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MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO: ESTRATÉGIA PUNITIVA OU PROTETIVA?

MEDIDA EDUCATIVA DE INTERNACIÓN: ESTRATEGIA PUNITIVA O PROTECTORA?

SOCIAL-EDUCATIVE SENTENCE: PUNITIVE OR PROTECTIVE STRATEGY?

Resumo

Este artigo problematiza como os jovens em conflito com a lei são administrados nas medidas socioeducativas de internação e busca a discussão das diferenças entre as formas de atender aqueles que recebem medidas de proteção e aqueles que recebem medidas socioeducativas. No que concerne à gestão, encontra-se uma separação na administração das medidas de proteção e das medidas socioeducativas em meio aberto, geridas pela Assistência Social, e as medidas socioeducativas de internação, geridas pela Segurança Pública. A pesquisa se desenvolveu pelo método cartográfico, que abrangeu entrevistas realizadas com profissionais do sistema socioeducativo, visitas às unidades de internação, leitura de processos jurídicos e oitivas de audiências na Vara da Infância e da Juventude. Conclui-se que a proteção integral preconizada pelo ECA não atinge todos, como é o caso dos adolescentes em conflito com a lei que estão internados, tendo seus direitos violados em prol da manutenção da segurança da população.

Palavras-chave:
Medidas de proteção; medidas socioeducativas de internação; Estatuto da Criança e do Adolescente; redução da maioridade penal

Resumen

Este artículo problematiza cómo los jóvenes en conflicto con la ley son administrados en las medidas educativas de internación y busca la discusión de las diferencias entre las formas de atención a los que reciben medidas de protección y los que reciben medidas educativas de internación. Con respecto a la gestión, hay una separación en la administración de las medidas de protección y medidas educativas en libertad, gestionados por la Asistencia Social, y las medidas educativas en internación, gestionados por la Seguridad Pública. La investigación fue desarrollada por el método cartográfico, que incluyó entrevistas con profesionales del sistema socioeducativo, visitas a unidades de internación, lectura de casos judiciales y audiencias en la Corte de la Niñez y Juventud. Llegase a conclusión de que la plena protección defendida por el ECA no llega a todos, como es el caso de los adolescentes en conflicto con la ley que están internados, teniendo sus derechos violados por el bien de la seguridad de la población.

Palabras clave:
medidas de protección; medidas educativas de internación; Estatuto de la Niñez y de la Adolescencia; reducción de la edad penal

Abstract

This paper problematizes the ways of treatment between those in protective actions, regarded as victims and those under social-educative detention, perceived as dangerous. Moreover, there is a division regarding the way protective actions and social-educative sentences have been applied by Social Assistance, in terms of management, comparing to the way social-educative sentences have been served, managed by Public Security. This research was developed using a cartographic method, which has delineated interviews with professionals who work at social-educative system, visiting juvenile detention institutions, as well as reading judicial processes and hearings at Juvenile Justice System. It has been concluded that the right to integral protection as advocated by ECA has not reached all, particularly those whose protection is urgent, as it is the case of adolescents in conflict with the law that are having their rights violated in favor of the maintenance of population security.

Keywords:
Protective actions; social-educative sentences; Child and Adolescent Statute; lowering the age of criminal responsibility

Introdução

Este artigo insere-se na área da Psicologia Social e toma como campo de pesquisa a problemática dos jovens em conflito com a lei. O objetivo do presente artigo é problematizar como os jovens em conflito com a lei são tomados no âmbito do cumprimento de medidas socioeducativas, analisando os discursos e as estratégias que se produz sobre essa população que recebe medida socioeducativa de internação. Ressaltamos que este artigo busca uma análise das estratégias de gestão que permitem que o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal 8069/1990Lei Federal n. 8069 de 13 de julho de 1990. (1990). Institui o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. Brasília, DF: Presidência da República.) funcione como um dispositivo operacionalizador da cisão na população infanto-juvenil por meio de dois procedimentos distintos: as medidas protetivas, voltadas para crianças e adolescentes que muitas vezes são tomados como vítimas pelas instâncias judiciárias, e as medidas socioeducativas, destinadas a adolescentes que cometem atos infracionais e que frequentemente são entendidos como agressores, que merecem receber ações de ordem punitiva e corretiva. Tal cisão, como vamos discutir neste texto, acarreta práticas dicotômicas produzidas para aqueles que recebem medidas protetivas e medidas socioeducativas. O referencial teórico utilizado baseia-se em Michel Foucault, especialmente nas suas obras relativas aos estudos da governamentalidade.

O percurso metodológico que tomamos para nossa pesquisa vislumbra o delineamento das trajetórias dos adolescentes que cometem atos infracionais. Nossa proposta não é realizar uma discussão de casos, mas justamente cartografar (Kastrup, 2007Kastrup, V. (2007). O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. Psicologia & Sociedade19(1), 15-22.) os discursos que se dirigem, com base nas preconizações do ECA, ao tratamento dos jovens em conflito com a lei a partir de uma rede que se configura para atendê-los. A cartografia social faz referência a um procedimento de análise crítica que desenha e expõe movimentos, discursos, campos de relações e forças (Kastrup, 2007Kastrup, V. (2007). O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. Psicologia & Sociedade19(1), 15-22.; Prado & Tite, 2013Prado, K. & Tite, M. (2013). A cartografia como método para as ciências humanas e sociais. Barbarói38, 45-49.); desse modo, utilizamos o referido método para delinear discursos e estratégias presentes nos atendimentos dos jovens em conflito com a lei, especialmente os que concernem a separações existentes daqueles sob medida socioeducativa e daqueles sob medida protetiva. Para isso, entendemos que a metodologia em questão refere-se a um conjunto de procedimentos que envolvem a leitura de sete processos jurídicos de medida socioeducativa e apuração de ato infracional e cinco processos de medida de proteção, a visita a duas Unidades Educacionais de Internação (uma provisória e outra para o cumprimento da medida socioeducativa de internação), entrevistas com os profissionais que atuam nessas unidades, além de oitiva de quinze audiências relativas aos jovens em conflito com a lei. Na leitura dos processos foram observadas questões como a porta de entrada do jovem ao sistema judiciário, como foi apresentado o percurso social do sujeito, bem como a linguagem dos relatórios técnicos produzidos por psicólogos e assistentes sociais da Vara da Infância e da Juventude e das Unidades Educacionais de Internação (UNEIS). Durante as audiências, foram também observadas questões como o ato infracional cometido, reincidência, os encaminhamentos destinados ao jovem, o discurso dos operadores do direito e o discurso dos jovens. Foram realizadas entrevistas abertas com os profissionais que atendem os jovens em conflito com a lei nas Unidades Educacionais, envolvendo agentes, psicólogos e assistentes sociais, objetivando como eram efetuados os atendimentos aos jovens, como a equipe percebia tais sujeitos, quais os seus discursos e ações. Desse modo, a pesquisa se desenvolveu a partir da cartografia do percurso social dos jovens em conflito com a lei, da maneira como eles circulam na rede de atendimento que lhes é ofertada. Essas observações foram registradas no diário de campo da pesquisa. Para fins elucidativos, ressaltamos que a expressão adolescente, quando utilizada no presente texto, indica uma referência ao ECA, designando uma faixa etária, e não uma alusão epistemológica da Psicologia às teorias do desenvolvimento.

Problematizando o jovem em conflito com a lei

Torna-se fundamental entender que os jovens em conflito com a lei recebem essa denominação a partir do momento em que são tomados pelo sistema judiciário devido a uma ação por eles realizada que infringe o Código Penal Brasileiro. Passam de meninos, que em muitos casos não possuem acesso a bens e serviços sociais/sanitários/culturais, a adolescentes em conflito com a lei em virtude do ato infracional realizado, sendo então tomados pela rede da justiça. (Dizemos aqui meninos porque a grande maioria dos que cometem atos infracionais são do sexo masculino - acima de 90%, segundo o Conselho Nacional de Justiça, 2012).

Com a mudança de status social dessa juventude, percebe-se a abertura para determinadas práticas que lhe serão oferecidas, sobretudo no que tange às capturas pelas instâncias legais, norteadas por uma vigilância persistente. Contudo, ao mesmo tempo, esse percurso pelo judiciário oportuniza um tratamento que permite a tais jovens o acesso a serviços que promovem uma espécie de "cidadania concedida" (Reis, 2012Reis, C. (2012). (Falência Familiar) + (Uso de Drogas) = Risco e Periculosidade: a naturalização jurídica e psicológica de jovens com medida de internação compulsória Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.), mas se traçará e se demarcará em uma trajetória por vias marginais, ainda que articule elementos ligados aos processos cidadãos: acesso ao trabalho, à escola, aos serviços de saúde. Explicamos: há acesso ao trabalho, mas não a atividades que possibilitem a saída efetiva da criminalidade, visto que muitas dessas "oportunidades" se inserem, inclusive, na informalidade ("bicos", sem carteira assinada, etc.); há a dificuldade de as escolas aceitarem adolescentes com "esse perfil" (que, além disso, se encontram em grande defasagem em termos de idade-série); há, ainda, os encaminhamentos aos serviços de saúde, principalmente quando designados por determinação judicial, onde os jovens não raramente são recebidos com resistência pelas equipes, pois com frequência ocorre uma delegação às áreas psi - especialmente psiquiátricas - para que mediquem e adequem o comportamento dos que apresentam desvio de conduta (Reis, 2012Reis, C. (2012). (Falência Familiar) + (Uso de Drogas) = Risco e Periculosidade: a naturalização jurídica e psicológica de jovens com medida de internação compulsória Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.). Assim se inicia o percurso desses jovens pelas malhas do judiciário, e o que será relevante a se fazer com essa população estará fundado nas práticas que possibilitam um controle preciso de sua circulação (Foucault, 2008aFoucault, M. (2008a). Segurança, território, população. Curso ministrado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes.).

Se tomarmos as obras de Michel Foucault, sobretudo Segurança, território e população(Foucault, 2008aFoucault, M. (2008a). Segurança, território, população. Curso ministrado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes.) e Nascimento da biopolítica (Foucault, 2008bFoucault, M. (2008b). Nascimento da biopolítica. Curso ministrado no Collège de France (1978-1979).. São Paulo: Martins Fontes ), cursos ministrados no Collège de France no período entre 1977 e 1979, respectivamente, poderemos explicar alguns dos conceitos operadores que balizarão nossas reflexões sobre a vida dos jovens em conflito com a lei. Discorreremos brevemente acerca das noções de governamentalidade, biopolítica e dispositivos de segurança, trabalhadas por Foucault nessas obras. De modo sintético, podemos dizer que Foucault (1999)Foucault, M. (1999). Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes. trabalha duas formas de tecnologias coexistentes de administração da vida da população: a anátomo-política do corpo humano e a biopolítica da espécie humana. A primeira refere-se ao corpo individual de cada indivíduo, que deve ser disciplinado, vigiado, treinado e utilizado; portanto, dizemos que o objetivo das tecnologias disciplinares é a docilização do corpo individual. A segunda, chamada de biopolítica, consiste na regulamentação da multiplicidade de indivíduos a partir dos processos próprios da vida (nascimento, morte, reprodução, doenças), por meio de técnicas dirigidas a fazer viver a população (Foucault, 1999Foucault, M. (1999). Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes.). A vida da população passa a ser regulamentada, recebendo intervenções de uma diversidade de saberes que a direcionam mediante uma normalização, com limites aceitáveis e cálculos de probabilidades e riscos. Esse gerenciamento da vida dá-se por estratégias políticas baseadas em uma racionalidade da arte de governar que, segundo Foucault (2008aFoucault, M. (2008a). Segurança, território, população. Curso ministrado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes.; 2008bFoucault, M. (2008b). Nascimento da biopolítica. Curso ministrado no Collège de France (1978-1979).. São Paulo: Martins Fontes ), irá passar por modificações.

Se pensarmos na situação dos jovens em conflito com a lei, veremos que, devido à sua especificidade, eles têm suas vidas geridas de uma forma diferenciada das demais parcelas da população. A partir da Modernidade, diversas estratégias de gestão da vida são desenvolvidas de acordo com os objetivos destinados a atingir distintas categorias da população, para que cada uma, conforme suas peculiaridades características, seja governada (Foucault, 2008bFoucault, M. (2008b). Nascimento da biopolítica. Curso ministrado no Collège de France (1978-1979).. São Paulo: Martins Fontes ). Dessa forma, tais jovens são submetidos a estratégias específicas de governo, pois se trata de uma população delimitada que, diante de uma transgressão executada, entra no sistema judiciário e será alvo de técnicas diferenciadas.

Conforme Foucault (2008aFoucault, M. (2008a). Segurança, território, população. Curso ministrado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes.), o delineamento das especificidades da população é necessário para o aprimoramento das técnicas de governo, para um melhor manejo e um resultado mais eficaz das possibilidades de fomento da vida e do controle de suas adversidades. Trata-se da governamentalidade - essa forma de gestão que se dá a partir das especificidades de cada uma das heterogêneas parcelas que compõem uma população -, ou seja, do direcionamento das intervenções voltadas para as diferentes camadas populacionais (Foucault, 2008aFoucault, M. (2008a). Segurança, território, população. Curso ministrado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes.). Por exemplo, a situação dos jovens em conflito com a lei que cumprem medida socioeducativa de internação implica o cerceamento de suas liberdades, o que demonstra uma função de regulação da população por meio de mecanismos punitivos e disciplinares. Se, por um lado, tais mecanismos destinam-se a proteger a vida dos cidadãos de bem, por outro, visam a criar técnicas que limitem a liberdade desses jovens a fim de torná-los, se não menos perigosos, mais vigiados e controlados (Foucault, 2008aFoucault, M. (2008a). Segurança, território, população. Curso ministrado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes.).

A governamentalidade, sucintamente, consiste nas diferentes técnicas de governar pormenorizadas para as diferentes parcelas da população; ou seja, as práticas de governo terão estratégias distintas, na medida em que se administram trabalhadores, crianças, jovens, idosos, doentes mentais, pobres, entre outras categorias de vida (Foucault, 2008aFoucault, M. (2008a). Segurança, território, população. Curso ministrado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes.). A dicotomização, que mais adiante será discutida, reproduzida pelo sistema judiciário entre os diferentes investimentos e tratamentos distintos que os sujeitos das medidas de proteção e os sujeitos das medidas socioeducativas recebem é uma das formas de funcionamento da governamentalidade. Foucault (2008bFoucault, M. (2008b). Nascimento da biopolítica. Curso ministrado no Collège de France (1978-1979).. São Paulo: Martins Fontes ) irá discutir que as diversidades nas intervenções são indispensáveis no manejo da sociedade civil, que deve ser gerenciada e administrada. O conhecimento científico é importante para uma eficaz gestão nas relações de poder e saber, pois é o saber que fundamenta os conhecimentos das estratégias políticas a serem seguidas nas formas de administrar a população. Esta é considerada como um conjunto de fenômenos próprios, os quais devem ser regulamentados e baseados na autorregulação dos processos sociais. Trata-se, portanto, de uma razão governamental fundada na sociedade, na economia, na população, na segurança e na liberdade (Foucault, 2008aFoucault, M. (2008a). Segurança, território, população. Curso ministrado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes., 2008bFoucault, M. (2008b). Nascimento da biopolítica. Curso ministrado no Collège de France (1978-1979).. São Paulo: Martins Fontes ).

Foucault (2008aFoucault, M. (2008a). Segurança, território, população. Curso ministrado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes.) explica que o objetivo fundamental da governamentalidade consiste em enquadrar os fenômenos naturais de tal modo que eles não se desviem ou que uma intervenção desastrada, arbitrária, cega, não os faça desviar. Isso requer que se instituam mecanismos de segurança. "Os mecanismos de segurança têm essencialmente a função de garantir a segurança desses fenômenos naturais que são os processos econômicos ou os processos intrínsecos à população" (Foucault, 2008a, p. 474Foucault, M. (2008a). Segurança, território, população. Curso ministrado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes.). A partir daí, os dispositivos de segurança irão regulamentar a população por meio de sua própria demanda, controlando a partir de probabilidades, noções de caso, perigo e riscos. Dessa maneira, podemos dizer que os dispositivos de segurança são operadores dos fluxos da gestão das liberdades dos sujeitos, sendo indissociáveis da governamentalidade, já que funcionam precisamente na administração da circulação dos indivíduos. Tais dispositivos dão liberdade e desejo de circulação à população - liberdade no sentido de deixar as pessoas movimentarem-se e deslocarem-se, e desejo no sentido de interesse que move a ação dos indivíduos -, sendo fundados em normalidades diferenciais, médias favoráveis e limites aceitáveis. De acordo com Foucault (2008a): "A segurança tem por função apoiar-se nos detalhes que não vão ser valorizados como bons ou ruins em si, que vão ser tomados como processos necessários, inevitáveis, naturais" (p. 60). É importante destacar uma significativa mudança na arte de governar possibilitada pelos dispositivos de segurança, visto que não se trata mais de uma razão governamental para o aumento das forças estatais, e sim de uma racionalidade de governar fundada no liberalismo econômico, no critério da produtividade e no jogo de interesses.

O governo de populações ditas perigosas

Quando o juiz de uma Vara da Infância e da Juventude despacha o processo para o perito avaliar e emitir um parecer que revele se aquele jovem em conflito com a lei representa ou não perigo à sociedade, podemos perceber que o Estado necessita de um saber-poder averiguador do possível perigo que o sujeito apresenta. Com base nessa avaliação, o juiz decidirá que providências e/ou medida socioeducativa aplicar ao jovem. Tais saberes configuram-se na Psicologia, no Serviço Social e eventualmente na Pedagogia e na Medicina, entre outros saberes distintos do Direito, mas que são, frequentemente, subservientes ao sistema judiciário para atender às suas demandas, contribuindo com informações e descrições sobre os réus, sem problematizar a questão crucial, que é a própria relação desses saberes com o judiciário (Gonçalves & Brandão, 2013Gonçalves, H. S. & Brandão, E. P. (2013). Psicologia Jurídica no Brasil Rio de Janeiro: Nau Editora.). É interessante notar a articulação, então, que esses saberes-poderes do Estado terão na promoção do controle da população mediante os próprios dispositivos de segurança que vão direcionar e garantir certos padrões e limites na circulação da população. Quando um parecer do psicólogo ou do médico, por exemplo, afirma que um determinado sujeito está ou não apto para desenvolver certas atividades devido a um diagnóstico ou a uma situação específica, o efeito de tal informação designa como será controlada e gerida a liberdade desse sujeito. Nesse aspecto, podemos ver como se configuram certas práticas, respaldadas em determinados arranjos de saber-poder que põem em ação os dispositivos de segurança (Foucault, 2008aFoucault, M. (2008a). Segurança, território, população. Curso ministrado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes.).

Retomemos as noções de risco e perigo foucaultianas: "Cada indivíduo, dada a sua idade, dado o lugar em que mora, pode-se igualmente para cada faixa etária, para cada cidade, para cada profissão, determinar qual é o risco de morbidade, o risco de mortalidade, de contágio e infecção" (Foucault, 2008aFoucault, M. (2008a). Segurança, território, população. Curso ministrado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes., p. 79). Com os riscos percebidos, identifica-se o que e/ou quem é ou não perigoso. A partir disso, trabalha-se com a lógica das virtualidades: o sujeito não precisa nem mesmo ter cometido o crime, mas, tendo em vista as análises minuciosas de sua história, por meio de determinados saberes - especialmente os da área psi -, pode-se concluir se ele é suscetível a infringir a lei ou se apresenta algum potencial para isso e, portanto, é tomado como perigoso. É importante ressaltar também que o posicionamento em classes perigosas acontece principalmente quando tratamos de categorias sociais à margem da sociedade civil, sendo-lhes associadas a potencialidade para o crime e a degradação genética e moral, entre outras ameaças à sociedade (Coimbra & Nascimento, 2005Coimbra, C. M. B. & Nascimento, M. L. (2005). Ser jovem, ser pobre é ser perigoso? JOVENes, Revista de Estudios sobre Juventud, 9(22), 338-355.; Nascimento, 2002Nascimento, M. L. (2002). PIVETES: a produção de infâncias desiguais. Niterói, RJ: Intertexto; Rio de Janeiro: Oficina do Autor.). Nas políticas atuais para infância e juventude, apesar do ECA, temos inúmeros discursos, primordialmente visíveis nos próprios processos jurídicos, em que persiste o termo menor, referenciando a racionalidade dos Códigos de Menores, fruto da união de juristas e médicos, embasados em teorias higienistas e morais. Nesse sentido, fica evidente a dificuldade em superar a criminalização da pobreza atrelada às noções biológicas/genéticas e individuais determinantes de envolvimento com o crime (Coimbra & Nascimento, 2005Coimbra, C. M. B. & Nascimento, M. L. (2005). Ser jovem, ser pobre é ser perigoso? JOVENes, Revista de Estudios sobre Juventud, 9(22), 338-355.).

Os relatórios psicossociais encontrados em nossa pesquisa relatam informações a respeito do conhecimento e consciência do jovem em relação à transgressão cometida, sendo que não há preocupação, de acordo com o teor da escrita produzida nesses pareceres, com o contexto em que esse jovem está inserido. Destacamos a seguir um trecho de um parecer técnico contido nos processos jurídicos: "Comunico que o adolescente encontra-se em desenvolvimento socioeducativo, participa das atividades pedagógicas e desportivas, além de realizar trabalhos na parte interna da Unidade e que o referido interno apresenta bom comportamento e mantém boa convivência com os demais adolescentes" (parecer de uma assistente social de uma UNEI). Entendemos, assim, que o que está em pauta nessas avaliações técnicas é, muito mais do que uma preocupação com os próprios jovens, o resguardo e a proteção da sociedade (Reis, 2012Reis, C. (2012). (Falência Familiar) + (Uso de Drogas) = Risco e Periculosidade: a naturalização jurídica e psicológica de jovens com medida de internação compulsória Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.), uma vez que, por meio de tais avaliações, são averiguadas as possibilidades de reincidência dos adolescentes, seu nível de periculosidade, sua personalidade e conduta, não somente em função do ato infracional cometido, mas especialmente sobre quem são e o que representam (Foucault, 2008bFoucault, M. (2008b). Nascimento da biopolítica. Curso ministrado no Collège de France (1978-1979).. São Paulo: Martins Fontes ). Em outro parecer, emitido por um psicólogo de uma UNEI, encontramos: "É indisciplinado, com características de indivíduos hiperativos devido à falta de limites, irrequieto, não atendia as regras, atrapalhava as outras pessoas, humor instável, ora sorrindo, ora estava raivoso". Desse modo, persistem a culpabilização do jovem e a individualização dos problemas sociais - tal como prescrito nos Códigos de Menores antecessores do ECA (Nascimento, 2002Nascimento, M. L. (2002). PIVETES: a produção de infâncias desiguais. Niterói, RJ: Intertexto; Rio de Janeiro: Oficina do Autor.; Scisleski, Reis, Hadler, Weigert, & Guareschi, 2012Scisleski, A. C. C., Reis, C., Hadler, O., Weigert. M. A. B., & Guareschi, N. M. F. (2012). Juventude e pobreza: a construção de sujeitos potencialmente perigosos. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 64(3), 19-34.). Vemos aqui a produção da naturalização de um discurso que entende esses jovens como indivíduos de má índole e personalidade voltada para o crime. É esse discurso que encontramos em alguns processos, que ignoram que os referidos jovens também são vítimas e estão em risco em decorrência de uma sociedade violenta e que seus problemas não são isolados de um contexto social maior e injusto (Coimbra & Nascimento, 2005Coimbra, C. M. B. & Nascimento, M. L. (2005). Ser jovem, ser pobre é ser perigoso? JOVENes, Revista de Estudios sobre Juventud, 9(22), 338-355.).

Modos de gestão: entre os em perigo e os perigosos

É preciso mencionar ainda que, embora tenhamos apontado certas práticas de continuidade dos Códigos de Menores em relação ao ECA, os avanços da legislação atual são inegáveis se comparados com as legislações anteriores; contudo, o ECA preserva alguns paradoxos importantes. Um desses aspectos concerne à separação das medidas protetivas das medidas socioeducativas. Essa divisão foi importante na implementação da Doutrina da Proteção Integral, postulada pelo ECA, já que antes, no Código de Menores de 1979, o que tínhamos eram os imensos alojamentos da Fundação de Bem-estar do Menor (FEBEM), sem uma clara separação física entre os então menores abandonados e os menores infratores. Naqueles grandes "depósitos" de crianças e adolescentes, estavam misturados todos, apesar de terem sido encaminhados ao local pelos mais diversos motivos: os que necessitavam de proteção e de "correção" compartilhavam a mesma situação de descaso social (Faleiros, 2009Faleiros, V. P. (2009). Infância e processo político no Brasil. In I. Rizzini & F. Pilotti (Orgs.), A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil (pp. 33-96). São Paulo: Cortez.; Nascimento, 2002Nascimento, M. L. (2002). PIVETES: a produção de infâncias desiguais. Niterói, RJ: Intertexto; Rio de Janeiro: Oficina do Autor.).

Com o advento do ECA, no entanto, essa situação muda. Para aquelas crianças e adolescentes que precisam de proteção devido a maus tratos, abuso sexual, violência, enfim, que vivenciam uma situação de violação de direitos, novos espaços foram arquitetados: abrigos residenciais e casas de acolhimento, entre outros nomes para designar espaços que operam, salvo as proporções, muito mais próximos da lógica de uma casa familiar, voltados para aqueles em medida protetiva (Faleiros, 2009Faleiros, V. P. (2009). Infância e processo político no Brasil. In I. Rizzini & F. Pilotti (Orgs.), A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil (pp. 33-96). São Paulo: Cortez.). Todavia, quando observamos aqueles que cumprem medida socioeducativa de internação, a situação, substancialmente, ainda não é completamente diversa da que vigorava no período do Código de Menores de 1979; mais do que isso, aproxima-se das características de um modelo prisional penal adulto, posto que a situação de violação de direitos se perpetua: superlotação, alto índice de reincidência, medicalização exagerada e não elaboração do Plano Individual de Atendimento (PIA), entre outros (Conselho Nacional de Justiça, 2012Conselho Nacional de Justiça. (2012). Panorama Nacional: a execução das medidas socioeducativas de internação. Acesso em 10 de Janeiro, 2015, em Acesso em 10 de Janeiro, 2015, em http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/panorama_nacional_doj_web.pdf. .
http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-j...
; Relatório da OAB de Mato Grosso do Sul, 2014Relatório da OAB de Mato Grosso do Sul. (2014). OF.CIRC/CDH/OAB/MS/N.º002/2014 de 09 de abril de 2014. Relatório da Comissão Permanente de Direitos Humanos. Campo Grande: Ordem dos Advogados do Brasil/MS.). Afirmamos isso não no intuito de apontar o ECA como um instrumento ineficaz, mas para evidenciar a necessidade de sua real efetivação, tendo em vista também seus elementos paradoxais (Coimbra & Nascimento, 2005Coimbra, C. M. B. & Nascimento, M. L. (2005). Ser jovem, ser pobre é ser perigoso? JOVENes, Revista de Estudios sobre Juventud, 9(22), 338-355.; Scisleski, Reis, Hadler, Weigert e Guareschi, 2012Scisleski, A. C. C., Reis, C., Hadler, O., Weigert. M. A. B., & Guareschi, N. M. F. (2012). Juventude e pobreza: a construção de sujeitos potencialmente perigosos. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 64(3), 19-34.). As estratégias atuais sob a égide do ECA permanecem produzindo uma cisão entre crianças e adolescentes a partir da situação de abandono ou de infração perpetuando na prática direitos distintos para essa população. As próprias medidas protetivas e socioeducativas separam, de um lado, os abandonados e, de outro, os infratores. Tal divisão, na prática, permite que os princípios repressivos, higienistas e de vigilância permaneçam no modo de tratar essas crianças e adolescentes, porém de modo diverso. Em decorrência disso, podemos observar, inclusive, distintas estratégias de gestão entre essas diferentes medidas, pois comumente vemos as secretarias e departamentos da Assistência Social administrando as instâncias relacionadas às medidas protetivas (e às medidas socioeducativas em contexto de liberdade), enquanto as secretarias e departamentos da Segurança Pública gerem as instituições ligadas às medidas socioeducativas com restrição de liberdade, que são as mesmas instituições que administram o modelo prisional adulto, como discutiremos a seguir.

Para evidenciarmos essa problemática, retomamos alguns dados de nossa pesquisa. Durante o acompanhamento das audiências, identificamos que havia na Comarca do município uma Vara da Infância e da Juventude e uma Vara da Infância, da Juventude e do Idoso. A primeira é responsável pelos processos dos jovens em conflito com a lei, trabalhando com as medidas socioeducativas, ao passo que a outra se ocupa inteiramente das medidas protetivas previstas pelo ECA. Tal divisão explicita a segregação entre aqueles que infringem a lei e aqueles que necessitam de proteção, marcando, com efeito, os atendimentos realizados pelas equipes técnicas e pelo sistema judiciário. A equipe técnica, bem como os outros profissionais que trabalham nas varas de proteção especial da infância e da juventude, acaba diferenciando as formas de tratamento de acordo com o critério de infração ou não da lei. Há uma preferência na atenção daqueles que precisam de medida protetiva, vistos como merecedores do que vem a ser, de fato, seus direitos. Por outro lado, conforme percebemos pelos discursos dos técnicos, os adolescentes em conflito com a lei são tomados como sujeitos que, por vezes, são culpabilizados por sua própria índole, como os que "não têm mais jeito mesmo" (psicólogo da Vara da Infância e da Juventude). Estes são entendidos isoladamente do contexto anterior à prática do ato infracional, contexto esse que remete à violação de seus direitos. Concebe-se, assim, o ato infracional não como uma ação produzida em certo encadeamento de sucessivas situações de marginalidade social (Fracischinni & Campos, 2005Fracischinni, R. & Campos, H. R. (2005). Adolescente em conflito com a lei e medidas socioeducativas: Limites e (im)possibilidades. Psico, 36(3), 267-273. ; Silva, 2005Silva, M. L. O. (2005). O controle sócio-penal dos adolescentes com processos judiciais em São Paulo: entre a proteção e a punição. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.), mas como característica de uma personalidade delinquente. Em alguns dos pareceres técnicos, deparamo-nos com a seguinte observação: "Fora observado a gravidade ou periculosidade acentuada no comportamento de risco do adolescente, demonstrando personalidade agressiva ou violenta" (psicólogo da Vara da Infância e da Juventude).

A partir dessa noção, os jovens em conflito com a lei são expostos a realidades distintas daquelas propostas pelo ECA. Esse dispositivo legal prevê a proteção a crianças e adolescentes como um todo, embora destine as medidas de proteção àqueles que sofreram violação de seus direitos. Entretanto, em casos de adolescentes em conflito com a lei, a garantia de direitos transforma-se, na prática, em punição. Os jovens que infringem a lei serão, então, punidos e controlados - ou, utilizando o eufemismo na interpretação do ECA, socioeducados -, considerando-se a gravidade da infração. O adolescente em conflito com a lei irá se relacionar com o sistema judiciário e com a sociedade a partir da violação da norma, e é pela sua vinculação ao ato infracional que seus caminhos serão direcionados. Dessa forma, ele segue sendo estigmatizado como infrator.

Queremos enfatizar que o ECA trouxe também, em vários momentos de seu texto e em sua implementação, a descontinuidade do Código de Menores, posto que, em tese, as crianças e os adolescentes não seriam mais passíveis de arbítrio pelo juiz. Nesse aspecto, porém, no contexto onde pesquisamos, temos percebido que os próprios juízes costumam designar aos psicólogos que os assessoram quais testes devem ser aplicados. Chama nossa atenção que os psicólogos acatam essa designação sem discuti-la. Tal posicionamento nos leva a perceber a subserviência da psicologia no espaço judiciário com algo que tem sido naturalizado, além de enfatizar o trabalho do psicólogo como reificante, cada vez mais, da individualização do ato infracional.

Como mencionado anteriormente, a distinção entre medidas protetivas e mesmo as socioeducativas em meio aberto, vinculadas à Assistência Social, e medidas socioeducativas com restrição de liberdade, ligadas à Segurança Pública, leva à dicotomia entre proteção para vítimas e punição para infratores; ou seja, entre aqueles que se encontram em situação de perigo e aqueles que infringem a lei, os perigosos. Pereira (1992Pereira, A. (1992). Um país que mascara seu rosto. In A. Pereira (Org.), Os impasses da cidadania: infância e adolescência no Brasil (pp. 83-112). Rio de Janeiro: Ibase., p. 19) assinala que "as modificações das legislações para infância e juventude se pautaram na noção de periculosidade, abandonando a categoria 'delinquente' para utilizar a de 'infrator', o que vem a cristalizar de vez a visão da menoridade como caso de polícia". Ainda em nossa pesquisa, verificamos que os adolescentes sob medidas socioeducativas são tidos como infratores e apresentam personalidades perigosas, que devem ser muito bem avaliadas para se ter conhecimento do risco que esses jovens representam à sociedade (Gonçalves & Brandão, 2013Gonçalves, H. S. & Brandão, E. P. (2013). Psicologia Jurídica no Brasil Rio de Janeiro: Nau Editora.). Assim, tais jovens são percebidos apenas pelo viés da infração cometida e da probabilidade de reincidir no crime, necessitando-se verificar que medidas devem ser tomadas. Eles são infratores, transgrediram a lei e o fizeram porque ainda persiste a ideia de que têm má índole e uma personalidade voltada para o crime.

Cabe ressaltar que, arraigada à noção de infância e juventude como sendo compostas de sujeitos de direitos fundamentais, está a distinção entre aqueles que necessitam de proteção e aqueles que demandam punição e controle. Estes últimos constituem uma categoria criminalizada. Tal processo de criminalização foi construído simultaneamente à emergência dos direitos das crianças e dos adolescentes, pois, à medida que esses foram considerados cidadãos de direitos, diferentes intervenções políticas de atendimento foram reforçadas entre medidas de proteção e socioeducativas. Esse movimento dicotômico que determina as políticas de atendimento à infância e à juventude está interligado com três aspectos: punição, segurança e criminalização (Foucault, 2008bFoucault, M. (2008b). Nascimento da biopolítica. Curso ministrado no Collège de France (1978-1979).. São Paulo: Martins Fontes ; Sartório, 2007Sartório, A. T. (2007). Adolescente em conflito com a lei: uma análise dos discursos dos operadores jurídico-sociais em processos judiciais. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Política Social, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória.). Primeiramente, punição e segurança porque se trata de sujeitos que transgrediram a norma e necessitam ter seus corpos controlados e ter suas liberdades cerceadas. Aqueles que infringiram a norma representam perigo à segurança da sociedade; esse perigo lhes é atribuído não somente devido à infração cometida, mas, sobretudo, pelas possibilidades de reincidirem no crime ou de darem exemplo a outros indivíduos. Então, pune-se o sujeito em si pelo que ele é e representa, e não somente por sua ação (Foucault, 2008b, p. 342Foucault, M. (2008b). Nascimento da biopolítica. Curso ministrado no Collège de France (1978-1979).. São Paulo: Martins Fontes ). Isso é importante de se destacar, pois o próprio ECA nesse ponto também considera como um dos elementos para agravo ou para remissão da medida uma avaliação da personalidade do adolescente, segundo expõe o artigo 126 (Lei Federal 8069, 1990Lei Federal n. 8069 de 13 de julho de 1990. (1990). Institui o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. Brasília, DF: Presidência da República.). Como vemos, ainda se consideram, nas decisões jurídicas, a personalidade do adolescente e sua periculosidade perante o restante da sociedade.

O paradoxo: o ECA e a presença de práticas de redução da idade penal no Brasil

Mostramos a seguir alguns trechos dos pareceres técnicos de psicólogos e assistentes sociais que constam nos processos de jovens em cumprimento de medida socioeducativa de internação: "O adolescente apresenta personalidade e comportamento favoráveis, teve uma adaptação boa na unidade" (psicólogo da UNEI); "Do ponto de vista psicológico, observamos que o adolescente não seria capaz de enquadrar-se no 'perigo de dano', apresentando relacionamentos interpessoais e familiares de maneira amistosa e passiva, não representando, no momento, risco para a sociedade" (psicólogo da UNEI); "Em entrevista com o adolescente, seu genitor e madrasta, fora demonstrado que o adolescente desde o início de sua adolescência exibira comportamentos inadequados e rebeldes, contudo, o mesmo sempre tivera apoio e respaldo familiar" (psicólogo da UNEI) Como vemos nesses trechos de pareceres, o foco reside em investigar a personalidade do adolescente, de modo a analisá-lo individualmente, a partir de sua psique, personalidade e comportamento (Bicalho, Kastrup, & Reishoffer, 2012).

Quando realizamos visitas às UNEIS, os agentes socioeducadores explicaram que os adolescentes que ali se encontram são dispostos em seus alojamentos - que, na realidade, se assemelham a celas como as encontradas nas prisões - de acordo com suas vinculações a facções, sendo separados segundo essa regra para que não sofram retaliações dos membros de facções rivais. Os que cometeram ato infracional de estupro são isolados dos demais. Quando algum deles não adota um comportamento em conformidade com as normas da instituição, é encaminhado ao centro de reflexão - nomenclatura utilizada para referir-se à cela solitária, tal como as existentes em instituições prisionais adultas. Isso nos leva a questionar o fundamento do ECA, baseado no paradigma da proteção integral. Se analisarmos a situação de jovens em conflito com a lei em cumprimento de medida de internação, veremos que já ocorre no Brasil a redução da maioridade penal, pois o que é chamado de socioeducação, em termos de restrição de liberdade, opera como meio de punição para os adolescentes e busca oferecer, em nome da segurança dos cidadãos de bem, os mesmos moldes do modelo prisional adulto, seguindo, inclusive, a mesma lógica de funcionamento institucional.

Vale lembrar, ainda, que muitas vezes a equipe designada para trabalhar no sistema socioeducativo (juízes, promotores e defensores, especialmente) é nomeada tendo como justificativa a experiência anterior desses profissionais no sistema prisional adulto (Scisleski, Reis, Hadler, Weigert, & Guareschi, 2012Scisleski, A. C. C., Reis, C., Hadler, O., Weigert. M. A. B., & Guareschi, N. M. F. (2012). Juventude e pobreza: a construção de sujeitos potencialmente perigosos. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 64(3), 19-34.). O ECA, enquanto lei para esses jovens, funciona como instrumento econômico para puni-los. Como expressa Foucault (2008bFoucault, M. (2008b). Nascimento da biopolítica. Curso ministrado no Collège de France (1978-1979).. São Paulo: Martins Fontes ), o mecanismo da lei seria a "forma menos onerosa e mais certeira para obter a punição e a eliminação das condutas consideradas nocivas à sociedade" (p. 341). O funcionamento das UNEIS, que operam para o cumprimento da medida socioeducativa de internação, faz-nos questionar o caráter do que é tomado como socioeducativo. De acordo com o ECA, as unidades de internação devem apresentar alojamentos em condições de salubridade e higiene, a fim de que se garantam, juntamente com outros quesitos, os direitos desses adolescentes à saúde, por exemplo. No entanto, os alojamentos dos jovens são construídos exatamente como celas de presídios adultos, com número excedente de indivíduos por alojamento e estruturação inadequada e insalubre (não há forros nos colchões; as refeições são servidas dentro dos quartos/celas; funcionamento inadequado da escola; existência de cela solitária; prática de espancamento, entre outros), como foi constatado em uma UNEI por nós visitada, estando hoje inclusive parcialmente interditada (Relatório da OAB de Mato Grosso do Sul, 2014Relatório da OAB de Mato Grosso do Sul. (2014). OF.CIRC/CDH/OAB/MS/N.º002/2014 de 09 de abril de 2014. Relatório da Comissão Permanente de Direitos Humanos. Campo Grande: Ordem dos Advogados do Brasil/MS.). Ademais, as próprias normas de funcionamento local - oficiais ou não - seguem a lógica do sistema adulto, como já dito anteriormente. Como sabemos, conforme o ECA, as instituições de internação para cumprimento de medidas socioeducativas, considerando a proposta inicial de cunho socioeducativo, deveriam diferenciar-se das instituições do sistema penal em termos de estruturas físicas, atividades propostas aos jovens internados e estratégias de integração familiar (Sartório, 2007Sartório, A. T. (2007). Adolescente em conflito com a lei: uma análise dos discursos dos operadores jurídico-sociais em processos judiciais. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Política Social, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória.). Além disso, há algumas estratégias curiosas que fazem parte da organização normativa do sistema socioeducativo local: em entrevista com o técnico de saúde de uma UNEI, este relatou que os jovens, quando saem da unidade para comparecer a uma audiência ou participar de alguma atividade em meio aberto, devem, impreterivelmente, apresentar-se de chinelos de dedo, pois isso dificultaria uma tentativa de fuga. Ademais, nessa visita, conhecemos algumas salas destinadas à realização de oficinas com os jovens internados; contudo, as mesmas estão desativadas, pois não há atividades no local, além daquelas referentes à escola. Esta, de acordo com o psicólogo local, não possui um espaço de estudo para os que estariam no Ensino Médio, porque a clientela majoritariamente atendida na UNEI está em grande defasagem na relação idade-série, não chegando geralmente ao quinto ano do Ensino Fundamental. Dessa forma, as atividades propostas para os jovens, quando existentes, não demonstram qualquer planejamento que potencialize a inserção do jovem na comunidade ou que promova condições para que eles consigam constituir o acesso aos seus direitos fundamentais. Apesar de a lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) ser bastante clara quanto à necessidade de elaboração do Plano Individual de Atendimento (PIA) que visa ao planejamento da inserção do jovem na comunidade e seu engajamento com seu próprio atendimento, sabemos que raramente este é elaborado e, menos ainda, implementado (Conselho Nacional de Justiça, 2012Conselho Nacional de Justiça. (2012). Panorama Nacional: a execução das medidas socioeducativas de internação. Acesso em 10 de Janeiro, 2015, em Acesso em 10 de Janeiro, 2015, em http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/panorama_nacional_doj_web.pdf. .
http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-j...
).

Fracischinni e Campos (2005Fracischinni, R. & Campos, H. R. (2005). Adolescente em conflito com a lei e medidas socioeducativas: Limites e (im)possibilidades. Psico, 36(3), 267-273. ) afirmam que "a proteção jurídica, ao mesmo tempo em que defende o adolescente como 'sujeito de direitos', paradoxalmente materializa o controle sócio-penal dos adolescentes ditos como inimputáveis" (p. 226). Trata-se de uma proteção condicionada pelo sistema de controle sociopenal que acaba criminalizando mais uma vez a juventude pobre, diferentemente do que ocorria sob a perspectiva do Código de Menores, que não trabalhava sob a égide da proteção. No caso atual, a proteção é paradoxal, pois, embora seja fundada em princípios legais, já que as crianças e adolescentes foram considerados sujeitos de direitos, tendo, portanto, garantias e responsabilidades processuais, em seu nome se perpetuam práticas penais de criminalização de uma juventude pobre (Coimbra & Nascimento, 2005Coimbra, C. M. B. & Nascimento, M. L. (2005). Ser jovem, ser pobre é ser perigoso? JOVENes, Revista de Estudios sobre Juventud, 9(22), 338-355.; Scisleski, Reis, Hadler, Weigert, & Guareschi, 2012Scisleski, A. C. C., Reis, C., Hadler, O., Weigert. M. A. B., & Guareschi, N. M. F. (2012). Juventude e pobreza: a construção de sujeitos potencialmente perigosos. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 64(3), 19-34.). Outra observação em nosso percurso de pesquisa a partir das diferenças das duas Varas diz respeito à maneira como são distanciados os sujeitos - os que necessitam de proteção e os que necessitam de medidas socioeducativas - e a não realização das intervenções previstas pelo ECA. Explicamos: quando se trata de medidas de proteção, as crianças e/ou adolescentes são ouvidos com certa preocupação por parte dos técnicos no que concerne às suas vivências, às situações de violação de direitos que podem estar sofrendo, aos seus sentimentos, havendo preocupação com as possíveis consequências dessas questões em seu desenvolvimento; ou seja, com frequência vemos uma preocupação efetiva na defesa dos direitos de tais crianças e adolescentes. O mesmo tratamento não ocorre quando se trata de adolescentes em conflito com a lei. Em nossa pesquisa, em contato com a Vara da Infância e da Juventude encarregada das medidas protetivas, durante atendimentos da equipe técnica, percebemos o trabalho de avaliar a situação de violação dos direitos especiais averiguando-se os responsáveis pelo ocorrido e as melhores medidas a serem tomadas em cada situação. Após esse processo inicial, os cuidados continuam, havendo acompanhamento e reavaliação do caso, uma vez que, quando as crianças e/ou jovens se encontram institucionalizados em locais de medida protetiva, a equipe técnica do judiciário, em conjunto com a da instituição de acolhimento, estuda a possibilidade de reintegração familiar; quando isso não é possível, propõe-se a busca de uma família substituta. Nesse percurso, os sujeitos em medida protetiva recebem, além dos atendimentos técnicos de praxe, atendimentos psicológicos individuais e podem contar com a busca por possibilidades de socialização e participação em diversos projetos sociais, como escolinhas esportivas, eventos festivos em datas comemorativas e celebrações na comunidade. Em um relatório técnico do psicólogo da Vara da Infância e da Juventude, por exemplo, lê-se:

Solicitamos como medida imediata o afastamento da idosa do convívio familiar. Sugerimos que os autos retornem no prazo de 30 dias para acompanhamento do caso, pois a criança se encontra em situação de risco na convivência com a idosa. Foram realizadas orientações à família e indicação de psicoterapia para a criança.

Em outro parecer do mesmo profissional, encontramos:

Assim, primando pela proteção integral da criança e do adolescente, sugerimos a Vossa Excelência que a equipe da Secretaria de Assistência Social do município acompanhe sistematicamente esta família a fim de observar se ela está realizando os encaminhamentos necessários, dentre eles o tratamento da genitora no CAPS.

Entretanto, quando se trata de jovens em conflito com a lei, os relatórios técnicos restringem-se basicamente a atender às solicitações da justiça. Não há interesse e investimento nos atendimentos realizados que sejam comparáveis àqueles percebidos nos atendimentos de jovens em medida protetiva. Em pareceres das equipes técnicas da Vara da Infância que atendem essa população, tem-se que:

Após estudo psicológico do caso, constatamos que o jovem não se encontra adequado às regras sociais, não recebe auxílio do responsável devido a conflito existente nas relações familiares. O adolescente se encontra em risco pessoal e social, pois se envolve com drogas, furtos e facções criminosas"; "Foram observados que os conflitos familiares influem diretamente na conduta do representado... Não houve mudança na dinâmica familiar apresentada e identificada em relatórios anteriores.

Notamos uma ausência de preocupação com os direitos desses jovens. Parte-se do princípio de que tais adolescentes são, de fato, criminosos e não desejam assumir uma vida digna, de acordo com os moldes vigentes na sociedade. Outro exemplo dessa diferenciação no tratamento, encontrado durante o estudo de alguns dos processos jurídicos que analisamos, é o caso de um jovem que fora capturado pela polícia devido à acusação de ter cometido um determinado ato infracional. O que nos chama a atenção, independentemente da gravidade do ato, é que o fato ocorrera em um município do interior do estado onde não havia UNEI, motivo pelo qual o jovem seria transferido para o local mais próximo, onde houvesse unidade de internação, de acordo com o ECA. Mas isso não ocorreu e o jovem ficou detido em uma cela da delegacia de polícia junto com adultos. O ECA prevê que, para a execução de medidas socioeducativas, existam entidades próprias, diferentes das instituições de acolhimento das medidas de proteção, conforme o Art. 123. Todavia, na execução de um caso excepcional, fica evidente que o jovem é percebido como transgressor e criminoso, já que ficara na cela da delegacia e jamais em um alojamento de abrigo do Conselho Tutelar ou de outro órgão de atendimento. Reproduzindo o que nos disse uma assistente social da Vara da Infância e da Juventude durante uma entrevista: "O jovem em conflito com a lei é problema de polícia!"

O ECA estabelece a Doutrina de Proteção Integral, preconizando serem prioritários as crianças e os adolescentes. E o que acontece com os jovens em conflito com a lei? Após o ato infracional, eles serão submetidos a medidas socioeducativas que, de certa forma, continuam violando seus direitos. Concordando com Silva (2005Silva, M. L. O. (2005). O controle sócio-penal dos adolescentes com processos judiciais em São Paulo: entre a proteção e a punição. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Universidade Católica de São Paulo, São Paulo., p. 171), percebemos a discrepância das ações do ECA: "o Estatuto da Criança e do Adolescente ... criou dois tipos específicos de medidas para intervenções sócio-jurídicas diferenciadas, ou seja, para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social e para adolescentes com prática de ato infracional". Assim, a Doutrina de Proteção Integral passa a vigorar para os sujeitos considerados vítimas, destinados a receber medidas de proteção, enquanto os indivíduos em conflito com a lei são punidos, sobretudo aqueles que cumprem medidas socioeducativas de internação.

Considerações finais

Vivemos em um período de grandes críticas à legislação do ECA quanto ao seu cunho protetor, visto que há um apelo midiático, e mesmo por parte de deputados e senadores, respaldados pelos discursos dos cidadãos de bem, que defende a redução da maioridade penal. Ainda que recentemente o conjunto de PECs que pretendem essa redução, dentre elas, a PEC 33/2012, tenha sido rejeitado, há já em trâmite novas (re)formulações sobre o mesmo tema (Senado Federal). No entanto, a questão que apresentamos aqui é bastante diversa. A nosso ver, o problema é justamente que a proteção preconizada pelo ECA não atinge todos, especialmente aqueles que precisam dela com urgência, como é o caso dos adolescentes em conflito com a lei que cumprem medida socioeducativa de internação. Esses jovens permanecem tendo seus direitos violados, e as unidades de internação seguem com mais uma lógica de perpetuação na via da criminalidade do que outras possibilidades de vida (Reis, 2012Reis, C. (2012). (Falência Familiar) + (Uso de Drogas) = Risco e Periculosidade: a naturalização jurídica e psicológica de jovens com medida de internação compulsória Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.; Rizzini & Pilotti, 2008Rizzini, I. & Pilotti, F. (2008). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. São Paulo: Cortez ).

A ideia do presente artigo é discutir como temos construído certa governamentalidade destinada a continuar criminalizando os adolescentes pobres no Brasil. A manutenção dessa governamentalidade perpetua-se em diversos meios, que envolvem desde a gestão da forma como são operacionalizadas as medidas protetivas e as medidas socioeducativas até a própria lógica que subjaz a escrita dos pareceres técnicos pelos profissionais que dão subsídios aos sistemas protetivos e socioeducativos. Tais pareceres indicam que, em sua maioria, os próprios jovens são os grandes responsáveis pela via criminal que trilham, descontextualizando-se o cenário social onde estão inseridos, o que perpetua a lógica da doutrina da situação irregular postulada no Código de Menores de 1979. Concordamos com Coimbra e Nascimento (2005Coimbra, C. M. B. & Nascimento, M. L. (2005). Ser jovem, ser pobre é ser perigoso? JOVENes, Revista de Estudios sobre Juventud, 9(22), 338-355.) ao enfatizarem que "a miséria é, ainda, considerada como decorrência da ociosidade e falta de empenho dos pobres" (p. 48).

É importante também mencionar um dos grandes paradoxos do ECA: se, por um lado, resolveu a confusão que se fazia entre menores abandonados e menores infratores, postulada pelo anterior Código de Menores, por outro, ao separá-los, criou outra dicotomia, que opera, na prática, uma gestão diversa entre os direitos daqueles que vão ser tomados como vítimas e aqueles que são percebidos como agressores. Dessa forma, há duas governamentalidades distintas: uma arraigada à noção de infância e juventude como um grupo de sujeitos que deve ter seus direitos resguardados - e aqui estão os que precisam de proteção - e outra, atrelada à noção de periculosidade da personalidade, referente aos adolescentes em conflito com a lei em cumprimento de medida com restrição de liberdade - esses são os que merecem punição e controle.

Rizzini (1997Rizzini, I. (1997). O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil Rio de Janeiro: EDUSU/AMAIS.) fala sobre os pobres dignos e os viciosos, partindo de uma concepção moralista e considerando características biológicas que teriam condições de determinar se o sujeito se tornará ou não criminoso, quando atrelado à pobreza. Pensamos que talvez fosse mais justo dizer que os jovens é que se encontram em situação de risco, e não o restante da sociedade. Nas palavras de Brito (2000Brito, L. M. T. (Org.). (2000). Jovens em conflito com a lei. Rio de Janeiro: Uerj.): "Risco no sentido de que as condições em que vivem os expõe entre os limites da legalidade e ilegalidade" (p. 121).

Coimbra e Nascimento (2005Coimbra, C. M. B. & Nascimento, M. L. (2005). Ser jovem, ser pobre é ser perigoso? JOVENes, Revista de Estudios sobre Juventud, 9(22), 338-355.), ao examinarem a função da Psicologia e de outros saberes que atuam no sistema judiciário fornecendo relatórios e estudos a respeito de questões que irão embasar a decisão do juiz, percebem um processo de individualização e naturalização dos contextos sociais que recaem sobre o sujeito, através de aplicações de noções psicopatológicas. Essas práticas psicológicas e de outros saberes que atuam no judiciário reproduzem o movimento de culpabilização e criminalização da pobreza, pois se utilizam de argumentos psicopatologizantes e individualizantes, atribuindo a situação daquele sujeito apenas a fatores genéticos, psicológicos e de personalidade.

No cenário de apelos pela redução da maioridade penal no Brasil, entendemos que ela já ocorre justamente pela não implementação do ECA quando se trata de adolescentes em cumprimento de medida de restrição de liberdade, uma vez que, como já dito anteriormente, o funcionamento das instituições não condiz com essa legislação, mas vigora de acordo com a lógica prisional e penal adulta (Relatório da OAB de Mato Grosso do Sul, 2014Relatório da OAB de Mato Grosso do Sul. (2014). OF.CIRC/CDH/OAB/MS/N.º002/2014 de 09 de abril de 2014. Relatório da Comissão Permanente de Direitos Humanos. Campo Grande: Ordem dos Advogados do Brasil/MS.). Dessa forma, entendemos que os jovens em conflito com a lei, tomados como agressores da sociedade e invisibilizados como sujeitos de direitos, recebem tratamento de punição. Paralelamente, vão sendo excluídos da sociedade e internados em instituições socioeducativas, relacionando-se com o sistema jurídico-político por meio de um movimento dicotômico que segrega a categoria da infância e da juventude pobre em vítimas e infratores.

Agradecimento

À Agência de fomento, CNPQ, Edital MCTI/CNPQ/Universal 14/2014. Processo no. 449409/2014-7.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2014
  • Revisado
    15 Dez 2014
  • Aceito
    19 Fev 2015
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