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Teatro do oprimido: um teatro das emergências sociais e do conhecimento coletivo

Theatre of the oppressed: a theather of the social emergences and of the collective knowlegde

Teatro del oprimido: un teatro de emergencia social y conocimientos colectivos

Resumos

Este ensaio introduz proposta de intervenção em Psicologia Social que integra os conhecimentos e a prática do Teatro do Oprimido à Sociologia das Ausências e das Emergências, sendo resultado de pesquisa social em que o primeiro foi o construtor de dados, enquanto o segundo tomado como referencial para análise. A articulação teórico-metodológica dessas perspectivas revelou-se ferramenta potente de democratização do conhecimento, contribuindo para as ciências pós-paradigmáticas em efetuar movimento contrário à globalização hegemônica, e revalorizando saberes e experiências consideradas marginais. Para a articulação, apresentamos o Teatro do Oprimido como espaço dialógico, analisando-o à luz da Psicologia Social mediada pela perspectiva da Sociologia das Ausências e das Emergências, buscando desenvolver uma ferramenta de pesquisa e intervenção que conjugue essas abordagens num Teatro das Emergências. Finalizamos discutindo as potencialidades de tal articulação para a pesquisa e intervenção do psicólogo social.

Teatro do Oprimido; sociologia das emergências; metodologias participativas; conhecimento coletivo


This essay introduces a proposal for intervention in Social Psychology. It integrates the knowledge and practice of Theatre of the Oppressed to the Sociology of Absences and Emergencies. It is a result of social research in which the first was the builder of dispositives while the other taken as a reference for analysis. The articulation of these theoretical and methodological perspectives proved potent tool of democratization of knowledge and contributing to the post-paradigmatic science in making anti-hegemonic-globalization movement revaluing knowledge and experiences considered marginal. For the articulation we present the Theatre of the Oppressed as a dialogic space analyzing it in the light of social psychology mediated by the prospect of Sociology of Emergencies seeking to develop a tool for research and intervention : a Theatre Emergencies. We conclude by discussing the potential of this joint to the research and intervention of the social psychologist.

Theatre of the Oppressed; intervention research; participative methods; collective knowledge


Este artículo se propone una intervención en Psicología Social que integra el conocimiento y práctica de Teatro del Oprimido a la Sociología de las Ausencias y Emergencias, siendo el resultado de la investigación social en que el primero fue el constructor de los datos, mientras que el segundo se toma como referencia para análisis. Una articulación teórica y metodológica de estas perspectivas demostró ser una herramienta para la democratización del conocimiento, contribuyendo para las ciencias post-paradigmáticas en movimiento contrario a la globalización hegemónica, revalorizando conocimientos y experiencias consideradas marginales. La articulación presenta tal Teatro como un espacio dialógico, analizándolo con la Psicología Social y con la concepción de la Sociología de las Ausencias y Emergencias, desarrollando una herramienta de investigación y intervención que combine estos enfoques con el Teatro de Emergencias. Terminamos discutiendo el potencial de la articulación para la investigación y la intervención del psicólogo social.

Teatro del Oprimido; la sociología de las emergencias; metodologías participativas; conocimiento colectivo


ARTIGOS

Teatro do oprimido: um teatro das emergências sociais e do conhecimento coletivo

Teatro del oprimido: un teatro de emergencia social y conocimientos colectivos

Theatre of the oppressed: a theather of the social emergences and of the collective knowlegde

Fernanda Nogueira CamposI; Maria Paula Panúncio-PintoII; Toyoko SaekiII

IFaculdades Metropolitanas Unidas, São Paulo/SP, Brasil

IIUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto/SP, Brasil

RESUMO

Este ensaio introduz proposta de intervenção em Psicologia Social que integra os conhecimentos e a prática do Teatro do Oprimido à Sociologia das Ausências e das Emergências, sendo resultado de pesquisa social em que o primeiro foi o construtor de dados, enquanto o segundo tomado como referencial para análise. A articulação teórico-metodológica dessas perspectivas revelou-se ferramenta potente de democratização do conhecimento, contribuindo para as ciências pós-paradigmáticas em efetuar movimento contrário à globalização hegemônica, e revalorizando saberes e experiências consideradas marginais. Para a articulação, apresentamos o Teatro do Oprimido como espaço dialógico, analisando-o à luz da Psicologia Social mediada pela perspectiva da Sociologia das Ausências e das Emergências, buscando desenvolver uma ferramenta de pesquisa e intervenção que conjugue essas abordagens num Teatro das Emergências. Finalizamos discutindo as potencialidades de tal articulação para a pesquisa e intervenção do psicólogo social.

Palavras-chave: Teatro do Oprimido; sociologia das emergências; metodologias participativas; conhecimento coletivo.

RESUMEN

Este artículo se propone una intervención en Psicología Social que integra el conocimiento y práctica de Teatro del Oprimido a la Sociología de las Ausencias y Emergencias, siendo el resultado de la investigación social en que el primero fue el constructor de los datos, mientras que el segundo se toma como referencia para análisis. Una articulación teórica y metodológica de estas perspectivas demostró ser una herramienta para la democratización del conocimiento, contribuyendo para las ciencias post-paradigmáticas en movimiento contrario a la globalización hegemónica, revalorizando conocimientos y experiencias consideradas marginales. La articulación presenta tal Teatro como un espacio dialógico, analizándolo con la Psicología Social y con la concepción de la Sociología de las Ausencias y Emergencias, desarrollando una herramienta de investigación y intervención que combine estos enfoques con el Teatro de Emergencias. Terminamos discutiendo el potencial de la articulación para la investigación y la intervención del psicólogo social.

Palabras clave: Teatro del Oprimido; la sociología de las emergencias; metodologías participativas; conocimiento colectivo.

ABSTRACT

This essay introduces a proposal for intervention in Social Psychology. It integrates the knowledge and practice of Theatre of the Oppressed to the Sociology of Absences and Emergencies. It is a result of social research in which the first was the builder of dispositives while the other taken as a reference for analysis. The articulation of these theoretical and methodological perspectives proved potent tool of democratization of knowledge and contributing to the post-paradigmatic science in making anti-hegemonic-globalization movement revaluing knowledge and experiences considered marginal. For the articulation we present the Theatre of the Oppressed as a dialogic space analyzing it in the light of social psychology mediated by the prospect of Sociology of Emergencies seeking to develop a tool for research and intervention : a Theatre Emergencies. We conclude by discussing the potential of this joint to the research and intervention of the social psychologist.

Keywords: Theatre of the Oppressed; intervention research; participative methods, collective knowledge.

O Teatro do Oprimido (TO) é um método teatral em que a construção do drama é realizada por pessoas que sofrem opressões, conceitualmente consideradas entraves para a realização de desejos e para a experiência de uma vida livre, democrática, humana. O drama é real e estético, teatral e cotidiano, com características próprias que visam facilitar o diálogo com a plateia. No TO, os espectadores passam a ser espect-atores, pois, em vez de afastados da cena e alienados na identificação catártica acrítica, são convidados a participar debatendo e apresentando suas saídas para as situações-limite encenadas.

O TO foi criado por Augusto Boal (1931-2009) como reação à alienação do teatro tradicional, cujo desenho mantém em oposição os técnicos, possuidores da arte e da ideologia que deve ser aprendida e assimilada, e o público, que as recebe passivamente através da percepção adormecida e acrítica. Essa forma de teatro surgiu como método de intervenção num momento de democratização do conhecimento e das decisões públicas, de descolonização dos saberes, da política e da cultura, num movimento contra-hegemônico de globalização. Cada vez mais aceito em áreas acadêmicas e profissionais como a educação, a psicologia, a economia e a comunicação, o TO apresenta-se como ferramenta importante para a participação popular e a criação coletiva de novas subjetivações desalienadas, mostrando-se uma ferramenta também proveitosa na construção de saberes e de políticas, especialmente nos debates sobre a cidadania, a democracia e a resolução de problemas em países do Global Sul (J. A. Nunes, 2003).

Teixeira (2004) sintetiza os objetivos do TO na mudança do espectador do lugar alienado para o de sujeito, ativo em sua história, visando não à contemplação do presente, mas à preparação para o momento seguinte. A Associação Internacional do Teatro do Oprimido (AITO, 2012), por sua vez, salienta, entre as finalidades do TO, uma das mais imprescindíveis: restabelecer o diálogo entre os seres humanos, evitando a construção de relações opressoras e oprimidas. Assim, deve-se promover o intercâmbio livre entre sujeitos, de forma individual ou coletiva, e sua livre participação como cidadãos iguais. Trata-se do ideal de simetria da democracia participativa, tão difícil de ser alcançado, já que todas as relações são atravessadas pelos mecanismos de poder.

Estudos a respeito das experiências com o TO consideram que o debate operado por meio de cenas, falas e emoções diminui a possibilidade de opressão pela forma hegemônica da racionalidade comunicativa (Cecheti, 2004; Leal, 2010). Na perspectiva do TO, solicita-se que os atores construam espetáculos sobre suas próprias opressões e ofertem o palco para que o público participe em cena e desenvolva o diálogo para a produção de transformações em seus lugares discursivos, sendo todo o processo mediado pela figura especializada em TO: o curinga (Boal, 2005b). O TO formula-se como promessa de efetiva validação dessa participação, por sua capacidade de democratizar os debates em espaços públicos de decisão política (Cecheti, 2004; Baiochi, 2006, citado por Leal, 2010). Contudo, alguns autores problematizam a concretização dessa proposta. Leal (2010), por exemplo, em estudo acerca da utilização do TO no orçamento participativo em Santo André, reconhece contribuições da ferramenta TO para a participação política dos cidadãos, ao mesmo tempo que aponta para distorções que reduzem o TO a uma função de animação cultural ou de mantenedor do discurso vigente, pretensamente participativo. O autor chama a atenção para as relações de poder existentes dentro do teatro, sua poética e suas funções. Na mesma linha, Castro-Pozo (2006) problematiza o poder conferido ao curinga que, como sabedor e orador, detém o discurso de controle, concentrando um poder que pode levá-lo a conduções nem sempre democráticas.

Diante desse tipo de problematização, é importante considerar que a participação pode ser hegemônica ou contra-hegemônica. Esta última implica democracia e emancipação a partir do momento em que não confirma discursos hegemônicos, abrindo-se a para novas racionalidades, experiências e sentimentos (J. A. Nunes, 2003). Autores que têm discutido a participação popular na construção do conhecimento científico propõem que os cidadãos realizem todas as etapas da participação –agendamento, debate, deliberação e execução –, podendo, em alguns casos, demonstrar suas questões e saberes antes mesmo do debate dos pontos agendados. Isso resulta no que Santos e Avritzer conceituam como demodiversidade: o reconhecimento da diversidade de concepções e de formas de exercício da democracia, que implica em considerar como base da democracia e da justiça cognitiva as distintas concepções e exercícios das mesmas (J. A. Nunes, 2003; Santos & Avritzer, 2002; Santos, Meneses, & Nunes, 2004). Nessa perspectiva, J. A. Nunes (2003) refere a pedagogia de Paulo Freire, o Teatro do Oprimido de Augusto Boal e as narrativas de testemunho (testimonio) como recursos para projetos de participação pública, "capazes de problematizar as hierarquias cognitivas e de ampliar os repertórios de competências e de conhecimentos que podem ser apropriados pelos cidadãos" (p. 8).

Como é possível perceber, o modelo proposto pelo TO investe numa participação que se pretende conjunta e efetiva. Ele tem embasado leis, ações e conhecimentos, permitindo uma circulação cada vez maior de saberes em diferentes grupos. Schmidt (2006) revê a história da pesquisa participante e a origem do movimento pela "pesquisa-ação-participativa" incluindo suas características normatizadoras, adequadoras de populações marginalizadas numa determinada ordem, mas que em seu desenvolvimento crítico culminam em pesquisas interventivas cuja produção de conhecimento não está separada da transformação social. Sabe-se que uma produção coletiva modifica necessariamente a comunidade que constrói o conhecimento sobre si mesma e sobre suas próprias questões. Maraschin (2004) entende que esse pesquisar proposto pela psicologia social, especialmente nas pesquisas interventivas, deve ser pensado como um conhecimento em ação que produz territórios de subjetivação, instituintes, criativos e produtores de possibilidades e de fenômenos.

A construção teórica que se articula neste ensaio pretende investir no desenvolvimento do TO como ferramenta metodológica ao propor um formato que fortaleça a "pesquisa-ação-participativa" relativa ao entendimento e ao empoderamento do núcleo sujeito-pesquisador, de modo a construir um conhecimento que re-signifique a participação de pessoas de diversas regionalidades e classes. Tal modalidade de pesquisa advém do compromisso da psicologia social latino-americana com a transformação social, atenta ao contexto de exclusão e desapropriação de identidades e experiências, e reflete o movimento anticolonialismo (Spink, 2007). Nas palavras de Boaventura de Sousa Santos (2006), uma globalização contra-hegemônica pode não objetivar a transformação, mas é capaz de gerar transparência e compreensão dos fenômenos.

O Teatro do Oprimido no mundo: a multiplicação do método e suas conquistas

O método do TO foi criado na década de 1970 pelo teatrólogo Augusto Boal, e atualmente é praticado em mais de setenta países por pessoas em total diversidade de gênero, faixa etária, etnia, cultura e profissão, mas que possuem em comum os objetivos de transformação social e desenvolvimento humano por meio da arte.

Em sua obra An Esthetics of the Oppressed, lançada em Londres no início de 2006, Boal propõe que a Estética do Oprimido seja compreendida como ética-raiz de uma árvore de frutos diversificados: teatro, dança, artes plásticas, design, vídeo e música. A Estética do Oprimido baseia-se na possibilidade de expansão do ser humano e em sua expressão pela arte, partindo do pressuposto de que todas as pessoas podem criar e dialogar, re-criando assim a realidade, para si mesmas e para aqueles com os quais interagem (Boal, 2009). Para Teixeira (2004), a base do método é a "forma dialogal" do teatro, integrada aos princípios da pedagogia de Paulo Freire, que concebe o ensino como "transitividade, democracia, diálogo" (p. 120). Segundo Boal, seu método é uma forma de intervenção social e política, visto que "todo mundo pode ensinar e todo mundo pode aprender" (Teixeira, 2004, p. 120).

Diferentes objetivos têm motivado a escolha do TO como ferramenta de pesquisa e intervenção. Vierk (1997) usou o TO para possibilitar o desenvolvimento do raciocínio crítico e da escrita criativa com estudantes do Metropolitan Community College, em Nebraska, Estados Unidos. Fernandes e Joca (2011), no campo da psicologia social, lançaram mão de técnicas do Arco-íris do Desejo para construir dados não verbais sobre a temática da loucura; no mesmo campo, S. B. Nunes (2004) usou o TO como ferramenta de ensino, além de capacitar estudantes como multiplicadores em trabalhos de integração universidade-comunidade. Recursos do TO foram utilizados para promover o debate entre cidadãos sobre a exposição a riscos tóxicos (Sullivan & Parras, 2008). Em sua pesquisa de mestrado, Leal (2010) coloca o TO tanto no lugar de objeto de estudo como no de método de construção de dados, debatendo com o pensamento de Michel Foucault a experiência do TO no Orçamento Participativo de Santo André.

Jester (2003), por outro lado, aborda o TO como método de coleta de dados. O autor relata que suas expectativas foram superadas, pois, além de fornecer-lhe um imenso material para a pesquisa, o TO foi meio de fortalecimento e expressão de desejos das mulheres, sujeitos de sua pesquisa. Campos (2005), em abordagem de intervenção e pesquisa com usuários de um Centro de Atenção Psicossocial, lança mão do TO aliado à psicologia (o Arco-íris do Desejo) e aos conceitos do Teatro Espontâneo (Moreno) e da Psicanálise Contemporânea (Herrmann), concluindo que a expressão cênica das opressões permitiu a sua transformação.

A partir de seus estudos, Campos (2005, 2008) discute as possibilidades de deslocamento do discurso que a ferramenta pode proporcionar ao usuário e profissional de saúde mental – o qual muitas vezes é ventríloquo de discursos opressores manicomiais. Sobre isso, Boal (1996) nos lembra que, ao contar a história, ou revivê-la, o sujeito tem a possibilidade de reescrevê-la.

Outros esforços teórico-metodológicos podem fortalecer e dar sentido ao TO como multiferramenta (participação, transformação, pesquisa-ação, intervenção). Destacamos aqui a contribuição da Sociopoética de Jaques Gauthier, que integra as técnicas e o pensamento do TO a outros pensamentos teóricos para possibilitar a produção de conhecimento intercultural nas áreas de saúde e ciências humanas. A Sociopoética apresenta-se como resistência ao massacre cultural, ampliando e valorizando culturas locais, crenças, religiosidades e ciências marginalizadas, além de permitir a prática de uma ciência mais sensível. Gauthier integra o TO à pedagogia de Paulo Freire, aliando as ideias de Deleuze e Bakthin, num movimento próximo ao iniciado pela psicologia social brasileira na década de 1980 com a organização do livro sobre pesquisa participante de Carlos Brandão (1981), como bem lembra Spink (2007).

A valorização de saberes populares e coletivos tem se constituído o maior desafio da psicologia social em sua busca para manter-se eticamente disponível para a escuta e para o olhar, reconhecendo-se parte do objeto. Os sujeitos são participantes da interpretação e do resultado final, em oposição à neutralidade e à exatidão positivistas, necessárias ao reconhecimento científico tradicionalmente praticado. Acerca desse caminho que Spink (2007) nomeia de anticolonialismo epistemológico, as fendas abissais entre os saberes e culturas devem ser minoradas "colocando as ferramentas de produção de conhecimento à disposição da produção coletiva" (Spink, 2007, p. 9). Nessa perspectiva, toda a obra de Boaventura de Sousa Santos critica a universidade atual ao propor uma "universidade de ideias" e contribuir ao debate da psicologia no que se refere à ética e ao compromisso social e de emancipação da ciência dos investigadores da área. Schmidt (2006) faz um apelo a se repensar as dimensões éticas da pesquisa participante e em seu potencial para aglutinar possibilidades de ruptura com a lógica positivista, que separa sujeitos de objetos, sujeitos de suas próprias experiências e suas possibilidades em interpretar suas vivências juntamente com os considerados experts.

A comunicação por meio da linguagem dramática ainda não tem seu caráter científico reconhecido. Para que isso ocorra, tem sido submetida a traduções da estética em racionalidades hegemônicas (J. A. Nunes, 2003). Essa racionalização da arte faz com que a estética pareça única, tornando sua leitura possível apenas aos poucos que a dominam e compreendem, sabidamente as classes mais valorizadas socialmente. Há ainda a supressão ou achatamento dos opositores da razão que valorizam a emoção, a espiritualidade, a arte e a cultura nas pesquisas consideradas científicas. Desse modo, o teatro não poderia ser ciência, assim como para alguns a psicologia só seria ciência se tocasse a alma como coisa, chamando-a, por exemplo, de comportamento observável ou de pensamento descritível.

A expressão possibilitada pelo TO emerge como expressão do desejo de sujeitos que se chocam com alguma realidade voltada para a não realização desse desejo. Tal ponto, especificamente, requer a efetiva participação dos cidadãos. A participação não pode limitar-se à elaboração de temas, ou à sua demonstração e debate: mesmo tendo etapas imprescindíveis, a cidadania se efetiva na ação sobre o espaço – que então poderá ser habitado pela diversidade dos desejos. As soluções encenadas ou debatidas, se compreendidas como prontas ou literalmente utilizáveis, podem acabar inertes no chão, desperdiçadas. Apenas a prática política da discussão já seria válida, mas certamente seria desejável que resultados práticos fossem possíveis. Para isso, o TO possui uma ferramenta inigualável: o Teatro Legislativo, que possibilita que cidadãos comuns possam legislar e garantir, de forma normatizada, seus direitos. Neste ponto, podemos relacionar a prática educativa do TO com sua prática legislativa. Para uma sociedade de fato democrática, é imprescindível a participação popular na consolidação de políticas públicas, e isso requer um trabalho que auxilie os sujeitos a pensar as relações de poder envolvidas em suas questões, permitindo a ampla discussão de suas necessidades, bem como sua expressão.

No Teatro Legislativo, a comunidade pode participar da elaboração democrática de leis – que são discutidas não apenas verbalmente, mas com base nas encenações de espect-atores que entram em cena para apontar alternativas e soluções a questões conflituosas dramatizadas pelo grupo. Sendo assim, a participação popular pode se dar de duas maneiras: como ator-construtor ou como ator-plateia (Boal, 1996). Exemplificando concretamente o poder democratizante do TO, pode-se citar o fato de que, no estado e na cidade do Rio de Janeiro, o Teatro Legislativo gestou e produziu leis municipais e outros documentos legais com a participação da população. O Teatro Legislativo é fruto do mandato de vereador, na cidade do Rio de Janeiro, de Boal. Durante quatro anos, os companheiros de Teatro do Oprimido que o acompanharam durante a campanha o assessoravam em seu gabinete. Esta assessoria agregava grupos de interesse que tinham participação direta nas ações do vereador. Já no estado de São Paulo, o Teatro Legislativo foi integrado às sessões de Orçamento Participativo no período de 1998-2002.

Certamente, esta brevíssima incursão pelo TO não abrange a totalidade de seu alcance: centenas de projetos se desenvolvem mundo afora. Interessa-nos, contudo, tornar claras a conexão ética e a potência democrática que circulam em tais meios, ao mesmo tempo que não nos negamos a mostrar que, como práxis, o TO se submete às instituições e pessoas, poderes que se impõem de maneira evidente ou sutil, mas que sempre estão presentes nas relações, mesmo as mais criativas e libertárias.

Teatro das emergências: uma aposta proposta à Psicologia Social

A experiência de campo e a revisão de literatura demandadas por nossa pesquisa de doutorado indicaram a articulação com referencial teórico coerente com a proposta de investigação. Esta resultou em estágio no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal, com vistas a ampliar as possibilidades do TO como ferramenta de pesquisa social. Durante o estágio, em contato com as ideias do movimento de globalização contra-hegemônica em aulas, seminários, palestras e leituras do orientador Boaventura de Souza Santos, propusemos uma nova experiência na versão Beta de nossa proposta. Beta por não estar pronta, como sugeriu Boal (1996) ao escrever sobre o Teatro Legislativo, dando a entender que era uma versão com o já vivido e com o que poderia vir a ser, podendo o leitor compor as ideias e contribuir com sugestões e críticas.

Para explicitar as fontes práticas, serão expostas as experiências que tivemos antes do estágio em Coimbra. A primeira foi nossa construção de dados em um Centro de Atenção Psicossocial de uma cidade de Minas Gerais, onde nos propusemos a montar com os trabalhadores de saúde mental um espaço quinzenal de duas horas durante dois meses e meio. Naquele espaço, utilizamos jogos de TO e técnicas de teatro imagem e fórum relâmpago (Boal, 2005a) para abordar os impasses no trabalho e as contradições entre o discurso e a prática do trabalhador. Aquecíamos o grupo usando jogos do arsenal do TO e disparando perguntas sobre o serviço para que pudessem formar imagens e cenas, debatendo e propondo mudanças; todo o trabalho teve supervisão de um pesquisador mais experiente. No último encontro, levamos todas as informações que havíamos construído com algumas impressões críticas já elaboradas; o material foi lido junto ao grupo e este opinou, discordou de alguns pontos, retirou outros, acrescentou outras impressões e esclareceu várias questões. Tal momento de democratização da organização dos resultados se sustentava na Sociopoética de Gauthier (2005).

O debate final foi imensamente produtivo, porém cheio de falhas: tanto o pesquisador quanto os trabalhadores pareciam intimidados pela posição de poder da pesquisa acadêmica. De um lado, havia o medo de excessos nas críticas e colocações, e de outro uma aceitação às vezes frágil ou uma rebeldia reativa, acrítica. Um questionamento que germinou naquele instante: é possível democratizar resultados sem posteriormente canibalizar o conhecimento hierarquizado do escopo científico?

A resposta foi sendo gestada durante o estágio em Coimbra. Depois de três meses de intensos estudos, propusemos aos colegas do Grupo de Teatro do Oprimido (GTO-Coimbra) a produção de um trabalho para a experimentação do então formulado Teatro das Emergências. Entusiasmados, construímos um espetáculo em que apenas mãos apareciam, e elas falavam da marginalidade geográfica dos grupos de resistência social na cidade em relação à Universidade de Coimbra – que se encontra no topo de um íngreme morro, com claras dificuldades de acesso, o que ocasionou a interessante reprodução de algo que o grupo citava "os acadêmicos ficam em cima, quem trabalha mesmo na sociedade está cá abaixo" (fala de um ator em 2007). O trabalho cênico Cada macaco no seu galho foi então apresentado em um restaurante para os alunos de Direito do professor Boaventura de Sousa Santos e para mais dois professores. Embora o Trabalho de Tradução não tenha sido possível, o debate foi extremamente rico, revelando as contradições e a impossibilidade de diálogo entre o fora e o dentro da academia. Mesmo não havendo experimentação escrita do Teatro das Emergências, pudemos colocar em evidência o desafio de viabilizar a real aproximação entre ativistas sociais (saberes e práticas populares) e o saber acadêmico.

Assumindo a ferramenta TO como ponto de partida, objetivamos a produção de um conhecimento científico, popular, intercultural, contemporâneo, com potencial para viabilizar e fortalecer ações sociais contra-hegemônicas. Para o doutorado, os encontros com jogos de TO junto a profissionais de saúde mental foram suficientes para responder às questões propostas, mas havia algo ainda silenciado. A escrita final e o pensamento concludente ainda eram os do autor acadêmico. Para que a pesquisa esgotasse suas questões e pudesse concluir-se num discurso democratizado, pensamos ser necessária uma Ecologia de Saberes, segundo a qual não existem epistemologias neutras; e daí nosso esforço no sentido não de um teatro dialógico, pois este já estava presente, mas de uma pesquisa interventiva que alie uma linguagem universalmente conhecida, a expressão cênica, a produções densas sobre questões que estão nas intersecções entre os grupos.

Toda essa integração de conceitos, ferramentas e métodos requer algumas explicações e explicitações. Nesse aspecto, optamos por apresentar tais ideias lançando mão de um recurso artístico: música-poesia. O referido método permite apresentar um espaço abstrato para o encontro de campos culturais, de saberes sociais distintos, um espaço que cremos ser mais favorável à ocorrência de um diálogo com "conjugação de tempos, ritmos e oportunidades" (Santos, 2006, p. 145). A poesia e a música de Arnaldo Antunes e Branco Mello (1991) nos servem de ilustração para o espaço de diálogos que chamaremos de entrecampo:

Eu não sou da sua rua/Eu não sou o seu vizinho/Eu moro muito longe sozinho/Estou aqui de passagem/Eu não sou da sua rua/Eu não falo sua língua/Minha vida é diferente da sua/Estou aqui de passagem/Esse mundo não é meu/Esse mundo não é seu. (Antunes & Mello, 1991)

Trata-se do canto de um pesquisador que se propõe a pensar um determinado grupo? Trata-se da voz de um estrangeiro em viagem? Ou ainda, seria a palavra de uma pessoa dada como normal a olhar para os sujeitos chamados loucos?

Especialmente neste trabalho, entendemos que o músico-locutor dessa letra-poesia parte de um entrecampo, de um espaço estranho ao seu mundo, e que ele lida com um interlocutor que também lhe é estranho. Tal mundo, que não é apropriação nem de um envolvido (o cantor), nem do outro (o ouvinte), está num espaço criado pela relação dos interlocutores num campo intersubjetivo, intercultural, onde se constrói essa relação. Um espaço que permite que o dialético aconteça. Esse mundo estético e intersubjetivo criado na interação dos estranhos, analogamente ao entrecampo, é um espaço criado para fins de encontro, em que pode ocorrer uma interpretação mútua quando um conhece-reconhece o outro simultaneamente.

A criação do entrecampo remete-nos novamente à Ecologia de Saberes, e sobretudo à referência que Santos (2006) faz à dialética autonomia-interdependência dos saberes: "A ecologia dos saberes assenta na independência complexa entre os diferentes saberes que constituem o sistema aberto do conhecimento em processo constante da criação e renovação. O conhecimento é interconhecimento, é reconhecimento, é autoconhecimento" (p. 145).

Sem o inverso simultâneo conhecimento-reconhecimento, que permite o interconhecimento, a tendência é que um dos campos seja ignorado ou dominado pelo outro. Relacionando isso com uma proposta de pesquisa dialógica (sendo tal trabalho fruto de uma pesquisa nesses termos), precisamos do entrecampo para o conhecimento-reconhecimento simultâneo entre pessoas, culturas e saberes. Logo, acreditamos que é nesse espaço de fluxo que pode haver uma tradução dos conteúdos ou fluxos perpassados. No entanto, a hipótese de um entrecampo não extingue as tendências dos grupos ou saberes para suas lógicas, mas os coloca em pé de igualdade com outras lógicas, sem necessidade de ataque ou defesa antecipada. Esse é o espaço de acontecimento do TO, ou pelo menos o que Boal (1996) acreditava ser o encontro de grupos abertos à conversa solidária. Hipoteticamente, podemos pensar que, se um grupo aborda a temática da saúde coletiva numa encenação para um grupo do Movimento dos Sem-Terra (MST), ele não estará encenando para defender sua posição ou suas ideias, nem para perdê-las de vista – cientes de seus objetivos e conhecimentos, todos estão convidados ao diálogo horizontalizado.

Em nenhum momento defendemos o entrecampo como espaço neutro. Em tudo que descrevemos, nada se vê neutro, tampouco seu contrário. No entrecampo, captam-se multiplicidades, diversidades, agenciamentos, linhas de fuga das quais pensamos nos reservar em nossos guetos. Existem relações de poder no entrecampo se "esse mundo não é meu, esse mundo não é seu"? De quem é, afinal, esse mundo?

Foucault (1993) nos fala de um poder onipresente, que é produzido em todos os pontos, a todo instante, estando, portanto em toda parte.

O mundo do entrecampo abriga as relações de poder de um modo participativo. Trata-se de um espaço em que tudo e todos podem ser colocados em xeque: devem ser colocados em suspensão para chegar a compreender o lugar de onde falam. Numa sessão de TO, estamos em busca dos atravessamentos de nossos discursos. Essa busca é um direito de todos, e um dever do curinga, o mediador.

É importante esclarecer, todavia, que, ao tomarmos o conceito de entrecampo, não excluímos nem colocamos em causa a percepção da existência de zonas de contato – "Zonas de Contacto são campos sociais onde diferentes mundos-da-vida normativos, práticas e conhecimentos se encontram, chocam, interagem" (Santos, 2006, p. 120). Entrecampo é um termo criado para favorecer o reconhecimento do espaço do diálogo e da tradução: espaço utópico onde os interlocutores que se propõem ao Trabalho de Tradução apropriam-se de um lugar comum que não implica invasão ou destruição, um ENTRE, desde que depois possam retomar seus caminhos distintos, garantindo a utopia do interconhecimento. Para Santos (2006), tal utopia consiste em "apreender novos e estranhos saberes sem necessariamente ter que esquecer os anteriores e próprios. É esta ideia de prudência que subjaz à ecologia dos saberes" (p. 99).

No desdobramento proposto aqui, o TO entra em cena nesse entrecampo, no momento em que se instaura o diálogo entre dois ou mais campos e se realiza o Trabalho de Tradução.

O entrecampo como espaço que assegura a ética de debates democráticos e traduções de conhecimento é um espaço que podemos visualizar em grande parte das sessões de Teatro Fórum e Teatro Legislativo, os quais detalharemos adiante descrevendo também a adaptação necessária para que sejam verdadeiras ferramentas de pesquisa interventiva.

O Teatro Fórum e o Teatro Legislativo são duas modalidades muito utilizadas e potentes do TO. Consistem na montagem cênica de um espetáculo pautado nas questões de um grupo social. Em ambos os casos, o grupo deixa emergir seus temas por meio dos exercícios do arsenal de técnicas de sensibilização e expressão cênica do Teatro do Oprimido, amparados pelo facilitador-curinga. O curinga facilita o conhecimento dos jogos, da filosofia e do método do teatro com o grupo em que se encontra; estimula-o a contar suas histórias de forma teatral e então expor seus desejos, lutas e direitos barrados por opressões internas ou opressões externas. Essas expressões são transformadas conjuntamente com o auxílio dos curingas em encenações teatrais, ensaiadas e apresentadas ao público.

No Teatro Fórum, os espect-atores presentes são aquecidos pelo curinga, questionados sobre suas percepções do espetáculo que assistiram, sobre as relações de opressão existentes e sobre possíveis alternativas para transformar a situação de opressão apresentada. O curinga expõe as regras do Fórum e entra em acordo com a plateia, propondo que, na discussão das alternativas, as ideias sejam encenadas em vez de verbalizadas. Assim, podemos entrar no lugar de uma personagem para evitar a opressão ocorrida, atentando para o fato de que as saídas milagrosas não resolveriam a questão numa situação real; por isso, devemos buscar saídas possíveis. Por exemplo, seria uma saída milagrosa numa cena de machismo tomar o papel do homem e encená-lo como um gentil defensor da igualdade entre homens e mulheres. Espera-se, de fato, que o oprimido e seus coadjuvantes desfrutem de novas possibilidades contra a opressão, e não que haja uma conversão moral e ética dos opressores antes mesmo de um diálogo.

Outro acordo importante a ser feito com os espect-atores é que nas intervenções do fórum não usem agressão física: podem interpretá-la, mas não executá-la, pois a segurança física de todos precisa ser preservada.

O Teatro Legislativo perfaz o mesmo caminho, com o diferencial de que, além de intervir cenicamente e discutir, os espect-atores escrevem em papéis suas propostas de leis que respaldam uma ou mais alternativas para a(s) opressão(ões) colocada(s). Tais propostas são analisadas por um grupo numa mesa conhecida como "célula metabolizadora", que as sintetiza e as leva novamente ao público para serem discutidas, votadas e submetidas aos órgãos legislativos públicos.

É no formato do Teatro Legislativo que ocorre a articulação do TO com o pensamento sociológico que Boaventura de Sousa Santos desenvolveu em duas direções: a Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências. Constituem-se em exercícios contra o desperdício das experiências sociais e de saber do nosso presente, para ampliá-lo ao invés de negá-lo em prol de um futuro pessimista, ou pior, derrotista (Santos, 2006). No sentido de viabilizar respostas para o sufocamento do presente, causado tanto pela ciência quanto pelo capitalismo massacrante, a Sociologia das Emergências "expande o domínio das experiências sociais possíveis" (Santos, 2006, p. 112). Assim, entendemos que ela toma em consideração as possibilidades futuras de um campo e vislumbramos um Teatro Legislativo na forma de um Teatro das Emergências.

O Teatro das Emergências é a ferramenta do TO compromissada em dilatar o presente e arriscar-se em traduções de culturas, grupos ou saberes, contribuindo para um interconhecimento e uma emancipação dos mesmos por meio do cultivo da Ecologia dos Saberes. Nas palavras de Santos (2006): "A Tradução é um procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis quanto as possíveis, reveladas pela sociologia das ausências e a sociologia das emergências" (p. 114).

O TO no trabalho de Tradução se realiza no formato do Teatro Legislativo, organizado em momentos importantes de seu processo. O primeiro é o da Montagem, em que o curinga desenvolve texto e encenação a partir das experiências dos grupos e conjuntamente com eles; isso se dá por meio de técnicas que envolvem jogos, exercícios e debates que permitem o diálogo estético sobre as problemáticas que determinado grupo se propõe a pensar e solucionar. O grupo trabalha, com a mediação do curinga, para identificar as limitações de seu conhecimento sobre aquilo que está propondo para superar a opressão sugerida. A ausência deve ser encenada pela impotência, pela repetição de padrões falidos, por meio da importação ou imposição de leis e regras insuficientes para os problemas apresentados.

O grupo pode, ao mesmo tempo, representar por meio de sua estética cênica aquilo que pensa e sabe sobre o que está falando e, ainda, quais são seus recursos e meios para transformar essas realidades. Os espetáculos de TO em geral expõem o fracasso do protagonista ao tentar exercer um direito ou realizar um desejo que é oprimido, frustrado. A derrota do protagonista oprimido é a oportunidade para que novas potências entrem em cena, por isso é inevitável que ela aconteça.

Ao final dessa primeira etapa da encenação, o público recebe do grupo papel e canetas e é informado pelo curinga que eles lhes servirão, caso sintam necessidade, para a redação de questões resultantes do espetáculo e do fórum que o seguirá, devendo registrar as emergências: o que já existe em outros campos e que pode contribuir no presente para a situação? Quais são as possibilidades de emancipação visualizadas para o que foi abordado e debatido no fórum? O que se pode fazer no presente e num futuro próximo para mudar as situações conflituosas e as relações de opressão encenadas?

Em seguida, tem início o Teatro Fórum: o público é convidado a entrar em cena para buscar alternativas às situações de opressão apresentadas e discutir a respeito delas. A partir disso, é preparado o material da Tradução (o grupo e os espect-atores escrevem acerca do conflito encenado e das alternativas possíveis). Após as intervenções cênicas em fórum com as devidas discussões, o curinga estipula um prazo para que os espectadores finalizem os escritos que serão entregues à mesa de tradução.

A mesa de tradução (ou célula metabolizadora) é composta inicialmente por dois convidados que devem ser considerados capazes de representar seus respectivos grupos, um integrante do grupo que levantou a temática em questão e outro do grupo com o qual o espetáculo se propôs a dialogar. Um terceiro componente deve ser eleito pelos presentes e tem a função de acompanhar a redação - representa o encontro dos grupos.

Como exemplo, podemos pensar na construção de uma nova assistência nas instituições de saúde mental convidando os usuários de uma instituição para falar dos impasses da relação especialista-usuário, loucura-norma. Logo, na mesa de tradução, podemos contar com um representante dos usuários, um representante dos terapeutas e, ainda, um representante da comunidade escolhido pelos espectadores, que pode ser outro usuário, um familiar, um técnico de saúde ou administrativo.

Composta a mesa e findado o prazo combinado entre curinga e plateia, os papéis são recolhidos e entregues à mesa tradutora. Os componentes da mesa de tradução devem ler todos os escritos e buscar encontrar semelhanças entre alguns, assim como oposições claras, organizando as ideias para que possam fazer um trabalho de síntese sem a supressão de conteúdos, mesmo que pareçam banais.

Boaventura de Sousa Santos (2006), ao desenvolver os procedimentos do Trabalho de Tradução, atenta que, mesmo ao se tratar de um trabalho argumentativo, a tradução não deve partir dos topoi – que são os "lugares comuns e constituem o consenso básico que torna possível o dissenso argumentativo" (p. 123). Os componentes da mesa tradutora, por esse prisma, devem estar cientes de que, partindo dos seus pressupostos sem uma visão cosmopolita – ou seja, que considere a diversidade e se proponha a pensá-la não a partir de si mesma –, estarão fadados a um texto cindido, em partes e linguagens distintas que selarão não um diálogo, mas a coexistência de monólogos. Um texto coeso não significa um texto de consensos, mas um texto de inteligibilidade mútua. A mesa tradutora é uma mesa de sujeitos-pesquisadores-participantes que estão, assim como o investigador social, de acordo com a ideia de que "a atividade do explicar não é de desvelar um segredo natural ou essencial, mas sim de construir um critério explicativo aceitável em uma comunidade de observadores" (Maraschin, 2004, p. 104); e também com o fato de que, mediados pelo curinga-pesquisador junto aos espect-atores-pesquisadores, estarão atentos à ética da emancipação – devendo abrir mão, se necessário, da solidez da individualidade para permitir-se a participação solidária na universalidade do conhecimento, e assim entendendo que "toda autoria é, ao mesmo tempo, exercício de autonomia e de implicação, de responsabilidade pelo que se cria" (Maraschin, 2004, p. 104).

O quarto momento ainda em sessão, após um período de intervalo para os espect-atores, acontece quando a mesa tradutora lê o resultado do seu trabalho, que pode ser um texto em forma de artigo, um relatório da sessão ou um plano de estratégias. Existe a possibilidade de que este texto seja ao mesmo tempo relatório, artigo e plano, sendo acessível a vários grupos. Os espect-atores irão, por fim, votar a favor ou contra o texto, discutindo o que discordam ou concordam e, finalmente, como se dará a ação e a divulgação da construção conjunta. Em trabalhos de curingagem, podemos presenciar a discussão de alternativas amplamente elogiadas que não ultrapassam a sessão de fórum; algumas resoluções de sessões de Teatro Fórum resultaram em atitudes, passeatas, diálogos, projetos, em transformações ou leis que as supõem. Entendemos, assim, que o Teatro das Emergências nada mais é que o Teatro Legislativo com enfoque de investigação social coletiva, e desejamos transformar diálogo e alternativas em conhecimento inter/interpretado.

Considerações finais

O TO é uma ferramenta potente no Trabalho de Tradução, pois operacionaliza o debate e a produção de interconhecimentos que podem respaldar efetivamente ações nos campos sociais, culturais ou de saberes. A potência dessa ferramenta emerge em nossos estudos anteriores com usuários de centros de atenção psicossocial no mestrado, e junto a trabalhadores da saúde mental no doutorado. Nos dois estudos, a ferramenta nos possibilitou acessar os mais variados discursos e expressões sobre as temáticas abordadas, assim como perceber deslocamentos dos sujeitos em relação a seus espaços discursivos. Eles se tornaram mais autônomos em relação à pesquisa, mais sujeitos do conhecimento produzido.

Ainda não temos conclusões em relação à criação da forma articulada e ampliada do TO, o Teatro das Emergências, visto que está por se concretizar de forma metódica para concluir-se como estudo e como possibilidade de verdadeira derrocada do formato pouco inclusivo do conhecimento científico. Este, em sua rigidez, afasta o que considera ignorante, e que na sua ignorância não entende o que o outro diz.

De maneiras mais ou menos formais, conhecimentos coletivos estão sendo construídos. No campo da psicologia social, muitos cientistas têm se embrenhado em pesquisas participantes e interventivas, como é o caso de nossa proposição. Desejamos, por fim, criar condições próprias para um Teatro das Emergências que, sobre os pilares da psicologia social e comunitária e da ética que as desenha, irá tomar corpo prático e difundir uma nova maneira de realizar pesquisas interventivas, finalidade primordial deste desenvolvimento teórico.

Tal desenvolvimento só se tornará possível num espaço e num tempo em que, de fato, os conhecimentos não hegemônicos estejam horizontalmente disponíveis e qualificados, assim como Santos (2006) pensa ser o espaço das Universidades Populares dos Movimentos Sociais, um lugar de aprofundamento do "interconhecimento no interior da globalização contra-hegemônica mediante a criação de uma rede de interacções" (p. 157).

As cenas trágicas permanecem em nosso cotidiano e, embora estejamos com os olhos nublados por saberes prontos, não há como a sociedade brasileira negar a questão da violência, nem sempre ligada aos problemas econômicos da população. A complexidade das tragédias toma formas absurdas. A violência é global e local, é física, jurídica, cognitiva, moral. O Teatro das Emergências, nesse contexto, é um convite à construção de ações e saberes coletivos, considerando que o humano que encena suas opressões no Teatro do Oprimido é um humano coletivo e, ao mesmo tempo, singular, é sujeito político, psíquico, social e histórico: ele encena um tempo, uma experiência, uma condição determinada, um desejo; encena suas próprias representações das vivências opressoras e as experimenta em grupo, condição em que potencialmente elas ganham sentido, tranformam e são transformadas.

Agradecimento

À CAPES pelo apoio através de bolsa DS à primeira autora.

Submissão em: 27/02/2012

Revisão em: 01/09/2012

Aceite em: 17/11/2012

Fernanda Nogueira Campos é docente de psicologia das Faculdades Metropolitanas Unidas- FMU/SP, Doutora pelo Programa de Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP); Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU); Graduada em Psicologia pela UFU. Endereço: Rua Margarita Castorino Alves de Proença, 219, Butantã, São Paulo/SP, Brasil. CEP 05587-140. E-mail: fnocam@gmail.com

Maria Paula Panúncio-Pinto é Doutora em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, docente do curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP. Ribeirão Preto/SP, Brasil. E-mail: mapaula@fmrp.usp.br

Toyoko Saeki é Doutora em Enfermagem Psiquiátrica pela USP; Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da EERP-USP., Ribeirão Preto/SP, Brasil. E-mail: maryto@eerp.usp.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2014

Histórico

  • Aceito
    17 Nov 2012
  • Revisado
    01 Set 2012
  • Recebido
    27 Fev 2012
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