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O processo de constituição da identidade na adolescência: trabalho, classe e gênero

The process of constitution of identity in adolescence: work, class and gender

El proceso de formación de la identidad de los adolescentes: trabajo, clase y género

Resumos

Este trabalho diz respeito ao processo de constituição da identidade de adolescentes, considerando a relação desses com seus outros significantes. O estudo foi realizado com base na psicologia social sociológica. Foi adotada uma metodologia qualitativa, realizando-se entrevistas em profundidade com 20 adolescentes residentes na região metropolitana de Belo Horizonte. Esses sujeitos foram selecionados considerando condição socioeconômica, gênero e a presença de trabalho na vida do adolescente. Foi possível problematizar a questão do trabalho na adolescência e as consequências dessa relação na identidade dos adolescentes. Os dados sobre condição socioeconômica demonstraram diferenças marcantes no processo de constituição do self entre aqueles oriundos de classe média e aqueles de classes desfavorecidas economicamente.

identidade; adolescência; trabalho; classe; gênero


This work concerns the process of identity formation of adolescents, considering their relationship with their significant others. The study was based on sociological social psychology. We adopted a qualitative methodology, conducting in-depth interviews with 20 adolescents living in the metropolitan region of Belo Horizonte. These subjects were selected, considering socio-economic status, gender and the presence of work in the life of the adolescent. It was possible to discuss the issue of work in adolescence from the data on socioeconomic status, which had marked differences in the constitution of the self among those from middle class and those from economically disadvantaged classes.

identity; adolescence; work; class; gender


Este trabajo se relaciona con el proceso de constitución de la identidad de los adolescentes, teniendo en cuenta la relación con sus otros significativos. El estudio se realizó sobre la base de la psicología social sociológica. Se adoptó una metodología cualitativa, la realización de entrevistas en profundidad a 20 adolescentes en el área metropolitana de Belo Horizonte. Estos temas fueron seleccionados en base a la situación socioeconómica, el género y la práctica de trabajo en la vida del adolescente. Fue posible discutir el tema del trabajo en la adolescencia y las consecuencias de esta relación en la identidad de los adolescentes. Los datos sobre la situación socioeconómica han demostrado fuertes diferencias en el proceso de constitución del yo entre los de clase media y los de las clases económicamente desfavorecidas.

identidad; la adolescencia; trabajar; clase; género


ARTIGOS

The process of constitution of identity in adolescence: work, class and gender

Marta Santos Sales

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/MG, Brasil

RESUMO

Este trabalho diz respeito ao processo de constituição da identidade de adolescentes, considerando a relação desses com seus outros significantes. O estudo foi realizado com base na psicologia social sociológica. Foi adotada uma metodologia qualitativa, realizando-se entrevistas em profundidade com 20 adolescentes residentes na região metropolitana de Belo Horizonte. Esses sujeitos foram selecionados considerando condição socioeconômica, gênero e a presença de trabalho na vida do adolescente. Foi possível problematizar a questão do trabalho na adolescência e as consequências dessa relação na identidade dos adolescentes. Os dados sobre condição socioeconômica demonstraram diferenças marcantes no processo de constituição do self entre aqueles oriundos de classe média e aqueles de classes desfavorecidas economicamente.

Palavras-chave: identidade; adolescência; trabalho; classe; gênero.

RESUMEN

Este trabajo se relaciona con el proceso de constitución de la identidad de los adolescentes, teniendo en cuenta la relación con sus otros significativos. El estudio se realizó sobre la base de la psicología social sociológica. Se adoptó una metodología cualitativa, la realización de entrevistas en profundidad a 20 adolescentes en el área metropolitana de Belo Horizonte. Estos temas fueron seleccionados en base a la situación socioeconómica, el género y la práctica de trabajo en la vida del adolescente. Fue posible discutir el tema del trabajo en la adolescencia y las consecuencias de esta relación en la identidad de los adolescentes. Los datos sobre la situación socioeconómica han demostrado fuertes diferencias en el proceso de constitución del yo entre los de clase media y los de las clases económicamente desfavorecidas.

Palabras clave: identidad; la adolescencia; trabajar; clase; género.

ABSTRACT

This work concerns the process of identity formation of adolescents, considering their relationship with their significant others. The study was based on sociological social psychology. We adopted a qualitative methodology, conducting in-depth interviews with 20 adolescents living in the metropolitan region of Belo Horizonte. These subjects were selected, considering socio-economic status, gender and the presence of work in the life of the adolescent. It was possible to discuss the issue of work in adolescence from the data on socioeconomic status, which had marked differences in the constitution of the self among those from middle class and those from economically disadvantaged classes.

Keywords: identity; adolescence; work; class; gender.

Introdução

Este artigo apresenta alguns resultados da pesquisa de mestrado realizada na Universidade Federal de Minas Gerais, em 2010, intitulada "Aspirações Ocupacionais e Adolescentes na Interface Educação/Trabalho". A etapa qualitativa foi realizada com uma amostra da população da região metropolitana de Belo Horizonte.

O objetivo deste artigo foi investigar como o adolescente constitui seus outros significantes, considerando condição socioeconômica, gênero e a prática de trabalho na adolescência. Assim, a pesquisa visou a responder quem é o outro significante para o sujeito e qual imagem o sujeito supõe que esse outro significante faça a seu respeito. Conforme Cheng e Starks (2002, pp. 307-310), os outros significantes (OS) são as pessoas consideradas importantes na vida do sujeito, que influenciam suas atitudes diretamente. A imagem que o adolescente compreende que o outro significante faz dele é extremamente importante no processo de constituição de sua identidade, uma vez que essa imagem do outro significante representa sua própria autoimagem.

Revisão bibliográfica

História do Interacionismo Simbólico da Escola de Chicago

Conforme Blumer (1986, pp. 1-2), no capítulo "The Methodological Position of Symbolic Interactionism", do livro Symbolic Interactionism, o interacionismo simbólico é uma abordagem da Sociologia que tem como principal precursor o psicólogo George Mead. Blumer fez uma interpretação dos cursos proferidos por Mead e, embora haja uma aproximação de ideias, o interacionismo simbólico é uma versão do legado que Mead deixou após sua morte.

Farr (1996, pp. 85-87), na obra As Raízes da Psicologia Social Moderna, situou o interacionismo simbólico como uma corrente da Sociologia que parte da forma sociológica de Psicologia Social, que tem suas raízes nas teorias de Mead, elaboradas a partir de 1900 na Universidade de Chicago. Mead (1863-1931) se graduou em Psicologia e se dedicou à Filosofia, à Fisiologia e à educação ao longo de sua carreira.

Foi do encontro entre Mead e Cooley que surgiu a ideia central das teorias de Mead sobre o "Assumir o papel do outro". Cooley utiliza tais ideias em seus estudos sobre o mercado, no qual compradores e vendedores assumem os papéis uns dos outros, e a habilidade que apresentam para fazer isso reforça significativamente a eficiência dos mercados (Farr, 1996, pp. 85-87).

É na Universidade de Chicago que Mead produziu o legado do interacionismo simbólico, nos programas de doutorado interdisciplinares da Psicologia com a Sociologia. A Psicologia daquela época permitia essa interdisciplinaridade, porém, em seguida, se separou da Sociologia, mantendo uma abordagem mais positivista nos EUA e, portanto, contrária à linha de estudo de Mead, que segue uma visão mais fenomenológica de investigação. Embora Mead tenha iniciado seus estudos baseando-se nos métodos experimentais, ele considerava o positivismo reducionista em suas explicações sobre o indivíduo e sua mente, uma vez que desconsiderava mais amplamente suas interações sociais. Desse modo, Mead nunca foi utilizado efetivamente pela Psicologia norte-americana, sendo, portanto, parte da forma sociológica de Psicologia Social, que é valorizada pela Psicologia Social latino-americana a partir dos anos 80 (Farr, 1996, pp. 159-162).

Mead (1934, prefácio) não publicou seus escritos durante sua carreira acadêmica e lecionava sem notas, sendo suas obras resultado do esforço do filósofo Charles Morris, que assistiu a suas palestras e realizou anotações sistemáticas com este fim, o de documentar suas teorias. Morris (Mead, 1934, prefácio) publicou o livro sob o título: Mind, Self, and Society: From the Standpoint of a Social Behaviorist, de George H. Mead (1934). Segundo Farr (1996, pp. 157-161), o título da obra gerou bastante controvérsia no meio. O subtítulo "do ponto de vista de um behaviorista social" nunca foi aceito no meio, pois, embora Mead partisse de uma base biológica para formular suas teorias, assim como o behaviorismo, ele se opunha aos elementos mais básicos do behaviorismo, de modo que a corrente que sucedeu aos seus escritos, o interacionismo simbólico de Blumer, foi considerada antipositivista. Morris o denominou de behaviorista social por compreender que suas observações aos escritos de Watson o aproximavam dessa abordagem. No entanto, não percebeu que ele discordava de Watson.

Watson foi aluno de Mead em 1900, em Chicago. Porém, quando publicou seu manifesto behaviorista, esse teve por objetivo limpar da Psicologia as noções de consciência, de self e de mente, que eram exatamente as noções centrais da forma de Psicologia Social com a qual Mead estava trabalhando (Farr, 1996, pp. 157-161).

Para Mead (1934, prefácio), Watson era reducionista ao explicar o comportamento por ele mesmo, pois o comportamento humano deve ser visto como autorrefletido, o que se explica a partir das interações sociais dos indivíduos. Isso será abordado no tópico A Constituição do Self.

Blumer (1986, pp. 2-5) apresentou três premissas como base para o interacionismo simbólico, que trouxe as ideias de que: a ação humana frente às coisas se baseia no significado que é dado a tais coisas; esse significado deriva do encontro com as outras pessoas, da interação; e, nessas interações, os significados dos outros são recebidos pelo indivíduo que os interpreta e modifica, através de uma "comunicação" consigo mesmo (1986, pp. 2-5). A partir disso, pode-se compreender que o conteúdo relacionado ao que o indivíduo pensa, aos seus valores e crenças passa por esse processo, partindo dos outros, das interações.

Para Blumer (1986, pp. 7-9), as atividades e comportamentos das pessoas ocorrem em resposta ao outro, de modo que a interação social estabelece um contato e uma troca entre atores e não entre os fatores colocados por eles ou da realidade. Desse modo, os outros representam um fator positivo na formação da conduta do indivíduo, influenciando significativamente o que a pessoa faz. Esse retorno dos outros para o que a pessoa faz é transmitido de modo simbólico, através da comunicação dos gestos e uso dos símbolos significantes. O autor diz "A pessoa que responde aos gestos do outro, os reorganiza e elabora uma resposta com base no que os gestos dos outros significam para ele" (Tradução própria, Blumer, 1986, p. 9). Assim, as pessoas encontradas na interação transmitem certos significados para o que outro faz, demonstrando isso a partir do olhar, do modo como gesticula com a pessoa e do que fala, propriamente.

Farr (1996, p. 161) considera que, na época atual, o interacionismo simbólico ainda é uma tradição vigorosa da Psicologia Social dentro da Sociologia americana. Distinguem-se na Era Moderna duas escolas do interacionismo simbólico: a que discutimos, da Escola de Chicago, que é ligada a Blumer, e a da Escola de Iowa, ligada a Manfred Khun. Esta última escola é positivista em sua metodologia e mais estritamente centrada no self como objeto de estudo da Psicologia Social.

Socialização

O processo de socialização ocorre porque o indivíduo nasce com a predisposição para a sociabilidade, para tornar-se membro da sociedade. Essa predisposição pode ser explicada por sua condição biológica, pelo desenvolvimento do sistema nervoso. No entanto, é a existência da cultura produzida pelo homem que permite ao indivíduo constituir-se, sendo, portanto, resultado de uma relação dialética entre organismo e sociedade.

Para Berger e Luckman (2002, p. 174), o ponto inicial do processo de socialização é a interiorização da realidade objetiva, que se produz como material subjetivo. Isto é, a apreensão ou interpretação imediata de um acontecimento objetivo dotado de sentido passam a manifestação de processos subjetivos de outrem que se tornam significativos para mim. Eles explicaram que: "Isto não quer dizer que compreenda o outro adequadamente. Posso de fato compreedê-lo mal, por exemplo; se está rindo em um acesso de histeria posso entender o riso como significando hilaridade" (Berger & Luckman, 2002, p. 174).

Essa fase se inicia através dos outros significativos que o indivíduo encontra ao nascer, geralmente seus pais. Esses não são escolhidos pelo indivíduo mas estabelecem a mediação do mundo para ele, modificando o mundo no curso da mediação a partir de um "filtro", que seleciona o que transmitir desse mundo. Os pais transmitem para a criança que acaba de nascer o contexto sócio-histórico e cultural da sociedade na qual estão inseridos. A dinâmica desse processo está fundada em um alto grau de afetividade e emoção, possibilitando o processo de aprendizagem. A partir dessa ligação emocional, a criança se identifica com os outros significativos, absorvendo os papéis e as atitudes deles, tornando-os seus. Então, a criança torna-se capaz de identificar a si mesma, de adquirir uma identidade subjetivamente coerente e plausível (Berger & Luckman, 2002, pp. 174-182).

As impressões dos pais sobre a criança são transmitidas a ela, refletindo a percepção que eles (pais) próprios têm de si. A partir disso, a criança passa a ter uma autoimagem que corresponde à imagem que os pais apresentam sobre ela (Berger & Luckman, 2002, pp. 174-182).

A socialização primária cria na consciência da criança uma abstração progressiva dos papéis e atitudes dos outros particulares para os papéis e atitudes em geral. Os pais lhe transmitem certas normas, costumes, papéis e atitudes que deve seguir e, à medida que outras pessoas (avó, irmão mais velho, por exemplo) que desempenham o papel de outro significativo demonstram confirmar o que lhe foi transmitido, a norma se generaliza, sendo uma generalidade que inclui em princípio toda a sociedade. Essa generalidade de papéis é denominada por Mead como outro generalizado (Farr, 2002, pp. 174-182).

Segue a essa primeira socialização a interiorização de "submundos" institucionais ou baseados em instituições, que é a socialização secundária. O caráter dessas instituições é determinado pela complexidade da divisão do trabalho e a concomitante distribuição social do conhecimento. Assim, a socialização secundária é a aquisição do conhecimento de funções específicas, funções, direta ou indiretamente, com raízes na divisão do trabalho. Esse processo exige a aquisição de vocabulários específicos de funções, o que significa, em primeiro lugar, a interiorização de campos semânticos que estruturam interpretações e condutas de rotina em uma área institucional (Berger & Luckmann, 2002, pp. 184-200).

Mas ela também é caracterizada por componentes normativos e afetivos, assim como cognoscitivos, o que acontece também na socialização primária. Os dois processos devem ser coerentes, dado que um segue o outro, de modo que a socialização secundária supõe um processo precedente de socialização primária. Embora a segunda etapa exija certa identificação, que os autores consideram certa afetividade, ela dispensa uma carga afetiva mais forte como acontece com a socialização primária. Quando a socialização, mais tarde na vida, começa a revestir-se de uma afetividade que lembra a infância, provoca maiores transformações na realidade do indivíduo, indo além de uma socialização secundária comum, que pode ser denominada de alternação (Farr, 2002, pp. 184-200).

Os conteúdos das socializações secundárias se mantêm através de rotinas, que representam a essência da institucionalização, de modo que a realidade da vida cotidiana é continuamente reafirmada na interação do indivíduo com os outros. Berger e Luckmann explicam que:

Para conservar a confiança de que é na verdade a pessoa que pensa que é, o indivíduo necessita não somente a confirmação implícita desta identidade ... mas a confirmação explícita e carregada de emoção que lhe é outorgada pelos outros significantes para ele... (Farr, 2002, p. 200)

É através da conversa que a realidade se mantém, modifica e reconstrói. No entanto, a maior parte da conservação da realidade nas conversas ocorre de modo implícito. Por outro lado, conteúdos que não fazem parte das conversas são progressivamente desvitalizados, perdendo sua importância para o indivíduo. Assim, é necessário o contato social para revitalizá-lo, e a frequência e intensidade de emoção das conversas determinam o grau de confirmação da realidade subjetiva (Farr, 2002, p. 200). A constituição do self

Mead (1934, pp. 117-121) era um darwinista convicto, dando ênfase aos processos biológicos. Por exemplo, apontava para a importância do sistema nervoso como aparelho capaz de se desenvolver no curso dos acontecimentos, se transformando progressivamente. No entanto, suas concepções consideram que tal desenvolvimento só foi e é possível através da interação social, das relações sociais, tendo como mecanismo a linguagem, que é produto da cultura. Assim, o indivíduo nasce com o aparato para se desenvolver, mas são as relações que constituem o self.

Mead (1934, pp. 122-124) disse que o homem atua com uma inteligência autorrefletida, de modo que a resposta ao estímulo não é imediata, sendo por isso refletida, pois o estímulo chega ao indivíduo que o une a outros e com suas ideias para então dar uma resposta. Assim, a resposta é formada a partir de vários símbolos, sendo resultado de seleções e combinações.

O que o outro significante transmite ao pensar a respeito do indivíduo, através da fala, de gestos, forma de olhar e atitudes durante a interação diária, é absorvido por ele para formar sua autoimagem. No entanto, o indivíduo não é vítima indefesa desse "olhar" do outro significante, pois, de alguma maneira, após a infância, ele elege quem vai cumprir esse papel, havendo, no decorrer de todo o processo, uma autorreflexão, na qual as mensagens vindas do outro significante são simbolizadas e relacionadas a outros conteúdos interiorizados anteriormente (Mead, 1934, pp.144-147). Mead explicou esse processo dizendo que a

Linguagem ... é o gesto oral que tende a despertar no indivíduo a atitude que desperta nos outros. Então, se dá a aproximação do self pelo gesto, que media as atividades sociais, que dão origem ao processo de tomada do papel do outro (Tradução própria, Mead, 1934, pp. 160-161).

Assim, a constituição do eu ocorre através da linguagem porque existe um compartilhamento simbólico. Para explicar esse processo, Mead (1934, p. 175) denominou I (Eu) a resposta do organismo frente às atitudes dos outros e Me (Mim) a organização do campo dessas atitudes dos outros frente à pessoa, que a própria pessoa assume e de que representa o conteúdo social.

Cheng e Starks (2002, pp. 307-308) acrescentaram ideias desenvolvidas a partir de pesquisas mais recentes da Psicologia Social sobre o outro significante e a constituição das aspirações. O processo pode adicionar como outros significantes aqueles indivíduos que fazem parte da rede social da criança e do adolescente. A partir disso, as maiores novidades das pesquisas nessa área têm apontado para o fato de que enquanto um ator é percebido como outro significante por uma criança pode não sê-lo por outras, de modo que, dependendo do contexto, os outros significantes podem ser outros membros da família ou da comunidade, e não os pais.

Para Featherman e Haller (2007, p. 1), o ponto central da abordagem psicosociológica, iniciada por Mead e Cooley, está nas comparações entre o eu e os outros, que definem as expectativas pelos comportamentos revelados através dessas comparações. Assim, a estrutura societal milenar vem a desenvolver uma consciência autorreflexiva em cada indivíduo, esquematizando suas características. A estrutura milenar começa a ser incorporada no curso da vida a partir da família e subsequentemente vários outros significantes se formam entre grupos de amigos e em contextos da escola, trabalho e da comunidade em geral. Assim, a personalidade é "esquematizada no decorrer do curso de vida através dos sucessivos contextos institucionais se diferenciando por classe tanto quanto por outros elementos da construção social (raça, gênero, mas não com foco nos anos iniciais de vida)" (Tradução própria, Featherman, 2007, p. 120). Os graus e características de cada personalidade estão na capacidade de a pessoa aspirar a papéis no contexto da escola, trabalho e na vida pessoal para o presente e para o futuro.

Método e amostra

Nessa pesquisa, foram coletados dados qualitativos, considerando dois grupos de adolescentes que trabalham: aqueles oriundos da classe média (CM) e aqueles de classes em condições socioeconômicas desfavorecidas (CSD), que estão inseridos em programas sociais; e dois grupos que foram compostos por adolescentes das referidas condições socioeconômicas, mas que não trabalhavam. Em todos os casos, houve a presença de educação formal, sendo uma metade do total de cada grupo do gênero feminino e a outra do masculino. A partir disso, a amostra qualitativa foi composta por 20 adolescentes entre 15 e 18 anos de idade, residentes da região metropolitana de Belo Horizonte, que estavam cursando o ensino médio, de ambos os sexos.

O método adotado para a pesquisa foi o estudo descritivo, buscando compreender como se dá o processo de constituição do outro significante na adolescência. Conforme Babbie (2004, p. 89), a pesquisa descritiva se destina a responder questões como: onde, quando e como, descrevendo o que se observa nos fenômenos estudados. Nesse estudo, buscamos responder questões do tipo que pergunta quem e qual: Quem é o outro significante? Qual a imagem que o adolescente supõe que o outro significante faz dele?

Para compor a amostra, foram selecionadas cinco instituições: uma escola particular (classe média) na qual se encontraram adolescentes que geralmente não trabalham (Colégio Berlar São Pascoal); uma escola federal (classe média), na qual havia vários alunos que trabalham (CEFET-MG); uma escola estadual (condição socioeconômica desfavorecida), na qual encontraram-se alunos que não trabalham (Colégio estadual Silviano Brandão); e dois programas de trabalho (ASSPROM e PET da Fundação CDL) para jovens em condição de vulnerabilidade social ou condição socioeconômica desfavorecida (CSD), nos quais se encontram adolescentes que devem estar matriculados para trabalharem. Tais instituições serviram apenas como meio para chegar aos sujeitos, não sendo objeto de estudo. No entanto, foram selecionadas intencionalmente, visando a encontrar os perfis de sujeitos que eram necessários para cada um dos quatro grupos.

O grupo dos adolescentes que trabalham e são de classe em CSD foi composto a partir de programas sociais que encaminham esses adolescentes para o mercado de trabalho, a Fundação CDL e a ASSPROM, pois nesses programas o critério de está estudando é exigido, de modo que todos os critérios1 1 Critérios da amostra: condição socioeconômica média e desfavorecida (50% cada), prática e ausência de trabalho na adolescência (50% cada), gênero feminino e masculino (50% cada), está cursando o ensino médio na série regular (todos) e idade entre 15 e 18 anos (todos). da pesquisa seriam atendidos, sendo necessário apenas convidar aqueles que quisessem participar e que tivessem entre 15 e 18 anos, sendo a metade de meninas e a outra de meninos. Nos dois programas, encontraram-se adolescentes que viviam em aglomerados e que tinham, portanto, um baixo nível socioeconômico.

Em seguida, buscou-se uma escola com adolescentes em CSD, cursando o ensino médio, mas que não trabalhassem. Então, foi selecionada uma escola estadual que tem turmas diurnas, de modo que os alunos dessa escola não trabalhassem geralmente, uma vez que aqueles que trabalham buscam escolas com turmas noturnas. A escola escolhida foi o Colégio Estadual Silviano Brandão, situado no bairro Lagoinha. Esse é um colégio público e localizado no entorno de comunidades carentes da cidade (Pedreira Prado Lopes).

Para encontrar adolescentes que trabalhassem e fossem de classe média, optou-se pelo CEFET, que é uma escola com alto nível de qualidade do ensino tradicional e integra o ensino técnico à sua grade curricular, o que sugeriria um perfil de adolescentes que buscam trabalhar mais cedo. Quando houve o contato com a pessoa responsável por acompanhar a coleta de dados no colégio, ficou claro que era uma escola com perfil de alunos de classe média, pois a funcionária afirmou que não havia alunos no CEFET que residiam em comunidades carentes. Com auxílio dessa pessoa, foram selecionados, nas salas de aula, aqueles que trabalhavam para realizar os convites. Durante o processo de coleta de dados, nas entrevistas, descobriu-se que há um processo seletivo para os alunos interessados em estudar lá, o que confirmou que os alunos dessa escola pertencem à classe média, tendo uma boa trajetória escolar e possuindo os recursos materiais para se prepararem para seleção, uma vez que existe curso preparatório especializado.

Por último, foi selecionada a escola que permitisse encontrar sujeitos que pertencem à classe média e que não trabalham. Para isso, essa escola deveria ter uma mensalidade relativamente baixa, o que demonstraria que os seus alunos não vivem em condição de vulnerabilidade social, uma vez que famílias em condições socioeconômicas desfavorecidas não apresentam recursos econômicos para investir em educação. O colégio escolhido foi o Colégio Berlar São Pascoal, localizado em um bairro de classe média de Belo Horizonte, o Caiçara. A mensalidade dessa escola era de 450,00 reais, sendo que a maioria dos alunos possui bolsa parcial. Selecionaram-se alguns para convidar entre aqueles que tinham 50% de bolsa, a partir de informações prévias, colhidas junto à secretaria da escola.

Assim, a amostra foi formada considerando dois níveis socioeconômicos: classe média com renda baixa e classe em CSD da população da região metropolitana de Belo Horizonte, sendo metade meninas e a outra metade meninos, considerando adolescentes que trabalham e que não trabalham.

Procedimentos

Foram realizadas entrevistas em profundidade com os adolescentes. As entrevistas buscaram identificar quem são os outros significantes do adolescente e qual a imagem que eles percebem que essas pessoas fazem deles. Primeiro, realizou-se os convites aos adolescentes. Quando esses aceitavam, pedia-se que os jovens conversassem com os pais, explicando do que se tratava. Ao ter a permissão dos pais, as entrevistas foram agendadas. Apenas uma família não permitiu, e os adolescentes, geralmente, se interessavam em participar. Grande parte das entrevistas ocorreu nas residências, o que era melhor porque era possível ter uma percepção mais clara com relação à condição socioeconômica da família. As demais foram realizadas na escola ou no programa social. As entrevistas transcorreram no tempo médio de meia hora. As entrevistas dos jovens que trabalham duraram um pouco mais.

A análise dos dados se baseou na seguinte hipótese: o outro significante (Cheng & Stark, 2002), bem como a imagem que o indivíduo considera que ele tem a seu respeito, varia, considerando condição socioeconômica (Bryant, Zvonkovic, & Reynolds, 2006), gênero (Halaby, 2003) e a prática de trabalho na adolescência.

Resultados

Descrição dos dados

Evidenciou-se, como principal característica que diferencia os grupos da amostra, a condição da moradia. Todas as famílias dos adolescentes de classe média residem em casa própria (casa ou apartamento), enquanto nove das 10 famílias de baixa renda (condições socioeconômicas desfavorecidas) vivem em áreas de risco (Invasões) e apenas uma entre as 10 vivia fora de zona de risco, porém nas proximidades, e morava em apartamento alugado. As casas das famílias de adolescentes de classe média (CM) apresentavam boas condições, sendo grandes e, exceto uma, todas bem mobiliadas. Além disso, estavam localizadas em regiões seguras e de fácil acesso; e todas as famílias possuíam no mínimo um automóvel, enquanto apenas uma família em CSD utilizava automóvel, porque o pai é motorista particular.

A escolaridade dos pais dos sujeitos de CM variou entre ensino fundamental incompleto e ensino superior completo, enquanto a escolaridade dos demais variou entre analfabeto e ensino médio completo. A ausência do ensino superior entre os pais em CSD confirma pesquisas que afirmam ser esse o nível de escolaridade mais fechado (Fernandes, 2004).

Como foi dito acima, ao contrário do que esperávamos, a renda não foi um critério que diferenciou com precisão as classes, embora não sejam exatamente iguais. A renda do grupo em CSD variou uniformemente entre 200,00 reais e 2.500,00 reais, enquanto o grupo de CM apresentou quatro famílias com renda em torno de 1.300,00 reais, três em torno de 3.000,00 reais e três com média de 6.000,00 reais, sendo que o mínimo foi 1.250,00 reais e o máximo 8.000,00 reais. O desvio padrão, o valor mínimo e o máximo, entre aqueles de CM, são mais elevados. Além disso, embora haja rendas iguais em famílias das duas classes, os demais critérios distinguiam essas famílias.

Embora não tenha sido considerada a variável raça/cor na composição da amostra, apresenta-se a seguinte descrição: foram encontrados dois pretos e três pardos entre os sujeitos que pertenciam ao grupo de classe desfavorecida que trabalha; um preto, três pardos e um branco no grupo em CSD que não trabalha; e dois pardos e três brancos nos grupos de CM que trabalha e que não trabalha também. Esses dados demonstram que há mais negros (pretos e pardos) na classe em condições socioeconômicas desfavorecidas do que na classe média; e, quando observamos no interior do grupo em CSD, há mais negros (pretos e pardos) entre os que trabalham. Para o grupo de CM essa distribuição foi igual, considerando a presença de trabalho.

A partir do Quadro 1, observamos que, entre os jovens em CSD, todos os adolescentes pretendem fazer nível superior, exceto um. Enquanto também quase todos de CM disseram que pretendem fazer pós-graduação em nível de mestrado e doutorado. Porém, entre os adolescentes em condições socioeconômicas desfavorecidas, havia um nível de informação mais baixo, de modo que alguns citavam o curso pretendido, mas não consideravam os custos e os meios para fazê-lo. Alguns desses relataram que pretendiam se inserir, primeiro, no mercado de trabalho, para depois ingressarem no ensino superior e construírem as profissões desejadas.


Nesse grupo, aqueles que trabalham demonstraram mais coerência entre aspiração educacional e ocupacional, embora nos dois grupos (CSD que trabalham e que não trabalham) houve alguns jovens que apresentavam pretensões salariais baixas para a ocupação pretendida, demonstrando falta de informação. Também apenas entre esses jovens, houve relatos de não ter aspirações ocupacionais definidas (um que trabalha e um que não trabalha).

Inicialmente, evidenciou-se que o grupo de adolescentes com nível mais alto de aspirações eram os de classe média que trabalha. Além de pretenderem fazer pós-graduação e apresentarem muita informação com relação à área pretendida, relatam querer trabalhar em postos altos em grandes empresas do país (Petrobrás, Vale do Rio Doce), quando não pretendem ter seu próprio negócio, o que foi característico desse grupo. Eles se destacam também por demonstrarem muita coerência nos seus planos com relação ao estudo e trabalho, e também já se mostram engajados em suas metas no intuito de atingirem seus objetivos. Foi interessante observar que eles não se destacaram por apresentarem uma forte emoção com relação às aspirações, pois, embora apresentem certo grau de entusiasmo, esse se continha por um grau forte de realismo. Esses adolescentes pareciam ter os "pés no chão".

O grupo com expectativas mais baixas foi o de adolescentes em condições socioeconômicas desfavorecidas que não trabalha. Quando os jovens que não trabalham oriundos de classe média foram comparados aos de classe em CSD, aqueles apresentaram um maior conhecimento com relação às suas escolhas, um nível educacional mais alto e mais engajamento para atingirem seus objetivos. Podemos dizer que o nível de aspirações decresceu da seguinte maneira: classe média que trabalha → classe média que não trabalha → classe em CSD que trabalha → Classe em CSD que não trabalha. Essa variação evidencia que quando o trabalho estava presente, o nível de aspirações do adolescente estava mais alto.

Houve pouca diferença entre meninas e meninos no interior dos grupos. Apenas entre meninos e meninas de classe média que trabalha houve certa diferença, pois os meninos apresentaram nível mais elevado de aspirações, embora tivessem pretensões semelhantes às das meninas. Eles estavam mais propensos a escolher desenvolver seu próprio negócio em áreas altamente valorizadas, como engenharia, e se mostraram mais entusiasmados e confiantes com seus projetos.

As meninas relataram maior interesse pela área de saúde, e os meninos pela área de engenharia, embora algumas meninas também tenham optado por essa área. Entre todos os entrevistados, apenas uma menina manifestou desejo de realizar trabalhos sociais com fim de auxiliar na resolução dos problemas sociais.

A ideia de constituir família apareceu na fala de meninos e meninas, mas foi mais presente na fala dos meninos, que demonstraram também maior preocupação em prover financeiramente o grupo familiar futuro.

Aspirações ocupacionais

Todos os sujeitos tinham como outro significante (pessoa que considera importante em sua vida, pessoa de referência) os pais, principalmente. Alguns mencionavam tios e avós e irmãos mais velhos. Essas figuras apareceram principalmente quando os pais não eram casados (geralmente era o pai quem estava ausente, salvo uma exceção). Quando o sujeito entrevistado era do gênero masculino, mesmo quando o pai não vivia com ele, era considerado como uma das pessoas mais importantes de sua vida, o que não aconteceu sempre com as meninas. Apenas adolescentes da classe média mencionaram professores como pessoa de referência, outro significante, evidenciando que a classe média desenvolve um vínculo mais forte e estável com a educação formal. Geralmente, esses alunos estudam em escolas particulares. E apenas na classe em condição socioeconômica desfavorecida os adolescentes mencionaram ter como outro significante o chefe e vizinhos mais velhos, o que corrobora com os dados da pesquisa realizada por Cheng e Starks (2002, pp. 307-308) nos Estados Unidos. Os autores afirmam que, dependendo do contexto, os outros significantes podem ser outros membros da família ou da comunidade, e não os pais. Evidenciou-se, nessa pesquisa americana, que para crianças que pertencem a famílias em condição socioeconômica desfavorecida, são os líderes comunitários e religiosos e a família estendida que, geralmente, fazem papel de outro significante mais do que apenas os pais.

Conforme Mead (1934, pp. 144-147), as pessoas que exercem o papel de outro significante no início da vida da criança são os pais ou familiares mais próximos ou aquelas pessoas que criam a criança. Os outros significantes são as pessoas que exercem maiores influências sobre as atitudes dos indivíduos. Após a infância, cumprem esse papel aquelas pessoas que têm uma ligação com o indivíduo e que são eleitas por ele.

Os sujeitos da pesquisa foram observados considerando os relatos sobre as ideias que eles imaginam que seus outros significantes têm sobre eles, pois o que a pessoa que desempenha esse papel transmite pensar a respeito do indivíduo, através da fala, de gestos, forma de olhar e atitudes, durante a interação diária, é absorvido e interpretado por eles para formar sua autoimagem (Mead, 1934, pp.144-147).

Entre os adolescentes que pertencem ao grupo em CSD, mais da metade dos entrevistados mencionaram imaginar alguma crença negativa (preguiçoso, teimoso, fala demais, brincalhão, faz tudo errado e explosivo) por parte dos outros significantes, enquanto menos de 1/3 dos adolescentes de classe média relatou esse tipo de informação (indisciplinado e teimosa). No interior da CM, não houve diferenciação de gênero nesse ponto, enquanto os meninos em CSD relataram mais vezes acreditar que os pais pensam coisas negativas sobre eles.

Os adolescentes só relataram imaginar ideias negativas vindas dos outros sobre eles quando partiam dos pais ou familiares bem próximos, o que leva a inferir que quando eles podem eleger pessoas para cumprir o papel de outro significante, escolhem pessoas que lhes passam ideias positivas sobre eles.

Quando questionados sobre a expectativa para o futuro que essas pessoas tinham sobre eles, apenas os sujeitos de classe média relataram expectativas mais elaboradas partindo dos outros significantes sobre eles. Poucos dos adolescentes em CSD achavam que os outros significativos esperavam algo deles para o futuro; e quando esperavam era algo mais vago como ser bem-sucedido ou características relacionadas a valores morais, como honestidade e obediência.

Com relação às ideias positivas que os adolescentes imaginam que os outros significantes tinham sobre eles, não houve muita diferenciação por classe, porém os meninos relataram mais ter ideia de que esses outros significativos (OS) os imaginavam responsáveis, bem educados e um "menino bom", que não dão trabalho, enquanto as meninas estavam mais relacionadas à figura de inteligentes e estudiosas.

Apenas os entrevistados de classe média que trabalhavam relataram imaginar que as pessoas que fazem o papel de OS confiam neles, em sua competência, e disseram até que esses OS se apoiam neles.

Assim, os adolescentes de classe média percebem mais expectativas positivas por parte dos OS, pois relatam ideias mais elaboradas, quando imaginam o que os OS pensam sobre eles. Exemplos disso são ideias como passar no vestibular em Universidade Federal, desafiar o filho através de brincadeiras e confiar no seu potencial. Tudo isso somado às ideias positivas contribui para a constituição de uma autoimagem mais favorável ao desenvolvimento pessoal, bem como para uma trajetória de trabalho mais bem-sucedida, uma vez que os adolescentes estão mais autoconfiantes.

Cooley (1902, citado por Brym, 2006) considera que os sentimentos que as pessoas apresentam acerca de quem são dependem, em grande medida, de como se veem avaliadas pelos outros. Berger e Luckmann (2002, pp. 174-182) acrescentam que a personalidade é uma entidade reflexa, que retrata as atitudes tomadas pelos OS com relação ao indivíduo, que se torna o que é pela ação dos outros significativos para ele.

Discussão

Todos os adolescentes de nossa amostra relataram que gostariam de estar trabalhando e quando estavam trabalhando expressavam maior envolvimento com suas metas de trabalho e maior entusiasmo com suas atividades. Além disso, apresentavam maior responsabilidade com suas atividades e uma postura mais madura. Desde o primeiro contato com os adolescentes para marcar suas entrevistas, ficou evidente que aqueles que trabalhavam apresentavam posturas mais maduras, o que se confirmou quando chegou o momento das entrevistas, pois apenas dentre os que não trabalhavam houve "furos", não estando no local no horário combinado. Assim, o fato de estar trabalhando pareceu proporcionar uma formação mais completa, que associa o estudo e o aprendizado do trabalho.

Desse modo, a prática de trabalho não pareceu ser um elemento prejudicial ao desenvolvimento dos adolescentes. No entanto, ficou evidente que, quando o desempenho escolar do adolescente é muito bom, diminui quando começa a trabalhar. Porém, entre aqueles que não eram bons alunos, seu desempenho na escola melhora.

A discussão em torno do trabalho na adolescência, bem como com relação aos mecanismos envolvidos nesse processo, é de grande importância no Brasil, onde cerca de 1/3 dos adolescentes (entre 15 e 17 anos) se encontravam trabalhando em 2001, conciliando estudo e trabalho ou somente trabalhando, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) (Sabóia, Soares, & Kappel, 2004, p. 7).

A questão do trabalho infantil e do adolescente, há muito tempo, é tema de debate no campo dos direitos sociais. Porém, apenas em 1990, com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Brasil se aproximou de uma possível garantia dos direitos fundamentais e do estabelecimento de deveres da família, da sociedade e do Estado para com a criança e o adolescente (Lei n. 8.069, 1990).

A partir dos resultados, pode-se inferir que a diferença de perfil entre os que estavam trabalhando e os que não estavam esteja relacionada a uma questão temporal, de modo que os adolescentes de classe média que não trabalhavam passam mais tempo da vida se dedicando à escola e por isso o entusiasmo e maturidade decorrentes do aprendizado do trabalho virão em época posterior. Os adolescentes que percebem o nível mais alto de expectativa dos pais com relação a eles são os que estão trabalhando e são de classe média. Pode-se atribuir uma percepção menos positiva aos demais, que trabalham (classe baixa), ao nível de stress dos pais da classe em condições desfavoráveis, que acabam não expressando isso para os filhos e cobrando mais ajuda nos afazeres e despesas domésticas. Em seguida, estão os de classe média que não trabalham e o mesmo se dá com aqueles pertencentes às classes desfavorecidas socioeconomicamente.

Pode-se dizer que o entusiasmo que os pais demonstram pelo filho pode estar relacionado ao próprio desempenho dos filhos que, quando trabalham, estavam visivelmente mais engajados com seus projetos e apresentavam tais projetos mais bem elaborados. Pode-se pensar isso ao considerar que a construção das expectativas dos pais e a demonstração dessas estão em sincronia com o que os filhos demonstram, como afirmam Bryant, Zvonkovic e Reynolds (2006).

Vale ressaltar que essa afirmação não pretende obscurecer a emergência de ações que partam do âmbito político com o intuito de possibilitar que os jovens se desenvolvam se dedicando à escola e às demais atividades do desenvolvimento (esporte, línguas estrangeiras, música etc.). É importante esclarecer isso porque existem inúmeros projetos de intervenção social se apoiando na Lei do Aprendiz (Lei n. 10.097, 2000), visando a inserir adolescentes (a partir de 14 anos) no mercado de trabalho como uma saída da condição de pobreza. Um ponto bastante valorizado dessa política é a obrigatoriedade de que o jovem esteja estudando. Esses dados juntamente com os dados deste estudo nos permitiram inferir que, sem dúvida, trabalhar, para o adolescente em CSD, é extremamente vantajoso pelos motivos explicitados anteriormente (motivação, envolvimento com seus projetos ocupacionais etc.). Porém, não nos impede de indagar qual o interesse dos empregadores ao contratarem esses jovens: o objetivo é obter mão de obra barata? E questionar também o posicionamento do Estado ao autorizar essa negociação entre empresas que visam a lucro e jovens em condição de vulnerabilidade social. Esses jovens buscam o trabalho por necessitarem atender às próprias necessidades básicas e de sua família, pois em algumas famílias a maior renda é a do jovem que trabalha.

Com relação ao gênero, os dados demonstraram uma maior dependência por parte dos meninos com relação à família (projeto ocupacional) e mesmo quando o pai estava separado da mãe, ele era mais próximo do pai do que as meninas. Notou-se haver maior interesse, afinidade e proximidade efetivamente, ocorrendo mais encontros e participação do pai na educação dos meninos. Por outro lado, as mães estavam presentes em todos os casos.

Assim, considerando as especificidades culturais e biológicas entre meninos e meninas, confirma-se que os outros significantes e a imagem que fazem do sujeito variam de acordo com o gênero.

Os resultados demonstram que os fatores relacionados principalmente à classe social do indivíduo e, em seguida, ao trabalho e ao gênero, representam condições constituidoras do processo subjetivo que é a formação da autoimagem e, portanto, da identidade. Desse modo, notamos que a teoria de Mead (1934) é bastante atual no que se refere à condição do indivíduo de se constituir continuamente na relação social, considerando seu contexto sociocultural.

Assim, concluímos que não são apenas as percepções que os adolescentes apresentam com relação às expectativas dos pais que constituem sua autoimagem diretamente, mas o contexto socioeconômico no qual estão inseridos somados a isso, uma vez que os pais também estão imersos em um contexto social.

Embora tenhamos encontrado respostas esclarecedoras a respeito do processo de constituição da autoimagem do adolescente, será ainda mais enriquecedor poder observar as trajetórias realizadas pelos sujeitos entrevistados após um tempo de suas entrevistas. Assim, será possível observar se as tendências verificadas foram seguidas, e não apenas o quanto todas as condições abordadas foram importantes para o desenvolvimento de sua trajetória ocupacional.

Nota

Agradecimento

À CAPES, pelo apoio através de concessão de bolsa de estudos - Mestrado.

Lei n. 8.069. (1990, 13 de julho). Estatuto da Criança e do Adolescente. Acesso em julho, 2009, em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm

Lei n. 10.097. (2000, 19 de dezembro). Lei do Aprendiz. Acesso em 20 de maio, 2011, em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10097.htm

Submissão em: 21/07/2011

Revisão em: 07/04/2012

Aceite em: 08/05/2012

Marta Santos Sales possui graduação em Psicologia pela Universidade FUMEC - Fundação Mineira de Educação e Cultura (2006). Mestre (2010) e doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Experiência em docência no ensino superior, lecionando Sociologia e Psicologia Social. Atuou em projetos sociais do terceiro setor e, atualmente, é Analista de Políticas Públicas na Prefeitura de Belo Horizonte- PBH/MG. Endereço: UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Antônio Carlos, 6.627, sala 4080. Campus Pampulha. Belo Horizonte/MG, Brasil. CEP 31270-901. E-mail: martapsi@yahoo.com.br

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  • O processo de constituição da identidade na adolescência: trabalho, classe e gênero

    El proceso de formación de la identidad de los adolescentes: trabajo, clase y género
  • 1
    Critérios da amostra: condição socioeconômica média e desfavorecida (50% cada), prática e ausência de trabalho na adolescência (50% cada), gênero feminino e masculino (50% cada), está cursando o ensino médio na série regular (todos) e idade entre 15 e 18 anos (todos).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Ago 2014
    • Data do Fascículo
      2014

    Histórico

    • Aceito
      08 Maio 2012
    • Revisado
      07 Abr 2012
    • Recebido
      21 Jul 2011
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