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INTERVENÇÃO COM JOVENS EM SITUAÇÃO DE RUA: PROBLEMATIZANDO CUIDADO E CONTROLE

INTERVENCIÓN CON JÓVENES EN LAS CALLES: CUESTIONANDO CUIDADO Y CONTROL

INTERVENTION WITH YOUNG PEOPLE ON THE STREETS: QUESTIONING CARE AND CONTROL

Resumo

Este artigo é resultado de uma pesquisa acerca do tema do cuidado em um dispositivo da política de assistência social para crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de Porto Alegre, no ano de 2007, que resultou em uma dissertação de mestrado em psicologia. A partir da experiência prática de um dos autores como psicólogo do dispositivo Ação Rua, analisamos os modos de relação que se estabelecem entre aquele que intervém e o território existencial alvo da intervenção. O trabalho distingue diferentes modos de relação que caracterizam práticas de cuidado ou de controle. Os modos de relação no dispositivo são abordados a partir da análise de cenas do diário de campo, entendendo que isso que está sendo denominado por modos de relação é uma dimensão decisiva na produção das práticas no dispositivo em questão.

Palavras-chave:
cuidado; psicologia; situação de rua; assistência social; políticas públicas

Resumen

Este artículo es resultado de una investigación sobre el tema de la atención en un dispositivo de una política de bien estar social para niños y adolescentes sin hogar en la ciudad de Porto Alegre, en 2007. Desde una experiencia practica como psicólogo de un servicio de esta política, que ha vivido uno de los autores, se analiza los modos de relación que se establece entre el que interviene y territorio existencial que sufre la intervención. El trabajo distingue diferentes formas de relación que, en las prácticas de intervención, pueden tener como efecto cuidado de los jóvenes o control de sus vidas. Este problema se trabaja a partir de una análisis de la experiencia a partir de escenas del cotidiano del trabajo, entendiendo que lo que los modos de relación son una dimensión fundamental en las prácticas en el dispositivo en cuestión

Palabras clave:
política social; jóvenes sin hogar; practica psicológica

Abstract

This article is the result of research on the subject of care in a device of social welfare policy for children and adolescents living on the streets in the city of Porto Alegre, in 2007. From the practical experience of a psychologist in the device called "Acão Rua", we analyze how the intervention relates with the existing territory targeted for intervention. This paper distinguishes between different modes of relation characterized by care practices and control practices. These ways of relation are discussed based on the analysis of scenes from the field diary of an author. What we are calling modes of relation is a crucial dimension to production of public policy.

Keywords:
care; psychology; street situation; social assistance; public policies

Introdução

Período de esclarecimento: com a luta de classes decidida a favor da sociedade existente, a guerra organiza-se contra os que excedem. Período de esclarecimento: a exceção precisa da regra anterior. Período de esclarecimento: a exceção não é nova, a exceção é hermafrodita - a exceção quer ser diferente/melhor/comum/pior. (Waly Salomão, 2003Salomão, W. (2003). Qual é o parangolé? Rio de Janeiro: Rocco., p. 115)

Ao intervirmos junto à realidade de pessoas vivendo nas ruas nas grandes cidades brasileiras, no campo das políticas de assistência social, nos defrontamos com um impasse: como intervir efetivando cuidado e não controle? Esse impasse diz respeito à própria dualidade do campo em questão, o duplo sentido de sua função e lugar na sociedade moderna: amparo, assistência; contenção, controle dos indesejáveis. Também pudera. O "campo do social", do qual derivam práticas da assistência social contemporânea, surge no final do século XIX, momento em que se articulam Estado democrático de direito e capitalismo (Donzelot, 1980Donzelot, J. (1980) A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Graal.; R. Silva, 2005Silva, R. (2005). A invenção da Psicologia Social.. Petrópolis, RJ: Vozes ).

Chamamos doravante de "campo do social" este campo de práticas de governo, saberes e de intervenção da sociedade sobre sua camada pobre e miserável. No escopo deste campo está o que hoje conhecemos por Assistência Social. Desde a época dos grandes asilos do século XVI, os "miseráveis" foram alvo de alguma intervenção da sociedade. Contudo, na modernidade, vemos tais práticas se profissionalizarem, se sistematizarem e se estruturarem no Estado moderno, amparadas pelas ciências humanas, em um modo de governo que Foucault (2008Foucault, M. (2008). Nascimento da Biopolítica.. São Paulo: Martins Fontes ) chamou de biopolítico. É neste contexto de objetivação da vida em suas diversas dimensões que, com Donzelot (1980Donzelot, J. (1980) A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Graal.) e R. Silva (2005Silva, R. (2005). A invenção da Psicologia Social.. Petrópolis, RJ: Vozes ), vemos surgir uma problematização do "social" na sociedade moderna, em virtude do problema da pobreza. Pobreza nas grandes cidades, que evidenciava uma fratura estruturante na nova configuração moderna: fratura entre "uma ordem jurídico-política fundada sobre a igual soberania de todos e uma ordem econômica que acarreta um aumento da miséria" (R. Silva, 2005, p. 23Silva, R. (2005). A invenção da Psicologia Social.. Petrópolis, RJ: Vozes ). Castel (1998Castel, R. (1998) As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, RJ: Vozes.) fala que este hiato entre a organização política e o sistema econômico vai apontar pela primeira vez o lugar do "social" no contexto moderno: "Desdobrar-se nesse entre dois, restaurar e restabelecer laços que não obedecem nem a uma lógica estritamente econômica nem a uma jurisdição estritamente política" (Castel, 1998, p. 31Castel, R. (1998) As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, RJ: Vozes.). O campo do social constitui-se na modernidade como um sistema de regulações não mercantis, constituído de dispositivos de "integração social" e de práticas coercitivas de formação de população.

Se, por um lado, observamos esses movimentos constitutivos na base das políticas sociais ocidentais, não podemos, todavia, desprezar realidades locais específicas. A instituição da Política Nacional de Assistência Social brasileira é conquista de movimentos e lutas por garantia de direitos frente a um modelo de Estado historicamente marcado pela completa desassistência. De modo que esta política se configura como campo híbrido, composto por conjunções de áreas da estrutura de governo, ONG's, movimentos sociais e outros atores, que se associam com saberes diversos. Campo de lutas entre forças e perspectivas diversas. Ele é ponto de encontro entre ideias e ideais da sociedade acerca da vida individual e comunitária, das maneiras de ser e estar na sociedade. Por tal hibridismo, entendemos este campo como um campo de políticas de Estado onde é possível disputar sentidos e direções políticas.

Entendemos que é no espaço de encontro da sociedade com sua margem dita "excluída" que o sentido das ações pode ser disputado. Os efeitos da política de Assistência Social não podem ser definidos somente em sua conformação oficial (textos, leis, estruturas institucionais), mas na maneira como se concretizará o que está definido nos referidos textos e leis. Este lugar de concretização chamamos de plano relacional, ou simplesmente relação. Relação como o espaço construído entre sujeitos e territórios em jogo na intervenção. Espaço onde se desenrolam e se coproduzem as experiências dos atores envolvidos, pois haverão modos de construir esse espaço relacional: modos de relação, que serão decisivos na produção dos efeitos da intervenção na experiência concreta dos usuários da política.

Há, em tais existências à margem da sociedade, um modo de experimentar a cidade, a vida em sociedade, uma experiência de si que configura um modo de vida muito diferente dos padrões sociais mais estabelecidos. A essa experiência denominamos bruto social: as estéticas sociais em sua face bruta, com formas de vida menos codificadas e, ao mesmo tempo, cheias de intensidade, cheias de potencialidade para a produção de outras estéticas existenciais.

Nosso objeto de pesquisa se situa nesta zona de encontro da sociedade com sua dimensão bruta: o plano onde se encontram e coproduzem a ação daquele que intervém e a realidade daquele que sofre a intervenção, a relação. Tal relação é uma zona de tensão - uma vez que crítica e também é cheia de intensidade. O impasse, ou a ambivalência do campo do social, força a intervenção a se posicionar nesta relação, para poder produzir cuidado e escapar ao controle.

O presente artigo visa mostrar alguns caminhos do cuidado neste campo problemático, desenhados a partir de uma pesquisa realizada em um serviço da política municipal de assistência social da cidade de Porto Alegre, destinado a jovens em situação de rua.

Nesta pesquisa, tratamos de analisar a prática em um serviço de "abordagem de rua" da política de assistência social de Porto Alegre: o "Ação Rua". O mencionado serviço tem a função de fazer uma aproximação inicial aos jovens, no espaço da rua, acolhendo-os, buscando restabelecer seus vínculos com suas famílias, comunidades e com redes de políticas públicas. A pesquisa centra-se em um recorte específico neste serviço: a prática do dispositivo Ação Rua, no ano de 2007, no território da Rodoviária Central de Porto Alegre, com as "situações de rua-moradia". Esta é a nomenclatura utilizada pela rede de Assistência Social de Porto Alegre para designar situações de rua nas quais as pessoas perderam seus vínculos comunitários e familiares, morando exclusivamente na rua (Lemos & Giugliani, 2002Lemos, M. & Giugliani, S. (2002). Apresentação. In Paica-Rua (Org.), Meninos e meninas em situação de rua: políticas integradas para garantia de direitos (pp. 2-7). São Paulo: Cortez. ). Na tipificação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o Ação Rua faz parte da rede especializada, por atender a situações de direitos violados, porém também se localizando na rede básica, já que tem sentido de prevenção da situação de rua na comunidade, agindo onde os direitos ainda não foram violados. Cada equipe do Ação Rua é composta por psicólogo, assistente social e quatro educadores sociais (Fundação de Assistência Social e Cidadania - FASC, 2006Fundação de Assistência Social e Cidadania - FASC. (2006). Projeto Ação Rua Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Acesso em 30 de maio, 2015, em Acesso em 30 de maio, 2015, em http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/fasc/usu_doc/acaoruaversaofinal2006_1.pdf
http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/pref...
).

Metodologia

Por relação não entendemos "interação" de um sujeito e um objeto, ou de dois sujeitos, como se estes já estivessem dados. Em nossa perspectiva, sujeito e objeto não são prévios à relação que estabelecem entre si. É a relação que configura constante e concomitantemente tais termos. Certos estudos da cognição ( A. Silva, Passos, Fernandes, Guia, Lima, & Carvalho, 2010Silva, A. E., Passos, E., Fernandes, C. V. A., Guia, F. R., Lima, F. R., & Carvalho, J. F. (2010). Estratégias de pesquisa no estudo da cognição: o caso das falsas lembranças. Psicologia & Sociedade, 22(1), 84-94.), ao colocarem o tema da experiência como problema, nos ajudam a entender essa inseparabilidade entre sujeito e objeto, ou seja, o papel da relação em sua constituição. Relação aqui tem o sentido de plano relacional ou plano de composição da realidade. Quando se formam sujeito e objeto em determinada situação, haveria uma coemergência entre eles, que se dá na relação e a partir dela (A. Silva et al., 2010Mangueira, M. (2008). Para além das ciências humanas: o pensamento proximal enquanto potência do entre e criação do atual. In L. Escóssia & E. Cunha (Org.), A psicologia entre indivíduo e sociedade (pp. 191-216). São Cristóvão, SE: UFS.). A. Silva et al. (2010)Mangueira, M. (2008). Para além das ciências humanas: o pensamento proximal enquanto potência do entre e criação do atual. In L. Escóssia & E. Cunha (Org.), A psicologia entre indivíduo e sociedade (pp. 191-216). São Cristóvão, SE: UFS. falam de uma dimensão da experiência em que o sujeito e o objeto não estariam predeterminados, mas adviriam dessa dimensão da experiência, que teria um sentido pré-refletido e ontológico, sendo o ato de experienciar. O ato de experenciar não é um processo subjetivo somente interno ao sujeito, mas um processo que se faz em um plano compartilhado de realidade, o tal plano relacional. Este plano, onde coemergem constantemente sujeito e objeto, sujeito e mundo, não é um "momento zero", em que nada existe, mas sim uma dimensão ontológica da realidade presente em toda formação social, subjetiva e histórica.

Para colocarmos em questão os modos de relação no dispositivo Ação Rua, tomamos como material de análise a experiência de um dos autores como psicólogo deste serviço. Uma cartografia do campo foi feita a partir de: análise de diário de campo, análise da formação histórica do serviço e da política de assistência social. A análise do diário de campo torna possível o acesso à experiência de intervenção. O diário de campo possibilita o conhecimento de certo cotidiano, "não o como fazer 'das normas', mas o como foi feito 'da prática'" (Lourau, 1993Lourau, R. (1993). Análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ., p. 77). A partir do diário de campo, memórias, casos1 1 Todas as histórias citadas foram autorizadas mediante "termo de consentimento livre e esclarecido" pelas pessoas envolvidas. Tal termo e a devida autorização da utilização das histórias foram aprovados pelo Comitê de Ética em pesquisa da Secretaria Municipal de Assistência Social do município de Porto Alegre. Os nomes mencionados são fictícios, embora as cenas descritas remetam a fatos reais. , foram transformados em cenas analisadoras. Tais "cenas" têm a função de evidenciar os múltiplos sentidos de relação estabelecidos neste campo, entre aquele que intervém e o alvo da intervenção. Essas cenas analisadoras, advindas do diário de campo, têm um recorte específico: elas contam o acompanhamento de cinco usuários diferentes, que no ano de 2007 viviam nas ruas do entorno da Rodoviária Central de Porto Alegre.

O campo do social e o problema do controle: estratégia do biopoder

Uma das funções do campo do social que surge na modernidade é amenizar os conflitos advindos do hiato entre ordem econômica e ordem jurídica - materializado no problema do pauperismo - e dissociá-los de qualquer atribuição diretamente política (Castel, 1998Castel, R. (1998) As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, RJ: Vozes.; Donzelot, 1980Donzelot, J. (1980) A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Graal.). O que daí advém é que o problema da pobreza, na sociedade moderna, passa a ser colocado, hegemonicamente, na própria "localização" em que ele se apresenta: as pessoas e grupos pobres e miseráveis. Foucault (2008Foucault, M. (2008). Nascimento da Biopolítica.. São Paulo: Martins Fontes ), sobre a política social, fala que se trata de uma individualização pela política social, ao invés de uma coletivização.

A individualização é uma operatória própria das formas de governos na modernidade. O campo do social que emerge é apenas um dos campos de práticas de um movimento mais abrangente, que envolve, anima e direciona as formas de pensar e agir na modernidade: o que Foucault (1984Foucault, M. (1984). Governamentalidade. In R. Machado (Org.), Microfísica do poder (pp. 163-174).. Rio de Janeiro: Graal ) chamou de biopolítica. O governo biopolítico é levado para além (e aquém) do indivíduo, tendo como foco algo que é anterior e posterior ao indivíduo e, ao mesmo tempo, abrangente de todos: a vida e seus processos - nascimento, morte, relações familiares e sexuais e formação do indivíduo, entre outros aspectos. É a objetivação do homem como espécie, como ser vivo, através de técnicas, leis e saberes que se ocuparão da vida, intervindo nas determinações de seus processos. Tal intervenção é sobretudo de caráter regulativo: regulação das relações entre as pessoas e as famílias, das relações do indivíduo para consigo mesmo, com a sociedade, com o mundo. Essa operatória de regulação se faz pela noção de "norma" (Foucault, 2005Foucault, M. (2005). Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.). A norma pode ser entendida como uma regra, mas com modulação variável, diferente da lei, que seria uma regra invariante (Foucault, 1990Foucault, M. (1990). História da Sexualidade.. Rio de Janeiro: Graal ). A partir da norma, são operadas normalizações: intervenções de adequação à norma, nos diversos modos e facetas da vida.

A norma, como paradigma, vai ajudar a produzir uma certa epistemologia das ciências que se ocuparão da vida, entre elas as Ciências Humanas. Esta epistemologia, como modos de ver e falar hegemônicos nas Ciências Humanas, será determinante nos modos de construção dos dispositivos no campo do social, onde as práticas discursivas e não discursivas farão funcionar uma lógica de ver e produzir as paisagens sociais. Uma característica importante desta lógica é uma objetivação do tecido social, correlata a uma objetivação do indivíduo. Indivíduo e social tornam-se objetos de investigação diferentes dentro das Ciências Humanas. Sob tal paradigma, o que diz respeito ao subjetivo está no âmbito individual, e o que diz respeito ao coletivo é tomado como sinônimo das interações grupais e individuais, encarnado na ideia de "social" (R. Silva, 2005Silva, R. (2005). A invenção da Psicologia Social.. Petrópolis, RJ: Vozes ).

Em nosso campo problemático, vemos esta lógica de governo e este modo de ver e agir a realidade intervir junto a jovens, geralmente de famílias miseráveis, como um problema dos indivíduos e das famílias: um problema causa sui, que existe por si e para si, realidade autodeterminada e por isso aberrante. As intervenções vêm no sentido da correção e regulação do que nestas pessoas seria como um desajuste individual e familiar, buscando uma inclusão através de mecanismos de inserção na sociedade que se dá por normalizações desses modos de vida. Assim, a intervenção se dá sobre as pessoas e nunca nos processos sociais que contribuem diretamente na produção de tais realidades. Mesmo que se considere que este é um problema do conjunto da sociedade, as ações são organizadas de modo a intervir sobre os indivíduos e famílias, como intervenções civilizatórias, como se a sociedade estivesse chegando aonde supostamente não estaria. É, pois, com as mesmas lógicas hegemônicas de pensar, ver e agir a realidade - lógicas que produzem a pobreza, tanto na maneira de objetivar quanto na produção direta de exclusão e miséria - que a sociedade vai intervir sobre sua margem.

Contudo, na perspectiva de um trabalhador de um dispositivo como o Ação Rua, e dentro de seu campo de ação, nos esforçamos por pensar que estratégias e possibilidades de ação são possíveis para escapar desta lógica normalizante e individualizante, e produzir intervenções que ao mesmo tempo cuidem dos usuários do serviço - jovens e suas famílias - mas também produzam uma intervenção na própria sociedade, ou seja, não estejam desatreladas de sua atribuição política. Uma intervenção no plano relacional da sociedade, em como a sociedade se relaciona com aquilo que faz parte de si, que é fruto de sua própria dinâmica, mas que tem outras feições, feições sociais em estado bruto.

Modos de relação entre a sociedade e sua margem: o bruto social

Qual é o lugar que as vidas nas ruas têm na cidade contemporânea? Na ordem jurídico-política-econômica moderna, vemos que as zonas de miséria estão totalmente incluídas neste modo de sociedade: sua produção é parte inerente do funcionamento da sociedade moderna. Todavia, é por um certo modo de relação que a sociedade investe sobre essas zonas: primeiramente concebe tal margem como excluída de si mesma, como um acidente, uma anormalidade que nada diz da própria sociedade. Dessa forma, é destituída a atribuição política (atributo da polís, produzida na polis) da margem, de sua produção pela lógica inerente da sociedade. Posteriormente, em esta margem sendo pensada como causa de si mesma, ela seria também definida por uma "falta" de sociedade. Assim as intervenções operam através de inclusão regulatória: normalizar aquilo que estaria desajustado a partir de seus padrões, de suas necessidades, como um movimento que visa civilizar os selvagens.

Mangueira (2008Mangueira, M. (2008). Para além das ciências humanas: o pensamento proximal enquanto potência do entre e criação do atual. In L. Escóssia & E. Cunha (Org.), A psicologia entre indivíduo e sociedade (pp. 191-216). São Cristóvão, SE: UFS.) nos ajuda a entender este movimento, como a busca de estabelecimento de uma verdade universal, em uma realidade múltipla. É a expansão de uma forma cultural, um modo de existência, que toma os outros modos por desordenados. O posicionamento da sociedade em relação ao que ela considera externa a si marca um modo de relação: um "pensar sobre", onde o pensamento se dá sobre o objeto, de cima, pensamento atraído para o exterior, que projeta um aprisionamento dos corpos nos padrões sígnicos da sociedade (Mangueira, 2008Mangueira, M. (2008). Para além das ciências humanas: o pensamento proximal enquanto potência do entre e criação do atual. In L. Escóssia & E. Cunha (Org.), A psicologia entre indivíduo e sociedade (pp. 191-216). São Cristóvão, SE: UFS.), de maneira similar com as investidas colonialistas.

A identidade, ou o sentido da identidade que ela atribui a sua margem, é o de ameaça: ameaça biológica, ameaça moral, ameaça estética, o que Foucault (2005Foucault, M. (2005). Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.) chamou de Racismo de Estado. É preciso defender a sociedade frente à ameaça. Isso que estamos generalizando pelo nome de sociedade se expandiu por todo o planeta. Não há hoje nenhum território no planeta que não pertença a um Estado, e não há nenhum Estado que não tenha relação precípua com o capitalismo. As áreas selvagens, hoje, porém, são zonas criadas pelo próprio movimento civilizatório moderno: zonas de miséria, por exemplo. Estas são como um "fora-dentro" da sociedade, que no centro das grandes cidades vai se encarnar na estética da rua.

Tais estéticas são partes já incluídas e fundamentais a este funcionamento social. No entanto, seus padrões estéticos, seus modos de vida não são tão intensamente codificados e normalizados pelas normas oficiais e socialmente aceitas. Na vida de rua, que estamos entendendo fazer parte desta margem, as condições de/da sociedade estariam em uma forma bruta: um bruto-social.

A rua é esse fora dentro na cidade. A rua, como território de vida, é a forma de vida mais distante, mais diferente da cidade, mas que paradoxalmente se localiza nas regiões centrais dos centros urbanos: é um estranho íntimo. Esses modos de vida brutos apresentam em formas mais brutas as relações familiares, econômicas e comunitárias. Ao mesmo tempo que se referem aos modos de sociedade oficial, também os excedem, estando aquém e além deles. As referidas estéticas, tidas como aberrantes, não podem ser menos que uma experiência de risco, não só porque vive no limite de sua própria possibilidade de existência - risco de não mais continuar sendo - como também, e principalmente, porque ameaça a sociedade de ali se arriscar, de ali se precipitar como em um buraco negro. O risco para a sociedade aparece na forma de insurreições, infrações à lei jurídica, mas também, e silenciosamente, como risco de desagregação das formas instituídas da sociedade, infração à lei moral, à lei estética.

O bruto-social é, então, esta zona de existência que escapa, que "excede" à sociedade (Salomão, 2003Salomão, W. (2003). Qual é o parangolé? Rio de Janeiro: Rocco.). A rua, como território existencial (Guattari, 1992Guattari, F. (1992). Caosmose. Rio de Janeiro: 34.), é como um fora-dentro da cidade, uma interiorização de sua margem, que cria uma distância interior e ao mesmo tempo potencial de realização e transformação de outras estéticas, buraco negro que coloca todo o corpo social em risco, em perigo de precipitação, de desfalecimento. Por isso as ações de intervenção frente ao bruto social ganham um caráter de brutalidade. A rua como território existencial, que estamos entendendo como o território de experiência do bruto-social, provoca um choque e coloca em questão as bases de formação de nossa sociedade.

Efetivamente, um impasse se apresenta no momento de real contato com o abismo da rua: é com o abismo de nós mesmos que nos defrontamos quando nos aproximamos da rua. Este impasse e este choque são vividos de várias formas. O modo de relação mais hegemônico é o da relação de guerra, antagonista. Aqui bruto é vivido com brutalidade, onde prepondera a lógica do racismo de Estado, que entende o bruto como uma espécie de deformação ou ameaça à vida. Nas intervenções do Estado, temos dois sentidos de ação antagonistas: a primeira, que busca o extermínio direto do sujeito que manifesta o bruto, seja pela prisão, seja pelo assassinato, pelo sequestro; ou a ação de "salvação", que busca recuperar o sujeito, a partir de ações de inclusão, ensino de virtudes, que depende de todo um arrependimento do sujeito, de um reconhecimento de sua "culpa". Esses dois tipos de ação, embora muito diferentes, têm como base comum a vontade de eliminação da diferença que o bruto introduz no cenário urbano.

Mas entendemos que há uma terceira via de relação, que não estaria na lógica da guerra, na lógica do racismo de Estado: um modo de relação de composição ou contágio. Neste, a diferente não é algo a ser eliminada, mas algo com o que preciso compor, trocar. E isso para meu próprio fortalecimento. Seria justamente tal possibilidade de troca, de convivência, de compartilhamento a grande questão para o cuidado com a rua, como veremos à frente. Nas ações da Política de Assistência Social estão presentes de maneira muito próxima tanto modos de relação que engendram ações de guerra, como modos de relação que engendram ações de composição e contágio com a diferença. Ambos os modos de relação cabem nas estruturas discursivas dos textos das políticas de Estado, ambos os sentidos coabitam um dispositivo como o Ação Rua. Como lidar com esta forma bruta da sociedade sem brutalidade, própria aos extermínios diretos ou indiretos da sociedade?

Relações prepositivas entre a ação e a rua: efeitos de cuidado e controle e a construção de pontes

Para pensarmos os modos de relação no dispositivo Ação Rua, nos utilizamos da ausência de preposição no nome do serviço, para evidenciarmos modos de relação possíveis entre a ação do serviço e o território existencial da rua. A partir de cenas advindas do diário de campo, fazemos uma análise dos sentidos de relação na cena, como forma de abordar a experiência concreta no dispositivo. A preposição serve para denotar sentidos de relações entre a "ação" e a "rua", servindo de demonstrativo do modo da relação.

A preposição que caracteriza dada relação é determinada pelas conexões que se atualizam entre os termos presentes. Relações interferem, surgem em meio a uma cena. Vetores se fazem presentes, brilham e se apagam, ou aparecem e mudam a inflexão da cena. As relações prepositivas são representadas neste texto pelo símbolo "< >", que indica uma relação de coemergência entre os dois termos. Em determinada relação prepositiva, outras relações podem se fazer, e aqui elas aparecerão a partir também do símbolo "< >". Assim, montamos a seguinte equação: ação (sujeito da intervenção) <relação prepositiva> rua (objeto da intervenção). Para este artigo, nos centramos em dois grandes sentidos de relação.

Ação <sobre/contra> a rua

A ação <sobre>, em um primeiro momento, afasta o objeto de intervenção, exteriorizando-o, separando-se dele, para colocar-se como hierarquicamente superior. Neste modo de relação, a perspectiva do sujeito que intervém é tomar o objeto de intervenção como já dado, dotado de uma essência, independente da perspectiva que o coloca em análise. Uma ação <sobre> a rua tenta dar conta da totalidade da rua, rebatendo-a à multiplicidade dos códigos, das normas e das concepções que a ação considera mais legítimos. A ação <sobre> julga a experiência daqueles que habitam a rua, de suas famílias e de tudo aquilo que considera marginal, a partir de suas próprias bases perceptivas, mantendo-se externa e protegida do campo que intervém. Uma ação <sobre> é inseparável de outro modo de relação ao qual se associa e que toma a intervenção <sobre> a rua como guerra, em uma ação <contra> a rua. A rua, como estética presente nas vidas marginais, precisaria, neste sentido, ser extirpada. Ação <contra> a rua é uma ação de oposição à rua. Entendendo a rua como agente patogênico, tal ação engendra intervenções que visam à exclusão dessa dimensão: "Tirar a rua de dentro dos meninos" é como "expulsar o demônio dos corpos".

Miguelito decidiu pela internação após quatro meses de acompanhamento. Ao chegarmos ao plantão psiquiátrico, mecanismo pelo qual era solicitada uma vaga de internação, a psiquiatra começa a triagem sem olhar para nós: para Miguelito, para mim e para a colega Clara. Ela pergunta o que aconteceu. Explicamos que Miguelito queria internação por uso de crack, que estava morando na rua há seis meses. Ela pergunta a frequência do uso. Miguelito não sabe dizer, mas diz que gasta cerca de R$ 50 por dia com crack. Ela pergunta como ele ganha tanto dinheiro. Ele diz que pedindo. Ela fala que ele está mentindo e que, se usasse tudo isso, estaria morto. Explicamos a ela que o crack não mata assim, pois é sempre misturado a outras substâncias. A psiquiatra fala então que Miguelito é "muito otário" , pois não sabe o que está usando. Clara responde que ele não é otário, mas uma criança, e que todo crack, hoje em dia, é assim. A psiquiatra lê o prontuário de Paolo, irmão de Miguelito, que estava internado na Clínica São João, e diz que ele só foi internado porque tinha situação de exploração sexual. Ela fala isso na frente de Miguelito, ao que protestamos, já sem paciência, dizendo que aquele não era o momento de falarmos disso. Ela reage dizendo que não vai encaminhá-lo à internação, pois crack se trata ambulatorialmente. Concordo, mas peço então para que ela nos indique um lugar onde Miguelito pode se tratar, porque nós, que trabalhamos com isso, não sabemos. Ela responde que também não sabe e que o menino precisa então de um "internato". Perguntamos a que serviço ela se referia. Ela não sabe responder e liga para o Juiz Bruno, dizendo que vai encaminhá-lo para a Justiça decidir sobre a sua situação. Insistimos na continuidade da negociação - pois sabíamos que se tratava de uma difícil negociação - e afirmamos que ela não havia escutado a situação de Miguelito e que não podia fazer esse encaminhamento. Ela fala que Miguelito só quer ir para a Clínica São João porque lá tem piscina. (Diário de campo, junho de 2007)

A ação <sobre/contra> acabava por apressar as análises e direcionar a intervenção como forma de achar um culpado para a situação. Quando não era a família, era o próprio jovem, quando não o jovem, o profissional. No prontuário de Miguelito no Ação Rua, muitas vezes estava descrita tal relação: "O adolescente não aceita nenhum encaminhamento, nossas ações estão esgotadas". Seguia essa descrição a conclusão de que o jovem não aderia às propostas, não havendo, então, o que ser feito. A ação <sobre/contra> rua só pode ver resultado na saída do menino da rua.

Esta ação <sobre/contra> fala do modo como é vivido o tempo. Um tempo de urgência por resultados, números, e também de urgência pelo horror que causa a situação de rua - horror através do qual as ações <sobre/contra> rua se engendram. É para passar bem depressa pela rua, não se contaminar com ela. Uma ação <sobre/contra> que é vivida em um tempo emergencial. Tais ações se dão pela urgência e gravidade da situação que os meninos se encontram, e urgência da cidade em limpar as ruas.

Os casos da rodoviária estavam sempre inseridos em dispositivos de justiça, psiquiatria e polícia. A medicalização e a judicialização como o controle por excelência, nesse ecossistema, se atualiza quando a intervenção do Ação Rua a estas se associa, quando não as coloca em questão e quando, de certa forma, não luta <com> elas.

Podemos ver que essa ação <sobre/contra> que se associa e se fundamenta em uma oferta pobre de serviços alternativos para essel tipo de situação, também se dava por certa relação com a droga. O crack era outro elemento considerado culpado pela situação dos meninos, sendo que toda questão que não o crack vira segundo plano. Esse modo de ação <sobre/contra> centra-se na droga, na tal "desintoxicação", e acaba judicializada, tornando a institucionalização a única possibilidade.

Uma ação <sobre/contra>, a ação de violência que não se implica em sua própria ação, exacerbada pela pobreza de tecnologias da rede, longe de alcançar o objetivo de limpeza da rua, só faz exacerbar a cronificação dos casos de rua-moradia, atraindo para seu contexto ações ainda mais violentas. A simples demanda por limites produz intervenções, pelas quais esses "limites" devem ser ainda mais rígidos. Em não se resolvendo a situação de rua na rodoviária, no tempo e da maneira que as ações <sobre/contra> tentavam resolver, a Polícia Militar era chamada - e na rodoviária se fazia presente, em operações de "limpeza".

Por duas vezes fui abordado pela Polícia Militar na rodoviária. Na primeira vez, quatro policiais chegaram até mim, quando conversava com alguns meninos, e perguntaram quem eu era e o que fazia ali. Expliquei minha função e o serviço que trabalhava. O capitão do grupo então falou que, se nós não iríamos tirar os guris de lá, eles iriam arranjar um argumento para isso. Em outra ocasião, encontrei novamente um dos soldados que me havia abordado. Novamente estava conversando com os guris, que saíram correndo quando o avistaram: "Olha o Nego Brites aí! Corre!". O soldado chegou até mim, conversamos, e ele falou: "Difícil esse trabalhinho de vocês, hein?!" Ao que respondi: "É... parecido com o teu!". Ele responde: "Não! No meu eu não tenho que convencer ninguém". (Diário de campo, maio de 2007)

Diversas ações e instituições se encontram com a situação de rua da rodoviária. Em minha prática, notava o perigo de me aliar e exercer um modo de relação que aqui estou caracterizando por ação <sobre/contra> a rua. Uma linha tênue separava esse tipo de ação de outra. O que distingue minha ação da ação do "Nego Brites"? Em princípio, nós dois estaríamos lá como agentes do Estado, vendo aquela situação dos meninos como um problema. Os meninos fogem ao verem Brites, mas não ao me verem. Eu não posso, não devo, não quero levá-los à força, como podia e queria o capitão da Brigada. Sem dúvida, havia a construção de uma relação de confiança de nós para com os meninos. Mas o que importa é de que maneira e a serviço de que essa confiança se fará. Podemos, Brites e eu, habitar o mesmo espaço de trabalho e, mesmo sendo de instituições diferentes, estar a serviço da mesma coisa, a limpeza da rodoviária, uma ação <sobre/contra> a rua. O que determina a maneira como estabeleceremos a relação com os meninos é a temporalidade produzida e experimentada naquele local, e também a qual demanda estaremos atendendo e priorizando, qual vai ser nosso modo de ocupar e nos posicionar naquele território. Esse modo de habitar o tempo, o espaço e direcionar o corpo e as ações vai influenciar diretamente na composição daquele território existencial, nossa parcela na sua constituição. A temporalidade de Brites é do imediato, ele tem como objetivo atender às demandas do dono da rodoviária, e não precisa de muito tempo para executá-la. Ele não tem de convencer ninguém, não depende do outro. Eu posso trabalhar na via do convencimento, mas em uma temporalidade de igual urgência, atendendo, de uma forma ou de outra, à demanda do dono da rodoviária.

Posso, contudo, operar em outra temporalidade que acompanha o tempo do processo, aceitando que o resultado do meu trabalho também depende de um outro. O que diferencia meu trabalho do de Brites é a possibilidade de conexão com o outro a partir da temporalidade própria dos processos afetivos, de construção de pontes que permitam deslocamentos subjetivos: o que obriga também um deslocamento de minha parte, já que essa relação é uma via de mão dupla (ou múltipla), e não de mão única, como uma ação <sobre/contra>.

Se a intervenção, nesse âmbito, não leva em conta e não implica todo um modo de funcionamento que produz miséria e violência, não questiona sua própria função e visa atender a uma demanda que é muito mais da sociedade, em relação à situação de rua - essa intervenção será uma intervenção <sobre/contra> a rua. Se a ação se centra <sobre> o usuário e <contra> a rua, ela só vai reproduzir e acrescentar ao cenário da rua mais violências. De início, o trabalho do Ação Rua deve ser, então, não apenas com os usuários, mas com tudo o que se relaciona e se encontra na rua.

A todo o momento há um tribunal social julgando a experiência da rua. Se, no tribunal, é necessário controlar a experiência, apostamos numa prática de cuidado que quer dar passagem à experiência, quer cuidar e não controlar a experiência da rua. Como falou a supervisora e colega, Lisiane Vargas (comunicação pessoal, julho de 2004): "No trabalho com situação de rua-moradia no Centro, não contamos com a família. É só o solicitante impessoal, querendo dar comida aos porcos... a fome da gurizada não é disso!". Acompanhar essa fome, legitimá-la, ouvi-la, penso, é uma possibilidade de real construção de alternativas à situação de rua.

Ação <com/pela/na> rua

Em meio à diversidade de relações, também existiam outros modos que fugiam aos efeitos de sobrecodificação e guerra e que iam na direção de estar <com> a experiência do bruto, em meio a ela, buscando alternativas à rua dela, por ela. É o que aqui chamamos de ação <com/pela/na> rua.

A ação <com> a rua trazia relações de companhia, de presenciar o que na rua se agenciava. Esse acompanhar a rua era acompanhá-la nos meninos, em seus gestos, em suas inclinações, em suas práticas. Estar <com> era estar ao lado, não exatamente se confundir com, mas trocar com a rua, diferenciando-se dela ao mesmo tempo. Tal acompanhar só se pode fazer <na> rua, habitando esse território existencial. E esse estar ao lado e habitar não tinha um sentido meramente contemplativo, embora exigisse uma espera: era para agir <pela> rua, através de seus elementos, para produzir outros efeitos nas vidas que nela habitavam. O que passava necessariamente por produzir efeitos no agente do cuidado. Era a construção de um olho da rua e sua utilização no sentido do cuidado, que cultivava as formas ali presentes, e não outras exteriores, como modelos inalcançáveis.

Ação <com/pela/na> rua era uma ação que não somente se dava nas ruas, mas uma ação de contaminação com a rua e um agir através dessa contaminação. Ela pressupunha a constituição de um espaço na rua e com a rua, o que queria dizer um espaço e uma temporalidade diferencial na rua, mas que podia transitar, estar junto de sua dinâmica.

Em um primeiro contato com os meninos, nossa presença era menos "diretiva". Nos aproximávamos, nos apresentávamos, jogávamos conversa fora. Para um primeiro contato, ficávamos ao lado, olhávamos nos olhos, ficávamos em silêncio. A aproximação era natural. Não precisávamos chamá-los. Eles pareciam nos escolher, vir até nós. Daí se iniciava um contato. Depois de algum tempo de uma convivência que não tinha nem uma direção nem uma função muito definidas, sendo apenas um estar presente, os meninos já nos conheciam pelo nome, e nós a eles. Somente depois de algum tempo de convivência com Paolo, pudemos saber melhor o que ele sentia de tudo o que lhe havia ocorrido até chegar à rodoviária. Paolo fala de sua casa e de sua mãe. Assim, nos momentos em que sentíamos que ele estava parando para ver como se fazia seu cotidiano, aí entravam intervenção que questionavam o que ele fazia ali, se ele queria aquilo mesmo. Mas isso exigia uma desaceleração, um silêncio, um contato com os afetos que Paolo sabia habitar. Eram muito raras conversas como essas que tínhamos com ele. Em geral, a gurizada não parava para conversar dessa maneira. A comunicação se dava basicamente em um código não verbal ou por uma conversa que não era diretamente um discurso de nossa parte. Era muito mais uma postura de atenção e respeito. (Diário de campo, março de 2007)

Criar esse tipo de conversa na rua dependia de um deixar acontecer. Só nos era exigido um real interesse neles e uma postura não refratária aos seus modos, aos seus gestos, ao seu linguajar. Também era necessário sentir os movimentos aglutinadores e dispersivos, a hora de falar mais sério, a hora de deixar que interferências entrassem na conversa e a hora de não deixar.

Habitar a rodoviária para mim, de início, não era muito fácil. O barulho, a passagem dos transeuntes, o olhar desconfiado das pessoas para nós, as eventuais brigas, furtos, o calor ou o frio, em um primeiro momento não me permitiam permanecer muito tempo. Sentia que ia ficando cansado e mais dispersivo, e que a conversa com os meninos não levava a nada. Na rodoviária estava a situação de rua mais exposta, onde mais riscos estavam envolvidos: tráfico, prostituição, violência policial. Ao ir habitando a rodoviária, passei a me sentir mais à vontade. A rodoviária se tornou por momentos também um território nosso. Comecei a sentir um prazer de estar ali, em um objetivo bem diferente do da maioria das pessoas que por ali passavam. Talvez fosse isso. Além dos meninos, só nós, trabalhadores, ficávamos algum tempo ali. Todos que passavam queriam sair dali o mais rápido possível ou estavam interessados em negócios, vendas, corridas de táxi. Sentia que, em meio a um movimento que não permitia parar, eu conseguia ficar ali e ver os movimentos de constituição da cidade, seu movimento. Ver era poder observar e entender a formação do ambiente: o medo que as pessoas tinham dos meninos, a forma como, usualmente, se habita a rua: com um máximo de evitação possível. (Diário de campo, junho de 2007)

A constituição de um espaço na calçada, um espaço naquele ambiente, era condição para construirmos pontes entre a rua e outros espaços existenciais para os meninos - e para nós mesmos. Constituir um espaço de cuidado na rua requer um dinamismo e uma capacidade de habitar e conjugar temporalidades diferentes. O cuidado tem uma temporalidade, uma marcação do tempo diferente do tempo da rua. Ele não tem a urgência de resultados da ação <sobre/contra> rua, mas também não tem o tempo instantâneo <da> rua, produtor de constante desvio e esquecimento. Ele, na verdade, deve jogar com essas duas temporalidades.

Quando conheci Piloto, tive uma ideia mais ou menos pronta <sobre> ele. Piloto "pilotava" os guris na rodoviária, ele comandava as ações conjuntas, como roubos, busca de crack, etc. Ele tinha 14 anos. Seu prontuário dava a entender que era incapaz de criar um vínculo. A velocidade que ele ganhava nas calçadas tornava muito difícil o acompanhamento na rua. Piloto, que adorava xingar e provocar os policiais, e havia sido preso por eles. A pedido de colegas, fui acompanhar sua audiência na Justiça Instantânea. Piloto estava há sete anos na rua. Passamos a acompanhar Piloto em todos os espaços onde ele acabava sendo levado: na rua, nas internações, nas clínicas por ordem judicial. Certa vez, na delegacia da criança e do adolescente, começamos uma conversa muito franca com o menino. Dissemos que entendíamos seu desespero e que ele mesmo sabia melhor que qualquer um o que é passar por internações. Falamos também que isso já estava muito recorrente, e que precisaríamos parar com essas idas e vindas de alguma forma. Na rodoviária ele poderia estar em perigo vivendo daquele jeito. Ana Flor, Piloto e eu conversamos, brincamos. Pelo "papo reto", pelas brincadeiras que fizemos um com o outro, Piloto se ligou a nós, e nós a ele. Nos surpreendemos com a capacidade afetiva de Piloto, com a sua abertura para a relação. Nessa situação crítica, ali mesmo contratamos um acompanhamento com Piloto. Ele pergunta se iríamos visitá-lo todos os dias. Combinamos três vezes na semana. Ele topou. A partir daí, Piloto passou a frequentar outros espaços da rede, passando por processo de volta para a casa, volta para a rua. Em todos esses momentos estivemos presentes. Isso possibilitou que ele pudesse se inserir em outros espaços na sua comunidade de origem: na casa da mãe, nas atividades do Centro de Referência de Assistência Social, em atendimentos no Centro de Saúde. Locais não só ligados à justiça ou a internações compulsórias. (Diário de campo, setembro de 2007)

O acompanhamento se configurava em um dos poucos, mas valiosos, recursos que tínhamos frente à precariedade da rede de proteção para nossos usuários. A frieza dos espaços tinha de ser combatida com o acompanhamento, o que fazia deste uma postura, parte de uma ética que transitava e que permitia que o menino transitasse. Só nossa presença nos espaços por onde passavam os guris fazia com que não se sentissem tão abandonados. Era preciso fazer travessias cuidadosas por entre os abismos sociais, por entre diferenças de regime de cada espaço: falar com juiz, policial, traficante, familiar, transeunte. Era preciso construir pontes de comunicação com os mais variados atores, as quais permitissem a travessia entre as distâncias abissais de entendimentos, visões de mundo, objetivos, desejos, possibilidades.

Conclusão: Ação <> Rua

Todos esses modos de relação mencionados se estabelecem ocorrendo em concomitância, paralelismo e coengendramento. Porém, em meio à diversidade de sentidos e relações que agem num processo simultâneo, é necessário um movimento, um esforço, uma postura de distinção dessas linhas relacionais.

No imediato da experiência, a relação entre ação e rua é sempre ação <> rua. Há um espaço de determinação do sentido da relação, e do efeito a ser produzido, que está em branco, e que só acontece no desenrolar da experiência, não estando dado de antemão. Tal complexidade de relações faz da tarefa do cuidado também uma tarefa de trabalho na relação consigo mesmo. Como se situar em um contexto multifacetado, onde os efeitos se distinguem de modo sutil, não formal, onde os pressupostos que nos constituem como sociedade a toda hora se fazem ao mesmo tempo presentes e colocados em questão?

A ação <> rua fala que isso que estamos chamando de sentido da relação não está determinado previamente. Há uma dimensão da experiência que não admite análises prévias. Todos esses modos de relação descritos acima só foram passíveis de serem analisados a partir de uma memória, a partir de um já vivido.

Contudo, é no imediato que a relação acontece. Assim, entendemos que, antes da definição do sentido da relação entre ação e rua, há uma relação anterior, primeira: é a experiência <> do vazio, é a relação de si para si. Nessa relação de si para si se decide, muitas vezes, o nosso posicionamento no tempo/espaço da relação <sobre/contra> ou <com/pela/na> rua. A maneira como se lida com esse espaço em branco é o que possibilita que uma ação seja cuidado, cultivo... ou seja controle, sobrecodificação, adaptação. Dependendo da direção que se dá à experiência, ações de controle, de violência, em que podemos desejar, frente ao terror e à ameaça que representa o outro desconhecido e estranho, eliminá-lo. Por isso, esse lidar com o espaço em branco na experiência é anterior às relações de cuidado ou controle. Ele será um de seus engendradores. Dependendo da maneira como se habita tais espaços "vazios" que o bruto produz quando o acessamos, da maneira como se manejar o choque com o vazio, serão direcionadas as práticas e as relações entre os sujeitos da ação e a rua.

Nesses momentos/lugares entramos em contato com a dimensão pré-refletida e pré- individual da experiência. Certamente, essa dimensão está sempre presente, mas há um momento em que ela assalta à consciência, salta aos olhos e dissolve a razão e as palavras. Como nos orientarmos nesses momentos/lugares?

Só por uma sensibilidade do cuidado, que paradoxalmente é estar em si e não estar, que podemos entrar nessa linha de fronteira difusa. Ir em direção a tais situações é conectar-se com o abismo que nos une, escapando da ilusão de segurança. É, em um primeiro momento, oferecer o corpo a essa experiência. O acompanhamento pede uma doação que empresta o corpo às dores que atravessam esse ambiente da rua. Um corpo que se presta à reverberação é um corpo com habilidade para habitar o silêncio dessa dimensão bruta da experiência.

A ética é, então, o que nos orienta nessa experiência indeterminada. O ethos é a arte de se tecer na experiência. É uma atitude em meio à experiência, condicionada por ela. Ética e experiência, assim, se dão em conjunto, a um só tempo, como um acorde melódico. A ação <> rua é uma relação de fronteira eu-outro que nos indica a direção da relação: o contágio, a composição agonista sendo manejada por uma atenção ao exterior, mas ao mesmo tempo uma atenção a si. Essa atenção na fronteira eu-outro, eu-mundo, chamamos de construção de pontes.

O "campo do social" do qual faz parte a política de assistência social é um campo de tensão. Tenso porque marcado por contradições - acumulação de capital versus distribuição de renda, ordem econômica versus ordem política, vidas "normais" versus formas consideradas "anormais". Tenso porque, ao encontrar seu outro, a sociedade parece ficar em risco: risco de nesse encontro se perder, como num buraco negro, em suas formas brutas. Essa tensão é exacerbada e se transforma em brutalidade quando a sociedade estabelece certos modos de relação com seu bruto: relação antagonista, posição de superioridade hierárquica e impressão de categorizações determinísticas e produtoras de "sujeitos faltosos". Por todo um modo de funcionar, a sociedade lida com esse bruto a partir do "horror", que gera tanto intervenções de extermínio direto quanto intervenções que buscam normalizar, tendendo a erigir uma verdade acerca desses modos de vida - verdade exterior à experiência daqueles sobre os quais a sociedade intervém.

Conjugar, construir pontes necessariamente fazia com que nos contaminássemos com a rua, com o discurso do serviço, com muitos elementos ali presentes, o que produzia uma desorientação a partir do bruto e da brutalidade ali e principalmente pelas contradições na constituição de uma prática mesma do campo do social. Para agirmos, era preciso sair dos impasses sem renunciar aos pontos contraditórios. Os impasses deveriam ser vividos menos como contradições e mais como espaços vazios entre paradoxos que possibilitavam criações de novas posturas, políticas, ações - paradoxo presente no dispositivo: cuidado e controle.

Dobrar as forças em si, manear as forças. Essa relação de si para si é uma criação de sua própria existência que deriva da relação com o mundo e do movimento de libertação dessas relações - nem ignorá-las totalmente, nem totalmente submeter-se a elas. É um duplo movimento, próprio da criação: receptividade e atividade. E o que seria o cuidado se não uma prática, um modo de estar em relação que viabilize metamorfoses, que cultive novas formas de ser/estar no mundo?

Referências

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  • Silva, R. (2005). A invenção da Psicologia Social.. Petrópolis, RJ: Vozes
  • 2
    Iacã Machado Macerata é psicólogo, graduado em Porto Alegre-RS, trabalha desde 2004 com Clínica, políticas públicas para a população em situação de rua e pesquisa acadêmica. Atuou nas políticas de Assistência Social e Saúde como psicólogo e Gestor, implementou dois serviços para a população de rua. Atua como Clínico e acadêmico. Desde 2008 vive no Rio de Janeiro, onde fez seu mestrado na Universidade federal Fluminense e onde faz seu doutorado, no programa de pós-graduação em Psicologia, sob a orientação do Dr. Eduardo Passos.
  • 3
    Eduardo Passos é professor adjunto da graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.
  • 1
    Todas as histórias citadas foram autorizadas mediante "termo de consentimento livre e esclarecido" pelas pessoas envolvidas. Tal termo e a devida autorização da utilização das histórias foram aprovados pelo Comitê de Ética em pesquisa da Secretaria Municipal de Assistência Social do município de Porto Alegre. Os nomes mencionados são fictícios, embora as cenas descritas remetam a fatos reais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2013
  • Revisado
    08 Ago 2014
  • Aceito
    25 Out 2014
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