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PERSPECTIVAS ANALÍTICAS E PROGRAMAS DE PESQUISA SOBRE A COOPERAÇÃO SOCIAL

PERSPECTIVAS ANALÍTICAS Y PROGRAMAS DE INVESTIGACIÓN SOBRE LA COOPERACIÓN SOCIAL

ANALYTICAL PERSPECTIVES AND RESEARCH PROGRAMS ON SOCIAL COOPERATION

Resumo:

Este artigo examina formatos teóricos que rivalizam em sua forma de explicar a cooperação social. São expostas duas perspectivas teóricas distintas, através das pesquisas de Jean Piaget e de autores da Teoria da Escolha Racional. Enquanto a primeira compreende a cooperação a partir da evolução das estruturas cognitivas morais, a segunda vê-la como resultado da coordenação dos interesses de atores racionais. Após a exposição de recentes publicações no âmbito da cooperação, são expostas e comparadas as principais perspectivas teóricas já mencionadas, identificando seus aportes à compreensão do fenômeno cooperativo, seus pontos de convergência e de distanciamento. Elencamos os principais programas de pesquisa que têm dado desdobramento às premissas teóricas de Piaget e dos autores da Teoria da Escolha Racional.

Palavras-chave:
cooperação; racionalidade; Piaget; teoria da escolha racional; arranjos cooperativos.

Resumen:

Este artículo examina marcos teóricos que rivalizan en su forma de explicar la cooperación social. Son presentadas dos perspectivas distintas, a través de las investigaciones de Jean Piaget y de autores de la Teoría de la Elección Racional. En cuanto la primera entiende la cooperación a partir de las estructuras cognitivas morales, la segunda la ve como el resultado de la coordinación de intereses de actores racionales. Después de exponer publicaciones recientes en el ámbito de la cooperación, son presentadas y comparadas las principales perspectivas teóricas ya mencionadas, identificando sus aportes a la comprensión del fenómeno cooperativo, sus puntos de convergencia y de distanciamiento. Enumeramos los principales programas de investigación derivados de las premisas teóricas de Piaget y de los autores de la teoría de la elección racional.

Palabras-clave:
cooperación; racionalidad; Piaget; teoría de la elección racional; dispositivos cooperativos.

Abstract:

This article examines theoretical frameworks that rival in his way of explaining social cooperation. Two different perspectives are presented through research of Jean Piaget and authors of the rational choice theory. As the first means cooperation from the moral cognitive structures, the second sees it as the result of coordination of interests of rational actors. After presenting recent publications in the field of cooperation, are exposed and compared the main theoretical perspectives already mentioned, identifying their contribution to the understanding of cooperative phenomena, their points of convergence and distancing. We list the main research programs derived from the theoretical premises of Piaget and the authors of the rational choice theory.

Keywords:
cooperation; rationality; Piaget; rational choice theory; cooperative arrangements.

O tema da cooperação em recentes pesquisas sociológicas

No intuito de identificar as recentes discussões teóricas relacionadas ao problema da cooperação social, foi realizado, a partir da base de dados Sociological Abstracts da Universidade de Cambridge, um levantamento bibliográfico das recentes pesquisas publicadas sobre essa problemática. Assumindo como critério de busca os artigos publicados entre os anos de 2005 e 2010, e que continham os termos 'cooperação' e 'racionalidade', foram encontradas 392 publicações, dentre as quais somente 83 abordavam o tema cooperação social de um ponto de vista sociológico. A análise dos abstractsdesses 83 artigos permite a distinção de determinadas perspectivas teóricas. Os dados evidenciam a predominância do tema da confiança nos artigos publicados (18% ou 15 artigos), cujas abordagens indicam a forte associação de tal aspecto ao fenômeno da ação coletiva ou cooperação. Os temas relativos à solidariedade e à identidade grupal também foram encontrados em 8 artigos e, com a mesma frequência, destacam-se referências às pressões sociais, como ameaças, controle e julgamento moral, enquanto variáveis explicativas do fenômeno cooperativo.

Entre as demais referências teóricas, destacam-se os trabalhos que dialogam com a Teoria da Escolha Racional (TER), ora se apoiando em suas premissas para explicar a cooperação, ora identificando seus limites na sua compreensão. Uma vertente da TER, a Teoria dos Jogos, também foi frequentemente mencionada (6 artigos), além de ser fonte para a elaboração de experimentos e simulações computacionais, conhecidos como sistemas adaptativos complexos (SAC's).

A análise dos resultados ainda chama a atenção para três termos específicos, tanto pela frequência com que aparecem nos abstracts, quanto pelo vínculo que estabelecem com o problema de pesquisa: a confiança, os dilemas sociais e a ação coletiva. O tema da confiança, além de ter sido trabalhado de forma sistemática em 15 artigos, também foi aludido em mais 6 outras publicações. Já os 'dilemas sociais' e a 'ação coletiva' foram citados, respectivamente, em 13 e 6 abstracts. Enquanto a última expressão pode ser considerada um sinônimo da cooperação, os dilemas sociais e a confiança são questões pertinentes à reflexão sobre a racionalidade e a agência cooperativa. Sem o intuito de aprofundar nesses temas no presente momento, ainda que tenham relevância na compreensão de nossa problemática, seguimos para a exposição de marcos teóricos específicos que rivalizam na tentativa de explicar a cooperação, iniciando com a análise das proposições de Jean Piaget (1932/1994Piaget, J. (1994).O juízo moral na criança. São Paulo: Summus Editorial. (Original publicado em 1932)).

A cooperação como evolução das estruturas cognitivas morais: contribuições de Jean Piaget

Os estudos do psicólogo Jean Piaget, relacionados à compreensão da evolução da consciência e do julgamento moral infantil, através do desenvolvimento das estruturas cognitivas ao longo da idade, apresentam conclusões importantes ao entendimento do fenômeno da cooperação. Em sua obra "O Juízo Moral na Criança" (1932/1994Piaget, J. (1994).O juízo moral na criança. São Paulo: Summus Editorial. (Original publicado em 1932)), Piaget expõe que os princípios normativos inicialmente se estabelecem como leis dadas, já estabelecidas, incognoscíveis pelas crianças que as catam sem questioná-las. Adotando o método de observação dos jogos infantis, especificamente o jogo de bolinhas, permeado por inúmeras e variadas normas, Piaget analisa o comportamento infantil segundo faixas etárias, nas escolas de Neuchâtel e Genebra, obtendo resultados referentes a duas dimensões de análise: (a) prática e aplicação das regras e (b) consciência ou forma de compreensão infantil sobre as normas.

Por meio da referida pesquisa empírica, Piaget identificou diferentes estágios de consciência moral e, decorrente deles, distintas formas de interação social que podem ser relações de coação, correspondentes à heteronomia moral, ou interações de cooperação, advindas da autonomia moral. Ligando esses dois pontos extremos, Piaget aponta um processo de desenvolvimento cognitivo infantil em função da idade: quanto mais velhas as crianças, mais propensas estão ao agir cooperativo, baseado na reciprocidade e no respeito mútuo, possibilitando a formação de consensos e regras razoáveis a todos os atores sociais envolvidos. Tal processo pode ser melhor compreendido a partir da identificação de diferentes estágios sobre a prática e consciência da regra, identificados pelo psicólogo.

No que diz respeito à prática da regra, quatro estágios são identificados: (a) motor e individual, (b) egocêntrico, (c) cooperação e (d) codificação das regras. No estágio (a) motor e individual, a criança joga de acordo com os seus próprios desejos e hábitos motores através de simples práticas regulares e individuais. A criança busca adaptar seus esquemas motores já existentes à nova atividade, cuja natureza ainda é desconhecida e posteriormente será assimilada. Reforça-se o processo de acomodação e assimilação frente a novos objetos, neste caso exemplificado mediante o jogo de bolinhas. Mesmo após os momentos de adaptação motora, o jogo continua desconexo de qualquer regra e se insere na fantasia infantil.

No segundo estágio, (b) egocêntrico, vê-se que, dos dois anos em diante, a "criança recebe do exterior o exemplo de regras codificadas" (Piaget, 1932/1994Piaget, J. (1994).O juízo moral na criança. São Paulo: Summus Editorial. (Original publicado em 1932), p. 33) induzindo-a ao ato de jogar para si própria, sem se preocupar em jogar com outrem, simplesmente imitando o exemplo dos maiores. A criança, influenciada pelos adultos ou pelas crianças maiores, passa a executar as regras como bem entende e, dada sua relação assimétrica com o outro, se isola de um comportamento social e da possibilidade de controle mútuo da regra: ela coloca em prática aquilo que aprendeu da regra, jogando conforme lhe convém. Nenhum indivíduo procura vencer o outro, pois a ideia de ganhar ou perder é relativa à concepção de cada um.

No (c) estágio da cooperação, característico a partir dos sete ou oito anos, as crianças começam a almejar a vitória sobre seus colegas, de onde surge a necessidade da codificação única das regras do jogo, permitindo o controle mútuo entre os participantes. O foco de diversão do jogo deixa de ter origem na adaptação motora ou no egocentrismo para recair sobre um comportamento genuinamente social: "É somente a partir do presente estágio que uma real cooperação se estabelece entre os jogadores. Anteriormente cada um jogava para si" (Piaget, 1932/1994Piaget, J. (1994).O juízo moral na criança. São Paulo: Summus Editorial. (Original publicado em 1932), p. 46). Nessa fase observa-se a maior e constante busca pela descoberta de regras fixas,ainda que esse processo se encontre em desenvolvimento, culminando somente no estágio subsequente, com a verificação de um completo acordo acerca das leis.

Por volta dos onze a doze anos a criança chega ao estágio da (d) codificação das regras, quando o código jurídico é conhecido por todos os indivíduos, interessados pela regra em si mesma. Verifica-se uma congruência muito precisa nas condutas infantis quanto às regras: "Os meninos de uma mesma classe escolar dão, de fato, aos onze e doze anos, informações de notável concordância, quando inquiridos sobre as regras do jogo e suas possíveis variações" (Piaget, 1932/1994Piaget, J. (1994).O juízo moral na criança. São Paulo: Summus Editorial. (Original publicado em 1932), p. 34). A diversão do jogo reside não somente no comportamento cooperativo, referente ao estágio anterior, mas também na previsão de todos os possíveis casos do jogo e suas codificações: nota-se uma jurisprudência organizada e esquematizada, a apreciação da regra pela regra.

Consideradas as diferentes fases relativas à dimensão prática das regras, Piaget propõe estágios de consciência da regra, ou seja, a forma como a criança compreende e participa da formulação de um princípio normativo. Nesse âmbito se distinguem estágios da (a) regra motora, (b) da regra coercitiva e da (c) regra racional. A tabela 1 mostra-nos a correspondência entre as fases da prática e da consciência da regra.

Tabela 1:
Piaget - correspondência entre estágios da prática e da consciência da regra

No que concerne à consciência da regra, o primeiro estágio, a (a) regra motora ou pré-coercitiva, corresponde diretamente à primeira fase da prática das regras, isto é, o estágio motor e individual. Nesse momento a regra ainda não é coercitiva, seja porque é motora ou porque é suportada como um exemplo. O(b) estágio da regra coercitiva inicia na fase egocêntrica, para terminar na primeira metade da cooperação. Neste contexto, a "criança, por imitação ou por contato verbal, começa a querer jogar de acordo com as regras recebidas do exterior" (Piaget, 1994Piaget, J. (1994).O juízo moral na criança. São Paulo: Summus Editorial. (Original publicado em 1932), p. 52). Porém, dada a sua relação desigual e assimétrica com os mais velhos, levando à aceitação de algo por imposição e não por reciprocidade, o conhecimento lógico e racional de determinada regra é intangível. A regra assume um caráter sagrado e imutável, pois ela é vista pela criança enquanto algo descendente de seus pais, que, por sua vez, aprenderam com seus pais, e assim sucessivamente. Qualquer modificação ou inovação de pressupostos normativos seria uma transgressão de algo estabelecido em sua origem. Neste estágio verifica-se também uma denotação egocêntrica, em que a criança faz aquilo que deseja. Trata-se de uma realidade híbrida, de uma não diferenciação entre o eu e a palavra do mais velho, uma comunhão entre o indivíduo e o outro que lhe é superior: "Como o místico, que não dissocia mais o que vem de seu Deus e o que provém de si, a criança não diferencia os movimentos de sua fantasia individual das regras impostas do alto" (Piaget, 1994Piaget, J. (1994).O juízo moral na criança. São Paulo: Summus Editorial. (Original publicado em 1932), p. 55). Esse estágio da consciência das regras perfaz, portanto, uma realidade aparentemente paradoxal: jogar por conta própria e acreditar na sacralidade das regras. Ao longo dessa fase, quando esta passa a permear a primeira metade do estágio da cooperação na prática das regras, gradativamente a mística da autoridade começa a desaparecer; casos intermediários, observados por Piaget, ilustram tal passagem: Ben, um garoto de dez anos, já habituado à cooperação, admite a possibilidade de variação das regras, porém ainda as concebe como advindas de uma verdade absoluta (Piaget, 1994Piaget, J. (1994).O juízo moral na criança. São Paulo: Summus Editorial. (Original publicado em 1932)).

Por fim, o terceiro estágio, representado pela (c) regra racional e pela consciência autônoma, é observado a partir dos dez-onze anos, por volta da segunda metade da fase de cooperação na prática das regras. A regra do jogo se torna gradativamente cognoscível e deixa de ser exterior à consciência infantil, uma vez que a criança passa a refletir autonomamente. Agindo reciprocamente, colocando-se no lugar do outro, discernindo sua própria opinião de outrem, a criança abandona o comportamento heterônomo, caracterizado pelo caráter sagrado e incognoscível da regra. Conforme Piaget, "a regra do jogo se apresenta à criança não mais como uma lei exterior, sagrada... mas como o resultado de uma livre decisão" (Piaget, 1932/1994Piaget, J. (1994).O juízo moral na criança. São Paulo: Summus Editorial. (Original publicado em 1932), p. 60). Três considerações marcam essa mudança axial do juízo moral na criança: 1. ela aceita as mudanças e variações nas regras, desde que contemplem as opiniões dos participantes;

2. a criança deixa de considerar as regras como algo sagrado e proveniente de uma autoridade mística, reconhecendo os resultados colhidos de suas próprias experiências vividas;

3. as regras, ao invés de se instituírem coercitivamente,são construídas pelas crianças e suas respectivas necessidades e opiniões. Piaget reforça que

a regra é concebida como uma livre decisão das próprias consciências. Não é mais coercitiva nem exterior: pode ser modificada e adaptada às tendências do grupo. Não constitui mais uma verdade revelada, cujo caráter sagrado se prende às origens divinas e à sua permanência histórica: é construção progressiva e autônoma. (Piaget, 1932/1994, p. 64)

Finalmente, Piaget propõe a compreensão dos estágios mais como fases do que como classificações categóricas bem definidas, as quais pertencem a um processo genético de desenvolvimento moral. 'Genético' é entendido como sinônimo de evolutivo. Um adulto pode apresentar traços infantis em sua conduta, manifestando comportamentos egocêntricos, assim como crianças mais velhas, entre si, podem apresentar um comportamento adulto, autônomo e racional. Um exemplo do primeiro caso são as sociedades conformistas e gerontocráticas, cuja conduta é pautada pela heteronomia e pela coação.

Considerando esses diversos estágios morais, Piaget propõe que as formas de sociabilidade se diferenciem não somente em grau, mas em natureza: há uma descontinuidade entre dois tipos extremos de interação social: (a) a coação advinda do respeito unilateral e de uma moral heterônoma e a (b) cooperação, resultado de relações pautadas pelo respeito mútuo, pela reciprocidade e por uma moral autônoma. Contrapondo seus estudos à sociologia durkheimiana, Piaget critica a explicação do sociólogo sobre a estabilidade da vida social nas sociedades modernas. Enquanto que, na visão do psicólogo, a sociedade moderna é pautada pela regra racional e pela autonomia moral dos atores sociais, para Durkheim, segundo a crítica piagetiana, a sociedade moderna ainda é caracterizada pelo caráter coercitivo da dimensão social sobre os indivíduos, onde a estabilidade ocorre devido ao caráter heterônomo do grupo. Nesse sentido, a crítica de Piaget a Durkheim (1999Durkheim, E. (1999) Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes.) recai na indistinção entre a dimensão do dever e do bem, pois a dimensão moral, de acordo com Durkheim, seria pré-estabelecida e imposta socialmente. Piaget, contudo, ressalta a contribuição do sociólogo no que se refere à identificação do papel da sociedade como único meio propício ao desenvolvimento da cooperação. Somente no seio da sociedade os indivíduos se diferenciam entre si, saindo da dimensão egocêntrica, e buscando a construção autônoma de consensos, via cooperação social, para Piaget. O caráter heterônomo das relações sociais, criticado por Piaget quando de seu diálogo com a sociologia durkheimiana, também pode ser identificado junto às tentativas de Olson (1999Olson, M. (1999). A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais.São Paulo: Edusp.) e Hechter (1987Hechter, M. (1987). Principles of Group SolidarityBerkeley: University of California Press.) em contornar o problema do free-rider, intrínseco à produção de um bem coletivo. Esses autores identificam a imposição de regras e a instituição de mecanismos de coordenação coletiva como a única forma de garantir a produção de um bem comum, além da sobrevivência dos grupos. A ação coletiva seria explicada pelos teóricos da TER por mecanismos heterônomos de coordenação, expostos a seguir.

Uma taxonomia dos grupos: o modelo microeconômico de Mancur Olson

Associado às últimas tendências de publicação no campo sociológico acerca do fenômeno cooperativo, o conceito de ação coletiva é exposto pelo economista Mancur Olson em seu livro A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. Nele, o autor analisa os fatores que levam um indivíduo a cooperar, considerando, para tanto, as variáveis 'tamanho dos grupos' e 'incentivos econômicos da ação' a fim de explicar a cooperação ou, segundo Olson, a ação coletiva.

Partindo da premissa de que as pessoas buscam maximizar seus interesses, o autor questiona a "costumeira visão de que grupos de indivíduos com interesses comuns tendem a promover esses interesses" (Olson, 1999Olson, M. (1999). A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais.São Paulo: Edusp., p. 15), visto que cada indivíduo almeja desfrutar dos benefícios coletivos da organização, todavia não deseja contribuir com o seu provimento. Agindo de forma racional, os membros de uma organização buscam maximizar seus ganhos e minimizar seus custos na obtenção dos benefícios, tendendo a não cooperar com o grupo, especialmente quando este assume grandes dimensões.

Inserido em organizações, o indivíduo geralmente não possui incentivos para agir, já que seu comportamento é racional e centrado em interesses particulares. Olson afirma ser impossível o comportamento cooperativo em grandes grupos, a não ser que haja coações ou incentivos seletivos externos, oferecidos a membros do grupo individualmente, no intuito de que ajudem a arcar com o ônus relativo à obtenção dos objetivos grupais.

Definindo organização por um determinado grupo que cumpre com a função de promover o interesse de seus membros, Olson parte da premissa de que o indivíduo se associa a uma organização por interesses racionais, ou seja, para conseguir benefícios através do grupo, mesmo que não tenha colaborado para alcançá-los: "É da própria essência da organização que ela forneça um benefício indivisível e generalizado" (Olson, 1999Olson, M. (1999). A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais.São Paulo: Edusp., p. 27).

O economista propõe um modelo teórico que dê conta de explicar a cooperação, relacionando comportamento racional e tamanho grupal, através de "um estudo dos custos e benefícios da ação disponíveis para os membros dos grupos de diferentes tamanhos" (Olson, 1999Olson, M. (1999). A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais.São Paulo: Edusp., p. 34). Conjugando tais fatores, chega a um modelo econômico cujos resultados, cálculos de custo-benefício das ações individuais em diferentes contextos grupais, apontam para a maior eficiência dos grupos menores:

Se em algum nível de aquisição do benefício coletivo o ganho para o grupo excede o custo total por uma margem maior do que o ganho individual de algum membro, então pode-se presumir que o benefício coletivo será provido, porque nessas condições o ganho do indivíduo excederá o custo total do provimento do benefício coletivo para o grupo. (Olson, 1999, p. 44)

Nos grupos menores, o processo descrito por Olson se aplica: o ganho individual, ao prover um benefício coletivo, excede o custo de arcar com o ônus total do provimento deste bem.O membro de um pequeno grupo tenderá sempre a prover o bem coletivo de forma voluntária, pois é vantajoso arcar com o ônus. Analisando o tamanho grupal e o caráter racional dos atores sociais, Olson propõe três tipos de grupos, classificados como: (a) privilegiados, (b) intermediários e (c) latentes. A diferença entre eles reside nas relações de custo-benefício para que se alcance um interesse grupal. O autor leva em conta, no tamanho grupal, inúmeros aspectos considerados adversos à obtenção do bem coletivo. O primeiro deles, já mencionado, consiste no fato de que, quanto maior o grupo, "menor a fração do ganho total grupal que receberá cada membro que atue pelos interesses do grupo" (Olson, 1999Olson, M. (1999). A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais.São Paulo: Edusp., p. 60). O segundo ponto traça o seguinte raciocínio: uma vez que os ganhos individuais diminuem com o aumento do tamanho grupal, também se torna inviável qualquer formação oligopolista, não havendo incentivos para que se tenha a formação de subgrupos que cuidem do provimento do bem coletivo. Por fim, quanto maior o grupo, mais custosa é sua organização, dificultando o processo de obtenção de bens coletivos.

Delineadas as implicações econômicas da ação individual de acordo com o grupo, o autor expõe sua taxonomia grupal: o'grupo privilegiado', se consiste em pequenas organizações, em que indivíduos têm incentivo para trabalhar em prol do benefício grupal, arcando, mesmo individualmente, com o ônus do total, "o benefício coletivo será obtido e pode ser obtido sem nenhuma organização grupal" (Olson, 1999Olson, M. (1999). A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais.São Paulo: Edusp., p. 62), dispensando a adoção de mecanismos de articulação dos atores racionais. O grupo intermediário é uma organização em que, sozinho, o indivíduo não tem tantos incentivos para prover o benefício coletivo, mas a falta de cooperação individual não passa despercebidamente. Este grupo poderá ou não obter o benefício, dependendo de alguma coordenação ou organização grupal. O grupo latente é uma organização com grande número de integrantes, de forma que a não participação individual não trará prejuízo significativo. O grupo detém o potencial latente para a ação dirigida ao provimento de benefícios coletivos, porém só os alcançará caso existam incentivos seletivos negativos, como sanções, ou incentivos positivos, como as recompensas. As medidas coercitivas e os incentivos seletivos se tornam mecanismos viabilizadores da ação coletiva nos grupos latentes, para que os membros se esforcem no provimento de benefícios coletivos, passando de grupo latente para 'grupo latente mobilizado'. Para além dos incentivos econômicos, Olson atenta para incentivos sociais, sentimentos, como, por exemplo, prestígio social e amizade, como forma de pressão. Esses recursos, entretanto, se aplicam aos grupos privilegiados e intermediários, por demandar um grau de sociabilidade próprio de organizações de pequeno e médio porte.

O economista enfatiza o caráter eficaz dos pequenos grupos citando várias situações práticas da realidade política, econômica e social de sua época, sobretudo o caso dos sindicatos americanos. Mostra que, geralmente, os grupos menores se organizam em uma forma institucional mais viável e melhor sucedida.Observou que quanto menores as organizações sindicais, maiores eram seus desempenhos do ponto de vista da alocação de recursos e da produção de bens coletivos. A necessidade da utilização de práticas coercitivas nesses sindicatos era muito pequena, pois o número reduzido de membros implicava em maiores benefícios econômicos à ação individual. De acordo com a breve retomada histórica sobre o desenvolvimento sindical nos Estados Unidos, Olson relata que a adoção de piquetes, greves e filiações compulsórias aumentou quando os sindicatos adquiriram características de grupos latentes: o grande número de membros demandou o uso das mencionadas práticas coercitivas para que os sindicatos pudessem garantir o provimento dos benefícios coletivos, no caso sindical representados pela negociação coletiva.

Identificando, portanto, a problemática do free-rider, especialmente em grupos intermediários e latentes, Olson propõe a adoção de medidas coercitivas e o fornecimento de incentivos seletivos externos para viabilizar a ação coletiva e a sobrevivência organizacional. Além das ponderações vinculadas ao tamanho grupal, o sociólogo Michael Hechter (1987Hechter, M. (1987). Principles of Group SolidarityBerkeley: University of California Press.) sustenta outros argumentos relativos ao fenômeno da cooperação, atentando para a dimensão do controle social e da imposição de obrigações sem a necessidade de compensação.

A teoria da solidariedade grupal proposta por Michael Hechter

Procurando compreender o motivo pelo qual há diferentes graus de (a) estabelecimento de obrigações grupais e de (b) obediência a essas obrigações, Hechter (1987Hechter, M. (1987). Principles of Group SolidarityBerkeley: University of California Press.) desenvolve uma teoria da solidariedade grupal, propondo um estudo integrado de dois fatores-chave: as restrições estruturais societárias e as ações individuais de atores racionais. Considerando tais dimensões, o autor dialoga com premissas da sociologia normativista, funcionalista e estruturalista, sem abrir mão das proposições advindas da Teoria da Escolha Racional.

Compreendendo o fenômeno da cooperação, por Hechter denominada 'solidariedade grupal', como a divisão e imposição de obrigações conjuntas em dado contexto grupal (Hechter, 1987Hechter, M. (1987). Principles of Group SolidarityBerkeley: University of California Press.), o autor operacionaliza duas variáveis explicativas: a obrigação e o controle. Além dessas duas categorias analíticas, verificam-se na teoria hechteriana determinadas condições necessárias à existência da solidariedade: o primeiro aspecto tange à condição de que os bens produzidos pelo grupo sejam imanentes, isto é, que satisfaçam "diretamente a utilidade de seus membros" (Hechter, 1987Hechter, M. (1987). Principles of Group SolidarityBerkeley: University of California Press., p. 42). Consoante aos pressupostos da TER, Hechter sustenta que a solidariedade seja mais frequente no interior de grupos cujos produtos são imanentes; contrariamente, por exemplo, às empresas cujas recompensas àqueles que arcaram com a produção não são os próprios bens produzidos, mas os salários. O autor mostra também que a solidariedade é mais forte nos grupos cuja obediência ocorre sem a necessidade de compensações (quid pro quo), como, por exemplo, as mencionadas recompensas monetárias. A tabela 2 distingue a dimensão de mercado, voltada à produção de mercadorias vendáveis, e a dimensão característica da solidariedade, pautada pela obediência às regras sem compensação quid pro quo e pela produção de bens imanentes.

Tabela 2:
Hechter - graus de solidariedade em função do tipo de bem e de obediência

Hechter afirma que a "solidariedade será rara em grupos cuja lógica seja a produção de mercadorias vendáveis" (Hechter, 1987Hechter, M. (1987). Principles of Group SolidarityBerkeley: University of California Press., p. 39), em que a obediência ocorre somente via compensação. Altos graus de solidariedade são característicos de grupos cuja razão é a produção de bens coletivos (joint goods), que serão consumidos pelos próprios membros. Hechter pontua, por conseguinte, duas formas pelas quais os indivíduos obedecem às normas, via compensação ou obrigação. No primeiro caso, típico de mercado, os indivíduos colaboram com as normas visando somente à recompensa; o produto da organização não constitui interesse direto para seu membro. O segundo tipo se refere ao provimento de bens imanentes, implicando no cumprimento de regras via obrigação, uma vez que os indivíduos almejam o acesso ao bem produzido e estão dispostos a pagar um preço, sujeitando-se às obrigações sem compensação.

Além do problema do free-rider, Hechter salienta outras dificuldades inerentes à produção dos bens coletivos: a (a) escolha constitucional ou a necessidade de escolha das regras que sistematizam a produção dos bens, os problemas de (b) coordenação dos indivíduose o problema de (c) alocação distributiva do bem obtido. Em suma, a superação destas três adversidades é alcançada através da obediência às normas estabelecidas, instituídas com o propósito de regular tal tríade procedimental. Quanto à superação da problemática do carona, Hechter a identifica nos argumentos da própria TER: cientes de que os indivíduos integram os grupos a fim de usufruir dos bens coletivos, todos os grupos, independentemente de qualquer recurso ou mecanismo de controle, possuem uma sanção latente, representada pela ameaça de exclusão de seus membros. Compreendendo a solidariedade como resultante dos graus de obediência dos membros e da capacidade de controle do grupo, Hechter identifica os fatores que influenciam na variação dessas duas dimensões.

No tocante à obrigação, compreendida como uma "contribuição sem uma recompensa correspondente ou quid pro quo" (Hechter, 1987Hechter, M. (1987). Principles of Group SolidarityBerkeley: University of California Press., p. 17), observa-se que é necessário sujeitar-se às imposições normativas, como se essas fossem um pedágio para acesso ao bem coletivo. Quanto maior o custo necessário à produção de um bem, maior será a extensão das obrigações impostas aos membros do grupo. O alto grau de dependência de um indivíduo faz com que ele arque com as altas taxas de obrigação, dado seu interesse nos bens advindos da organização. A dependência dos indivíduos pode variar conforme mudanças circunstanciais do meio. A primeira se refere ao (a) fornecimento de bens substitutos: se em um determinado contexto há poucas opções alternativas à fonte vigente do bem, a dependência de seus membros é maior. A(b) falta de informação sobre alternativas: se os membros de um grupo não têm acesso à informação sobre outros grupos produtores dos mesmos bens, estes indivíduos estarão dispostos a suportar o custo de regras mais extensas. Os (c) custos de mudança: quanto maiores os custos de mudança de um grupo para outro, mais fortes os laços de dependência dos membros. E a força dos laços pessoais (strenght of personal ties), em que a sociabilidade é proposta como um dos mais importantes bens imanentes que os grupos provêm (Hechter, 1987Hechter, M. (1987). Principles of Group SolidarityBerkeley: University of California Press., p. 47). As constantes interações sociais limitam os indivíduos aos específicos contextos emque se inserem, levando à redução da informação sobre outras oportunidades; tanto mais fortes os laços pessoais, maior é a dependência aos grupos.

Analisando o segundo elemento explicativo da solidariedade grupal, isto é, o controle, determinante do grau com que os membros de fato obedecem às normas grupais, Hechter aponta quatro aspectos organizacionais que interferem no resultado do fenômeno da solidariedade ou cooperação. O primeiro deles é a capacidade do grupo em sancionar seus membros, aplicando sanções positivas ou negativas. Do ponto de vista dos recursos disponíveis ao exercício da sanção, o autor ressalta que, no mínimo, todos os grupos possuem uma sanção em potencial, representada pela ameaça de possível exclusão de seus membros. O segundo fator é a capacidade grupal em monitorar seus integrantes, controlando a agência individual e a convivência grupal diante das normas estabelecidas. Hechter também cita a capacidade de mensurar as contribuições individuais ao benefício coletivo e em limitar a privacidade de seus membros, sustentando a importância de arranjos institucionais, como a formalização de cargos de agentes controladores. Para o autor, "o controle promove a estabilidade e exclusividade dos grupos" (Hechter, 1987Hechter, M. (1987). Principles of Group SolidarityBerkeley: University of California Press., p. 52).

Concluindo sua análise a respeito da solidariedade grupal, Hechter reitera que o fenômeno da cooperação é possível a partir da satisfação de duas condições: (a) a existência de obrigações, criadas pela dependência do indivíduo à organização e (b) o estabelecimento de mecanismos que garantam o respeito a essas obrigações, tais como instituições controladoras das agências individuais, contornando o problema do free-rider.

Programas de pesquisa e operacionalização metodológica

Este panorama acerca das principais perspectivas teóricas sobre o fenômeno cooperativo ficaria trunco sem uma apresentação sucinta de quais têm sido os desdobramentos mais importantes em matéria de programas de pesquisa vigorosos que tragam evidências empíricas que permitam testar as premissas teóricas antes expostas.

A pesquisa pós-piagetiana: a psicologia do desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg

Para começar, no campo das estruturas cognitivas do raciocínio moral, devemos a Lawrence Kolhberg, educador e pesquisador, o mais rigoroso programa de pesquisa onde foram assumidas como ponto de partida as pioneiras conclusões de Piaget em matéria do desenvolvimento de estruturas do pensamento moral. Nos primórdios de sua formação, além de Piaget, fez uma apropriação da filosofia moral e da psicologia pragmatista norte-americana, (Baldwin, Dewey & Mead) que lhe permitiu identificar uma "via cognitivo-evolutiva" para o estudo da socialização. Mais que se orientar por uma teoria específica, Kolhberg identificou supostos e estratégias de pesquisa comuns às diversas teorias do desenvolvimento social e cognitivo por ele estudadas, por isso fala de "via". A sua vasta obra de pesquisa e de prática educativa está condensada em três volumes titulados Essays on moral development (Edição castelhana). O primeiro aborda a filosofia do desenvolvimento moral, o segundo, a psicologia do desenvolvimento moral e o terceiro, a educação e o desenvolvimento moral. Resumiremos a forma como Kohlberg refina e completa o processo evolutivo da psicologia moral de Piaget.

Quando Kolhlberg fala de uma "via cognitivo-evolutiva", toma distância tanto das teorias psicológicas de cunho inatista como das teorias do aprendizado social. Podemos dizê-lo em termos da tradição filosófica, nem cartesianismo racional, nem empiricismo associacionista. Qual é a saída, segundo Kolhberg?

"Hemos constrastado el supuesto maduracional de que la estructura mental básica es el resultado de un modelaje innato con el supuesto de la teoría del aprendizaje de que la estructura mental básica es el resultado del modelaje o asociación de hechos en el mundo exterior. Por contraste, el supuesto cognitivo-evolutivo es que la estructura mental básica es el resultado de una interacción entre ciertas tendencias que estructuran el organismo y la estructura del mundo exterior, más que el reflejo de cualquiera de ellos directamente".(Kohlberg, 1992Kohlberg, L. (1992) Psicología del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brouwer., p. 54)

Quando fala de "via cognitiva", Kohlberg se ancora na tradição de Baldwin e dos pragmatistas, para os quais o Self não responde de forma automática, ou por associações, a estímulos do ambiente, e sim mediante um "processo representativo ou codificador que intervêm entre o estímulo e a resposta" (Kolhberg, 1992Kohlberg, L. (1992) Psicología del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brouwer., p. 50). Isto é de suma importância, pois permite estar atentos ao processo pelo qual as interações humanas estruturam e ao mesmo tempo são estruturadas pelos esquemas cognitivos. O fato é que Kolhlberg refina os estágios identificados por Piaget a partir dos jogos de regras que este chama de sociedade infantil. Em continuação, apresentamos a versão ampliada do processo cognitivo evolutivo constatado por Kohlberg em suas pesquisas empíricas.

Tabela 3:
Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992) Psicología del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brouwer.) - os seis estádios morais

A teoria de jogos e o programa de pesquisa microinstitucional

As premissas da TER tiveram a sua utilização mais fecunda mediante duas estratégias de investigação de amplo uso no campo da matemática aplicada e das ciências sociais. Por um lado, a chamada teoria de jogos, que em realidade é a modelização matemática de situações de interação estratégica de dois agentes sociais, mais conhecidas como dilemas de duas pessoas. O caso emblemático é o dilema do prisioneiro modelizado pelo matemático por W.A Tucker em 1943 (Rawls, 2000Rawls, J.(2000).Uma teoria da justiça.. São Paulo: Martins Fontes ). Os dilemas de duas pessoas visam identificar estruturas de ganhos e perdas (pay offs), assim como estratégias dominantes de ação entre agentes racionais. Kollock (1998Kollock, P. (1998).Social dilemmas: the anatomy of cooperation. Annual Review of Sociology, 24, 183-214.) oferece uma visão completa dos principais dilemas de interação estratégica identificados no campo da teoria de jogos. Porém, do ponto de vista das relações sociais, a teoria de jogos apresenta sérias limitações quando o número de agentes envolvidos é maior que 2, visto que não permite captar as externalidades cruzadas das funções de utilidade de todos os agentes envolvidos. Este tipo de dilemas, conhecido como de N-pessoas, tem sido amplamente estudado no campo da teoria neoinstitucional que perpassa a Ciência Política, a Economia e a Sociologia. Devemos a Elinor Ostrom, primeira mulher a ganhar o prêmio Nobel de Economia sem ser economista de formação, o robusto programa de pesquisa conhecido como pesquisa microinstitucional. Sediada na universidade de Indiana, Ostrom e seus colaboradores foram aos poucos constituindo um framework analítico que permitisse captar a complexidade das situações cooperativas sem renunciar à racionalidade como lógica básica de ação. Remetemos o leitor à rica coletânea, Understanding Institutional Diversity (Ostrom, 2005Ostrom, E. (2005). Understanding Institutional Diversity. New Jersey : Princeton Univesity Press.), que reúne os trabalhos mais importantes sobre os chamados "workable arrangements", isto é, os dispositivos institucionais, com seus sistemas normativos, que facilitam a superação dos dilemas da ação coletiva, ou situações nas quais indivíduos racionais se defrontam com a escolha de colaborar ou não com a produção de um bem coletivo ou com um cuidado de um recurso de uso comum.

A análise microinstitucional conjuga a dimensão normativa, enfatizada na perspectiva cognitiva de Piaget, com os incentivos racionais que movimentam a ação individual, própria da TER. Para Olson (1999Olson, M. (1999). A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais.São Paulo: Edusp.), os sistemas normativos, em meio a sua diversidade, alocam incentivos e custos para os indivíduos que estão em situação de escolha. Assim, e só por citar uma situação prática, o desafio de agências multilaterais que visam induzir capital social, em termos da ação virtuosa da cooperação dos beneficiários de programas sociais, reside no desenho participativo e cuidadoso de regras de interação que equilibrem benefícios e custos para os participantes do processo decisório. Caso as regras de decisão aloquem benefícios e custos de forma desequilibrada, os agentes racionais não entram no jogo cooperativo, tal e como prevê o modelo teórico de Olson acima exposto.

Em nossa experiência de pesquisa, por exemplo, temos nos defrontado com situações third party em que um agente organizado, externo às comunidades locais, objetiva induzir a criação de uma empresa associativa de agricultores de uma lavoura permanente, palma africana ou dendê, cujo fim é a extração de óleos vegetais com amplos usos industriais (Salej, 2012Salej, H.S. (2012). A difícil construção do capital social: estruturas da ação coletiva numa organização camponesa. Latin American Research Review, 47(3), 83-108). No caso estudado, a maiêutica dos agentes externos errou a querer impor na marra que todos os participantes do projeto se tornassem devedores solidários pelo montante dos créditos recebidos. Chamamos essa situação de "comunismo bancário", pois era uma imposição dos agentes financiadores (bancos) que visavam mais as garantias reais do crédito do que o estímulo à cooperação. Não era realista pensar que os agricultores mais aplicados ao projeto assumissem as dívidas daqueles menos engajados e menos produtivos. Num esquema de direitos de propriedade individuais, de lavouras individualizadas, não tinha cabimento esse tipo de exigências. Cabe aqui uma inferência geral recorrente nos autores clássicos da sociologia: com o avanço da racionalização, são cada vez mais escassas as comunidades humanas tradicionais, homogêneas em seus sistemas de valores e com estruturas fixas de interação onde o senso da individualidade não coloca problemas à ação coletiva. O desafio de explicar a cooperação não se coloca num grupo indígena que conserva a sua cultura, isto não está no horizonte da pesquisa cognitiva de cunho piagetiano, mas sim em grupos humanos tocados pelo senso da autonomia individual. Nas mudanças aceleradas das sociedades modernas, resta muito por descobrir em matéria dos mecanismos institucionais que viabilizam a solidariedade orgânica preconizada por Émile Durkheim.

Comparativo e avaliação

Após examinar as diferentes explicações sobre a cooperação social, podemos identificar dois focos analíticos acerca do problema: (a) a racionalidade subjacente à cooperação e (b) a situação da ação coletiva. Situa-se a perspectiva teórica piagetiana no primeiro eixo de análise e o conjunto de argumentos da TER no segundo tipo de abordagem. A partir das assertivas do psicólogo, o presente exame expôs a cooperação social como resultado da racionalidade recíproca dos atores sociais; a cooperação é entendida como modus operandi ou regra constituinte das relações sociais, a partir da evolução das estruturas cognitivas individuais. Contraposta à perspectiva da TER e, utilizando elementos econômicos da ação, seria possível dizer que a cooperação à luz da teoria piagetiana implica em custos menores à ação coletiva, do ponto de vista organizacional e institucional. Isso se justifica a partir do momento em que a dimensão do controle ocorre em nível individual, dispensando a adoção de mecanismos controladores: o próprio indivíduo, ao colocar-se no lugar do outro, controla ou revê suas próprias tendências e preferências egocentradas e passa a considerar, na composição intersubjetiva das opiniões grupais, aquilo que se aproxima do interesse coletivo. Os trabalhos de Hechter e Olson, por sua vez, inserindo-se no panorama da TER, explicam a ação coletiva partindo da premissa autointeressada das preferências individuais. Neste sentido, mesmo que não haja incentivos econômicos motivadores da ação coletiva, será necessária a instituição de mecanismos coordenadores, implicando em ônus organizacionais.

Tendo em mente o conjunto dessas exposições teóricas, o presente trabalho se conclui através de duas ponderações. A primeira delas diz respeito a um ponto comum entre as proposições da TER e a sociologia durkheimiana: ambas as perspectivas teóricas, apesar de se contraporem epistemologicamente, lidam com um aspecto em comum: a dimensão heterônoma da sociedade. Os autores da primeira vertente, ao compreenderem a cooperação como um processo de articulação dos interesses racionais e de imposição de mecanismos mantenedores da ação coletiva, apontam para o caráter heterônomo da cooperação, obtida via coerção. A sociologia durkheimiana, criticada por Piaget, aponta para o mesmo aspecto, a heteronomia como forma de manutenção da ordem social: mesmo com a diferenciação social do trabalho e a complexificação da sociedade, a cooperação somente ocorre a partir do sentimento de pertencimento individual ao grupo e da própria dimensão do sagrado. A ordem social se estabelece em detrimento das diferenças individuais, que são assimiladas à ideia de solidariedade cooperativa. Ainda que completamente distantes sob certos aspectos, Olson e Hechter se inserem na perspectiva durkheimiana quando da explicação da dimensão heterônoma societária.

Uma segunda consideração tange às implicações normativas e sociais da racionalidade cooperativa, proposta com base nos argumentos piagetianos. A cooperação, como regra constituinte, permite a obtenção de consensos que sejam razoáveis a nindivíduos de um grupo. Tanto as interações sociais como o processo de construção consensual se estabelecem a partir da intersubjetividade e do respeito mútuo, preservando, desse modo, a autonomia individual dos membros de determinado grupo. A cooperação, compreendida pela reciprocidade e pela construção gradativa dos consensos, permite, portanto, a convivência com as diferenças individuais no mesmo contexto social, preservando, ainda assim, a liberdade de cada um de seus integrantes1 1 Silvio Segundo Salej Higgins é doutor em Sociologia pela Universidade de Paris Dauphine (França) e em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor Adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais. Endereço para correspondência: UFMG - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. 2 2 Mariana Costa Silveira é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais. Técnica social na Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU). .

  • Durkheim, E. (1999) Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes.
  • Hechter, M. (1987). Principles of Group SolidarityBerkeley: University of California Press.
  • Kohlberg, L. (1992) Psicología del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brouwer.
  • Kollock, P. (1998).Social dilemmas: the anatomy of cooperation. Annual Review of Sociology, 24, 183-214.
  • Olson, M. (1999). A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais.São Paulo: Edusp.
  • Ostrom, E. (2005). Understanding Institutional Diversity. New Jersey : Princeton Univesity Press.
  • Piaget, J. (1994).O juízo moral na criança. São Paulo: Summus Editorial. (Original publicado em 1932)
  • Rawls, J.(2000).Uma teoria da justiça.. São Paulo: Martins Fontes
  • Salej, H.S. (2012). A difícil construção do capital social: estruturas da ação coletiva numa organização camponesa. Latin American Research Review, 47(3), 83-108
  • 1
    Silvio Segundo Salej Higgins é doutor em Sociologia pela Universidade de Paris Dauphine (França) e em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor Adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais. Endereço para correspondência: UFMG - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
  • 2
    Mariana Costa Silveira é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais. Técnica social na Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2014
  • Revisado
    26 Set 2014
  • Aceito
    18 Mar 2015
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