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O PODER DAS IDEIAS NA CONFIGURAÇÃO DE UM CAMPO DE PESQUISAS

EL PODER DE LAS IDEAS EM LA CONFIGURACIÓN DE UN CAMPO DE INVESTIGACIÓNES

THE POWER OF IDEAS IN CONFIGURING A RESEARCH FIELD

Wagoner. B. . Jensen. E. . Oldmeadow. J. A. . 2012. Culture and social change: Transforming societies through the power of ideas. Charlotte, NC: Information Age Publishing

O poder das ideias na configuração de um campo de pesquisa

A obra aqui revisada, Culture and Social Change: Transforming Societies through the Power of Ideas, compõe a série "Advances in Culture Psychology: Constructing Human Development", editada por Jan Valsiner (Clark University), publicada pela Information Age Publishing em 2012. A série traz um conjunto de publicações que tem desenhado a Psicologia Cultural, enquanto campo de pesquisa e de produção de conhecimentos, engajada com a vida cotidiana e com as mudanças sociais. Como ressalta o editor, a série de publicações pretende levar a "sério" a categoria cultura, na interseção entre a Psicologia, a Sociologia e a Antropologia, que permita abrir a "caixa preta" e compreender a relação bidirecional de construção mútua do indivíduo, na sua singularidade, e da sociedade, no seu processo histórico e indeterminado, em constante transformação.

A Psicologia que assim se pretende construir enfatiza os processos de construção social de uma mente (subjetividade) culturalmente organizada, em uma sociedade em constante mudança, e rompe com antigas dicotomias como: a visão linear e evolutiva dos processos de mudança, a causalidade unidirecional (determinismo) ou ainda com a dicotomia entre processos internos e externos (intrapsíquico e intersubjetivo), mundo real e imaginário. A irreversibilidade do tempo, a inseparabilidade indivíduo-contexto (separação inclusiva) e a imprevisibilidade dos resultados constituem-se elementos que provocam desestabilizações em antigas posições e a produção de novas ferramentas metodológicas (de observação e análise), afirmando a natureza sociocultural e histórica da ciência.

Utilizando a metáfora do teatro ou do drama, Valsiner (na apresentação da série) compara os sujeitos sociais com atores, suas vidas cotidianas com o enredo e o cenário de uma peça em que o pesquisador é o diretor. No cenário da pesquisa social, o pesquisador torna-se o espectador, e os sujeitos tornam-se coparticipantes do enredo (pesquisa). Ou seja, é no encontro com a vida cotidiana na sua dramaturgia - como encenação, como jogo de papéis e contrapapéis, como possibilidade de criação - que emerge uma psicologia social, que afirma o conhecimento como uma construção negociada coletivamente. Todo conhecimento é socialmente construído e culturalmente interpretado.

Nesse livro, os editores (Brady Wagoner, Alborg University, Dinamarca; Eric Jensen, Warwick University, Inglaterra e Julian A. Oldmeadow, University of Suwinburne, Austrália) apontam para a direção de um fazer científico emancipatório que questiona a manutenção do status quo e para o papel da Psicologia Social no século XXI em responder a alguns hiatos deixados por estudos que ora tendiam para análises dos processos psicológicos individuais, sem levar em conta os processos socioculturais e históricos, naturalizando as diferenças individuais, ora tendiam para análise das macroestruturas, pendendo para um determinismo social, sem considerar o agenciamento dos sujeitos.

A cultura como sistema de significação e fonte de recursos materiais e simbólicos possibilita apreender processos de estabilidade e de mudança ao longo do tempo na mediação entre indivíduo e sociedade, em contextos e práticas diversas. Quando Valsiner (2002)Valsiner, J. (2002). Forms of dialogical relations and semiotic autoregulation within the self. Theory and Psychology, 12(2), 251-265. propõe a diferenciação entre cultura coletiva e cultura pessoal, oferece-nos uma chave de entendimento para esta intrincada relação, ao demonstrar que os processos de internalização (tornar pessoal o que é cultural) e externalização (tornar cultural o que era pessoal) são dialéticos (síntese de opostos) e bidirecionais (constituição mútua). Aponta ainda que a relação entre processos sociais e processos simbólicos não é isomórfica, embora interdependente, já que, ao agir sobre a realidade e produzir significados, estamos produzindo mudanças, assim como as mudanças sociais repercutem sobre nosso sistema de crenças, valores e práticas. Afirma-se, assim, a natureza social, dinâmica e aberta do nosso desenvolvimento, através dos processos de mediação cultural.

Em um diálogo interdisciplinar (Psicologia Social e Cultural, Sociologia, Arte, Antropologia e Comunicação), os autores, ao longo de 18 capítulos, apresentam abordagens teóricas originais e estratégias metodológicas inovadoras, debatidos por comentaristas. O fio condutor é a análise dos processos de mudança social em diferentes escalas: entre grupos, comunidades e nações, entendendo-se a cultura como o palco onde se constroem e se propagam novas ideias, através da linguagem, em formas de comunicação (da mídia, da tecnologia, da arte e do humor) e de interação que podem provocar novidades ou resistências positivas ou negativas, já que contingentes histórica, política e socialmente.

O livro está organizado em três partes: a Parte I explora como grupos sociais mobilizam-se para efetivar mudanças: a análise de dinâmicas intra e inter grupais, o papel das lideranças e dos protestos (Drury, Reicher & Scott) e o uso do drama no estudo sobre as mudanças sociais numa prisão simulada (Haslam & Reicher). A Parte II lança luz sobre os processos de comunicação e uso da linguagem (metáforas e histórias) (Cornejo; Ritchie), o papel das tecnologias e da mídia na transmissão de ideias (Holliman; Jensen) e a difusão cultural (Kashima; Wagoner). Na Parte III, a partir de casos específicos de algumas sociedades em transição (Estados Unidos; Bolívia; Ucrânia e Estônia), os autores procuram analisar em larga escala as mudanças sociais, observando o uso do humor e da arte como instrumentos de reivindicação e transgressão e os efeitos da mudança (Jensen).

Emoldurando essas análises, os autores dialogam sobre a relação entre as categorias habitus e capital social (Mendonza) em um nível estrutural e em um nível dinâmico, sobre a liberdade semiótica (Raudsepp) e o posicionamento dos sujeitos, articulando habitus (sistema de disposições) e representações sociais (sistema semiótico), na compreensão da dinâmica social.

Se o habitus, como disposições sociais duradouras incorporadas pelos sujeitos, oferece um nível de análise não discursiva e pré-reflexiva; as representações sociais são organizadores semióticos (estruturas estruturantes), cuja função comunicativa, reflexiva e dialógica oferece esquemas de percepção e de interpretação, que configuram simbolicamente o campo social onde os agentes se relacionam e compartilham significados intersubjetivamente. Seguindo Raudsepp, podemos pensar num terceiro nível, em que, de acordo com estes princípios ou sugestões semióticas (metassistema), os agentes se posicionam singularmente (identificação e diferenciação) na relação com o outro. Raudsepp traz para o nível microgenético o entendimento da dinâmica social, quando se refere à liberdade relativa de escolha das ferramentas simbólicas (apropriação de sentidos pessoais, estratégias de ação e crenças), disponíveis na regulação interindividual e intraindividual. Entende-se que a mediação semiótica é o que está na base da experiência humana única, pois possibilita a plasticidade, imprevisibilidade e indeterminação, relativamente aos circunscritores sociais que restringem ou direcionam as possibilidades de escolha, garantindo a heterogeneidade da dinâmica social (convergente ou divergente).

Se o habitus é uma configuração duradoura, já que não discursivo e pré-reflexivo, pode produzir resistências e a conservação do sistema; já o sistema de representações não é estático, produzindo formas de apropriação heterogêneas, contraditórias e/ou contra-hegemônicas, relativas ao contexto de referência e ao tipo de capital distribuído e apropriado dinamicamente entre os sujeitos, o que pode provocar mudanças.

Um outro ponto que gostaria de realçar, debatido ao longo do livro, é a difusão cultural como transmissão direta ou como apropriação dinâmica da cultura. Enquanto sistema (esquemas de percepção, crenças; valores; imagens, recursos simbólicos), a cultura é compartilhada através da linguagem ordinária e das ações e práticas sociais, envolvendo a criação de algo novo, ou seja, ela é interpretada e negociada nas dinâmicas interativas (interindividuais, intragrupais e intergrupais) dialógicas, quando novos sentidos e posicionamentos são produzidos. Ao longo dos processos de diferenciação e de identificação, os indivíduos negociam suas posições e produzem mudanças ao se apropriarem da cultura, ao mesmo tempo em que buscam estabilidade (autorregulação).

A difusão de novas ideias (alternativas cognitivas) vai encontrar mais ou menos ressonância ou inércia fora das suas margens, a depender do seu poder inovador e transformador e da permeabilidade dos contextos intergrupais e sociais na negociação de novas posições. O papel da liderança (e.g., líder comunitário ou liderança cultural) é uma chave para analisar a difusão de novas ideias na relação entre a dinâmica intra e intergrupal, seja na reprodução do sistema ou contrário ao sistema. A partir do seu engajamento em práticas sociais compartilhadas e da ampliação do seu capital social e consequentemente da sua capacidade de mobilização (como redes colaborativas), o líder pode potencializar a difusão da mudança social e a construção de pontes entre a esfera pública (política, social) e a esfera particular (individual, comunitária, local), ampliando as margens ou flexibilizando estruturas de poder hierárquicas.

Liberdade semiótica e espaços de criação: a volta das utopias

A partir desses exemplos, podemos analisar o poder que vem das margens, invertendo relações hierárquicas instituídas socialmente, quando culturas de resistência alcançam a sociedade por meio de linguagens performáticas (arte, música, humor) e do uso de tecnologias (internet, redes sociais) que ampliam as formas de comunicação e de interação na propagação de suas ideias para além das suas fronteiras sociais e simbólicas - e aqui podemos citar o hip-hop. Observa-se como o uso da imaginação e da criatividade provoca mudanças no nível pessoal e social, ao possibilitar a emergência de alternativas cognitivas na projeção do futuro como um campo simbólico emergente, seja como alternativa ao presente e/ou ressignificação do passado. Ou seja, as expressões culturais (música, teatro, literatura, artes visuais) produzem um espaço de liberdade simbólica, cuja dimensão estética projeta-se numa dimensão política pela porosidade como podem transitar, revertendo as relações de poder já instituídas. Nesse ponto, a ideia desenvolvida por Duncombe (2002)Duncombe, S. (2002). Cultural Resistence Reader. London, UK: Verso. de resistência cultural sinaliza para a importância de compreendermos esse campo de forças e as formas como grupos, coletivos e indivíduos dinamicamente transformam o sistema cultural (comportamentos, normas, linguagens, bens) como processo, transformando as estruturas sociais, políticas e econômicas dominantes ao desenvolverem recursos e estratégias de resistência, mais ou menos conscientes.

Neste ponto, gostaria de realçar a metáfora apresentada no livro Human Development in the Life Course: Melodies of living (Zittoun, Valsiner, Vedeler, Salgado, & Ferring, 2013Zittoun, T., Valsiner, J., Vedeler, D., Salgado, M. M. G., & Ferring, D. (2013). Human development in the life course: Melodies of living. Cambridge, UK: Cambridge University Press.), ao olharmos para a imanência e transcendência da existência humana na sua capacidade semiótica de resistir, ressignificar e criar novos recursos psicológicos, reconfigurando seu contexto de ação e movendo-se na configuração de múltiplas combinações, entre o como é e o como se (presente-futuro; futuro-passado). Através do uso da imaginação, da criatividade e das metáforas podemos nos mover entre estes espaços e temporalidades, como experiências potencialmente catalisadoras (potencially catalysts) de mudanças, ampliando as fronteiras ou as margens entre o que pode ser (novas alternativas de ação) e o que não deve ser (estruturas sociais e morais). Ou seja, não agimos apenas em relação ao que a realidade é, mas nos desafiamos a imaginar o que pode ser e nos transpomos para diferentes cenários, potencializando nossa capacidade de construir novas respostas e novos recursos simbólicos.

Como as mudanças sociais repercutem (seus efeitos) no nível semiótico e social (práticas institucionais, relações de trabalho) e como novas sínteses são possíveis como resposta individual, social e coletiva? Com essa questão seguimos os autores na busca de uma conclusão. Uma situação de mudança muitas vezes evoca contradições, resistências e a necessidade de os indivíduos posicionarem-se, o que envolve uma negociação ativa na relação entre as sugestões coletivas (culturais) e as respostas individuais.

Múltiplas estratégias e táticas podem ser desenvolvidas ao longo do processo de socialização (bounded indeterminancy), na relação entre o sistema de disposições sociais e a construção de significados pessoais, entre a conservação e a transformação, sintetizando em pelo menos duas: de conformidade ou de contraposição. Esta tensão entre opostos pode resultar num cotinuum de respostas possíveis à mudança, como assinala Raudsepp, que vão da total negação à negação parcial; da resistência à conformidade social e cultural.

Levando em consideração os três níveis de análise: estrutural (habitus), estruturante (representações) e pessoal (agency), podemos perceber que é no nível pessoal que a variedade, imprevisibilidade e multiplicidade de respostas (diferentes posicionamentos, diferentes trajetórias) podem ser forjadas, no contexto intersubjetivo, compreendendo a mudança social numa perspectiva construtivista e dialógica.

Logo, podemos concluir que é na combinação criativa entre elementos estruturantes (campo, habitus, representações) e elementos dinâmicos (significações, práticas, narrativas), em contextos significativos (compartilhados coletivamente), que as mudanças sociais podem ocorrer na sua dupla emergência (individual e social), resultando em recombinações e novas sínteses. A possibilidade de síntese criativa está na base da negociação entre o velho e o novo (familiar e não familiar). A variedade de respostas pode ir da adaptação total ou parcial às regras ao isolamento social, passando pelo uso da imaginação na construção de um espaço simbólico que ofereça novos recursos psicológicos e como resistência cultural, quando indivíduos e/ou grupos utilizam, consciente ou inconscientemente, a cultura para resistir e/ou transformar a estrutura social, política e econômica dominante (Duncombe, 2002Duncombe, S. (2002). Cultural Resistence Reader. London, UK: Verso.).

Na síntese final do livro, importante notar uma posição não hegemônica dos autores, que buscam a partir de um diálogo interdisciplinar ampliar o espectro de análise das diferentes dimensões da mudança, da diversidade de respostas, dos efeitos que podem ser gerados e da repercussão na formulação de ações e intervenções pelos operadores sociais. Apontam, assim, para a natureza híbrida, imprevisível e aberta desses processos de mudança, envolvendo ajustes mútuos e criativos, eliciadores de respostas e posicionamentos dos agentes sociais, com diferentes combinações.

Finalizando, os autores refletem sobre a necessidade de revermos a noção de utopia quando estivermos discutindo as tensões e contradições entre as forças de conservação e as de mudança social, entre os processos sociais e os processos de significação, entre a realidade e o espaço de criação humana. É neste espaço "entre" que as novas ideias encontram possibilidades de ressonância e podem configurar novas realidades.

Agências de fomento

Bolsista CAPES N.o 99999.006995/2014-04/ Bolsa Sênior

  • Duncombe, S. (2002). Cultural Resistence Reader. London, UK: Verso.
  • Valsiner, J. (2002). Forms of dialogical relations and semiotic autoregulation within the self. Theory and Psychology, 12(2), 251-265.
  • Zittoun, T., Valsiner, J., Vedeler, D., Salgado, M. M. G., & Ferring, D. (2013). Human development in the life course: Melodies of living. Cambridge, UK: Cambridge University Press.
  • 2
    Como citar: Iriart, M. F. (2015). O poder das ideias na configuração de um campo de pesquisas. Psicologia & Sociedade, 27(2).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2014
  • Revisado
    02 Jan 2015
  • Aceito
    02 Jan 2015
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