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Produtivismo e precariedade subjetiva na universidade pública: o desgaste mental dos docentes

Productivismo y precariedad subjetiva en la universidad pública: el desgaste mental de los docentes

Productivity and subjective precariousness in the public university: the professors' wear down

Resumos

Nos últimos anos, tem-se observado cada vez mais características típicas de mercado presentes na universidade pública. No Brasil, o aspecto com maior destaque nas publicações é o "produtivismo acadêmico", que tem como mote a ênfase na quantidade de produções bibliográficas. Neste artigo, busca-se discutir as características desse modelo, partindo-se do pressuposto que ele conduza a uma situação de precariedade subjetiva para os docentes. Para tal, apresenta-se o resultado de uma pesquisa qualitativa com professores de uma universidade pública, realizada por meio de entrevistas reflexivas. Os resultados indicam que a precariedade subjetiva vivenciada leva a um desgaste mental, o qual, por sua vez, pode ter como consequência o sofrimento psíquico e o adoecimento. Apesar de se mostrarem conscientes do processo que vivenciam, alguns docentes buscam adotar táticas individuais cotidianas de "sobrevivência", enquanto as estratégias coletivas com vistas à transformação são pouco enfatizadas.

psicologia social; produtivismo acadêmico; saúde do trabalhador; trabalho docente; universidade


Durante los últimos años, se ha observado cada vez más características típicas del mercado presentes en la universidad pública. En Brasil, el aspecto con mayor destaque en las publicaciones es el "productivismo académico", que tiene como lema el énfasis en la cantidad de producciones bibliográficas. En este artículo, se busca discutir las características de ese modelo, partiendo del presupuesto de que éste conduzca a una situación de precariedad subjetiva en los docentes. Para ese fin, se presenta el resultado de una pesquisa cualitativa con profesores de una universidad pública, realizada por medio de entrevistas reflexivas. Los resultados indican que la precariedad subjetiva vivenciada lleva a un desgaste mental, el cual, a su vez, puede tener como consecuencia el sufrimiento psíquico y el padecimiento. A pesar de ser conscientes del proceso que vivencian, algunos docentes buscan adoptar tácticas individuales cotidianas de "sobrevivencia", mientras que las estrategias colectivas orientadas a la transformación son poco enfatizadas.

psicología social; productivismo académico; salud del trabajador; trabajo docente; universidad


In the past years, the public university has showed more and more market like characteristics. In Brasil greater highlight has been given, in scientific works, to the "academic productivity" which has, as its central theme, the emphasis in the amount of academic publishing. This article aims to discuss the characteristics of this particular paradigm , assuming that it leads to a situation of subjective precariousness to professors. To do so, the result of a qualitative research, developed through reflexive interviews with professors of a public university, is presented. The results point that the experienced subjective precariousness leads to mental wear down which thence, might present as a consequence, psychic suffering and illness. Although aware of the process, some professors adopt individual daily "survival" techniques, while collective strategies aiming transformation are poorly emphasized.

social psychology; academic productivity; occupational health; academic work; university


ARTIGOS

Productivity and subjective precariousness in the public university: the professors' wear down

Marcia Hespanhol Bernardo

Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas/SP, Brasil

RESUMO

Nos últimos anos, tem-se observado cada vez mais características típicas de mercado presentes na universidade pública. No Brasil, o aspecto com maior destaque nas publicações é o "produtivismo acadêmico", que tem como mote a ênfase na quantidade de produções bibliográficas. Neste artigo, busca-se discutir as características desse modelo, partindo-se do pressuposto que ele conduza a uma situação de precariedade subjetiva para os docentes. Para tal, apresenta-se o resultado de uma pesquisa qualitativa com professores de uma universidade pública, realizada por meio de entrevistas reflexivas. Os resultados indicam que a precariedade subjetiva vivenciada leva a um desgaste mental, o qual, por sua vez, pode ter como consequência o sofrimento psíquico e o adoecimento. Apesar de se mostrarem conscientes do processo que vivenciam, alguns docentes buscam adotar táticas individuais cotidianas de "sobrevivência", enquanto as estratégias coletivas com vistas à transformação são pouco enfatizadas.

Palavras-chave: psicologia social; produtivismo acadêmico; saúde do trabalhador; trabalho docente; universidade.

RESUMEN

Durante los últimos años, se ha observado cada vez más características típicas del mercado presentes en la universidad pública. En Brasil, el aspecto con mayor destaque en las publicaciones es el "productivismo académico", que tiene como lema el énfasis en la cantidad de producciones bibliográficas. En este artículo, se busca discutir las características de ese modelo, partiendo del presupuesto de que éste conduzca a una situación de precariedad subjetiva en los docentes. Para ese fin, se presenta el resultado de una pesquisa cualitativa con profesores de una universidad pública, realizada por medio de entrevistas reflexivas. Los resultados indican que la precariedad subjetiva vivenciada lleva a un desgaste mental, el cual, a su vez, puede tener como consecuencia el sufrimiento psíquico y el padecimiento. A pesar de ser conscientes del proceso que vivencian, algunos docentes buscan adoptar tácticas individuales cotidianas de "sobrevivencia", mientras que las estrategias colectivas orientadas a la transformación son poco enfatizadas.

Palabras-clave: psicología social; productivismo académico; salud del trabajador; trabajo docente; universidad.

ABSTRACT

In the past years, the public university has showed more and more market like characteristics. In Brasil greater highlight has been given, in scientific works, to the "academic productivity" which has, as its central theme, the emphasis in the amount of academic publishing. This article aims to discuss the characteristics of this particular paradigm , assuming that it leads to a situation of subjective precariousness to professors. To do so, the result of a qualitative research, developed through reflexive interviews with professors of a public university, is presented. The results point that the experienced subjective precariousness leads to mental wear down which thence, might present as a consequence, psychic suffering and illness. Although aware of the process, some professors adopt individual daily "survival" techniques, while collective strategies aiming transformation are poorly emphasized.

Keywords: social psychology; academic productivity; occupational health; academic work; university.

1. O capitalismo acadêmico

Pode-se dizer que existe um consenso entre aqueles que se dedicam aos estudos do trabalho de que este tem sofrido mudanças significativas nas últimas décadas. Mas o consenso termina nesse ponto, pois quando se busca entender que mudanças são essas, encontram-se avaliações bastante distintas e até opostas. De um lado, está o discurso predominante na literatura de gestão empresarial, que apresenta um enfoque bastante otimista e, de outro, estudos, especialmente no campo das ciências sociais, que buscam mostrar que tais mudanças se dão na direção da precarização do trabalho em um contexto de economia globalizada (Franco, Druck, & Seligmann-Silva, 2010; Linhart, 2009).

A maior parte dos estudos realizados nesta última perspectiva focaliza os trabalhadores de empresas privadas e aponta que uma das principais características que marca "novo espírito do capitalismo" (Boltanski & Chiapello, 1999) é a "flexibilidade". No entanto, Blanch-Ribas e Cantera (2011) afirmam que a atual lógica capitalista foi tão eficiente que já extrapolou os limites do mundo empresarial, tendo colonizado quase todos os âmbitos da vida humana individual e coletiva. Assim, essa retórica da flexibilidade atinge também a saúde e a educação, chegando à universidade.

Ao analisar os "comportamentos de mercado ou do tipo de mercado" observados em universidades na década de 1990, Slaughter e Leslie (1997) desenvolveram a noção de "capitalismo acadêmico". De acordo com eles, naquela época, era possível identificar, em universidades americanas e australianas, uma crescente introdução de atividades diretamente relacionadas ao mercado capitalista, como a parceria com indústrias para desenvolver produtos de interesse dessas.

Posteriormente, esses autores revisaram e ampliaram essa noção, buscando mostrar que, mais do que nas atividades ou nos comportamentos, o capitalismo acadêmico pode ser observado no nível da ideologia (Slaughter & Leslie, 2001). Dessa forma, buscaram fornecer uma base teórica que ajudasse a compreender o movimento não linear que tem levado as universidades de muitos outros países a se aproximarem da lógica de mercado. Segundo Ibarra-Colado (2003), a concepção de capitalismo acadêmico proposta por Slaughter e Leslie (2001) ajuda a explicar a reestruturação da educação superior no contexto da globalização, que vai além da relação direta entre universidades e empresas privadas, implicando também "mudanças organizativas substanciais, que levaram à adoção de novas formas de organização" (p.1060).

Blanch-Ribas e Cantera (2011) mostram como, apesar de documentos dos principais órgãos representativos da educação - como a UNESCO, no nível mundial - ainda ressaltarem "valores da mais pura tradição universitária, como a universalidade do saber, humanismo, iluminismo e crítica social, autonomia, liberdade" (p. 518), o que tem pautado a prática das universidades nos mais diversos países são diretrizes da Organização Mundial do Comércio e do Banco Mundial, que pregam reformas nos serviços públicos visando à redução de custos, à eficiência e à produtividade.

A preocupação com as consequências da atual lógica que rege a atividade universitária pode ser identificada em publicações e trabalhos acadêmicos nos mais diversos países. Assim, além dos autores já referidos, pode-se citar algumas obras a título de exemplo, tais como o artigo de Anderson (2008) sobre a resistência docente à lógica gerencial implantada nas universidades australianas; artigo de Blanch-Ribas e Cantera (2011) sobre a situação europeia; o trabalho de Sisto-Campos (2005) sobre a precariedade docente nas universidades chilenas, que são apresentadas como "um órgão de um corpo sem órgãos" (p. 523); a produção de Ibarra-Colado (2002, 2003) relativa às universidades mexicanas e o grande número de trabalhos apresentados referentes a países latino-americanos nos seminários da Redestrado, entre os quais pode-se destacar o de Somaré, Delbueno, Tello e Berraondo (2008) sobre o contexto argentino.

Esses estudos, em geral, evidenciam que a organização do trabalho universitário na atualidade se caracteriza, sobretudo, pela competição e produtividade exacerbadas. Assim, para Blanch-Ribas e Cantera (2011), transforma-se "o que foi um espaço livre e autoregulado de reflexão, autonomia, diálogo e discussão em um grande centro comercial de compra e venda de produtos acadêmicos" (p. 520). Esses "produtos" devem oferecer uma "solução 'just in time' de problemas pontuais que afetam os potenciais consumidores" (p. 520), que podem ser os "estudantes-clientes", no caso da docência.

É importante salientar, no entanto, que tal modelo organizacional não afeta apenas as atividades de docência. Ele também afeta substancialmente as atividades de pesquisa e, nesse caso, os "clientes" podem ser empresas ou órgãos governamentais. Segundo Ibarra-Colado (2003), os pesquisadores perderam o controle do conteúdo e da organização do trabalho e, assim, "perderam sua condição de artesãos do saber para conformarem-se paulatinamente em engrenagens de alguma das grandes maquinarias que integram as novas formas de produção do conhecimento" (p.1062).

Considerando esse contexto, Ibarra-Colado (2003) afirma que uma das principais mudanças relacionadas à universidade na atualidade diz respeito à reinvenção da sua identidade no imaginário social. Para o autor, ela está deixando de ser uma referência cultural básica da sociedade, uma "instituição", para assumir o status de um prestador de serviços ou uma "organização de mercado" (p.1061). E vale dizer que, assim como ocorreu com a implantação dos preceitos toyotistas nas fábricas (Bernardo, 2009), também se observa, no caso das universidades, que as novas propostas de trabalho são acompanhadas de um discurso legitimador divulgado com bastante força, especialmente na mídia. A retórica dominante é marcada pela visão neoliberal das instituições públicas, que, segundo esse ponto de vista, "se caracterizam por sua ineficiência, incompetência, burocracia, insustentabilidade, obsolescência, massificação, inoperância, rigidez, etc." (Blanch-Ribas & Cantera, 2011, p. 518), evidenciando-se, assim, a necessidade de "modernizá-la".

Blanch-Ribas e Cantera (2011) - partindo da noção cunhada por Slaughter e Leslie (1997) - se referem à ideia de "capitalismo organizacional" para descrever o conjunto de aspectos que configuram esse novo tipo de organização do trabalho de inspiração capitalista nos serviços públicos, que inclui também uma política da desregulação das relações de trabalho, com contratos precários e a avaliação por resultados em curto prazo.

1.1. O capitalismo organizacional na universidade brasileira

No Brasil, também é facilmente observável a implantação de diversos aspectos relacionados ao capitalismo organizacional, mas aquele que mais tem recebido destaque é o denominado "produtivismo acadêmico". Nesse sentido, é possível encontrar uma grande quantidade de artigos sobre esse tema, especialmente, em revistas relacionadas ao movimento sindical docente, tais como o boletim da ANDES (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior), a Revista da ADUSP (Associação dos Docentes da USP) e Movimento em Debate da ADUNICAMP (Associação dos Docentes da UNICAMP), que publicaram números especiais sobre o tema.

De acordo com Bosi (2008, 2009), no caso do Brasil, não é fácil encontrar o ponto de partida dessa dinâmica histórica, mas o autor aponta que a transformação da Coordenação de Pessoal de Nível Superior (CAPES) em fundação pública, ocorrida em 1992, teve um importante papel nessa mudança, na medida em que se inspirou "no etos competitivo presente na experiência norte-americana" (Bosi, 2009, p.29). Nesse contexto, a pós-graduação e, consequentemente, a pesquisa, tornaram-se o principal foco de avaliação do trabalho docente na universidade brasileira, sendo esta fundamentada em dados quantitativos de produtividade, especialmente, no número de publicações, número de orientações e horas-aula e prazos de conclusão de mestrados e doutorados (Bosi, 2009).

Esse fato leva Lemos (2007) a afirmar que "vai se configurando um quadro que apresenta a Universidade e o ensino superior como submetidos à mesma lógica da reestruturação produtiva que se deu no mundo do trabalho dentro das empresas" (p. 257). E, pode-se acrescentar, adotando um modelo de organização do trabalho que associa o discurso da flexibilidade com a rigidez das metas de produtividade, indicando uma clara inspiração toyotista (Bernardo, 2009).

Castiel e Sanz-Valero (2007), partindo de uma análise marxista desse contexto, indagam se o artigo não teria se tornado uma mercadoria acadêmica, que se situa entre o fetichismo e a sobrevivência. Os autores lembram um lema que tem ganhado força no meio: "publish or perish" (publicar ou morrer). Também salientam a mudança da imagem social referente ao cientista de modo muito similar àquele de Ibarra-Colado (2003), citado anteriormente. Para eles,

A imagem predominante do autor de artigos científicos está deixando de ser a do "gênio romântico", que dedica sua inteligência e capacidade de análise para propor formas de inquirir mistérios do mundo para beneficio humano. ... Agora, grande parte dos autores inclui aqueles que atuam como "empregados" de empresas, funcionários que se dedicam a seguir a rotina de protocolos estabelecidos em propostas de investigação aceitas pelas agências financiadoras e consagradas pela comunidade científica. (p. 3046)

Burian Jr. (2009) destaca as distorções desse modelo. A primeira seria que "não se publica para o artigo ser lido, publica-se para melhorar o currículo do autor" (p.17). A segunda seria o encorajamento de artigos superficiais, apressados e/ou repetições de textos com pequenas alterações. Outra distorção diz respeito à autoria múltipla, que passa a ser comum, mesmo que, muitas vezes, algum dos autores tenha uma parcela ínfima de participação na produção do trabalho.

Castro (2010) também aponta os problemas relacionados à "disjunção entre a graduação e a pós-graduação" e afirma que essa situação "institui um estreitamento nas identificações coletivas" (p. 627), despolitizando a posição do docente pesquisador e "fazendo com que enxergue de forma cada vez mais descontextualizada as questões do seu oficio e de seu lugar na sociedade" (p. 627).

Todos os aspectos apontados pelos autores citados indicam que as políticas universitárias atuais interferem na identidade profissional do docente pesquisador, o que, segundo Linhart (2011), é "uma estratégia deliberada da administração moderna" (p.151) para desestabilizar qualquer possibilidade de organização coletiva. Mas quais as consequências dessa lógica para o professor-trabalhador e para seu próprio trabalho docente?

1.2. Precariedade subjetiva e desgaste mental do docente universitário

Considerando o contexto exposto acima, talvez seja possível dizer que o aspecto psicossocial que se destaca na lógica do capitalismo acadêmico seja aquele relacionado às consequências do individualismo e da competitividade exacerbada.

Silva Jr. e Silva (2009) lembram que, nessas circunstâncias, "o desejo do fracasso do outro destrói a alteridade e impede qualquer possibilidade do professor realizar um trabalho saudável" (p. 46), o que pode ter como implicação o sofrimento dos professores. Já Blanch-Ribas e Cantera (2011) lembram que a "metamorfose organizacional" trazida pela "nova gestão pública" faz aflorar tensões "entre 'novos' valores gerenciais e 'velhas' tradições profissionais" (p. 526). Assim, não parece por acaso que Pomar (2010) afirme que "o resultado da crescente pressão e controle sobre os professores universitários tem sido um notável desgaste físico e psicológico desses profissionais".

O pressuposto que guiou a pesquisa apresentada no presente artigo é que as características atuais da universidade pública brasileira levam os professores a vivenciarem uma situação que pode ser descrita como aquilo que Linhart (2009) chama de "precariedade subjetiva". Trata-se de um tipo de precariedade que não diz respeito a uma situação objetiva tão discutida na atualidade, que envolve, por exemplo, o trabalho terceirizado, temporário ou informal (que, vale dizer, também adentra a universidade), mas a um "sentimento de precariedade que podem ter assalariados estáveis confrontados com exigências cada vez maiores em seu trabalho e que estão permanentemente preocupados com a ideia de nem sempre estar em condições de responder a elas" (Linhart, 2009, p.1). A precariedade subjetiva se caracteriza, assim, pelo "sentimento de isolamento e abandono" e, de acordo com a autora, "não é estranha ao sofrimento que se inscreve cada vez mais na relação com o trabalho moderno; seria, inclusive, uma de suas características" (p.3).

Vê-se que esse conceito parece ser útil para compreender a vivência de docentes com contratos de trabalho estáveis na universidade pública no contexto discutido acima, que, conforme aponta Castro (2010), leva ao "estreitamento das identificações coletivas", com o consequente individualismo descrito por Blanch-Ribas e Cantera (2011). Sendo assim, essa precariedade subjetiva vivenciada pelo docente universitário na atualidade - que, deve-se lembrar, se caracteriza como um processo social e historicamente definido - pode levar ao desgaste mental (Seligmann-Silva, 2011) e, consequentemente, afetar o bem-estar e a saúde dos professores, bem como a qualidade do seu trabalho.

A noção de desgaste no trabalho foi apresentada inicialmente por Laurell e Noriega (1989), que, partindo de uma compreensão de base marxista do processo saúde-doença, defendem que a relação saúde-doença no trabalho deve ser compreendida no interior das relações de produção capitalistas. Buscando superar a concepção determinista de riscos, presente na área de saúde ocupacional, os autores propõem a ideia de "cargas de trabalho", que concorrem para o "desgaste", que pode levar ao adoecimento do trabalhador. Desse modo, "o padrão de desgaste de um determinado grupo de trabalhadores pode ser identificado na relação entre processo de valorização, processo de trabalho, cargas de trabalho e processo de desgaste" (Paparelli, 2009, p. 45).

Entre as diversas cargas de trabalho identificadas pelo Laurell e Noriega (1989), estão as "cargas psíquicas", mas não se pode dizer que os autores busquem compreender especificamente o processo de sofrimento/adoecimento mental. Esse tema, no entanto, é tratado por Seligmann-Silva (2011), a partir da concepção proposta por Laurell e Noriega. A autora desenvolve a noção de "desgaste mental no trabalho", que abrange tanto aspectos psicoafetivos como cognitivos e orgânicos. Esse desgaste se dá na forma de um processo constituído de "experiências que se constroem, diacronicamente, ao longo das experiências de vida laboral e extralaboral dos indivíduos" (Seligmann-Silva, 2011, p. 142). Trata-se de uma teoria de caráter integrador, que parte da ideia de que, para compreender a relação saúde-trabalho, deve-se sempre considerar o contexto sócio-histórico que a determina.

Essa breve exposição permite identificar como os conceitos de "precariedade subjetiva", desenvolvido por Linhart (2009), e o de "desgaste mental", proposto por Seligmann-Silva (2011), podem ser complementares, ajudando a compreender a vivência de docentes no contexto descrito acima.

Assim, com o propósito de exemplificar como esses aspectos aparecem no cotidiano acadêmico, será apresentado, a seguir, um recorte de uma pesquisa realizada com docentes de uma universidade pública brasileira1 1 Essa pesquisa fez parte de um projeto multicêntrico de âmbito internacional denominado KOFARIPS (o capitalismo organizacional como fator de risco psicossocial) e coordenado pelo Prof. Dr. Josep Maria Blanch-Ribas, da Universidade Autônoma de Barcelona, cujo objetivo foi compreender as repercussões psicossociais do capitalismo organizacional na saúde pública e na universidade pública. .

2. Aspectos metodológicos

Se o fato de a pesquisadora também fazer parte do "campo-tema" (Spink, 2003) da pesquisa ter possibilitado uma familiaridade com assunto, também lançou o desafio de torná-lo suficientemente estranho para permitir a investigação científica (Geertz, 1989). Dessa forma, optou-se por realizar uma pesquisa qualitativa que incluísse fontes variadas de informações, envolvendo conversas informais com docentes e dirigentes universitários, análise de documentos públicos e, na etapa final, a realização de entrevistas reflexivas (Hammersley & Atkinson, 1994) com docentes. Nessa fase, não houve a intenção de realizar uma quantidade representativa de entrevistas, e sim entrevistas que fossem "qualitativamente representativas" com relação ao contexto identificado no decorrer da pesquisa. Foram, assim, entrevistados quatro docentes de uma universidade diferente daquela à qual a pesquisadora tem vínculo, para possibilitar um maior distanciamento vivencial. Também se buscou docentes que estivessem vinculados a diferentes áreas do conhecimento, de modo que se pudesse contemplar aspectos diversos da vivência docente.

Desse modo, apesar de a análise apresentada neste artigo focalizar essencialmente as entrevistas gravadas, entende-se que elas sejam representativas daquilo que se observou no conjunto das informações com relação ao contexto focalizado. A pesquisa foi realizada no período de julho de 2008 a dezembro de 2010, sendo que as entrevistas ocorreram entre outubro de 2009 e março de 2010.

Com exceção de um dos entrevistados, os contatos foram estabelecidos com a ajuda de intermediários conhecidos de ambas as partes, que atuaram como "padrinhos", que puderam atestar a idoneidade da pesquisadora (Hammersley & Atkinson, 1994). Interessante ressaltar que todos os docentes consultados concordaram prontamente em conceder a entrevista, apesar de comentarem a estranheza de serem "sujeitos" de uma pesquisa, uma vez que costumam estar "do outro lado". Ao final das entrevistas, todos apontaram a positividade da experiência, que se configurou como um momento de reflexão sobre sua realidade e, em alguns casos, de certa catarse.

As entrevistas foram gravadas e transcritas e, posteriormente, submetidas a uma análise, na qual foram buscados os sentidos subjacentes às falas (Geertz, 1989), considerando o contexto em que os sujeitos estão inseridos (Minayo, 2007). Com relação aos entrevistados, uma docente tinha por volta de 40 anos, havia ingressado em uma área nova na universidade um ano antes da entrevista e ainda não estava exercendo atividades na pós-graduação. Os outros três, por sua vez, tinham entre 50 e 60 anos e estavam vinculados a áreas acadêmicas tradicionais na universidade por mais de vinte anos.

Para facilitar a leitura do texto que se segue, esses entrevistados serão chamados de Paulo, Leonardo, Teresa e Marina2 2 Além da adoção de nomes fictícios, algumas informações que poderiam ser interessantes para a pesquisa, mas que poderiam facilitar a identificação dos entrevistados também foram omitidas. .

3. A vivência do docente universitário sob a égide do capitalismo organizacional

3.1. Discurso de responsabilidade social, prática de pressão por produção.

Um primeiro aspecto que se deve destacar é que, logo no início das entrevistas, quando foram solicitados a falar sobre seu trabalho, todos os docentes, com exceção de um, passaram imediatamente a descrever a sobrecarga a que estão submetidos.

Teresa começa relatando que trabalha, no mínimo, 60 horas semanais, o que inclui seus finais de semana e, em seguida, apresenta uma relação de todas as suas atividades: aulas na graduação e pós-graduação; orientações de mestrado, doutorado, iniciação científica e iniciação científica júnior (para estudantes do ensino médio); atividades de extensão e supervisão de estágios; participação em comissões da universidade e a produção bibliográfica. Diz que sempre trabalhou muito, mas que, agora, percebe que há "uma intensificação do trabalho". Para exemplificar sua percepção, recorre a uma imagem do atletismo, dizendo que "aumentaram a altura da vareta do salto em altura".

Da mesma forma, Paulo também afirma que sempre trabalhou muito mais do que as 40 horas do seu contrato, mas que, antes, isso ocorria pelo prazer de estar fazendo algo que lhe agradava e que avaliava ter uma finalidade social e, agora, o faz pela obrigação de cumprir as metas estabelecidas. Ele também apresenta uma relação de suas atividades, que tem algumas variações com relação às de Teresa, mas é igualmente extensa. Mesmo Marina, que ainda não exercia atividades na pós-graduação na ocasião da entrevista, ressalta a sobrecarga de trabalho didático, que não lhe permite dar conta da pesquisa, que também compõe seu rol de atividades. Ela relata que, alguns meses após seu início na universidade, seu filho de cinco anos, ao vê-la no computador todo o tempo, lhe perguntou: "mamãe, você nunca mais vai se divertir?".

Leonardo, ao contrário, diz que procura não levar em conta essas exigências e que entende que sua produção "deve surgir naturalmente". Refere ter poucos orientandos, porque é bastante rígido na seleção, aceitando apenas aqueles que avalia terem condições de realizar um trabalho de qualidade. Dedica-se fortemente à pesquisa, o que inclui parcerias internacionais. No entanto, assim como Teresa e Paulo, refere ter sempre trabalhado mais do que as 40 horas previstas no seu contrato, mas que, agora, já faz parte de sua rotina trabalhar aos fins de semana, o que ocorria com pouca frequência até alguns anos atrás. O acréscimo de atividades se dá, sobretudo, por conta do atendimento a demandas de seus parceiros nacionais e internacionais, que acabam lhe solicitando atividades que não estavam incluídas no seu planejamento. Afirma que, para atendê-los, acaba, indiretamente, intensificando seu trabalho e, às vezes, tendo de se desviar do seu foco de pesquisa, o que, lamenta ele, vem ocorrendo mais frequentemente nos últimos anos.

Esses relatos não representam nenhuma novidade, pois corroboram aquilo que se lê nas publicações sobre produtivismo acadêmico. No entanto, pode-se indagar: por que esses docentes, sendo funcionários públicos com estabilidade no emprego, se submetem a tal pressão? O que faz com que a universidade mantenha o poder sobre eles?

Para buscar compreender essa questão, pode-se recorrer a Bihr (1998), que, em uma publicação onde discute a crise do movimento operário europeu, relembra o conceito de poder político (que, para ele, vai muito além do Estado). O autor afirma que, para o poder ser alcançado e mantido, são necessários três fatores: a "ameaça", a "administração das práticas sociais" e a "legitimação" (p. 220). Mas pode-se indagar: qual é a ameaça que paira sobre os docentes que já têm uma carreira estabelecida? A fala de Teresa talvez seja a mais representativa com relação a esse aspecto. Segundo ela, "aumentaram as exigências para o profissional se manter na carreira":

Periodicamente, tem um relatório de atividades. ... Então, você tem que prestar contas para a universidade. Nós, que somos regime de dedicação integral à docência e à pesquisa, se o relatório não for aprovado, dependendo do tipo de recomendação, podemos ter que passar para uma outra carreira, que diminui o salário e o tempo de trabalho [passando para tempo parcial]. Basicamente [essa avaliação] é vinculada às publicações e... um pouco, também, ao número de horas de [aula na] graduação que você dá. Então, tem um controle mais rígido da universidade...

Essa fala encontra eco na afirmação de Bosi (2009), que, referindo-se à necessidade de constante "elevação do sarrafo" dos critérios de avaliação dos programas de pós-graduação, afirma que "nesse 'vale quanto pesa', o próprio docente é 'valorizado' pela inserção na pós-graduação, pelo número de orientações, artigos e livros publicados e, principalmente, por 'bolsa produtividade em pesquisa'" (p. 33).

Observa-se, assim, que a ameaça a quem não se mantém no padrão esperado não é a demissão, mas o rebaixamento na carreira, que, vale dizer, implica não apenas perda salarial, mas também perda de prestígio na comunidade científica. Tal ameaça parece configurar um aspecto representativo da precariedade subjetiva que assola os "professores-trabalhadores".

É interessante salientar que, entre os entrevistados, Leonardo foi o único que disse ter corrido o risco de ter um parecer negativo para um dos seus relatórios de atividades devido ao desequilíbrio entre as diversas atividades realizadas e as previstas. Mas revela que a comissão que avaliou seu caso reviu o parecer após sua argumentação de que "as publicações se deram em revistas internacionais de grande importância na [sua] área" e que, assim atendeu "plenamente" e "com naturalidade", como frisou na entrevista, "a exigência atual de internacionalização do trabalho".

Talvez seja possível afirmar que é nos mecanismos de "administração do poder" que a universidade se aproximou mais dos preceitos predominantes no setor industrial na atualidade. E as metas de produção são, sem dúvida, o mecanismo de administração que pode ser identificado com maior clareza nos relatos dos entrevistados. Todos se queixam da dificuldade para atender as metas exigidas. Já Leonardo questiona a objetividade dos padrões de produção de uma forma bastante interessante. Em um tom jocoso, diz que "é como a pata do caranguejo", que não tem nenhuma função e serve apenas para impressionar. Segundo ele,

Não tem como produzir alguma coisa decente fora de minhas circunstâncias pessoais, que conheço melhor do que ninguém e que significam a única objetividade que tem realmente sentido. A "objetividade" construída tomando como base modelos de produtividade na comunidade acadêmica que devem ser imitados por todos é um despropósito positivista, que não considera a diversidade como um valor, mas um desvio, que deve ser eliminado. O que é um absurdo!

Essa fala de Leonardo faz lembrar o famoso relato de Frederick Taylor, destacado por Braverman (1987), sobre sua relação, enquanto encarregado, com um trabalhador da Bethlhem Steel Company, cujas características peculiares possibilitavam carregar quatro vezes mais ferro do que a média dos colegas. Depois de persuadir o trabalhador a seguir as normas de tempos e movimentos determinadas por ele, Taylor estabeleceu a quantidade alcançada como o padrão. No entanto, mesmo Taylor dizia que essa meta poderia ser atingida por apenas um em cada oito trabalhadores comuns e que aqueles que não se adequavam deveriam ser substituídos. Seria esse o objetivo da universidade atual?

Já a "legitimação" das metas produtivistas da universidade parece se dar por meio de um discurso que tem como base o constrangimento do docente que, segundo Leonardo, é acusado de se manter em um lugar elitizado, supostamente distante e acima da sociedade. Tal discurso chama o professor universitário a assumir sua responsabilidade de "servidor público", com a consequente "obrigação de dar um retorno imediato do seu trabalho à sociedade" (Leonardo). Assim, pode-se dizer que o discurso legitimador, nesse caso, exerce um papel de constrangimento a partir de uma conotação moral.

Esse discurso, no entanto, parece ter efeitos diferentes sobre os docentes, apesar de todos, de alguma forma, esboçarem alguma crítica. Marina e Teresa parecem mais suscetíveis a ele do que Leonardo e Paulo. Teresa, por exemplo, fala com orgulho, em vários momentos durante a entrevista, do caráter social de seus projetos e, algumas vezes, ressalta que eles atendem à demanda atual da universidade. Já Leonardo afirma categoricamente que a única maneira de seu trabalho contribuir com a sociedade é, no nível de docência, formando "sujeitos", e não "mão de obra para o mercado" e, no âmbito da pesquisa, "resguardando a autonomia e o tempo necessários para a maturação de um trabalho de qualidade". Essa avaliação parece compartilhada por Paulo que, referindo-se à retórica da necessidade de maior aproximação da universidade com a sociedade, afirma que "não podemos ser ingênuos" e que os setores da sociedade que demandam essa aproximação certamente não são das camadas mais desfavorecidas.

3.2. A precariedade subjetiva e o desgaste mental do professor universitário

É interessante notar como alguns aspectos das falas dos professores entrevistados nesta pesquisa são muito similares àquelas de trabalhadores das fábricas que adotam o modelo toyotista de produção (Bernardo, 2009). Assim como os trabalhadores industriais, eles também ressaltam a intensificação do trabalho e a existência de pressões cotidianas por um nível de produção artificialmente elevado, que se mescla com um discurso legitimador que parece distorcer a realidade. Também identificam sua vivência de trabalho como adoecedora.

Mas, se a "toyotização" da universidade pode provocar desgaste e adoecimento de modo similar ao que ocorre nas fábricas, existe uma diferença essencial: os trabalhadores industriais diziam se submeter por falta de opção de emprego que oferecesse o mesmo nível salarial, sendo que a maioria não gostava do seu trabalho na fábrica e apontava para a perspectiva de mudanças futuras (Bernardo, 2009). Os professores, por sua vez, vivem um dilema: exercem uma profissão que escolheram, mas que lhes causa cada vez mais sofrimento. Assim, sentem-se atados a um projeto de vida que já não pode ser realizado satisfatoriamente, sem vislumbrar outra atividade fora da universidade.

É possível dizer que todos os entrevistados oscilaram entre momentos em que evidenciavam empolgação com seu trabalho e outros em que mostravam tristeza, dúvidas, questionamentos e uma sensação de nunca dar conta das exigências que lhes são impostas. São essas características de suas falas que enfatizam a situação de "precariedade subjetiva" vivenciada, a qual pode ter como consequência o desgaste mental, com prejuízo para o próprio trabalho no presente e/ou no futuro.

Paulo e Teresa foram aqueles cuja vivência parece caracterizar de forma mais enfática esse aspecto. Na ocasião da entrevista, Teresa estava retornando às atividades após afastamento devido a uma doença grave, que associava ao estresse no trabalho. Com relação a sua situação, disse:

eu não tinha nenhum fator de risco, só tinha fatores protetores [falando de hábitos de vida e fatores genéticos]. E a hora que eu me dei conta, o único [fator de risco] que eu tinha era levantar de madrugada pra da conta do trabalho, que é o estresse! ... Então, eu fiquei um pouco sem chão, ai eu falei "meu Deus, se isso implica na minha sobrevivência..." ... aí você fica um pouco patinando, porque eu gosto muito do que eu faço. Não me vejo aposentada, mas mantendo as condições de trabalho atual, também não sei se dá certo...

Interessante destacar que, apesar de ter indicação médica para permanecer afastada e, como funcionária pública, poder atender a essa recomendação sem redução salarial substancial e sem risco de perder o emprego, Teresa retomou suas atividades em um tempo muito mais curto do que o indicado. A razão apresentada é que não tinha condições de abandoná-las, especialmente aquelas que envolviam orientandos em fase de finalização de trabalhos. Ao longo de sua entrevista, ela oscila entre a preocupação com relação à situação atual, que não lhe possibilita ter uma condição saudável de trabalho, e uma grande empolgação quando fala de seus projetos de ensino, pesquisa e extensão. Esse fato, ocorrido com Teresa, mostra como o nível de envolvimento de um docente com seu trabalho pode ir muito além de uma simples relação de emprego.

Da mesma forma, Paulo, que se mostra orgulhoso do seu percurso acadêmico, traz a preocupação com o comprometimento da saúde por causa do trabalho. Logo no início da entrevista, antes mesmo que o gravador fosse ligado, começou a relatar casos de colegas que estavam adoecendo ou que tinham falecido precocemente, dizendo que suspeitava que fosse decorrente do trabalho e da nova lógica de produtividade que domina a universidade. No decorrer da entrevista, retoma essa questão, e o trecho a seguir, apesar de longo, é elucidativo:

Eu acho que tem alguma coisa errada com a gente. As pessoas estão adoecendo, sem nenhum diagnóstico de câncer prévio ... Poucos são sobreviventes. É claro, antes as pessoas morriam e você não sabia o que as estava matando. Mas eu to achando que há uma relação hipotética entre essas condições de trabalho, que estão mais intensivas hoje. Você tem que ser mais produtivo, nessa linguagem da mercantilização da Universidade... Nós somos avaliados por indicadores de produtividade e [relaciono isso] com a ocorrência desses adoecimentos. Isso pode não ser casual, pode ser idade, não ter nenhuma relação... Mas, por exemplo, a dificuldade de fazer aquilo que a gente considera como uma formação de qualidade, da gente não ter as condições pra realizar, diante dessa intensificação...

E retoma esse tema mais adiante:

Sobre as doenças em particular, é isso, são sintomas que eu vejo aqui, quer dizer, eu vejo em outros colegas, de outros departamentos. Caso de um colega, por exemplo, que está afastado, que não tem mais condições de voltar ao trabalho. Eu me pergunto até que ponto isso não está associado às condições de trabalho? ... [Para mim,] São as doenças ocupacionais. ... Você acaba somatizando isso. Mas eu não tenho cultura pra dizer isso... é só uma intuição. Mas eu tenho uma manifestação de tristeza.

Continua sua fala destacando um importante aspecto: a maior invisibilidade do nexo do adoecimento dos professores com o trabalho do que ocorre em outras profissões. Diz ele: "Eu acho que, em outras atividades, é mais evidente o quanto que as condições adversas do trabalho estão associadas às doenças ocupacionais, como no caso dos cortadores de cana...".

Com relação a si próprio, Paulo não relata ter problemas de saúde, mas, em diversas passagens da entrevista, utiliza expressões como "profunda tristeza", "desesperança" e "desânimo" com relação a aspectos do seu trabalho, ressaltando a relação desses sentimentos com o caráter "mercantil" que a universidade tem assumido nos últimos anos. O tom triste e até depressivo de sua fala ao comentar o momento atual da universidade contrasta fortemente com a empolgação com que fala de alguns projetos e de sua história na universidade. Ele resume sua vivência relatando o seguinte:

Eu diria que eu me considero ainda satisfeito com o trabalho que realizo, mas temeroso, acho que é um momento de crise. Se eu for ser realista, eu diria pra você que esse projeto de conferir precedência de vocação pública, está derrotado. Já foi derrotado.

Paulo, em sua narrativa, estabelece uma clara ligação entre as "cargas de trabalho" (Laurell & Noriega, 1989) relacionadas à "precariedade subjetiva" (Linhart, 2009), vivenciada no cotidiano universitário, com um processo de desgaste, especialmente, mental (Seligamnn-Silva, 2011), que leva ao sofrimento e adoecimento.

Interessante observar que Marina fala diretamente sobre o desgaste provocado pelo trabalho. Diz ela: "o medo de não dar conta também eu acho que desgasta muito a gente, muito, muito, muito... ... Essa sensação do medo de... foi uma coisa que apareceu e é difícil de administrar! A gente administra, mas tem desgastes, tem desgastes muito grandes". Nesse contexto, afirma que seu maior pesadelo com relação ao futuro na universidade é o de que suas condições de trabalho permaneçam com a mesma intensidade atual, o que, na sua avaliação, não permitiria uma condição de trabalho saudável. Mas ela ainda se mostra mais esperançosa do que os outros entrevistados.

Como é possível observar no que foi exposto até aqui, os professores entrevistados demonstram estarem submetidos a uma carga psíquica intensa relacionada à precariedade subjetiva, que provoca um desgaste mental. Mesmo Teresa, que teve uma doença física, relaciona seu adoecimento com o "estresse", pois, segundo ela, "não tinha nenhum outro fator de risco" pessoal. Mas, se três entrevistados falam de alguma forma do desgaste, Leonardo afirma não se afetar com isso e parece ter uma forma muito particular de lidar com as pressões. Como foi dito anteriormente, afirma procurar não ceder a elas e fazer seu trabalho "do modo que acha que deve ser feito", dizendo enfaticamente que esse é o seu "papel".

Apesar de sua postura crítica, Leonardo, diferentemente de Teresa, planeja aposentar-se em poucos anos (assim que completar o tempo necessário). Diz que não pretende parar de trabalhar ao aposentar-se, mas tem a intenção de manter-se apenas como "professor colaborador" na universidade, podendo, assim, fazer pesquisa no seu ritmo e dar as aulas que mais lhe interessarem. Vale dizer que Paulo também aponta para essa possibilidade, dizendo que é a alternativa escolhida por muitos colegas para poder fazer seu trabalho no nível que avaliam ser adequado e com menos sofrimento. Ele diz que muitos já tomaram essa decisão, alguns, inclusive, afastando-se definitivamente da universidade. Por outro lado, como tais cargos não são repostos na totalidade, nota-se que a aposentadoria pode ser a redenção para aqueles que saem, mas acaba por aumentar a carga daqueles que ficam. Paulo, por exemplo, diz que, hoje, seu departamento tem metade dos professores que possuía uma década atrás.

Em resumo, pode-se dizer que os professores parecem estar sujeitos a cargas de trabalho tão intensas quanto os trabalhadores fabris, apesar de, provavelmente, serem qualitativamente diferentes. Nas falas dos professores entrevistados, as cargas mais destacadas não dizem respeito ao corpo, mas à mente, e são relacionadas ao modelo de organização do trabalho que pode ser identificado como "capitalismo organizacional" (Blanch-Ribas & Canteras, 2011). O desgaste decorrente é evidenciado em todos os relatos e, não por acaso, se dá no nível mental, aspecto mais importante para o bom desenvolvimento do trabalho dos professores.

4. Considerações finais

O desgaste relacionado às funções corporais mais utilizadas no trabalho não é novidade. Existem inúmeros estudos sobre a relação das LER/DORT com o trabalho braçal repetitivo. O setor privado, especialmente a indústria, perversamente, costuma "usar" o trabalhador até seu limite, demitindo aqueles que apresentam sinais de adoecimento. Mas, no caso dos professores da universidade pública, isso (ainda) não é possível. Docentes que se afastam temporariamente do trabalho por adoecimento nem sempre são substituídos, e muitos dos que optam pela aposentadoria também não o são. Assim, mesmo na lógica da produtividade, parece que, no médio ou longo prazo, os desgastes dos professores-trabalhadores devido a essa toyotização da universidade podem comprometer não apenas a saúde deles, mas também a tão buscada produtividade acadêmica.

Nesse contexto, não é difícil imaginar que o próximo passo seja justamente a "precarização objetiva" do trabalho docente, com a adoção de contratos temporários vinculados a projetos, como já ocorre em muitos países. No entanto, pode-se supor que, por mais que se "produzam" doutores na atualidade, dificilmente haverá docentes suficientes para reposição, se as cargas de trabalho continuarem a ser sentidas como aquelas descritas pelos entrevistados da pesquisa apresentada neste artigo.

As narrativas de todos os entrevistados indicam que eles têm consciência da precarização e do desgaste a que estão submetidos (alguns fazendo referência ao "mercantilismo" ou "produtivismo" acadêmico). Paulo e Teresa destacam o risco de alienação produzido por esse contexto, sendo que o primeiro afirma que "a rotina desmobiliza". Dizendo isso, parece sentir que ele próprio está sucumbindo, apesar de, ao longo de sua história, sempre ter adotado uma postura crítica. Teresa também descreve esse processo de forma genérica, mas, ao falar, parece identificar-se com o que descreve:

na medida em que o docente trabalha muito, muito, muito, ele vai se alienando da mesma forma que qualquer outro trabalhador... Ele se aliena porque ele não consegue pensar e, aí, ele faz achando que tem que fazer, mas, não! Ele podia resistir àquilo, se contrapor, se organizar com outras pessoas, se organizar com outros locais...

Interessante observar que essa "consciência da alienação" parece gerar mais sofrimento do que reação com vistas à mudança. Ao serem indagadas sobre as possibilidades de resistência e transformação, Marina e Teresa falam apenas da adoção de táticas individuais, que não têm nenhum objetivo além de possibilitar a "sobrevivência" na instituição. Marina, por exemplo, diz que ainda busca conhecer "as regras do jogo", que, segundo ela, não são explicitadas para ver onde vai "focar", para não "pulverizar sua energia num monte de lugares" e não fazer coisas "que nem contam nada pra sua avaliação". Já Teresa aponta aspectos relacionados à mudança de comportamento fora do trabalho. Para ela, "resistência é na perspectiva individual. Você olhando realmente para o saudável, para a alimentação, tentando dormir um mínimo de horas...".

Já Leonardo e Paulo ressaltam que a greve ainda é uma estratégia coletiva primordial, apesar de contar com a adesão de uma parcela cada vez menor da categoria. Ainda assim, Leonardo, referindo-se à corrosão salarial e à crescente desqualificação social dos professores, ressalta que as tentativas de "fazer com a universidade o que fizeram com o segundo grau [ensino médio]" ainda não tiveram sucesso por conta da mobilização coletiva por meio de greves.

Para finalizar, pode-se dizer que o grande número de pesquisas sobre esse tema, algumas das quais apresentadas na introdução deste artigo, e ele próprio, também podem ser considerados estratégias de resistência. Na medida em que se problematiza esse contexto nos próprios meios acadêmicos, pode-se buscar superar o processo de alienação ressaltado por Paulo e Teresa, com vistas à transformação desse contexto de precariedade subjetiva com o consequente desgaste mental, que permeia a vida acadêmica na atualidade, bem como evitar que se chegue à precariedade objetiva.

Notas

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Submissão em: 06/06/2011

Revisão em: 11/01/2012

Aceite em: 22/01/2012

Marcia Hespanhol Bernardo é Docente do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Realizou mestrado e doutorado em Psicologia Social, ambos com foco em temáticas relacionadas ao trabalho. Também tem experiência na área de saúde do trabalhador no setor público, onde atuou por quase 20 anos. Endereço: Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Psicologia. PUC-Campinas. Av John Boyd Dunlop, s/n. Jd Ipaussurama. Campinas/SP. CEP 13060-904. E-mail: marciahespanhol@hotmail.com

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  • Produtivismo e precariedade subjetiva na universidade pública: o desgaste mental dos docentes

    Productivismo y precariedad subjetiva en la universidad pública: el desgaste mental de los docentes
  • 1
    Essa pesquisa fez parte de um projeto multicêntrico de âmbito internacional denominado KOFARIPS (o capitalismo organizacional como fator de risco psicossocial) e coordenado pelo Prof. Dr. Josep Maria Blanch-Ribas, da Universidade Autônoma de Barcelona, cujo objetivo foi compreender as repercussões psicossociais do capitalismo organizacional na saúde pública e na universidade pública.
  • 2
    Além da adoção de nomes fictícios, algumas informações que poderiam ser interessantes para a pesquisa, mas que poderiam facilitar a identificação dos entrevistados também foram omitidas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Ago 2014
    • Data do Fascículo
      2014

    Histórico

    • Recebido
      06 Jun 2011
    • Aceito
      22 Jan 2012
    • Revisado
      11 Jan 2012
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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