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DIMENSÕES (EST)ÉTICAS E POLÍTICAS DA PAIXÃO ENTRE SIMONE E NELSON

DIMENSIONES (EST)ÉTICAS Y POLÍTICAS DE LA PASIÓN ENTRE SIMONE Y NELSON

ETHICAL, AESTHETIC AND POLITICAL DIMENSIONS IN SIMONE'S AND NELSON'S PASSION

Resumo

O objetivo deste trabalho é tecer uma reflexão sobre as paixões humanas numa perspectiva histórico-cultural, com base nas contribuições de Vigotski, em diálogo com proposições de Espinosa e Bakhtin. Tomamos comolocus central de análise as narrativas de Frain sobre cartas trocadas entre os amantes Simone de Beauvoir e Nelson Algren, que dão visibilidade aos desdobramentos éticos-políticos da paixão. Exploramos a paixão em sua dimensão política, histórico-cultural e seus impactos na configuração experiencial do drama - choque de sistemas que envolve os protagonistas (pessoas sociais) que vivem na carne o enlace. A conclusão aponta para um deslocamento epistemológico no tratamento da paixão que nos permite questionar duas das dicotomias que marcam o pensamento psicológico: a separação entre o social e o pessoal; a razão e emoção. Ao final, assinalamos o estudo das paixões com foco na ação mobilizadora dos processos criadores, para além da passividade apaixonada.

Palavras-chave:
paixão; psicologia do drama; política; Vigotski; Espinosa; Bakhtin

Resumen

Nuestro objetivo es proponer una reflexión a cerca de las pasiones desde una perspectiva histórico-cultural, basado en las ideas de Vygotsky, en diálogo con proposiciones de Spinoza y Bakhtin. Tomamos como lugar central del análisis la narrativa de Frain sobre cartas intercambiadas entre Simone de Beauvoir y Nelson Algren, que dan visibilidad a los desarrollos ético-políticos de essa pasión. Exploramos la pasión en su dimensión política, histórico-cultural y su impacto en el entorno experiencial del drama - sistemas de choque que implican los protagonistas (personas sociales) que viven el enlace. Las hallazgo apunta a un cambio epistemológico en el tratamiento de la pasión que nos permite cuestionar las dicotomías que marcan el pensamiento psicológico: la separación entre lo social y lo personal; la razón y la emoción. Por último, observamos el estudio de las pasiones en la movilización de la acción de los procesos creativos, además de la pasividad apasionada.

Palabras clave:
pasión; psicología del drama; política; Vygotsky; Espinosa; Bakhtin

Abstract

This paper presents a reflection on the human passions from a cultural-historical perspective, based on the contributions of Lev Semenovich Vygotsky with some of the propositions developed by Baruch Spinoza and Mikhail Bakhtin. The analysis is based on Irene Frain's book about letters exchanged between Simone de Beauvoir and Nelson Algren, that give visibility to the ethical-political developments of passion. Our argument explores the passion in its historical and cultural policy dimension and its impact on experiential setting of the drama. The conclusion goes in the direction of an epistemological shift in the treatment of passion that would allow us to question two of the dichotomies that have marked the psychological thinking; the separation between the social and the personal; and the spin-off reason and emotion. Finally, we signal that the study of the passions must be driven beyond passionate passivity. In our view, passion can mobilize creative processes.

Keywords:
passion; Psichology of drama; politics; Vigotski; Espinosa; Bakhtin

Introdução

No presente estudo teórico, colocamos em perspectiva a dimensão (est)ética e política das paixões humanas a partir de uma abordagem histórico-cultural em psicologia. Para tanto, retomamos alguns conceitos centrais que compõem esse referencial teórico dando destaque para as contribuições do psicólogo russo Lev Seminovich Vigotski (1906-1934) em diálogo com as proposições elaboradas pelo filósofo Baruch Espinosa (1632-1677), sobre os afetos e a paixão em sua dimensão ético-política, e as elaborações de Mikhail Bakhtin (1895-1975), sobre estética.

Tomamos como fonte principal de nossas reflexões o Manuscrito de 1929 (Vigotski, 1929/2000). Nesse texto, em formato de esboço e sem intenções de publicações, o autor explora as relações entre a formação social da pessoa e a psicologia como drama (choque de sistemas psicológicos), enfatizando a dimensão histórico-cultural (e, porque não dizer, política) das emoções. Baseados nessa construção teórica, enunciada por Vigotski, pretendemos abordar o tema da paixão.

O foco central de nossa análise orienta-se para as narrativas das cartas trocadas pelos amantes Simone de Beauvoir (1908-1981) e Nelson Algren (1909-1981), exploradas por I. Frain, pois, como pretendemos demonstrar, elas apresentam um potencial interpretativo para tratar a temática da paixão sob uma nova ótica.

Embora enfoquemos as narrativas que se explicitam nas missivas e que dão visibilidade aos desdobramentos subjetivos (a vida de Simone e Nelson) e sociais (como, por exemplo, a publicação de sua obra: O Segundo Sexo), dois documentários também foram fonte de inspiração do recorte que fizemos aqui, são eles: simone de Beauvoir et Jean-paul sartre : un portrait croisé1 1 Simone de Beauvoir et Jean-Paul Sartre : un portrait croisé; documentário dirigido por Mar Cacopardo e produzido pela CBE e Rádio Canadá. Apresentado pela primeira vez na UNESCO, em 2005. e simone de Beauvoir: une femme actuelle2 2 Simone de Beauvoir: une femme actuelle ; documentário dirigido por Dominique Gros e produzido por Les films d'ici/Martine Saada, em 2007. .

Para o leitor, ainda mais curioso, é importante salientar que dois livros de Beauvoir retratam o romance vivido na América, em 1947; cartas a nelson algren - um amor transatlântico (Beauvoir, 2000) e les mandarins(Beauvoir, 1954Beauvoir, S. (1954). Les Mandarins. Paris: Galimard.). Na tessitura argumentativa-conceitual, trazendo os ecos da experiência com esses diferentes materiais, propomos ampliar as interfaces entre psicologia do drama, emoção e paixão, enfatizando a dimensão (est)ética e política.

Drama e constituição social da pessoa: as contribuições de Vigotski para a compreensão das dinâmicas afetivas especificamente humanas

Segundo Vigotski, ao longo do desenvolvimento da pessoa, os modos de produção, as condições de produção e os tipos de relações decorrentes delas são determinantes para a compreensão do psiquismo. De fato, o homem, desde que nasce, se apropria das aquisições culturais que o precederam; ele é inserido, por meio da experiência com a palavra, no fluxo de uma história vivida por outros homens e a sua vida cotidiana se dá na (im)possibilidade histórica de, ao ser forjado pela cultura, criar a cultura.

Os nossos modos de pensar, ser, conhecer e sentir não se originam de uma energia metafísica ulterior (como apostariam os neohegelianos ou idealistas), visto que o homem não existe fora das condições materiais de existência. A materialidade, por sua vez, organizada em sistemas econômicos, políticos e ideológicos de uma determinada sociedade em um tempo histórico específico, sutura as relações entre as pessoas e dá corpo à pessoa social, como diria Vigotski (2000Vigotski, L. S. (2000). Manuscrito de 1929: a psicologia concreta do homem. Educação & Sociedade, 71, 21-44. (Original publicado em 1929)) em seu manuscrito.

De forma coerente com o seu referencial teórico, Vigotski, ancorado no materialismo histórico dialético, compreende que as relações sociais são profundamente marcadas pela classe social em que os sujeitos se situam; suas posições sociais, os diferentes papéis ocupados na intrincada dinâmica que compõe a teia das relações sociais. Ou seja, as personalidades humanas - social, dinâmica e culturalmente constituídas - não são monolíticas; a natureza de classe e as diferenças de classe são, também, responsáveis pela configuração de tipos humanos demarcados contraditoriamente pela história e pela cultura. Isso significa dizer que, embora não haja uma determinação social, há uma correlação entre as contradições de um tempo (histórico) e as vivências pessoais possíveis de, nele, serem experimentadas numa cultura. Entender tal trama é o desafio que se apresenta aos autores da perspectiva histórico-cultural.

Em Vigotski, a lei geral do desenvolvimento parte, portanto, do conceito de internalização para explicar a interseção dessas duas dimensões - o social e o individual. Conforme o autor, todo o desenvolvimento cultural passa por três estágios: em si - para os outros - para si. Ou seja, por meio dos outros nos constituímos, nos humanizamos.

Nesse panorama, qual é a explicação, dada por Vigotski, para a conversão da prática cultural em algo orientado para a pessoa? Esmiuçar esse processo de transformação do geral para o particular sem cair no determinismo, no reducionismo dicotômico e mecanicista foi uma preocupação do psicólogo russo e um desafio para seus pesquisadores contemporâneos que vêm procurando problematizar o conceito de internalização (Delari, 2013Delari, A. (2013). Vigotski consciência, linguagem e subjetividade. São Paulo: Alínea. ; Góes, 2000Góes, M. C. R. de. (2000). A abordagem microgenética na matriz histórico-cultural: uma perspectiva para o estudo da constituição da subjetividade. In Cadernos CEDES, 20(50), 9-25.; Pino, 2005Pino, A. (2005). As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. VigotskiSão Paulo: Cortez.; Smolka, 2000Smolka, A. L. B. (2000). O (im)próprio e o (im)pertinente na apropriação das práticas sociais. In Cadernos CEDES, 20(50), 26-40.).

Pino (2005Pino, A. (2005). As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. VigotskiSão Paulo: Cortez.) afirma que, quando Vigotski explora esse conceito (mesmo que de forma não muito precisa), ele está indicando que a internalização das relações sociais: "Consiste numa conversão das relações físicas entre as pessoas em relações semióticas dentro da pessoa" (p. 112). Pino propõe que na conversão "o elemento que permanece é a significação dessas relações, tanto no plano social quanto no pessoal". No entanto, enfatiza o autor, "essa significação muda de estado e de direção: de social torna-se pessoal ...

orientador da própria conduta" (Pino, 2005Pino, A. (2005). As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. VigotskiSão Paulo: Cortez., p. 112).

Dessa maneira, os processos de significação (re) produzidos nas relações sociais não se separam daquilo que somos, ao contrário, é a dimensão mutante e inacabada (se assim conseguimos dizer) do que somos e do que poderemos ser. É uma condição dramática (de ser) do humano, como veremos mais adiante.

Na pessoa social está amalgamado, contraditoriamente, um campo conflituoso de posicionamentos sociais que vão definindo formas de atuação, mais especificamente, modos de ser, agir, pensar e (ressaltamos) modos de sentir que são singulares. Tais performances sociais se organizam dentro de um tecido cultural particular, permitido pela possibilidade criadora da história e emergente nas relações sociais. Ele afirma: "Não existe vontade fixa. Embora haja uma amplitude natural de possibilidades em cada função que determina a esfera de seus papéis possíveis" (Vigotski, 2000Vigotski, L. S. (2000). Manuscrito de 1929: a psicologia concreta do homem. Educação & Sociedade, 71, 21-44. (Original publicado em 1929), p. 36).

Vigotski (2000Vigotski, L. S. (2000). Manuscrito de 1929: a psicologia concreta do homem. Educação & Sociedade, 71, 21-44. (Original publicado em 1929)) nos remete aos personagens da Commedia del' Arte que assumiam nos mais diversos enredos e tramas encenados papéis sempre fixos. Na opinião dele, tal dinâmica, a de um drama com papéis fixos, representava uma antiga psicologia que trazia em seu bojo uma noção de uma personalidade fixa, imutável, fechada, determinada. Para ele, essa ordem, essa hierarquia e as relações que delas decorrem entre as funções psicológicas mudam de acordo com as posições sociais que os sujeitos ocupam. Vigotski (2000) argumenta, de maneira contundente, que entre o dever e o querer ou sentir, o pensamento e o desejo, deflagra-se o conflito, o choque: "O drama sempre é a luta de tais ligações (dever e sentimento, paixão, etc)" (p. 35).

Pensamento e desejo, por exemplo, conflitam no sujeito que ocupa o papel de um juiz/marido. Ou seja, no lugar social de marido, o desejo prevaleceria, no lugar social de juiz, o pensamento prevaleceria, na medida em que este deve emitir um julgamento sobre a esposa. Daí emerge a noção de drama como constitutiva da dinâmica da personalidade. Essa, por sua vez, não é como em muitas correntes em psicologia, algo imutável ou imanente. O que permanece e constitui os sujeitos são as marcas da experiência vivida, das vivências atravessadas pelos outros, por meio das significações que germinam e, muitas vezes, se enraízam. Isso quer dizer que não é possível ter uma expectativa clara, fixa e linear sobre o outro - e, de certa forma, sobre si mesmo - que esteja independente das posições e relações sociais interconstitutivas de si e do outro.

Nessa perspectiva, o conceito de drama implica compreender pontos centrais que nos permitiriam questionar duas das dicotomias que têm marcado o pensamento psicológico e as explicações do desenvolvimento ou constituição da subjetividade humana: (a) a separação entre o social e o pessoal (conforme explicamos anteriormente) e (b) a supremacia da razão frente às paixões, ou emoções.

O modo como a síntese das relações sociais converte-se na história da cada pessoa social é dificílimo (para não dizer impossível) de se mapear. A surpresa, mobilizadora de transformações e/ou permanências subjetivas, está no acontecimento social. No jogo dramático de posicionamentos, as crises, as contradições constituem o drama psicológico da pessoa que é, também, um drama das relações sociais na história geral e na história de vida de cada um.

A constituição humana é uma luta interna costurada dramaticamente nas escolhas (voluntárias ou não) que tomamos na vida (Delari, 2013Delari, A. (2013). Vigotski consciência, linguagem e subjetividade. São Paulo: Alínea. ). Isto é, numa transposição não linear da arte para a vida, no drama da personalidade, estamos sempre envolvidos em uma luta interna, choque. Posicionamo-nos, como dito anteriormente, de diferentes maneiras, dependendo das necessidades subjacentes ao recorte espacial e temporal no qual estamos situados.

No jogo interpessoal, por um lado, temos o acaso dos encontros. Por outro, nos deparamos com o recorte cultural desses mesmos encontros. Entre as possibilidades históricas e a imprevisibilidade das decisões subjetivas está o problema das emoções, mais especificamente, das paixões humanas. Diante disso, indagamos: qual é o papel da paixão em uma dada dinâmica da personalidade? Assumindo que as emoções se constituem nas conexões com sistemas psicológicos complexos, que estão circunscritos historicamente, como é possível teoricamente entrever as dimensões histórico e cultural (política) da paixão?

Afeto, emoção e paixão

A paixão é uma palavra de raiz portuguesa que dá origem aos primeiros vocábulos usados em obras referentes ao fenômeno em questão. Inicialmente, são atribuídos a essa palavra significados considerados negativos, relacionados à dor, infelicidade e sofrimento. Paixão era o oposto de ação. Assim, o ponto de vista de quem a sofre e não de quem a produz está no cerne da problemática; paixão/passion da alma é algo que sucede à alma por ação do corpo sobre ela. É importante salientar que é após o surgimento e consolidação da doutrina cartesiana que o caráter de padecimento e passividade passa a ser o critério definidor desse vocábulo (Engelmann, 1978Engelmann, A. (1978). Os estados subjetivos: uma tentativa de classificação de seus relatos verbais. São Paulo: Ática.).

Descartes, no vocábulo paixão, abrange todas as dimensões afetivas em seu tratado As paixões da alma. O filósofo define as paixões como "percepções, ou sentimentos, ou emoções da alma, que referimos particularmente a ela e que são causadas, mantidas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos" (Descartes, 1649/1987, p. 81Descartes, R. (1987). As paixões da alma. In Os Pensadores: DescartesI (pp. 73-154). São Paulo: Nova Cultural. ). A causa das paixões está relacionada aos processos internos, aos sinais corporais - a tristeza e a alegria, por exemplo, têm origem na atividade do estômago que é aumentada ou diminuída.

Há, assim, para o filósofo, fenômenos orgânicos correspondentes a cada paixão e que podem influenciar ou perturbar o pensamento. Contrapondose a Descartes, Espinosa procede a uma demonstração geométrica dos afetos, sendo o desejo o primeiro a ser definido como "a própria essência do homem, enquanto está concebida como determinada a fazer algo por uma afecção qualquer nela verificada". Desejo, intrinsecamente associado ao conatus - esforço de perseverar na existência - é, portanto, impulso, esforço, apetite e vontade que variam de acordo com a disposição variável dessa essência do homem. Nessa perspectiva, o amor é "a alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior" e o ódio é "a tristeza acompanhada da ideia de uma causa exterior" (Espinosa, 2008, pp. 241-243).

Mas o que é afeto, para o filósofo?

Espinosa (2008Espinosa, B. (2008). Ética. Belo Horizonte: Autêntica., p. 163) afirma:

Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, assim como as ideias dessas afecções". O filósofo identifica os afetos às afecções corporais; modificações pelas quais passa um corpo - o que poderia nos remeter à velha cisão cartesiana. Mas o filósofo explica: "Assim, quando podemos ser a causa adequada de alguma dessas afecções, por afeto compreendo então uma ação; nos outros casos, uma paixão. (Espinosa, 2008Espinosa, B. (2008). Ética. Belo Horizonte: Autêntica., p. 163)

Podemos claramente perceber que, embora sejam afecções do corpo (modo do atributo extensão), os afetos compreendem também as ideias dessas afecções (no atributo pensamento, do qual a mente é um modo). E, mais interessante, o filósofo destaca que a paixão é algo relacionado à dinâmica de afetação e composição entre os corpos, ou, se quisermos, os sujeitos em relação. Isso significa dizer que a qualidade de passividade e padecimento é dada na relação.

Nesses termos, podemos sugerir que na relação social (estendendo um pouco nosso horizonte de compreensão), a paixão se cristaliza como algo que pode impedir ou dificultar a ação do sujeito que não a compreende, não a conhece, não tem noção de sua rede causal e cujo corpo não se abre às possibilidades de moderação. Mas como compreender tal rede causal que, insistentemente, impulsiona e redimensiona as ações e as paixões humanas? Como identificar algo que nos escapa, que nos torna vilões e algozes das emoções?

Vejamos o que diz Espinosa: "Chamo causa adequada aquela cujo efeito pode ser clara e distintamente percebido por ela mesma. Chamo de causa inadequada ou parcial, por outro lado, aquela cujo efeito não pode ser compreendido por ela só" (Espinosa, 2008, p. 163). Espinosa procura afirmar que nós somos ativos quando, dentro ou fora de nós, algo de que somos causa adequada se produz, mas padecemos ou somos passivos quando isso que se produz é unicamente causa parcial.

Assim, para Espinosa, uma paixão não é dada a priori, como em Descartes, no sujeito cuja alma padece, mas pelo/no encontro e composição entre os corpos, pela/na relação entre os homens. Quando o homem é causa inadequada do que se produz dentro ou fora dele, ou seja, quando não é causa total, temos um afeto passivo ou uma paixão triste. De modo inverso, uma ação é dada quando o que se produz dentro ou fora do homem pode ser clara e distintamente conhecido ou compreendido apenas por ele; nesse caso, temos um afeto ativo ou uma paixão alegre que potencializa a ação.

Logo, a compreensão deste processo implica pensar que o conceito de affectio abarca ao mesmo tempo atividade e passividade - causa adequada e não adequada; afeto e ideia (corpo e mente). Contudo, é preciso ainda salientar que os conceitos de passividade e atividade não estão, necessariamente, relacionados ao domínio da nossa vontade ou razão - como atestava Descartes. Os afetos são, nesse sentido, da ordem do encontro, da experiência e da relação entre os seres no mundo, com o mundo. (Magiolino, 2013Magiolino, L. L. S. & Smolka, A. L. B. (2013). How do emotions signify? social relations and psychological functions in the dramatic constitution of subjects, Mind, Culture, and Activity, 20(1), 96-112. ).

Na filosofia cartesiana, a razão governa soberanamente as paixões (Silva, Castro, & Barbato, 2010Silva, D. N. H, Castro, J. T, & Barbato, S. (2010). La imaginación creadora: aspectos histórico-genealógicos para la reconsideración de una psicología de la actividad y la mediación estética. Estudios de Psicología, 31(3), 253-278.). Na filosofia espinosana, isso é algo do reino da ilusão, pois a liberdade não é estar livre das paixões e dos afetos, mas ter conhecimento deles por intermédio da razão e aprender a moderá-los. Os afetos podem libertar ou colocar os homens no plano da servidão à medida que a liberdade reside no fato de o homem poder tornar-se ou não causa de sua alegria (Magiolino, 2013Magiolino, L. L. S. & Smolka, A. L. B. (2013). How do emotions signify? social relations and psychological functions in the dramatic constitution of subjects, Mind, Culture, and Activity, 20(1), 96-112. ).

Em suas reflexões sobre a práxis ética e política do chamado Estado Moderno, Espinosa (1977Espinosa, B. (1977). Tratado Político (M. Castro, Trad.). Lisboa: Editorial Estampa.) se lança ao entendimento e explicação de um campo que efetivamente determina a concretude e realização da ação humana: o campo da afecção. O afeto é, então, dissecado em sua natureza intrínseca, na medida em que é indissociável da condição de ser humano, em uma definição delineada no plano da ética, que demonstra o modo como ele se (re)compõe na vida humana.

Percebemos em Espinosa uma conotação ético-política na definição dos afetos e das paixões que vai dar corpo às elaborações de Vigotski. Tal conotação tem sido explorada por Sawaia (2009Sawaia, B. B. (2009). Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre liberdade e transformação social.; Psicologia & Sociedade 21(3), 364-372.). A autora, ao discutir a concepção de afeto, em Espinosa, e a de liberdade, em Vigotski, argumenta que ambas as dimensões se articulam na ética e na política. A liberdade exige a ação coletiva e não se confunde com livre-arbítrio, pois tem por base a criatividade e a imaginação, que, por sua vez, está geneticamente vinculada com a emoção. A autora ainda menciona que "um dos desafios do combate à desigualdade social é elucidar o sistema afetivo/ criativo que sustenta a servidão, nos planos (inter) subjetivo e macropolítico, para planejar uma práxis ético/estética de transformação social" (Sawaia, 2009, p. 364).

Esse modo espinosano de conceber os afetos vai repercutir fortemente na obra de Vigotski (Sawaia, 2009Sawaia, B. B. (2009). Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre liberdade e transformação social.; Psicologia & Sociedade 21(3), 364-372.) e em sua perspectiva histórico-cultural das emoções humanas (Magiolino, 2010Magiolino, L. L. S. (2010). Emoções humanas e significação numa perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano: um estudo teórico da obra de Vigotski. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas, SP.). Se, em Descartes, as paixões são definidas a priori por sua negatividade, em Espinosa, elas assumem um caráter relacional. Esse aspecto relacional permanece em Vigotski, mas é redimensionado pelo psicólogo russo, em razão de sua compreensão sobre o processo histórico e cultural, que abordamos anteriormente.

Nessa perspectiva, a emoção humana não é apenas uma descarga de energia, uma perturbação fisiológica, uma sensação visceral, um sinal endógeno e expressivo de caráter unívoco, algo que pode sempre ser interpretado da mesma forma. Trata-se de um processo histórico e cultural constituído como os demais processos psicológicos complexos, as funções psicológicas superiores, na e pela dimensão da significação (Magiolino, 2010Magiolino, L. L. S. (2010). Emoções humanas e significação numa perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano: um estudo teórico da obra de Vigotski. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas, SP.; Magiolino & Smolka, 2013).

Compreendida nesses termos, a emoção, como defendemos em outros trabalhos supracitados, implica o processo de significação - no sentido em que argumenta Pino (2005Pino, A. (2005). As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. VigotskiSão Paulo: Cortez.), já apontado nesse texto - e trata-se, portanto, de um processo dialógico e ideológico (Bakhtin, 2003Bakhtin, M. (2003). Estética da criação verbal (4ª ed.). São Paulo: Martins Fontes.). A nosso ver, a emoção consiste "num processo dialético, de caráter refratário e contraditório, num processo sígnico impregnado de um conteúdo ou sentido ideológico e vivencial" (Magiolino, 2014Magiolino, L. L. S. (2014). A significação das emoções no processo de organização dramática do psiquismo e de constituição social do sujeito. Psicologia & Sociedade. 26(2), 48-59. , p. 58).

Nesse aspecto, a atividade humana - e a emoção que nela emerge - é marcada por relações de poder, liberdade, dominação ou servidão. Espinosa atesta esse princípio ao colocar as paixões no campo da ética. E, exatamente aqui, deparamo-nos com a natureza política das paixões.

Com tais considerações, argumentamos, então, em favor de um caráter também ativo, da potência que uma paixão pode assumir na personalidade e na atividade (criadora) do sujeito. Mas também ressaltamos a dimensão política e ideológica, aí, imbricadas. Para tanto, nos apoiamos em Vigotski, na dimensão histórico-cultural da paixão. Em Espinosa, sua dimensão política. No encontro entre os autores, demarcamos as possibilidades de defender uma posição sobre as condições históricas culturais e políticas da paixão, tendo a experiência humana seu lugar privilegiado de acontecimento social. Como contribuição para o debate teórico, propomos uma análise da paixão, em sua dimensão (est)ético-política, do romance vivido entre Simone Beauvoir e Nelson Algren, tendo como pano de fundo o recente livro de Irene Frain: Beauvoir apaixonada (2013Frain, I. (2013). Beauvoir apaixonada. Campinas, SP: Versus.).

Indagamos, dessa maneira, acerca dos modos de vivenciar, expressar e significar os afetos e suas (im) possibilidades de transformação em potência de vida e ação na experiência vivida por Simone, que se dá a conhecer em suas narrativas.

Simone e Nelson: a paixão como uma possibilidade (est)ética e política

Nas diversas cartas trocadas pelos amantes, observamos a composição de um quadro maior que revela as dimensões da paixão e sua vinculação constitutiva aos demarcadores históricos e culturais em que protagonizam esses personagens: (a) o interesse de Simone pela América às avessas e (b) mulher descoberta: de Castor (com Sartre) para Simone (com Nelson), como veremos a seguir.

A américa às avessas

Na interpretação de Frain (2013Frain, I. (2013). Beauvoir apaixonada. Campinas, SP: Versus.) sobre as cartas da filósofa, quando Simone desembarca nos Estados Unidos, ela está tomada por sentimentos contraditórios. Simone está animada com a chegada em Nova Iorque e com as palestras programadas, mas, ao mesmo tempo, não consegue esquecer Dolores: a Maldita.

A Maldita - tal como Simone a chamava - era a amante de Sartre que, nos últimos 18 meses, tinha se transformado em um fantasma sempre perambulado entre os dois. Ele estava apaixonado e ajustou a ida de Simone para os Estados Unidos com a chegada de Dolores, na França. Dolores morava nos Estados Unidos, em Nova Iorque, bem perto do hotel em que Simone se hospedava.

A relação de Sartre e Beauvoir, como é bastante conhecida, se pautava em um pacto feito entre os dois ainda jovens. Com base nele, eles teriam toda a liberdade para viverem suas escolhas sentimentais e sexuais, desde que mantivessem o amor necessário (entre eles) e vivessem os amores contingentes (com os outros - ver,Santos, 2011Santos, M. G. (2011). Cartas de Simone de Beauvoir a JeanPaul Sartre e a Nelson Algren. Amor necessário e amor contingente? In Sapere Aude, 2(4), 76-88.). Contudo, a história com Dolores parecia ser diferente dos outros casos de Sartre, como Beauvoir deixa entrever nas missivas. Algo havia mudado nele. Simone não estava certa dos rumos que o amor necessário iria tomar. Havia comentários, inclusive, que Sartre iria se casar com a americana e que Dolores teria pedido o divórcio.

Envolta nesses conflitos, ela sucumbia, apesar da força e da vitalidade da América. Em meio aos edifícios, às largas avenidas, aos monumentos, ela se sentia sozinha.Frain (2013Frain, I. (2013). Beauvoir apaixonada. Campinas, SP: Versus., p. 34) tenta descrever literariamente a situação dizendo que Simone anda rapidamente "sem nunca fraquejar", a não ser naqueles "momentos em que de repente tem a impressão de que o corpo lhe escapa e começa a caminhar a seu lado como fantasma". Era como se ela fosse "um espectro feminino que não tem seu lugar num mundo que a ignora e onde ninguém a espera" (p. 34). Na solidão, Simone tenta se ocupar de suas palestras, dos cafés, dos encontros com artistas, intelectuais e amigos como forma de esquecer a Maldita, Sartre e Paris.

A América lhe parece, à primeira vista, perfeita. É limpa, funcional e... consumista. Mas, enfim, ela exclama: "A América é o berço do capitalismo! E o capitalismo é necessariamente opressão!" (Frain, 2013Frain, I. (2013). Beauvoir apaixonada. Campinas, SP: Versus., p. 69). Há então, nesse contexto, um incômodo central em sua viagem: "E as favelas?" (Frain, 2013, p. 68).

Beauvoir quer conhecer a opressão americana e, por isso, vai para Chicago. Nas mãos - ou nos braços - do escritor Nelson Algren, ela entra em contato com o lado B da América. Algren era filho de operário, excomunista, que vivia sem dinheiro e sempre próximo (para não dizer inserido) ao submundo dos miseráveis de Chicago: drogados, prostitutas, jogadores, etc. Ele escreve:

Eu quis mostrar a ela que os Estados Unidos não eram uma nação de burgueses prósperos, todos ao volante de um carro que os leva a uma casa no subúrbio, da qual são proprietários, e abastados membros de um country club. Quis lhe mostrar pessoas que, sob efeito da mesma força implacável, iam direto para penitenciária e para a cadeia ... Elas iam cada vez mais para baixo, sempre mais. Eu conheci muitas dessas pessoas naquele ano. (Frain, 2013Frain, I. (2013). Beauvoir apaixonada. Campinas, SP: Versus., pp. 102-103)

Moraes (1999Moraes, M. L. Q. (1999). Simone de Beauvoir e o amor americano (um tributo a Simone de Beauvoir). In Cadernos Pagu, 12, 93-101.) cita um trecho da carta de Simone para Sartre a respeito da América e dos americanos:

Eu estava bem disposta para amar a América; era, sim, a pátria do capitalismo, mas contribuíra para salvar a Europa do fascismo; a bomba atômica assegurava-lhe a liderança do mundo e fazia com que não precisassem temer coisa alguma: os livros de certos liberais americanos tinham-me persuadido de que a grande nação americana possuía uma consciência clara e serena de suas responsabilidades. Caí do alto: em quase todos os intelectuais, mesmo os que se diziam de esquerda, medrava um americanismo digno do chauvinismo do meu pai ... Seu anticomunismo beirava a neurose; olhavam para a Europa, para a França, com uma condescendência arrogante. (pp. 97-98)

O que poderíamos chamar de elementos picturais que envolvem os amantes configuram a cenografia da paixão, delatando aquilo que está no entorno. No livro de Frain, por exemplo, há detalhes sobre a primeira visita de Simone a Chicago e a chegada no apartamento de Algren. Esse espaço-tempo pictural (incluindo os aspectos figurativos) vai ser importante para o desenrolar dos acontecimentos afetivos, como argumentaremos a seguir. Frain (2013), apoiada nas cartas trocadas, escreve acerca do primeiro passeio de Simone em Chicago acompanhada por Algren. Numa noite de neve, com a rua vazia vai sendo povoada com palavras que revelam: "A multidão de malditos reprimida sem piedade no pântano de lixo e garrafas quebradas", cujo único crime era: "Não ter sido capaz de perseverar na corrida pelos dólares. Fora, é claro, as strippers, as donas de prostíbulos e as putas meio drogadas que se refugiavam atrás das paredes pretas por causa do frio (pp. 168-169).

Sobre o apartamento de Algren, em Wabansia, mais alguns elementos picturais se destacam nas narrativas de Frain (2013Frain, I. (2013). Beauvoir apaixonada. Campinas, SP: Versus.) em que Simone faz referência ao gosto de Nelson por amarelo: "Paredes amarelovivo, linóleo-limão" E ainda: "Até mesmo sua cadeira, ele sapecou da cor do sol, o que ressaltou o enorme aquecedor preto funcionando com óleo combustível. Pilhas de velhos jornais se espalham sobre o linóleo. Aquele que não deu tempo para queimar" (p. 198).

Entre drogados e prostitutas, jornais e linóleo, os elementos picturais dão contorno ao cenário que envolve os personagens. Aqui, tem-se uma cenografia - ou como Bakhtin (2003Bakhtin, M. (2003). Estética da criação verbal (4ª ed.). São Paulo: Martins Fontes.) vai denominar: uma paisagem. Tudo que está para fora dos corpos, o excedente de visão ou a visão pictural do outro (enquadramento) compõem o enlace.

Para Bakhtin, a existência humana só pode ser entendida a partir da relação eu-outro, fundada no diálogo (Silva, 2006Silva, D. N. H. (2006). Imaginação, criança e escola: processos criativos na sala de aula. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas, SP. ). Entretanto, segundo o autor, o aporte teórico desse princípio relacional se fundamenta a partir de dois conceitos que Bakhtin toma emprestado da física: localidade e temporalidade. A lei de localização relaciona-se aos horizontes distintos que se apresentam nas dinâmicas relacionais; diante de mim e de meu outro as paisagens possíveis de contemplação são diferentes, não coincidentes, pelo tempo e pelo espaço vivido e ocupado pelos sujeitos em relação. Ou seja, eu capturo do outro uma imagem que lhe é inacessível e vice-versa. Essa visão a mais que possuo sobre o (meu) outro é singular, pois reflete a minha ocupação única no mundo em relação a ele. Na localidade desse meu lugar, diferente do outro, é que o constituo, posicionando-me a partir dele. Em contrapartida, também, me torno sujeito por meio do excedente de visão que o (meu) outro possui da paisagem emoldurada pelo meu corpo (Sousa & Silva, 2010Sousa, F. F. & Silva, D. N. H. (2010). O corpo que brinca: recursos simbólicos na brincadeira de crianças surdas. Psicologia em Estudo, 15(4), 705-712.).

Ao ter acesso à paisagem de meu outro, dou acabamento a sua forma, pois vejo o que ele não vê; o completo, ao contemplá-lo. Tal paisagem, embora única do ponto de vista externo, nos dá a ver como o tempo e o espaço se convertem cronotopicamente em uma história. No caso nosso estudo, a paixão entre Simone e Nelson. Fora dessa paisagem, fora desse contexto ético-político, dessas condições materiais (portanto, históricas), indagamo-nos: seria essa a história de paixão vivida por esses amantes?

Para Nelson, poderíamos pensar que a significação da paixão que emerge da/na experiência vivida nessa paisagem era a de dar a ver simplesmente a vida vivida por ele na América. Para Simone, ver e viver a América, às avessas, era uma oportunidade de viver o contrário do amor necessário, com Sartre, e investir nas contingências da paixão, com Nelson; uma expectativa de vida além-Sartre, mas paradoxalmente ainda Sartre (Frain, 2013Frain, I. (2013). Beauvoir apaixonada. Campinas, SP: Versus.). Nesse processo, uma inusitada possibilidade (condição histórica) emerge: a de viver o avesso de si mesma.

Mulher (des)coberta: de castor (com sartre) para simone (com nelson)

Ao longo do livro de Frain (2013Frain, I. (2013). Beauvoir apaixonada. Campinas, SP: Versus.), uma interessante metáfora é apresentada ao leitor; a escritora opera no binômio Castor (apelido de Beauvoir no círculo de amigos íntimos, incluindo Sartre, quem lhe conferiu o apelido) e Simone (a mulher que se redescobre na paixão por Nelson) para desvelar contradições na personalidade de nossa heroína - no sentido bakhtiniano do termo. O Castor, palavra masculina, tem suas qualidades, adjetivos e vontades conjugados no feminino nas narrativas e nas experiências vividas por Simone de Beauvoir: o Castor está brava, o Castor está pálida, etc. Em tais passagens, é desvelado o caráter andrógino que marca a personalidade do Castor, a couraça que Frain (2013) sugere revestir a filósofa.

A relação de Castor com Sartre se dava calcada pelos interesses filosóficos e na sustentação de um pacto amoroso que sempre foi muito doloroso para ela (Moraes, 1999Moraes, M. L. Q. (1999). Simone de Beauvoir e o amor americano (um tributo a Simone de Beauvoir). In Cadernos Pagu, 12, 93-101.). Simone, por outro lado, como um alterego, era o corpo feminino (des)coberto com Algren. Frain (2013Frain, I. (2013). Beauvoir apaixonada. Campinas, SP: Versus.), baseada nas cartas, diz que essa passagem de Castor para Simone não foi repentina, mas cheia de conflitos psicológicos e uma percepção apurada de Simone sobre seu contingente (Nelson). De fato, o romance entre os dois foi construído com certa calma e precisão; como se estivessem avaliando o terreno alheio. A atração física, todavia, foi imediata; ambos escreveriam no futuro como se sentiram atraídos um pelo outro desde o primeiro momento.

Nos três dias em que ficaram juntos, ainda na primeira viagem de Simone a Chicago, já se anunciava o que estava por vir: "Não posso nem pensar que nunca mais te verei" - teria dito Nelson a ela quando se despedindo no aeroporto de Chicago (Frain, 2013Frain, I. (2013). Beauvoir apaixonada. Campinas, SP: Versus., p. XX).

Ao retornar de Chicago para Nova Iorque, para, dias depois, pegar seu voo de volta a Paris, Castor é surpreendida por um pedido de Sartre. Ele quer que ela adie (pela 2ª vez), em quatro dias, o seu retorno à França, pois pretende ficar mais tempo com Dolores. Castor/Simone vive a agonia e padece frente à solicitação, chorando por horas, evidenciando a sua submissão afetiva frente às condições (im)postas.

Porém, vê nessa possibilidade uma oportunidade de reencontrar Nelson, mesmo que seja para ficar pouco tempo. Liga para ele e combina o encontro em Chicago. Castor/Simone pega o avião e chega em Chicago, em uma manhã ensolarada. À noite, depois de alguns desencontros, na segunda ida ao apartamento em Wabansia, ela já está decidida a se entregar a Nelson. Ele se lembra que: "Ela lhe disse, com a respiração acelerada: 'agora, com toda a sua força'. Depois disso, era sempre: 'agora com toda sua força', para ele, 'agora, com toda a sua força', para ela" (p. 208).

A partir daí, depois do romance e de uma despedida sofrida, começa uma sequência enorme de cartas. Muitas escritas em um mesmo dia. Certa vez, depois de perder no pôquer, Nelson iria declarar: "Nunca pensei que alguém pudesse me fazer tanta falta. Se eu tivesse você comigo agora, choraria de dor e de felicidade" (Frain, 2013Frain, I. (2013). Beauvoir apaixonada. Campinas, SP: Versus., p. 249). Simone escreve: "Enquanto você me amar, eu não envelhecerei nunca, não morrerei ... meu querido, dia e noite, sinto-me envolta em seu amor, ele me protege de todos os males" (Frain, 2013, p. 247). Ao olhar para as fotos que tinham tirado em Chicago, Simone registra: "Muitas vezes, olhei as fotos, dizendo-lhes coisas sensíveis e amorosas; você escutou? Escute-as e sinta meus braços em torno de você. Eu te amo. Sua Simone" (Frain, 2013, p. 248).

Em 1948, Simone irá escrever sobre a vida comportada confortável que leva junto a Sartre: "Oh! Esta mortalmente confortável e calma Villa, eu aqui morreria logo! O pobre Sartre, acometido por uma crise hepática, cólicas renais dolorosas, mas não perigosas, teve de se manter na cama por dois dias". A não ser isso, e as visitas de sua mãe, ela prossegue nas cartas: "Não desgrudei do meu quarto, onde dormi, li, reli, dormi de novo, escrevi... Você sabe como eu o amo, não é?" (Beauvoir, 2000Beauvoir, S. (2000). Cartas a Nelson - um amor transatlântico 1947-1964. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. , p. 217; ver também em Santos, 2011Santos, M. G. (2011). Cartas de Simone de Beauvoir a JeanPaul Sartre e a Nelson Algren. Amor necessário e amor contingente? In Sapere Aude, 2(4), 76-88., p. 84). O livro de Beauvoir Les Mandarins, inspirado na relação amorosa entre ela e Nelson, retrata a sexualidade de uma mulher adulta que tenta expressar o seu desejo num mundo cultural repressor (Klawn ,1995Klawn, B. (1995). Sexuality in Beauvoir´s. Les Mandarins In M. Simons (Org.), Feminist interpretations of Simone de Beauvoir Barbara (pp. 193-221). Pennsylvania: Pennsylvania State University.).

De acordo com Santos (2011Santos, M. G. (2011). Cartas de Simone de Beauvoir a JeanPaul Sartre e a Nelson Algren. Amor necessário e amor contingente? In Sapere Aude, 2(4), 76-88.), o encontro amoroso demonstra um novo olhar sobre si mesma e sobre as condições do amor. A intimidade da vida dos amantes é amplamente descrita nas cartas trocadas, e assinadas por Simone. Nos dias primeiros em que, segundo Frain (2013Frain, I. (2013). Beauvoir apaixonada. Campinas, SP: Versus.), Beauvoir segue obcecada por encontrar o reverso da América, a filósofa anota em sua agenda: "Vida animal" e "ganhei um corpo" (Frain, 2013, p. 50). É o corpo feminino (re)descoberto com Algren que vai encarnar a alma de Simone. E o que se nota é uma Simone cada vez mais (cons)ciente de seu desejo, atuante em uma sexualidade ignorada por/com Sartre. Em muitos momentos, explora que, com Algren, Simone tinha retornado ao passado; era somente Simone - como vai destacar Frain (2013), ao longo de seu livro.

Nas posições sociais ocupadas por Simone de Beauvoir - a amante, a mulher amada, a mulher apaixonada, a mulher-igual, a filósofa, mulher preterida, etc. - o drama se intensifica e se traduz no binômio: Castor/Simone desejosa de Sartre, desejante de Nelson - desejada por este último, desprezada pelo primeiro. Com Sartre, a filósofa (parisiense), com Nelson, a amante (estrangeira). Podemos entrever, aqui, como as condições de produção, incluindo aspectos da cenografia tratados anteriormente, viabilizam o enunciado do desejo e as performances das paixões (triste e alegre, em termos espinosanos), tomando conta de Simone. Ou seja, a paixão encarnada se assenhora de sua vontade e a faz distanciar-se do Castor tão senhor de sua razão - sem que esta, no entanto, seja anulada. E aqui se (re)produz o drama: choque de sistemas nas diferentes posições sociais ocupadas pelos sujeitos.

O drama Castor/Simone nos leva a pensar na psicologia como drama. A atuação de papéis dialética e contraditoriamente presentes em uma única pessoa. Com Sartre, amor necessário e, racional, poderíamos ainda argumentar. Com Nelson, amor contingente, apaixonado desejo. Ou, em outras palavras, Castor (filósofa, fiel companheira, figura materna de Sartre, etc) e Simone (amante, mulher, dona de si, com Algren). Tudo isso em uma pessoa só: choque de sistemas (de ligações) e funções psicológicas (o pensamento, do necessário, e o desejo, do contigente). A psicologia se humaniza, diria Vigotski.

De acordo com o que conseguimos apurar, nos primeiros cinco anos de relacionamento, 239 cartas foram trocadas pelos amantes. A partir daí, as mensagens são mais espaçadas e em tom menos romântico e mais fraterno, marcando, conforme afirma Santos (2011Santos, M. G. (2011). Cartas de Simone de Beauvoir a JeanPaul Sartre e a Nelson Algren. Amor necessário e amor contingente? In Sapere Aude, 2(4), 76-88.), uma mudança na qualidade da relação. No ano de 1964, eles param de escrever um para o outro e, em seguida, em função de uma série de desentendimentos (parte noticiada pela imprensa e outras desdobradas dos livros escritos por Simone), a relação dos dois tem um desfecho amargo.

Em entrevista ao jornalista Weatherby, um dia antes de sofrer um infarto fulminante, Nelson expurga, com sofrimento visível, a relação com Simone, afirmando que as cartas dela não têm mais qualquer valor sentimental (Frain, 2013Frain, I. (2013). Beauvoir apaixonada. Campinas, SP: Versus.). Ela, por sua vez, recebe um telefonema sobre a morte de Algren, e Hélène (sua irmã), que está do outro lado da linha, pergunta se ela não está sofrendo. Simone responde: "E ele, será que sofria quando escrevia aqueles horrores sobre mim?" (Frain, 2013, p. 411).

O sentimento de (falsa?) indiferença e (falso?) desprezo nutridos um pelo outro, já no final de suas vidas, era bem diferente daquele que pairou sobre Wabansia, em 1947. A despeito de qualquer especulação, o fato é que Simone (segundo pedido dela) morre com o anel dado por Nelson após a primeira noite de amor.

Comentários finais

Não saberemos dizer quais foram os elementos que levaram o desfecho da relação entre Nelson e Simone: da paixão à pseudoindiferença (ou rancor). Pretendíamos abordar, neste texto, dois aspectos interdependentes da paixão: a) sua dimensão política histórico-cultural (cenográfica) e b) seus impactos na configuração experiencial do drama - choque de sistemas que envolve os protagonistas (pessoas sociais) que vivem na carne o enlace.

A partir de nosso argumento conceitual, apostamos que a paixão reside contraditoriamente na tensão entre a causalidade, a historicidade e certo tipo de escolha de ordem subjetiva. Isso significa dizer que as paixões emergem em condições materiais bem objetivas e concretas. Não ocorrem, assim, em contextos aleatórios e casuais, mas em situações de que são causa. Isto é, sustentamos conceitualmente a ideia de que há uma paisagem ético-política e histórica, portanto, que viabiliza o encontro dos sujeitos. Essa compreensão, por sua vez, aponta para reflexões críticas sobre o lugar da paixão como experiência restrita ao indivíduo que está apaixonado (nesse caso, ela seria ahistórica).

Assumir tal dimensão histórica significa deslocar o debate das emoções e das paixões para um campo menos fatalista e mais político, em que as escolhas humanas podem ser compreendidas a partir das condições de se relacionar, de amar e de se (des) apaixonar. Isso traz, obviamente, uma dimensão éticoestética, em sentido bakhtiniano, do acontecimento inacabado da existência alteritária para o campo das paixões, provocando profundas transformações nas trajetórias de desenvolvimento.

A paixão precisa ser repensada em termos políticos na relação com demandas subjetivas que são desencadeadas nesse tipo de afecção. Em nosso argumento, é necessário levar em conta que há algo mobilizador e transformador nas paixões vividas, em razão do choque de sistemas que elas provocam; psicologia do drama (Vigotski, 2000Vigotski, L. S. (2000). Manuscrito de 1929: a psicologia concreta do homem. Educação & Sociedade, 71, 21-44. (Original publicado em 1929)). Parece-nos, por exemplo, que elementos múltiplos se entrelaçam nas relações estabelecidas entre Sartre/Simone/Nelson e Dolores/Sartre/Simone compondo o cenário e o drama.

Além disso, nossa conclusão também sugere a necessidade de deslocamento epistemológico no tratamento da paixão. Com base no que conseguimos depreender, a filosofia de Espinosa sobre a unidade corpo e mente é fundamental para se compreender as afecções e a atração entre os corpos. Contudo, a compreensão do filósofo português sobre as paixões comoalgo irremediavelmente associado à servidão precisa ser revista (Silva, 2014 3 3 Silva, D. N. H. (2014). Imaginação e paixão na servidão e na liberdade. Projeto de pesquisa apresentado e aprovado para a realização do Pós-doc na Pontifícia Universidade Católica (SP), supervisionado pela Profª. Drª. Bader Sawaia. ). Durante o romance, no ano de 1949, Simone escreveu o segundo sexo e Nelson produziu o premiado livro o homem do braço de ouro. Essa relação entre paixão e criação dá indícios de que aquela mobiliza processos criadores e desdobra-se para além da passividade e do sofrimento, como sinalizava Espinosa. Essa conclusão nos permite contestar criticamente o lugar passivo, aleatório e exclusivamente individual da paixão (enclausurada na pessoa que a vive), permitindo-nos abrir uma discussão promissora sobre a temática.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2014
  • Revisado
    12 Mar 2015
  • Aceito
    27 Mar 2015
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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