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DOENÇA MENTAL E AUTORIA COM BASE NA ARQUEOLOGIA DE FOUCAULT

ENFERMEDAD MENTAL Y AUTORÍA BASADAS EN LA ARQUEOLOGÍA DE FOUCAULT

MENTAL ILLNESS AND AUTHORSHIP BASED ON FOUCAULT'S ARCHEOLOGY

Resumos

Doença mental e autoria formam importantes limites temáticos nas investigações arqueológicas de Michel Foucault. Dentro desses limites, desrazão e autoria se encontram, conforme o seu diagnóstico da modernidade, em uma experiência extraordinária com a linguagem. Fora de tais limites, loucura e autoria possuem irreconciliáveis diferenças de status social. As implicações práticas da relação entre a razão e os associais, já presentes no diagnóstico da época clássica, adquirem então a primazia da análise, e a trama da linguagem dá lugar, nas investigações do filósofo, à trama política.

doença mental; autoria; linguagem; sociedade


Enfermedad mental y autoría han sido importantes límites temáticos en las investigaciones arqueológicas de Michel Foucault. Dentro de estos límites, desrazón y autoría se encuentran, conforme su diagnóstico de la modernidad, en una experiencia extraordinaria con el lenguaje. Fuera de estos límites, locura y autoría tienen irreconciliables diferencias de status social. Las implicaciones prácticas de la relación entre razón y los asociales, ya presentes en el diagnóstico de la época clásica, adquieren entonces la primacía del análisis, y la trama del lenguaje da lugar, en las investigaciones del filósofo, a la trama política.

enfermedad mental; autoría; lenguaje; sociedad


Mental illness and authorship are two important themes in the boundaries of Michel Foucault's archaeological investigations. Within these limits, unreason and authorship meet, as his diagnosis of modernity, in an extraordinary experience with the language. Outside these limits, madness and authorship have irreconcilable differences in social status. The practical implications of the relationship between reason and asocial, already present in the diagnosis of classical times, acquires the primacy in his analysis, and woof of language gives rise, in the investigations of the philosopher, to the political plot.

mental illness; authorship; language; society


Um ano após a publicação do seu primeiro trabalho, o texto de apresentação do livro de Biswanger O sonho e a existência, Foucault publica, em 1954, o seu primeiro livro, Maladie mentale et personnalité [Doença mental e personalidade].1 1 Na falta de uma tradução canônica da obra de 1954, optamos por apresentar a nossa tradução no corpo do texto e a versão original em nota. Em 1962, ele é significativamente alterado, inclusive sendo renomeado Doença mental e psicologia. Segundo o biógrafo Eribon (1989/1991, p. 122)Eribon, D. (1991). Michel Foucault. São Paulo: Companhia das Letras.(Original publicado em 1989), Foucault buscou na década de setenta até mesmo proibir, embora sem sucesso, que a segunda versão do livro fosse reimpressa. Ainda hoje, porém, muitos pesquisadores acatam as intenções tardias do autor, referindo-se a História da loucura como a primeira obra, e com isso menosprezam a enorme riqueza conceitual presente na primeira análise da doença mental.

Vemo-la assim apresentada: "Nós queremos mostrar que a raiz da patologia mental não deve ser buscada em uma 'metapatologia' qualquer; mas em uma certa referência, historicamente situada, do homem ao homem louco e ao homem verdadeiro"2 2 "Nous voudrions montrer que la racine de la pathologie mentale ne doit pas être cherchée dans une quelconque 'métapathologie'; mais dans un certain rapport, historiquement situé, de l'homme à l'homme fou et à l'homme vrai". (1954, p. 2Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.). A análise crítica que em Maladie mentale et personnalité é dirigida à psicologia da época tem suas raízes na filosofia, e mais especificamente na passagem de um pensamento dedicado à metafísica - forma de justificação natural e essencialista do mundo - para um pensamento dedicado à história. O que ali se pretende demonstrar é que a divisão entre normalidade e patologia não atende a nenhuma essência pura, a nenhuma determinação universal da doença e da normalidade, mas a concepções contingentes, históricas:

Postula-se, de início, que a doença é uma essência, uma entidade específica reconhecível pelos sintomas que a manifestam, mas anterior a eles, e, em uma certa medida, independente deles; depois descreve-se um fundo esquizofrênico escondido sob os sintomas obsessivos; fala-se de delírios camuflados; supõe-se a entidade de uma loucura maníaco-depressiva.3 (1954, p. 7)

Foucault parte de um problema já trabalhado em sua apresentação da obra de Biswanger, o método da interpretação simbólica, que consiste em decifrar as fontes ocultas de dadas manifestações, no caso sintomas patológicos que devem ser remetidos às anomalias originais, à "metapatologia". Na distância entre o mal e a sua expressão, uma realidade será inferida como se fosse demonstrável, mas sendo, na verdade, o preenchimento arbitrário do que está "escondido", "camuflado". O que, de início, se vê nos esforços da psicopatologia é algo contrário à positividade, um empreendimento da ordem da interpretação: "Fala-se de delírios camuflados"4 4 "On parlera de délires camouflés...". (1954, p. 7Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.).

O que legitimaria essa forma de análise aos olhos da clínica é uma suposta analogia natural entre os fenômenos psíquicos e os orgânicos. O orgânico é um tema investigado por Foucault em O nascimento da clínica, mas devemos reconhecer que, desde já, trata-se de analisar as suas estruturas e os seus limites, sob o risco de haver uma exacerbação da confiança na cientificidade, ao se ignorar algumas falsas bases.5 5 Foucault: "Uma patologia unitária que utilizaria os mesmos métodos e os mesmos conceitos tanto no domínio psicológico quanto no domínio fisiológico é atualmente da ordem do mito, mesmo se a unidade do corpo e do espírito é da ordem da realidade."/"Une pathologie unitaire qui utiliserait les mêmes méthodes et les mêmes concepts dans le domaine psychologique et dans le domaine physiologique est actuellement de l'ordre du mythe, même si l'unité du corps et de l'esprit est de l'ordre de la réalité." (1954, p. 12) Portanto, mesmo que Foucault admita, em 1954, a importância da fisiologia em si mesma, na falta de um argumento que sustente tal analogia, a psicologia funda-se sobre um "préjugé d'essence" [suposição de essência], um "postulat naturaliste" [postulado naturalista] e falsos "caractères permanents" [caracteres permanentes], que fazem com que, em sua avaliação, "o problema da unidade humana e da totalidade psicossomática continue inteiramente em aberto"6 6 "Le problème de l'unité humaine et de la totalité psychosomatique demeure entièrement ouvert". (1954, p. 8Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.).

O estudo possui, no entanto, um caráter também propositivo. No lugar do recurso à analogia, a tese fundamental que surge para amparar a psicologia é: "A personalidade torna-se, assim, o elemento no qual se desenvolve a doença, e o critério que permite julgá-la; ela é simultaneamente a realidade e a medida da doença"7 7 "La personnalité devient ainsi l'élément dans lequel se développe la maladie, et le critère qui permet de la juger; elle est à la fois la réalité et la mesure de la maladie". (1954, p. 10Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.). A psicologia funda-se em um inventário de personalidades, as quais serão analisadas em suas formações. São os estudos das formações de personalidade, e não as analogias com o organismo, que devem emprestar mais substancial rigor à psicologia. A formação da personalidade é o espaço que carrega a promessa de juntar as duas pontas - a imagem e o seu sentido; o sintoma e o mal original -, mas que receberá de Foucault um tratamento mais uma vez ambíguo. Em parte, ele admitirá os resultados deste meio alternativo de investigação já em voga - a "psicologia genética" -, mas resguardará também uma série de críticas, para as quais ele buscará outras alternativas.

Um pressuposto da psicologia genética assumido por Foucault consiste em que um dos efeitos mais evidentes da doença mental é o modo como ela usurpa o sujeito de sua personalidade individual, desfaz a complexidade e a imprevisibilidade das escolhas que qualificam a sua autonomia. A doença é a própria forma enrijecida, "l'inertie" [a inércia] (1954, p. 108Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.), permitindo que um indivíduo seja enquadrado em certas estruturas gerais: "Digamos, em resumo, que a doença suprime as funções complexas, instáveis e voluntárias, exaltando as funções simples, estáveis e automáticas"8 8 "Disons donc, en résumé, que la maladie supprime les fonctions complexes, instables et volontaires, en exaltant les fonctions simples, stables et automatiques". (1954, p. 21Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.). Simploriedade como resultado da doença e condição para a análise da doença se encontram nos retratos estruturais das personalidades e contrariam, quando se trata de casos patológicos, o preceito bastante comum entre os antigos de que não se pode afirmar quem um homem é até que ele esteja morto. De fato, estamos aqui na antípoda da advertência fundamental de Heráclito: "Caminhando não encontrarás os limites da alma,/Mesmo se percorreres todas as estradas,/Pois é muito profundo o Lógos que ela possui" (1973, fragmento 45Heráclito. (1973). Heráclitode Éfeso. In Coleção Os Pensadores: Os Pré-Socráticos (Vol. 1, pp. 79-142). São Paulo: Abril Cultural.).

O que permite o trabalho sobre a doença mental é não precisar partir de um horizonte muito vasto, pois o que ocorre na doença, facilitando o trabalho do médico, é um comportamento regressivo, uma espécie de retorno às origens do desenvolvimento da personalidade, tornando-se um objeto estável o bastante para que a sua estrutura subjetiva seja enquadrada:

A doença é o processo ao longo do qual se desfaz a trama da evolução suprimindo de início, e em suas formas mais benignas, as estruturas mais recentes, atingindo, em seguida, a sua realização e o seu ponto supremo de gravidade, os níveis mais arcaicos. A doença não é então um déficit que ataca cegamente uma faculdade ou outra; há na absurdidade do mórbido uma lógica que é preciso saber ler; é a lógica mesma da evolução normal. A doença não é uma essência contrária à natureza, ela é a natureza mesma, mas em um processo inverso; a história natural da doença só precisa ir contra a corrente da história natural do organismo são.9 (1954, p. 22)

Ao depararmos com tal compreensão do significado da doença mental, é preciso remetê-la a quem primeiro, da perspectiva de sua estrutura formal, a articulou: Hegel. É ele quem estabelece a história como princípio de inteligibilidade das ciências do homem. A solução desse conflito não pode se dar senão em detrimento da interpretação e em favor de um rigor atribuído aos processos de formação. Quando Hegel incorpora ao todo da razão as demonstrações de erro e de loucura, de tudo aquilo que, para Kant, representaria um uso indevido de nossas faculdades e que deveria ser descartado como mero acidente para não contradizer a "doutrina teleológica da natureza", ele não o faz apenas no plano do espírito universal.10 10 Machado: "Enquanto ainda para Kant a loucura era incompatível com um pensamento em conformidade com as leis da experiência, era incurável e excluía toda ação terapêutica, para Hegel, que reconhece em Pinel o responsável por essa descoberta, ela implica a existência de razão, de consciência racional, no doente, o que o torna por natureza, ou em princípio, curável". (2005, p. 31) De acordo com ele, a razão está também presente em toda parte, inclusive nos casos individuais.11 11 Hegel: "O indivíduo singular deve também percorrer os degraus-de-formação-cultural do espírito universal" (1807/2002, p. 41). É importante lembrar que, até então, segundo o diagnóstico do próprio Foucault, o paradigma que imperava a respeito da patologia mental é aquele retratado por Descartes, ou seja, que assume que razão e loucura são inconciliáveis. Em História da loucura, Foucault o diz ao fazer de Descartes a voz do classicismo: "Não se pode supor, mesmo através do pensamento, que se é louco, pois a loucura é justamente a condição de impossibilidade do pensamento" (1961/2005a, p. 46Foucault, M. (2005a). História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva.(Original publicado em 1961)). Vemos, portanto, como o saber dedicado à psicopatologia moderna, saber no qual o pensamento de Freud se inscreve e onde se vê uma larga distância com relação a Kant e a Descartes, saber o qual Foucault se esforça por devolver ao seu quadro, deve tanto a Hegel - objeto de estudos de Foucault nos cursos de Jean Hyppolite.12 12 O modo como Hegel está presente em diversos aspectos do pensamento de Foucault pode ser atribuído à sua relação com Jean Hyppolite, orientador de sua tese de doutorado Folie e Déraison (História da loucura na idade clássica) e especialista em Hegel. Foi também Hyppolite quem incentivou Foucault a publicar Maladie mentale e personnalité. Ver Eribon (1991).

Considerar o doente mental razoável não é atribuir a ele a complexidade de uma mente sã, mas considerar que algo de razoável se passa com ele. Por ocorrência de certo evento relevante de sua vida, que reconhecemos como trauma, o processo de seu desenvolvimento natural foi interrompido ou até mesmo regrediu. A que ponto? Àquele em que, analogamente, um dia se encontrou a humanidade: "Quando o homem primitivo não encontrava, em sua solidariedade com outros, o critério da verdade, quando ele projetava seus desejos e suas crenças em fantasmagorias que teciam com o real as meadas indissociáveis do sonho, da aparição e do mito"13 13 "Quand l'homme primitif ne trouvait pas, dans sa solidarité avec autrui, le critère de la vérité, quand il projetait ses désirs et ses craintes en fantasmagories qui tissaient avec le réel les écheveaux indissociables du rêve, de l'apparition, et du mythe". (1954, p. 29Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.).

O que justifica para esse saber a expectativa de revelação da estrutura simbólica entre a imagem do sintoma e o seu sentido originário é o processo de desenvolvimento psíquico poder ser determinado em todos os seus passos, como pretendeu Hegel quanto à história do espírito que conduz a humanidade. O argumento hegeliano é, então, o marco divisor entre o trabalho da interpretação e a cientificidade do saber antropológico ou, como quer Freud, da "ciência do espírito" (1925/1987, p. 52Freud, S. (1987). Sigmund Freud presenté par lui-même. Paris: Gallimard.(Original publicado em 1925)).

Em 1967, Foucault afirma que Nietzsche, Freud e Marx teriam estabelecido um novo paradigma de conhecimento, no qual impera a tarefa da interpretação infinita, mas é preciso reconhecer que o paradigma da interpretação apenas se instaura como modo de conhecimento na medida em que estes autores rompem com Hegel. Quando se pretende legitimar a cientificidade do conhecimento científico para além de uma mera atividade de interpretação, sobre as bases da positividade de ciência histórica - no caso, a "psicologia genética" - o que vemos é um retorno a Hegel. Portanto, os esquemas de conhecimento disponíveis na virada do século XIX para o século XX tomam como referência, para a determinação daquilo que na história e na atividade de interpretação é científico, a filosofia de Hegel. Ao menos, esta é a referência de Foucault para os momentos nos quais a cada vez ele condena ou absolve as pretensões de Freud. Afinal, esse não é ainda o Freud da "sobredeterminação", o Freud da leitura de 1967, evocado em favor da atividade de interpretação. A psicanálise tomada sobre bases hegelianas é, então, a solução para aquela do "vocabulário simbólico" descrita em 1953. Ela é a solução contra a arbitrariedade do discurso sobre o universo camuflado, que pressupõe determinações naturais.

É nesse sentido também que a psiquiatria, a qual precisa limitar-se à analogia com o organismo fisiológico - como, de fato, verifica-se no conflito entre Freud e Breuer -14 14 "Ao responder à pergunta sobre quando é que um processo mental se torna patogênico - isto é, quando é que se torna impossível lidar com ele normalmente -, Breuer preferiu o que poderia ser chamado de teoria fisiológica: julgava ele que os processos que não podiam encontrar um resultado normal eram aqueles que se haviam originado durante anos mentais 'hipnóides' inusitados. Isto provocou a questão ulterior da origem desses estados 'hipnóides'. Eu, por outro lado, estava inclinado a suspeitar da existência de uma ação mútua de forças e da atuação de intenções e propósitos como os que devem ser observados na vida normal." (1925/1973, p. 35) abre espaço ao saber legítimo da psicanálise. Esta requer que a historicidade do desenvolvimento psíquico seja demonstrável, da mesma forma como Hegel pretendeu, menos de um século antes, demonstrar a historicidade do desenvolvimento do espírito absoluto. Foucault indiretamente o evoca: "Cada tipo de neurose é uma volta a um estágio da evolução libidinal. E a psicanálise acreditou poder escrever uma psicologia da criança fazendo uma patologia do adulto"15 15 "Chaque type de névrose est retour à un stade d'évolution libidinale. Et la psychanalyse a cru pouvoir écrire une psychologie de l'enfant, en faisant une pathologie de l'adulte". (1954, p. 23Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.).

Ao legitimar a psicologia genética em detrimento das pretensões de constituição de um "vocabulário simbólico" universal, Foucault justifica as bases para o seu próprio método de investigação histórica, que encontraremos em História da loucura. A história do sujeito empreendida pela psicanálise abrirá caminho à arqueologia foucaultiana, quando esta se trata, possivelmente até por volta de 1967, de um "deciframento dos códigos secretos". No texto "Introdução (in Biswanger)", Foucault utiliza pela primeira vez o termo "arqueologia", referindo-se negativamente ao trabalho de Freud. Em Maladie mentale et personnalité, o termo reaparece, embora dotado de um distinto significado:

Trata-se do famoso complexo de Édipo, no qual Freud acreditava ler o enigma do homem e a chave de seu destino; no qual é preciso sem dúvida encontrar a análise mais compreensiva dos conflitos vividos pela criança com seus pais, e o ponto de fixação de muitas neuroses. Em resumo, todo estágio libidinal é uma estrutura patológica virtual. A neurose é uma arqueologia espontânea da libido.16 (1954, p. 26)

No ano anterior, Foucault revelara antipatia pela psicanálise com base na inconsistência do "vocabulário simbólico", o recurso naturalista explorado pela interpretação dos sonhos. Agora ele vê o símbolo que não fora preenchido pelos supostos mecanismos naturais do sonho preenchido pela "psicologia genética". Entretanto, embora os pressupostos que há nela em comum com o hegelianismo sejam por ele assumidos quanto a tudo o que se refere à ideia de um desenvolvimento progressivo da psique em direção à sua autonomia, resta ainda grande margem à crítica. Nessa ocasião, para Foucault, os mitos não estão presentes somente neste pensamento com o qual, em sua regressão, o doente mental está em sincronia. A despeito de ter se libertado dos falsos pressupostos científicos com base na analogia entre a psique e o organismo, a teoria psicanalítica findaria enredando-se em outros: "No horizonte de todas essas análises, há, sem dúvida, temas explicativos que se situam eles mesmos nas fronteiras do mito: o mito, de início, de uma certa substância psicológica ('libido', em Freud, 'força psíquica', em Janet)"17 17 "À l'horizon de toutes ces analyses, il y a, sans doute, des thèmes explicatifs qui se situent d'eux mêmes aux frontières du mythe: le mythe, d'abord, d'une certaine substance psychologique ('libido', chez Freud, 'force psychique', chez Janet)". (1954, p. 30Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.).

É com base nessa crítica mais específica às abstrações míticas da "libido" e da "força psíquica", novas essências metafísicas, que o texto revela o que Foucault tem em vista como proposta alternativa. Em primeiro lugar, ele parte da constatação de que tal explicação "arqueológica" em sentido psicanalítico, que "decifra os códigos secretos", por exemplo, inferindo da neurose a realidade da libido, não explicaria o que talvez possamos chamar de gatilho da doença mental, isso que faz com que, a determinado momento, um e não outro desenvolva uma patologia. A origem não do sintoma, mas a origem da doença, permanece obscura: "É preciso, então, empurrar a análise mais longe, e completar essa dimensão evolutiva, virtual e estrutural da doença pela análise dessa dimensão que a torna necessária, significativa e histórica"18 18 "Il faut donc pousser l'analyse plus loin; et compléter cette dimension évolutive, virtuelle et structurale de la maladie, par l'analyse de cette dimension qui la rend nécessaire, significative et historique". (1954, p. 35Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.). Vemos assim as primeiras condições para o aparecimento de sua própria arqueologia.

Duas importantes referências surgem também no contexto desta obra: a fenomenologia de Heidegger e o materialismo histórico de Marx. Ambas são sugestões de caminhos alternativos para compreender a história na constituição psicológica do sujeito - alternativas à necessidade de remeter o que é histórico a substâncias supra-históricas. A primeira baseia-se no conceito de angústia. Em Heidegger, tornar-se próprio não é uma questão de livre escolha. Trata-se de uma disposição rara frente a crises, porque tendemos a certa "decadência", a sempre abandonar essa busca em favor de uma impessoalidade cotidiana, na qual assumimos um modo de ser comum aos outros e conforme aos outros. É no esvaziamento dessa relação impessoal, quando se abre uma fenda entre o que podemos ser e a forma com que o mundo então esvaziado nos conduzia, que emerge a angústia e, com ela, também a oportunidade de se fazer escolhas significativas. A angústia é o que irrompe em nossas vidas arrancando-nos da impessoalidade e levando-nos a buscar assumi-las por nós mesmos. Ela não possui, então, nenhuma natureza, mas irrompe como uma experiência existencial.

Em Maladie mentale et personnalité, na compreensão foucaultiana, a angústia aparece como o fator capaz de disparar a alienação mental. Ele chega a afirmar que ela é "comme un a priori d'existence" [como um a priori da existência] (1954, p. 52Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.), o único a priori possível, e o diz conforme uma atitude fenomenológica que encontramos no fundamento mesmo desse livro: "Sem dúvida, a análise fenomenológica recusa uma distinção a priori entre o normal e o patológico"19 19 "Sans doute, l'analyse phénoménologique refuse une distinction a priori du normal et du pathologique." (1954, p. 68Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.), de modo que o patológico há de ser ligado, pela angústia de cada um, à existência de cada um.20 20 Foucault: "É pela angústia que a evolução psicológica se transforma em história individual."/ "C'est par l'angoisse que l'évolution psychologique se transforme en histoire individuelle." (1954, p. 50) A angústia é a responsável pelo modo como as estruturas que nos são comuns sejam vividas individualmente, fazendo com que uns desenvolvam uma doença mental, enquanto outros não.

Em 1953, no texto "Introdução (in Biswanger)", a fenomenologia surge para Foucault como a melhor representante da positividade da história. É ela quem deve salvar as existências individuais das reduções ao "vocabulário simbólico" psicanalítico. A novidade, em 1954, é que Foucault busque compor ao trabalho fenomenológico dois outros, os quais serão precisamente aqueles que ele se encarregará de subtrair em Doença mental e psicologia, no ano de 1962: a história pela referência ao materialismo histórico de Marx e uma referência também ao que haveria de legítimo no materialismo orgânico, ou melhor, na fisiologia.

Quanto a essa segunda referência, de fato Foucault atribui a ela uma enorme relevância na constituição das doenças mentais, tomando Pavlov como seu grande representante. Pretender uma analogia com a fisiologia seria um problema, mas confiar um papel a ela não:

A catatonia é um dos exemplos mais manifestos de inibição generalizada, e o prognóstico favorável que ela comporta mostra a significação da inibição: ela é essencialmente mecanismo de defesa e de recuperação; ela corresponde, segundo Pavlov, ao processo de assimilação da célula nervosa, enquanto a excitação corresponde ao gasto e à desassimilação.21 (1954, p. 100)

Em 1962, na versão de Doença mental e psicologia, toda referência à legimitidade do saber fisiológico desaparecerá, e essa ruptura não deixará grandes consequências. Quanto à perspectiva marxista de 1954 e sua supressão em 1962, há uma série de elementos interessantes. Por exemplo, em Maladie mentale et personnalité, o capítulo V chama-se "Le sens historique de l'aliénation mentale" [O sentido histórico da alienação mental]. Em Doença mental e psicologia, ele será substituído por "La constitution historique de la maladie mentale" [A constituição histórica da doença mental], provavelmente buscando atenuar o seu caráter marxista, pela alteração dos termos "sentido histórico" e "alienação". No primeiro, encontramos a seguinte ideia:

Freud queria explicar a guerra, mas é a guerra que explica essa virada no pensamento de Freud. Ou, mais ainda, o capitalismo fazia, a essa época, de uma forma clara para ele mesmo, a experiência de suas próprias contradições: era preciso renunciar aos velhos temas da solidariedade e admitir que o homem podia e devia fazer do homem uma experiência negativa, experimentada sobre as formas da raiva e da agressão. Os psicólogos deram a esta experiência o nome de ambivalência e eles viram aí um conflito de instintos. Sua origem está, em realidade, nas contradições das relações sociais.22 (1954, p. 87)

No segundo, Doença mental e psicologia, o que encontramos é:

Nos meados do século XVII, brusca mudança; o mundo da loucura vai tornar-se o mundo da exclusão. Criam-se (e isto em toda a Europa) estabelecimentos para a internação que não são simplesmente destinados a receber os loucos, mas toda uma série de indivíduos bastante diferentes uns dos outros, pelo menos segundo nossos critérios de percepção: encerram-se os inválidos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos, os portadores de doenças venéreas, libertinos de toda espécie, pessoas a quem a família ou o poder real querem evitar um castigo público, pais de família dissipadores, eclesiásticos em infração, em resumo, todos aqueles que, em relação à ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras de "alteração". (1962/1968, p. 78)

É fácil notar que, ao subtrair uma série de capítulos de Maladie mentale et personnalité, o que predominantemente Foucault faz em 1962 é preencher o vazio deixado com os estudos já dirigidos no ano anterior à História da loucura. No fim dessa segunda versão surge, em linhas gerais, um resumo do trabalho que foi a sua tese de doutorado. História da loucura é uma arqueologia das formas de exclusão, pela razão, de classes de personagens que formam uma grande constelação, cravando na história uma série de consequências morais que servem como o melhor retrato da própria razão.

Conclui-se, então, que o materialismo histórico de Marx é suprimido e dá lugar a uma análise predominantemente voltada à partilha moral que há entre razão e desrazão. Uma observação relevante é que há um lugar para Nietzsche nesta virada. No texto de 1954, não há uma única menção a tal filósofo, para quem a questão moral é central, ao passo que, na segunda versão, ele surge imponente: "A 'psicologia' é somente uma fina película na superfície do mundo ético no qual o homem moderno busca a sua verdade - e a perde. Nietzsche, a quem se fez dizer o contrário, tinha-o visto muito bem". (1962/1968, p. 85Foucault, M. (1968). Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro. (Original publicado em 1962)) Foucault refere-se aqui à apropriação que se fez de Nietzsche pelo nazismo, mas não nos atenhamos a isso. Essa não é a única consequência das transformações que vemos. O campo que será ocupado pela linguagem substitui esta análise materialista: fisiologia, que vemos realmente desaparecer, e conflito de classes, que vemos ressurgir transfigurado em práticas de exclusão dos associais.

O último capítulo, reescrito por Foucault em 1962, intitulado "A loucura, estrutura global", revela-nos, tão bem quanto o prefácio escrito em 1960 para Folie et déraison, a relevância que a linguagem adquire. Ele afirma: "Será preciso um dia tentar fazer um estudo da loucura como estrutura global - da loucura liberada e desalienada, restituída de certo modo a sua linguagem de origem". (1962/1968, p. 87Foucault, M. (1968). Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro. (Original publicado em 1962)) Com isso, confirma-se, primeiramente, o fato de que o pensamento de Foucault é, ainda em 1962, um pensamento voltado à origem, embora uma origem que é agora não mais suscetível à "psicologia genética", nem mesmo se composta ao materialismo histórico e ao materialismo da fisiologia, pois pertence ao silêncio da linguagem, o objeto por excelência da sua arqueologia.23 23 Aqui nos distanciamos de Gros na medida em que este adere às mudanças tardias na obra de Foucault que ocultam as suas primeiras concepções de linguagem, quando a encontramos relacionada à origem, e tornam obscuras muitas passagens. F. Gros: "Loucura e literatura se ordenam verticalmente na experiência soberana de uma linguagem sem origem". "Folie et littérature s'ordonnent verticalement à l'expérience souveraine d'un langage sans origine" (2004, p. 111).

O que Foucault realiza em História da loucura não é um estudo de uma só "estrutura global", mas a constituição de uma constelação de fenômenos muito dispersos reunidos sob a imagem enigmática da loucura. Ele quer encontrar a fonte com base na qual mesmo a loucura pode expressar-se, e com base na qual, na verdade, ela já se expressou nos autores que com ela flertaram ao ponto de serem por ela tomados, esses que não eram, portanto, claramente autores. Eram menos autores do que porta-vozes da linguagem.

Os estudos de Foucault sobre a loucura não vão da figura genérica do louco para o exame cada vez mais específico do que o constitui como doente mental; eles vão do esforço de determinação positiva da doença mental para uma análise de diversos personagens que foram, ao longo de muitos séculos, reunidos e reduzidos à figura do louco.

Entre Maladie mentale et personnalité e História da loucura, um estudo afim aos propósitos da psicologia dá lugar a outro que a examinará de fora, não apenas por uma abordagem crítica, explorando as suas condições de possibilidade históricas, como também por uma abordagem ética, que considera os seus efeitos práticos. Tal passagem é também a de um pensamento tomado pela razão científica a um pensamento que, buscando respeitar a desrazão, esforça-se por substituir aquela hegemonia por uma experiência com a linguagem.

Se é possível estabelecer uma distância entre o que as ciências dizem da loucura e o que a loucura é para a desrazão, é porque há uma partilha moral a se reconhecer e porque há a existência de um universo inaudito, do qual todos os discursos provêm. Há a razão e a há desrazão; há aquilo que o louco é para as ciências do homem - critério que justifica as práticas de exclusão -, e há o que a loucura é para a linguagem. É essa dupla distância, presente também como dois interesses e dois estratos na letra de Foucault, o que garante que o louco para as ciências do homem decorra de um "estatuto" de objeto contingente; e é também esta dupla distância, do louco para a ciência e da loucura para a linguagem, o que insinua que ele, na modernidade, talvez mereça outro status, o de autor.

Na conferência "Loucura, literatura e sociedade", Foucault retoma um argumento já trabalhado em História da loucura:

O louco é o portador da verdade e ele a conta de modo muito curioso. Pois sabe muito mais coisas do que aqueles que não são loucos: ele tem uma visão de outra dimensão. ... O louco é um profeta ingênuo, que conta a verdade sem o saber. A verdade transparece através dele, mas ele, por sua vez, não a possui. ... De um lado, há um grupo de personagens que dominam sua vontade, mas não conhecem a verdade. Do outro, há o louco que lhes conta a verdade, mas não governa sua vontade e nem mesmo tem o domínio do fato de que conta a verdade. Essa assimetria entre a vontade e a verdade, ou seja, entre a verdade desapossada da vontade e a vontade que ainda não conhece a verdade, não é nada mais que a diferença entre os loucos e os que não são loucos. (1970/2010b, p. 239)

Grosso modo, não somente "portador da verdade" para o Renascimento, o louco é aquele que, em nossa época, abriu as portas de "outra dimensão". Se ele retorna a algum lugar, não se trata mais de um começo primitivo, de um retrocesso às origens do desenvolvimento psíquico. "Portador da verdade" no Renascimento e objeto da razão científica no classicismo desse "fim de século XVIII", é preciso esclarecer a sua posição arquetípica na modernidade. Se há um regresso na loucura, em vez de uma etapa primitiva da civilização, o seu retorno agora será à fonte da linguagem.

O que transparece através do louco, e que seria também uma experiência de linguagem paradigmática para a modernidade, é a autoria desprovida de intenção, desprovida de vontade e de propriedade consciente. Mas ela não é toda caracterizada pela falta, pois provoca uma experiência inesperada, a qual pode ser, como outrora, implicada à "verdade". O louco não é apenas alguém que conta a verdade porque não possui a barreira moral na qual todos os outros estão encerrados. A barreira moral sobre ele se impõe de fora, uma vez que ele fala essa estranha verdade atendendo à dimensão mais profunda da linguagem:

Então, e somente então, poderá aparecer o domínio no qual o homem de loucura e o homem de razão, separando-se, não estão ainda separados e, em uma linguagem muito originária, muito tosca, bem mais matinal do que a ciência, iniciem o diálogo de sua ruptura, o que testemunha de um modo fugidio que eles se falam ainda. Ali, loucura e não loucura, razão e não razão estão confusamente implicadas: inseparáveis, já que não existem ainda, e existindo uma para a outra, uma em relação à outra, na troca que as separa. (1961/2005b, p. 153)

No prefácio escrito para Folie et déraison, a primeira versão de História da loucura, encontramos o que é capaz de unir o homem de razão ao homem de loucura como uma linguagem matinal - um início que tem o esplendor de uma aurora, que é puro porque o que corrompe a sociedade ainda não corrompeu as suas promessas. Não mais um ideal positivista, deparamo-nos com um ideal romântico. Ainda que não se trate de confundi-los, de dizer que o homem de razão é também um homem de loucura, a "linguagem matinal" para a qual o homem de loucura retorna aponta também um caminho de retorno para o homem de razão. Quando, na linguagem, o homem de razão estabelece com o homem de loucura outro diálogo - quando não se trata de um "monólogo da razão sobre a loucura" -, toda a corrupção moral da razão é desperta, como num ritual de purificação, para uma outra obra. Portanto, não apenas o louco revela, por sua diferença, o que é a normalidade sob o ponto de vista ético da razão; não apenas revela o que é a própria razão segundo aquilo que ela produz, tal como na análise do classicismo de História da loucura. Ele agora revelará também qual a natureza das produções extraordinárias dos homens na modernidade e o propósito de suas autorias. Se o homem do classicismo vai à história para encontrar as marcas do progresso, o homem moderno avança seu olhar sobre a história mergulhando cada vez mais profundamente e esperançoso de perder-se na experiência de sua aurora. Mesmo que o louco não seja o seu soberano, mesmo que não tenha a intenção de fazê-lo, Foucault sugere que ele tem acesso a uma linguagem que nos precede e que nos excede, e sugere que ele mostra, finalmente, que sermos assim envolvidos pela linguagem é o melhor que podemos esperar de nós mesmos.

Em Vigiar e punir, há importantes referências ao tema da autoria, direcionado, então, à especificidade da autoria de um crime. Para que se conheça as suas motivações, a técnica punitiva apropriada e a melhor forma de reeducar o criminoso, é preciso tornar seus atos - e seus discursos - razoáveis. É preciso desvendar o seu íntimo. As questões postas já não estabelecem uma relação com os mistérios da linguagem, mas retomam o arcabouço teórico positivo que vimos formulado em Maladie mentale et personnalité.

Em Vigiar e punir, encontramos: "Como citar o processo causal que o produziu? Onde estará, no próprio autor, a origem do crime? Instinto, inconsciente, meio ambiente, hereditariedade?" (1975/2008, p. 20Foucault, M. (2008). Vigiar e punir. Petrópolis, RJ: Vozes.(Original publicado em 1975)). O que o sistema jurídico precisa identificar, visto que não se trata mais de julgar os atos, e sim a "periculosidade" de um criminoso, não é somente o que ele fez, mas principalmente aquilo que ele pode vir a executar. É necessário que se faça o seu retrato psíquico compondo todos os elementos que se encontram disponíveis: "instinto", "inconsciente", "meio ambiente" e "hereditariedade", quer dizer, história pessoal e conjuntural, fisiologia e "estruturas de personalidade". Foucault identifica no sistema penal um procedimento que ele próprio um dia investigou, mas se agora o renega, não é a favor de uma nova experiência de linguagem. O que se passa quando o retrato do criminoso nos conduz a um resultado contrário, que atesta a desrazoabilidade dos seus atos? Lê-se em Vigiar e punir:

Um fato significativo: a maneira como a questão da loucura evoluiu na prática penal. De acordo com o código francês de 1810, ela só era abordada no final do artigo 64. Este prevê que não há crime nem delito, se o infrator estava em estado de demência no momento do ato. A possibilidade de invocar a loucura excluía, pois, a qualificação de um ato como crime: na alegação de o autor ter ficado louco, não era a gravidade de seu gesto que se modificava, nem a sua pena que devia ser atenuada: mas o próprio crime desaparecia. Impossível, pois, declarar alguém ao mesmo tempo culpado e louco; o diagnóstico de loucura uma vez declarado não podia ser integrado no juízo; ele interrompia o processo e retirava o poder da justiça sobre o autor do ato. (1975/2008, p. 21)

Na hipótese de um ato irracional, de uma ação sem autoria, perde-se a pertinência de levar adiante uma ação judicial. Destarte, adiantando-nos assim na obra foucaultiana, reencontraremos a análise da autoria e de seu vínculo com a loucura sobre outras bases. O que nos permite proceder por essa rota alternativa é o critério do status.

Agora retornemos ao início da década de sessenta para que a discrepância que queremos demonstrar seja mais clara quanto às suas raízes conceituais. No prefácio de Folie et déraison, o mesmo no qual encontramos tão bem elaborado o vínculo de História da loucura com a questão da linguagem, somos induzidos a pensar que é possível proceder com a gênese de uma ética da doença mental e da autoria pelo critério do status. Ele afirma: "Não pode haver em nossa sociedade razão sem loucura, mesmo quando o conhecimento racional que tomamos da loucura a reduza e a desarme, conferindo-lhe o frágil status de acidente patológico" (1961/2005a, p. 157 Foucault, M. (2005a). História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva.(Original publicado em 1961)). A tensão não encontra a mesma resolução, pois se baseia em dois estratos - o das práticas de exclusão e o da linguagem - que, neste caso específico e especialmente interessante, legitimam duas diferentes compreensões, nas quais não pode haver, em nossa sociedade, razão sem loucura porque a loucura qualifica as práticas da razão e não pode haver, em nossa sociedade, razão sem loucura porque ambas estão ligadas por um vínculo originário na linguagem.

Atendo-nos ao plano de História da loucura, nas análises que se dedicam também ao universo jurídico, vemos que não há crime que mereça punição mais severa do que o de ser louco. Foucault afirma, a respeito do século XVIII, que "estamos no extremo oposto dessa regra fundamental do direito segundo a qual 'a verdadeira loucura tudo desculpa'" (1961/2005a, p. 138 Foucault, M. (2005a). História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva.(Original publicado em 1961)). Conforme nos aproximamos das análises das práticas de exclusão, do trabalho ético da razão sobre a loucura e da diferença de status, mais fácil se torna relacionar tais proposições àquelas que surgirão na virada para os anos 1970. No entanto, o texto não nos permite ir muito longe da temática da linguagem. Enquanto ela ganha corpo ao longo dos trabalhos da década de sessenta, todos os esforços são dirigidos à tentativa de combater a soberania do autor e a atribuição de que nele se encontra a verdade da obra e dos atos. Mesmo a obra como ato criminoso não lhe escapa, sendo convertida àquela da criação literária. Então autoria e loucura quase se confundem, ao ponto em que a ideia de criminalidade seja também incorporada a esta trama da linguagem. É o que se vê no texto "Introdução (In Rousseau)" que Foucault escreveu para a edição das obras do autor do século XVIII:

Jean-Jacques Rousseau, o autor de seus livros, viu-se recriminar pelos franceses por ter escrito livros criminosos (condenação de Emílio e do Contrato), ou então acusado por não tê-los feito (contestação a propósito do Devin du village), ou ainda suspeito de ter escrito panfletos: de qualquer forma, ele se tornava, através de seus livros, e por causa deles, o autor de crimes sem nome. (1962/2010a, p. 173)

A tarefa da linguagem é sempre torcer as regras da razão, inclusive esta do status que deveria delimitar a distância entre autoria e loucura, mesmo quando se trata de analisar crimes. Resta, se queremos ver essa relação em sua forma também livre da trama da linguagem, realmente nos adiantarmos ao plano em que ela faltará em favor da empiria, podendo ver, assim, até que ponto são conduzidos por Foucault os vínculos e os cortes da loucura com a autoria.

Em 1969, um ano de grande ruptura em seu pensamento, o mesmo em que será lançado A arqueologia do saber, encontramos na conferência "O que é um autor?" algumas respostas acerca dos marcos de investigação: "Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer" (1969/2009, p. 268Foucault, M. (2009). O que é um autor? In Ditos & Escritos (Vol. 3, pp. 264-298). Rio de Janeiro: Forense Universitária.(Original publicado em 1969)). Esse exórdio de um novo trabalho não só é autorreferente, pois trata-se também para ele, Foucault, de poder desaparecer enquanto autor de seus trabalhos passados, enquanto alguém a quem se exige justificá-los e incorporá-los coerentemente aos futuros,24 24 Mandosio: "Depois de tudo, se Foucault não queria ser considerado um autor, bastava não colocar seu nome sobre a capa de seus livros."/ "Après tout, si Foucault ne voulait pas être considéré comme un auteur, il lui suffisait de ne pas mettre son nom sur la couverture de ses livres" (2010, p. 14). Não podemos subestimar mal entendidos acerca do tema da autoria, questão a um tempo conceitual e metodológica, por seus desdobramentos danosos para as ideias de Foucault. mas trata-se também de demonstrar que tal ruptura que há em sua própria autoria é a do desatar dos nós com a temática da linguagem, porque agora ele terá como tema a definição de um espaço alternativo a este em que o sujeito aparece a ela amarrado. A reflexão de "O que é um autor?" surge no momento em que Foucault se vê confrontado com a sua própria autoria quando desata seus nós com a temática da linguagem.

Contudo, se não é na linguagem que o sujeito desaparece, se não é a ela amarrando-se e por ela entregando-se que ele desaparece, em que é? Em que ele há de amarrar-se? Que outra trama, no lugar da linguagem, vem envolvê-lo? Adiantemo-nos, novamente, dizendo que será a trama política, na qual a cultura tem suas implicações sociais no lugar de precedê-las. Ele o diz: "O que seria preciso fazer é localizar o espaço assim deixado vago pela desaparição do autor, seguir atentamente a repartição das lacunas e das falhas e espreitar os locais, as funções livres que essa desaparição faz aparecer" (1969/2009, p. 271Foucault, M. (2009). O que é um autor? In Ditos & Escritos (Vol. 3, pp. 264-298). Rio de Janeiro: Forense Universitária.(Original publicado em 1969)).

Em vez de substituir o autor pela linguagem, é preciso verificar o que comparece no espaço deixado vago. O que comparece será o próprio autor, não mais em sua intenção e nas raízes pessoais de sua vida que o teriam levado a produzir isso ou aquilo, tampouco em sua dependência da linguagem que faria dele o seu escolhido, mas unicamente o status, ou seja, a força que é socialmente conferida aos seus discursos da parte dos outros seres razoáveis. Em suma, não há espaço vago; toda desaparição das intenções do autor fará aparecer uma função autor. Todos os espaços são preenchidos pelas relações entre uns seres de razão e outros.

O autor ocupa, dessa forma, uma função no discurso. Na verdade, ele é essa função para aqueles que dele precisam como referência na articulação de seus próprios discursos. Há discursos que surgem sobre o amparo de outro, que os legitima. O autor é aquele que, oferecendo amparo - status -, possibilita aos outros que o reclamam, senão de tornarem-se também autores, ao menos de situarem os seus discursos nas atividades às quais se dedicam com legitimidade, sem pertencerem meramente ao status quo. Essencialmente, o que distingue a função autor é ter um status diferenciado do status quo, levando consigo outros para fora desse espaço, imediato e retrógrado, de segurança e ilusão:

O fato de haver um nome de autor, o fato de que se possa dizer "isso foi escrito por tal pessoa" ou "tal pessoa é o autor disso", indica que esse discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa, uma palavra imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber um status. (1969/2009, p. 274)

Freud e Marx, por exemplo, que fundaram duas disciplinas às quais muitos discursos irão somar-se, são tomados como exemplo por Foucault, que afirma: eles "abriram o espaço para outra coisa diferente deles e que, no entanto, pertence ao que eles fundaram" (1969/2009, p. 281Foucault, M. (2009). O que é um autor? In Ditos & Escritos (Vol. 3, pp. 264-298). Rio de Janeiro: Forense Universitária.(Original publicado em 1969)). Assim, eles formam em torno de si não só uma rede composta por seus próprios discursos, o que chamamos de obra, como também fazem com que essa rede incorpore discursos que a eles se relacionam, o comentário.

Na ocasião da conferência de 1969 no Collège de France, houve, ao final, um tempo dedicado ao debate, quando muitos interlocutores demonstraram uma má compreensão das ideias apresentadas. Disseram que Foucault "atacou não mais o homem, mas o autor" (1969/2009, p. 289Foucault, M. (2009). O que é um autor? In Ditos & Escritos (Vol. 3, pp. 264-298). Rio de Janeiro: Forense Universitária.(Original publicado em 1969)) e, indo além, que Foucault concluíra a sua exposição "na perspectiva da supressão do autor". A ambos, Foucault replica o seguinte: "Não disse que o autor não existia; eu não o disse e estou surpreso que meu discurso o tenha sido usado para um tal contrassenso" (1969/2009, p. 294Foucault, M. (2009). O que é um autor? In Ditos & Escritos (Vol. 3, pp. 264-298). Rio de Janeiro: Forense Universitária.(Original publicado em 1969)). De fato, Foucault parte de uma crítica à ideia de criação autônoma e absolutamente original, como é próprio a muitos trabalhos da primeira metade do século XX - e não é outra a relevância da dedicação às condições de possibilidade históricas do saber, a tarefa da arqueologia. Porém, autonomia e autoria deixam de ser o mesmo em sua análise. A pergunta "que importa quem fala?", que dirige a conferência "O que é um autor", nos leva não a concluir que, para Foucault, não haja nada que interesse acerca do autor; que seja necessário suprimi-lo nas análises filosóficas. Leva-nos a questionar de que forma o discurso está implicado não à origem etérea, inconfessável pelo sujeito dadivoso que o teria trazido ao mundo, mas a uma prática mundana, histórica, e que por uma espécie de consenso provocado pela busca de sentido e justificação para o mundo seleciona o que deverá ser preservado e distribuído na sociedade. O seu foco é o jogo, o conjunto dos casos em que o autor é uma função dos discursos conferindo aos mesmos algum status: "Sem dúvida, a esse ser de razão, tenta-se dar um status realista. Seria, no indivíduo, uma instância 'profunda', um poder 'criador', um 'projeto', o lugar originário da escrita" (1969/2009, p. 276Foucault, M. (2009). O que é um autor? In Ditos & Escritos (Vol. 3, pp. 264-298). Rio de Janeiro: Forense Universitária.(Original publicado em 1969)). O que a muitos leitores dos trabalhos anteriores de Foucault deve surpreender de início é ver o autor apenas compreendido como um ser de razão e não mais como aquele que, como o louco, responde aos mistérios da linguagem.

História da loucura termina com uma discussão a respeito da relação entre autores que teriam flertado com a loucura em suas obras. Com relação àqueles do classicismo, o momento do maior deslumbramento com a razão, Foucault afirmara:

A loucura de Tasse, a melancolia de Swift e o delírio de Rousseau pertencem a suas obras, assim como essas mesmas obras lhe pertencem. Aqui nos textos, lá nessas vidas de homens, a mesma violência falava, ou a mesma amargura; visões eram certamente trocadas; linguagem e delírio se entrelaçavam. Contudo, há mais: a obra e a loucura eram, na experiência clássica, ligadas mais profundamente e num outro nível: paradoxalmente, ali onde uma limitava a outra. (1961/2005a, p. 528)

O classicismo é o lugar dos grandes paradoxos, onde as pretensões da razão engendram a desrazão. A esse paradoxo, essencialmente situado num recorte histórico, se dirige História da loucura como análise que diagnostica o quanto o processo da razão teria implodido por suas próprias contradições, jogando todos os espólios no colo da linguagem: "É bem esse o primeiro e o mais aparente dos paradoxos do desatino (déraison, desrazão): uma imediata oposição à razão que só poderia ter por conteúdo a própria razão" (1961/2005a, p. 186Foucault, M. (2005a). História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva.(Original publicado em 1961)). O paradoxo entre razão e desrazão faz também com que linguagem e delírio, obra e loucura se entrelacem, mas sem se fundirem. O que, essencialmente, Foucault propõe na aproximação dos contrários é determinar que haverá um ponto em que eles hão de limitar-se, em que hão de distinguir-se, e que, assim, embora a obra chame o tempo todo a loucura ao diálogo, o que caracteriza a loucura venha a ser precisamente a ausência de obra. O que determina uma e outra, razão e loucura, não é senão a obra, que se dedica à desrazão e assim revela o que é a razão, mas obra que não é feita de loucura nem é pura linguagem. Obra que, por mais criativa, imaginativa e sensível que seja, inclinada à linguagem - como se vê em História da loucura -, ou a despeito da trama do retorno à linguagem - como se vê em O que é um autor? -, pertence sempre à razão.

O argumento visto em O que é um autor?, de que é preciso ver o que comparece na ausência de sua figura porque só assim revela-se a sua relevância, é muito semelhante ao que se encontra no fim de História da loucura: "Pela loucura que a interrompe, uma obra abre um vazio, um tempo de silêncio, uma questão sem resposta, provoca um dilaceramento sem reconciliação onde o mundo é obrigado a interrogar-se" (1961/2005a, p. 529Foucault, M. (2005a). História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva.(Original publicado em 1961)). Da mesma forma como Foucault sugere hipoteticamente em 1969 que se analise a suspensão da autoria para encontrar a função autor, em História da loucura a suspensão da autoria decorre da irrupção da loucura quando já não há mais produção de obra. Quando um autor como Nietzsche, que tanto se dedicou à crítica da razão, é acometido pela loucura, toda a obra que ele deixa atrás de si, que era produção da razão sobre a desrazão, que assumia "uma tarefa de reconhecimento, de reparação; obrigado à tarefa de dar a razão desse desatino (déraison, desrazão), para esse desatino (déraison, desrazão)", ao mesmo tempo coloca em suspenso o mundo que por ele víamos de um modo muito particularmente revelado, e de outro revela-nos a experiência de sua indefinição. O autor calou-se acometido pela loucura e legou-nos um mundo que, antes conduzido por seu status, retorna à sua abertura: "E nele não há nada, especialmente aquilo que ele pode conhecer da loucura, capaz de assegurar-lhe que essas obras da loucura o justificam." (1961/2005a, p. 530Foucault, M. (2005a). História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva.(Original publicado em 1961))

A expressão "status realista", encontrada em "O que é um autor?" para esclarecer a "função autor", é curiosa. Atribuímos ao autor um status realista pedindo que ele nos empreste, em sua obra, uma realidade que não encontramos no mundo, porque reconhecemos uma falta no mundo; porque reconhecemos em nós mesmos também uma carência. A expressão sugere a ideia de que determinado discurso possui maior valor do que outro, na medida em que é proferido por alguém que é mais sujeito, que tem mais realidade do que outrem. Ter status significa ser reconhecido em seu discurso, e adquirir, assim, realidade sobre um mundo que não se justifica e que pede pela sua razão de ser. Na falta do autor, deve haver um lastro. Ele não pode se ausentar porque cumpre, ao menos em nossa sociedade, uma função necessária, função já atribuída à linguagem, que é a de justificar o mundo no qual nos alienamos e, finalmente, nos justificar a nós mesmos.

Agências de fomento

CNPq - bolsa DS - doutorado e Capes (doutorado sanduíche): Processo Bex 2462/11-7.

  • Eribon, D. (1991). Michel Foucault. São Paulo: Companhia das Letras.(Original publicado em 1989)
  • Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.
  • Foucault, M. (1968). Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro. (Original publicado em 1962)
  • Foucault, M. (2005a). História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva.(Original publicado em 1961)
  • Foucault, M. (2005b). Prefácio (Folie et déraison). In Ditos & Escritos (Vol. 1, pp. 152-161). Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Original publicado em 1961)
  • Foucault, M. (2008). Vigiar e punir. Petrópolis, RJ: Vozes.(Original publicado em 1975)
  • Foucault, M. (2009). O que é um autor? In Ditos & Escritos (Vol. 3, pp. 264-298). Rio de Janeiro: Forense Universitária.(Original publicado em 1969)
  • Foucault, M. (2010a). Introdução (in Rousseau). In Ditos & Escritos (Vol. 1, pp. 165-184). Rio de Janeiro: Forense Universitária.(Original publicado em 1962)
  • Foucault, M. (2010b). Loucura, literatura e sociedade. In Ditos & Escritos (Vol.1, pp. 232-258). Rio de Janeiro: Forense Universitária.(Original publicado em 1970)
  • Freud, S. (1973). Um estudo autobiográfico. In Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 20, pp. 17-92). Rio de Janeiro: Imago.(Original publicado em 1925)
  • Freud, S. (1987). Sigmund Freud presenté par lui-même. Paris: Gallimard.(Original publicado em 1925)
  • Gros, F. (2004). Foucault et la folie. Paris: Presses universitaires de France.
  • Hegel, F. (2002). Fenomenologia do espírito (P. Meneses, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.(Original publicado em 1807)
  • Heráclito. (1973). Heráclitode Éfeso. In Coleção Os Pensadores: Os Pré-Socráticos (Vol. 1, pp. 79-142). São Paulo: Abril Cultural.
  • Machado, R. (2005). Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Zahar.
  • Mandosio, J-M. (2010). Longevité d'une imposture. Paris: Éditions de l'encyclopédie des nuisances.
  • 1
    Na falta de uma tradução canônica da obra de 1954, optamos por apresentar a nossa tradução no corpo do texto e a versão original em nota.
  • 2
    "Nous voudrions montrer que la racine de la pathologie mentale ne doit pas être cherchée dans une quelconque 'métapathologie'; mais dans un certain rapport, historiquement situé, de l'homme à l'homme fou et à l'homme vrai".
  • 3
    "On postule, d'abord, que la maladie est une essence, une entité spécifique repérable par les symptômes qui la manifestent, mais antérieure à eux, et, dans une certaine mesure, indépendante d'eux; on décrira un fonde schizophrénique caché sous des symptômes obsessionnels; on parlera de délires camouflés; on supposera l'entité d'une folie maniaco-dépressif".
  • 4
    "On parlera de délires camouflés...".
  • 5
    Foucault: "Uma patologia unitária que utilizaria os mesmos métodos e os mesmos conceitos tanto no domínio psicológico quanto no domínio fisiológico é atualmente da ordem do mito, mesmo se a unidade do corpo e do espírito é da ordem da realidade."/"Une pathologie unitaire qui utiliserait les mêmes méthodes et les mêmes concepts dans le domaine psychologique et dans le domaine physiologique est actuellement de l'ordre du mythe, même si l'unité du corps et de l'esprit est de l'ordre de la réalité." (1954, p. 12Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.)
  • 6
    "Le problème de l'unité humaine et de la totalité psychosomatique demeure entièrement ouvert".
  • 7
    "La personnalité devient ainsi l'élément dans lequel se développe la maladie, et le critère qui permet de la juger; elle est à la fois la réalité et la mesure de la maladie".
  • 8
    "Disons donc, en résumé, que la maladie supprime les fonctions complexes, instables et volontaires, en exaltant les fonctions simples, stables et automatiques".
  • 9
    "La maladie est le processus au long duquel se défait la trame de l'évolution, supprimant d'abord, et dans ses formes les plus bénignes, les structures les plus récentes, atteignant ensuite, à son achèvement et à son point suprême de gravité, les niveaux les plus archaïques. La maladie n'est donc pas un déficit qui frappe aveuglément telle faculté ou telle autre; il y a dans l'absurdité du morbide une logique qu'il faut savoir lire; c'est la logique même de l'évolution normale. La maladie n'est pas une essence contre nature, elle est la nature elle-même, mais dans un processus inversé; l'histoire naturelle de la maladie n'a qu'à remonter le courant de l'histoire naturelle de l'organisme sain."
  • 10
    Machado: "Enquanto ainda para Kant a loucura era incompatível com um pensamento em conformidade com as leis da experiência, era incurável e excluía toda ação terapêutica, para Hegel, que reconhece em Pinel o responsável por essa descoberta, ela implica a existência de razão, de consciência racional, no doente, o que o torna por natureza, ou em princípio, curável". (2005, p. 31Machado, R. (2005). Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Zahar.)
  • 11
    Hegel: "O indivíduo singular deve também percorrer os degraus-de-formação-cultural do espírito universal" (1807/2002, p. 41Hegel, F. (2002). Fenomenologia do espírito (P. Meneses, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.(Original publicado em 1807)).
  • 12
    O modo como Hegel está presente em diversos aspectos do pensamento de Foucault pode ser atribuído à sua relação com Jean Hyppolite, orientador de sua tese de doutorado Folie e Déraison (História da loucura na idade clássica) e especialista em Hegel. Foi também Hyppolite quem incentivou Foucault a publicar Maladie mentale e personnalité. Ver Eribon (1991)Eribon, D. (1991). Michel Foucault. São Paulo: Companhia das Letras.(Original publicado em 1989).
  • 13
    "Quand l'homme primitif ne trouvait pas, dans sa solidarité avec autrui, le critère de la vérité, quand il projetait ses désirs et ses craintes en fantasmagories qui tissaient avec le réel les écheveaux indissociables du rêve, de l'apparition, et du mythe".
  • 14
    "Ao responder à pergunta sobre quando é que um processo mental se torna patogênico - isto é, quando é que se torna impossível lidar com ele normalmente -, Breuer preferiu o que poderia ser chamado de teoria fisiológica: julgava ele que os processos que não podiam encontrar um resultado normal eram aqueles que se haviam originado durante anos mentais 'hipnóides' inusitados. Isto provocou a questão ulterior da origem desses estados 'hipnóides'. Eu, por outro lado, estava inclinado a suspeitar da existência de uma ação mútua de forças e da atuação de intenções e propósitos como os que devem ser observados na vida normal." (1925/1973, p. 35 15 "Chaque type de névrose est retour à un stade d'évolution libidinale. Et la psychanalyse a cru pouvoir écrire une psychologie de l'enfant, en faisant une pathologie de l'adulte". )
  • 15
    "Chaque type de névrose est retour à un stade d'évolution libidinale. Et la psychanalyse a cru pouvoir écrire une psychologie de l'enfant, en faisant une pathologie de l'adulte".
  • 16
    C'est le fameux complexe d'OEdipe, où Freud croyait lire l'énigme de l'homme et la clef de son destin; où il faut sans doute trouver l'analyse la plus compréhensive des conflits vécus par l'enfant dans ses rapports avec ses parents, et le points de fixation de beaucoup de névroses. En bref, tout stade libidinal est une structure pathologique virtuelle. La névrose est une archéologie spontanée de la libido.
  • 17
    "À l'horizon de toutes ces analyses, il y a, sans doute, des thèmes explicatifs qui se situent d'eux mêmes aux frontières du mythe: le mythe, d'abord, d'une certaine substance psychologique ('libido', chez Freud, 'force psychique', chez Janet)".
  • 18
    "Il faut donc pousser l'analyse plus loin; et compléter cette dimension évolutive, virtuelle et structurale de la maladie, par l'analyse de cette dimension qui la rend nécessaire, significative et historique".
  • 19
    "Sans doute, l'analyse phénoménologique refuse une distinction a priori du normal et du pathologique."
  • 20
    Foucault: "É pela angústia que a evolução psicológica se transforma em história individual."/ "C'est par l'angoisse que l'évolution psychologique se transforme en histoire individuelle." (1954, p. 50Foucault, M. (1954). Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires.)
  • 21
    "La catatonie est un des exemples le plus manifestes d'inhibition généralisée, et le pronostic favorable qu'elle comporte montre la signification de l'inhibition: elle est essentiellement mécanisme de défense et de récupération; elle correspond, selon Pavlov, au processus d'assimilation de la cellule nerveuse, alors que l'excitation correspond à la dépense et à la désassimilation".
  • 22
    "Freud voulait expliquer la guerre; mais c'est la guerre qui explique ce tournant de la pensée freudienne. Ou plutôt le capitalisme faisait, à cette époque, d'une façon claire pour lui-même, l'expérience de ses propres contradictions: il fallait renoncer aux vieux thème de la solidarité, et admettre que l'homme pouvait et devait faire de l'homme une expérience négative, vécue sur le mode de la haine et de l'agression. Les psychologues ont donné à cette expérience le nom de l'ambivalence et ils y ont vu un conflit d'instincts. Son origine est, en réalité, dans la contradiction des rapports sociaux".
  • 23
    Aqui nos distanciamos de Gros na medida em que este adere às mudanças tardias na obra de Foucault que ocultam as suas primeiras concepções de linguagem, quando a encontramos relacionada à origem, e tornam obscuras muitas passagens. F. Gros: "Loucura e literatura se ordenam verticalmente na experiência soberana de uma linguagem sem origem". "Folie et littérature s'ordonnent verticalement à l'expérience souveraine d'un langage sans origine" (2004, p. 111Gros, F. (2004). Foucault et la folie. Paris: Presses universitaires de France.).
  • 24
    Mandosio: "Depois de tudo, se Foucault não queria ser considerado um autor, bastava não colocar seu nome sobre a capa de seus livros."/ "Après tout, si Foucault ne voulait pas être considéré comme un auteur, il lui suffisait de ne pas mettre son nom sur la couverture de ses livres" (2010, p. 14Mandosio, J-M. (2010). Longevité d'une imposture. Paris: Éditions de l'encyclopédie des nuisances.). Não podemos subestimar mal entendidos acerca do tema da autoria, questão a um tempo conceitual e metodológica, por seus desdobramentos danosos para as ideias de Foucault.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2013
  • Revisado
    09 Abr 2014
  • Aceito
    28 Maio 2014
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