os valores de "Estabilidade", como um todo, não se encontrem entre os prioritários, haja vista a maior relevância atribuída a outras categorias, não seria de se esperar que questões, principalmente relacionadas à subsistência, emergissem com maior importância do que outras, como a "Qualidade de Vida", por exemplo.

Uma possível explicação para tais resultados seria que, embora não se encontrem excluídos econômica e socialmente, os sujeitos participantes dessa pesquisa fazem parte da chamada classe média, a qual depende da remuneração obtida por meio do trabalho para garantir sua sobrevivência e de sua família. Assim, pode-se compreender e melhor contextualizar as falas reproduzidas a seguir: "Eu trabalho para complementar a renda familiar e porque eu não dou conta de ficar sem fazer nada; mas eu trabalho não é só por lazer e sim sobreviver" (M5); "Eu trabalho porque eu preciso. Eu quero ver se consigo estudar minhas filhas" (M2); "Hoje o meu trabalho tá pouco rentável. ...Eu preciso ampliar, porque eu vejo na associação uma chance de eu melhorar minha renda em tudo o que eu já faço" (M13).

Os valores de "Segurança" (13%) e de "Qualidade de Vida" (13%), nas poucas vezes em que foram mencionados, referiram-se, respectivamente, à conquista de certa estabilidade e segurança que permitissem envelhecer com tranquilidade, sabendo que há um fundo de reserva e a possibilidade de usufruir de conforto, boas condições de vida, inclusive propiciando a aquisição de bens e serviços que possam contribuir para o lazer e a diversão da família.

Por fim, a categoria "Prestígio", menos valorizada dentre as demais, apresentou apenas uma subcategoria, qual seja, a "Tradição Familiar", que envolve a realização de atividades que se constituem como tradição de família. Este aspecto foi apontado como importante, tendo em vista que alguns membros da associação herdaram, de gerações anteriores, as práticas de colheita e de culinária com o marolo, havendo, inclusive, a receita centenária de um licor, famoso na região, produzido por uma das associadas. O marolo faz parte da história da cidade e daí advém a relevância atribuída à manutenção dessa tradição nas atividades: "Porque é tradição. Faz 40 anos que trabalha com isso e eu vou deixar acabar?" (M3); "Eu acho que tem que continuar com a tradição, né? E explorar também o que nós temos aqui, né? Já o nome de maroleiro nós temos, então vamos aproveitar" (M5).

Vale salientar que, embora a categoria "Prestígio" tenha sido identificada nas análises dos dados, não foram observados quaisquer elementos que reportassem aos valores de busca de autoridade, poder de influência, competitividade ou superioridade nas falas dos participantes, o que permitiu inferir que havia espaço no grupo para se trabalhar os valores de "Relações Sociais", que se encontram em oposição aos de "Prestígio". Em suma, por um lado, as prioridades axiológicas para os sujeitos envolvidos na associação encontraram-se relacionadas, principalmente, à "Realização no Trabalho", representando que a orientação valorativa dos mesmos não se alinhara à proposta da economia solidária, com sua prioridade aos valores de "Relações Sociais". Por outro lado, contudo, a pouca e circunscrita relevância atribuída aos valores de "Prestígio" demonstrou que não existiam maiores obstáculos para que fossem trabalhados, junto aos associados, os princípios da economia solidária, uma vez que o conjunto de valores que representaria oposição e/ou resistência à instauração de tais princípios, no âmbito da associação, não se mostrou predominante entre os membros do grupo.

Considerações finais

A proposta da Economia Solidária busca se constituir como uma alternativa às relações sociais de gestão e produção centradas nos moldes capitalistas. Por se inserir, entretanto, em um contexto social predominantemente marcado por valores típicos desse modo de produção e consumo, encontram-se desafios para a concretização de seu ideário. Nesse cenário, a Psicologia Social e do Trabalho tem prestado significativa contribuição, seja ao proporcionar novos ângulos ao debate sobre o tema, seja ao apresentar possibilidades de intervenção junto às organizações, facilitando a compreensão de processos grupais e, conforme Coutinho et al. (2005), "fornecendo estratégias de resgate da cidadania e da consciência coletiva, estimulando a reflexão dos trabalhadores sobre seu potencial como agentes de mudanças sociais" (p. 11).

Guiando-se por essa vertente, a presente pesquisa teve como objetivo realizar um levantamento de valores atribuídos ao trabalho pelos membros de uma associação em processo de incubação, haja vista que conhecer o conjunto de significados partilhados em relação ao trabalho pelos incubados poderia oportunizar reflexões e fornecer subsídios ao desenvolvimento da ação empreendida pela ITCP/UNIFAL-MG. Os resultados obtidos demonstraram que as categorias de valores do trabalho identificadas entre os membros da associação incubada organizaram-se segundo uma hierarquia de importância em que prevaleceram, expressivamente, os valores de "Realização no Trabalho", seguidos daqueles de "Relações Sociais", "Estabilidade" e "Prestígio".

Observou-se, então, que, para os participantes da pesquisa, a busca pelo prazer e pela realização pessoal e profissional colocou-se como prioritária na orientação de suas ações no trabalho, não estando condizente com a hierarquia de valores preconizada pela economia solidária, segundo a qual, a orientação valorativa dos trabalhadores deveria estar assentada, primeiramente, em concepções de solidariedade, participação, cooperação no trabalho e contribuição à sociedade, representadas pela categoria de valores de "Relações Sociais". Esta, além de não ter se mostrado prioritária para os envolvidos, recebeu atribuição de importância muito similar àquela conferida aos valores de "Estabilidade", os quais se referiam, mais especificamente, à geração de renda, à subsistência, à segurança e à qualidade de vida. Um aspecto favorável ao desenvolvimento do trabalho com o coletivo, todavia, foi a quase irrelevância conferida pelos envolvidos aos valores de "Prestígio", sinalizando baixa atribuição de importância à competitividade, à superioridade, à autoridade e à busca de influência, as quais poderiam gerar maiores obstáculos à aceitação e à prática da autogestão.

Tais achados possibilitaram identificar alguns aspectos a serem observados na continuidade do processo de incubação, dentre eles: a sensibilização para as relações no interior do grupo, sua forma de estruturação, seu funcionamento e as implicações para o alcance dos objetivos e fortalecimento da iniciativa. Percebendo que a orientação valorativa prevalecente no grupo poderia comprometer o desenvolvimento e a consolidação do projeto, algumas ações foram empreendidas, tais como: a apresentação dos resultados da pesquisa e a discussão a respeito de suas implicações para o trabalho em grupo e o desenho e o acompanhamento de ações com vistas ao exercício da construção coletiva no interior do empreendimento.

Cabe mencionar, entretanto, que, a despeito das contribuições do estudo para (re)orientar o processo de incubação em andamento, observou-se que um melhor aproveitamento dos resultados seria possível caso o levantamento tivesse sido realizado na primeira fase do projeto, que envolveu a caracterização dos envolvidos. Não obstante, o trabalho mostrou-se pioneiro ao utilizar conhecimentos provenientes do campo de estudo dos valores humanos para subsidiar uma ação de extensão configurada no âmbito de uma ITCP, dirigindo o desenvolvimento da pesquisa para o trabalho e para a sociedade.

Desse modo, a pesquisa contribui para fortalecer a articulação entre os campos da Psicologia Social e do Trabalho e da Economia Solidária, seja acenando com uma possibilidade de intervenção na incubação de empreendimentos, seja apontando para o peso que a orientação cultural individual pode assumir nos processos de gestão das associações e cooperativas populares. Nessa vertente, pesquisas futuras podem ser realizadas com o intuito de avaliar em que medida a orientação valorativa relacionada ao trabalho tem contribuído, ou não, para o sucesso em outros empreendimentos econômicos solidários. Além disso, estudos posteriores podem ser desenvolvidos junto à ATM, com vistas a acompanhar a trajetória do grupo.

Agradecimento

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo apoio ao projeto. Edital FAPEMIG 09/2010 -Processo APQ-01566-10.

Submissão em: 10/11/2012

Revisão em: 09/02/2014

Aceite em: 01/03/2014

Virgínia D. Carvalho é é Doutora em Psicologia Social pela UFRN. Professora do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Alfenas.Endereço: Universidade Federal de Alfenas -Campus Varginha. Avenida Celina Ferreira Ottoni, nº 4000. Bairro Padre Vitor. Varginha/MG, Brasil. CEP 37.048-395. E-mail: virginiadcarvalho@gmail.com

Ewerton Martinho Villas Boas é Bacharel em Ciência e Economia e em Economia com Ênfase em Controladoria pelo Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Alfenas. E-mail: ewerton.mvb@gmail.com

Ana Carolina Guerra é Mestre em Administração e doutoranda em Administração pelo CEPEAD/UFMG. Professora do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Alfenas. E-mail: anacarolguerra@yahoo.com.br

Thaisa Andrade Freitas é Bacharel em Ciência e Economia e em Administração Pública pelo Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Alfenas. E-mail: thaisa_2789@yahoo.com.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2014
  • Data do Fascículo
    Ago 2014

Histórico

  • Aceito
    01 Mar 2014
  • Recebido
    10 Nov 2012
  • Revisado
    09 Fev 2014
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