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REFLEXÕES SOBRE O USO DE ÁLCOOL ENTRE JOVENS QUILOMBOLAS

REFLEXIONES SOBRE EL USO DE ALCOHOL ENTRE JÓVENES QUILOMBOLAS

REFLECTIONS ON ALCOHOL USE AMONG QUILOMBOLA YOUTH

Resumo

O estudo investigou os significados do uso de álcool entre os/as jovens de duas comunidades quilombolas, Castainho e Estivas, localizadas em Garanhuns/PE. E foi desenvolvido em três momentos. No primeiro, realizamos observação participante nas comunidades; no segundo, 20 entrevistas semiestruturadas com os/as jovens (18 a 24 anos). E no terceiro, os dados foram analisados a partir da análise crítica do discurso e da interseccionalidade de gênero, geração, classe social e raça/etnia. O olhar interseccional convocou a considerarmos a diversidade de tramas que os marcadores sociais de diferenciação vão engendrando e os efeitos nas significações do uso de álcool. Vimos que os significados atribuídos ao uso são diversos. As poucas atividades de lazer, as relações de gênero, o preconceito sofrido por serem negros/as e/ou quilombolas são situações que de modo interseccionado repercutem no uso de álcool, e que revelam desigualdades históricas que comprometem a qualidade de vida dessa população.

Palavras-chave:
interseccionalidade; juventude quilombola; álcool

Resumen

El estúdio investigo los significados que tiene el consumo de alcohol entre los jóvenes de dos comunidades quilombolas, Castainho y Estivas, ubicadas en la ciudad de Garanhuns - PE (Brasil). Se desarrolló em tres fases. En la primera observación participante realizada en las comunidades; en la segunda 20 entrevistas semi-estructuradas a lós jóvenes (18-24 años). Y en el tercero los datos fueron analizados a partir del análisis crítico del discurso y de la interseccionalidad de género, generación, la clase social y la raza / etnia. La mirada interseccional convocada para considerar la diversidad de las parcelas que los marcadores de diferenciación sociales se engendran y los efectos sobre los significados de alcohol. Hemos visto que los significados atribuidos a utilizar son diferentes. Las pocas actividades de ocio, las relaciones de género, perjuicio sufrido por ser negro y / o quilombolas son situaciones que se cruzaban por lo que tienen repercusiones sobre el uso de alcohol, y revelando las desigualdades históricas que ponen en peligro la calidad de vida de esta población.

Palabras clave:
interseccionalidad; jóvenes quilombolas; alcohol

Abstract

This study investigates the meanings of alcohol use among youngsters of two quilombola communities named Castainho and Estivas located at Garanhuns/PE. This is developed in three stages. Firstly, we conducted participant observation. Secondly, we conducted 20 semi-structured interviews with youngsters(18-24 years). Finally, the data was analyzed from a critical discourse analysis and the intersectionality of gender, generation, social class and race/ethnicity. The intersectional perspective led us to consider the diversity of frames that social differentiation markers engender and the meanings and effects of alcohol use. We saw that those meanings are diverse. The conditions of existence marked by gender relations, absence of several leisure activities, prejudice suffered for being black and/or quilombolas are situations which, in an interseccional manner, in alcohol use, and historical, and historical inequalities that compromise the quality of life of this population.

Keywords:
Intersectionality; Young quilombolas; Alcohol

Introdução

Neste estudo, buscamos conhecer os significados do uso de álcool entre os/as jovens de duas comunidades quilombolas, Castainho e Estivas, localizadas na área rural de Garanhuns/

PE. A literatura sobre juventude rural (Carneiro, 2005Carneiro, M. J. (2005). Juventude rural: projetos e valores. In H. W. Abramo & P. P. M. Branco (Orgs.), Retratos da juventude brasileira: análises de uma pesquisa nacional (pp.73-87). São Paulo: Instituto Cidadania; Editora Fundação Perseu Abramo.; Wanderley, 2007Wanderley, M. N. B. (2007). Jovens rurais de pequenos municípios de Pernambuco: que sonhos para o futuro. In M. J. Carneiro & E. G. Castro (Orgs.), Juventude rural em perspectiva (pp. 21-33).. Rio de Janeiro: Mauad X ) ressalta que é comum os/as jovens rurais pertencerem à família de agricultores, que desenvolvem estratégias de sobrevivência baseadas em arranjos familiares para o acesso a terra, diversificação da produção para consumo próprio e comercialização. E a participação dos membros da família nas atividades em prol da coletividade.

Assim, estudar a juventude rural implica a compreensão de uma dupla dinâmica social, "por um lado, uma dinâmica espacial que relaciona a casa (a família), a vizinhança (a comunidade local) e, por outro, a cidade (o mundo urbano-industrial)" (Wanderley, 2007Wanderley, M. N. B. (2007). Jovens rurais de pequenos municípios de Pernambuco: que sonhos para o futuro. In M. J. Carneiro & E. G. Castro (Orgs.), Juventude rural em perspectiva (pp. 21-33).. Rio de Janeiro: Mauad X , p. 23). É nesses espaços e a partir dessas relações que os/as jovens vão se constituindo enquanto sujeitos sociais.

De acordo com Castro, Martins, Almeida, Rodrigues e Carvalho (2009Castro, E. G., Martins, M., Almeida, S. L. F., Rodrigues, M. E. B., & Carvalho, J. G. (2009). Os jovens estão indo embora? Juventude rural e a construção de um ator político.; Rio de Janeiro: Mauad X Seropédica, RJ: EDUR., p. 39), ser jovem rural "é carregar o peso de uma posição hierárquica de submissão, em um contexto ainda marcado por difíceis condições econômicas e sociais para a produção familiar". Diversos estudos no Brasil e em outros países apontam para a tendência da saída de jovens rurais do campo para as cidades (Brumer, 2007Brumer, A. (2007). A problemática dos jovens na pósmodernidade. In M. J Carneiro & E. G. Castro (Orgs.), Juventude rural em perspectiva (pp. 35-52) Rio de Janeiro: Mauad X.;Carneiro, 2005Carneiro, M. J. (2005). Juventude rural: projetos e valores. In H. W. Abramo & P. P. M. Branco (Orgs.), Retratos da juventude brasileira: análises de uma pesquisa nacional (pp.73-87). São Paulo: Instituto Cidadania; Editora Fundação Perseu Abramo.; Castro, Martins, Almeida, Rodrigues, & Carvalho, 2009). Se tais pesquisas confirmam o deslocamento dos/as jovens, outros fatores buscam a compreensão desse fenômeno, que vem sendo analisado através de dois vieses. Existe um consenso nas pesquisas em relação às dificuldades enfrentadas pelos/as jovens rurais, sobretudo no que diz respeito à educação e às possibilidades de trabalho, e há ainda outro ponto de vista que se refere à atração do/a jovem pelo meio urbano (Castro, Martins, Almeida, Rodrigues, & Carvalho, 2009).

Os/as jovens quilombolas que fizeram parte do presente estudo trabalhavam na agricultura, uns/ umas estudavam nas escolas das comunidades ou da cidade, outros/as abandonaram os estudos por diversos motivos, especialmente pela necessidade de trabalhar para ajudar na renda familiar. Os/as jovens da área urbana de Garanhuns também frequentavam as comunidades, principalmente nos finais de semana, onde faziam uso de álcool e participavam de jogos de futebol.

Para a construção deste estudo, realizamos uma pesquisa qualitativa de inspiração feminista, subsidiada pelo construcionismo social. A investigação feminista ilustra uma consciência dos/as investigadores/ as acerca do seu papel e envolvimento pessoal na investigação. Esta consciência é chamada de reflexividade, representando uma espécie de disciplina de autorreflexão sobre quem somos, de como as nossas identidades interferem no nosso trabalho e como, por outro lado, o nosso trabalho influencia todos os aspectos do nosso self (Neves & Nogueira, 2005Neves, S. & Nogueira, C. (2005). Metodologias feministas: a reflexividade ao serviço da investigação nas Ciências Sociais. Revista Reflexão e Crítica18(3), 408-412.).

A partir dessa perspectiva feminista, fizemos uso da interseccionalidade de gênero, geração, classe social e raça/etnia. O conceito de interseccionalidade teve sua origem junto às feministas negras norteamericanas que questionaram o universalismo da categoria "mulher", com isso as autoras, Adriana Piscitelli (2008Piscitelli, A. (2008). Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura11(2), 263-274.), Avta Brah (2006Brah, A. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu 26, 329-376.) e outras, fazem uso do conceito para abordar os marcadores: gênero, raça/ etnia e classe, de modo articulado, pois, segundo elas, tais marcadores estão entrelaçados na constituição das desigualdades sociais.

O olhar interseccional nos convocou a considerarmos a diversidade de tramas que os marcadores sociais de diferenciação vão engendrando, bem como percebemos que o tripé clássico discutido na literatura feminista que pretende enfrentar a subordinação gênero-classe-raça/etnia também precisa ser tensionado, para que os discursos produzidos não reifiquem essas categorias de análise, sob a pena de uma nova naturalização. Assim, a partir deste olhar interseccional para a juventude e o uso de álcool, nosso estudo teve como objetivo: investigar os significados do uso de álcool entre os/as jovens quilombolas do município de Garanhuns/PE, em interface com as questões de gênero, classe social e raça/etnia.

Os estudos sobre juventude e uso de álcool (Cofani, 2012Cofani, A. (2012). Juventude e consumo de álcool entre jovens de distintos grupos sociais Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Enfermagem, Universidade de São Paulo, São Paulo.; Vieira, Aerts, Freddo, Bittencourt, & Monteiro, 2008Vieira, P. C., Aerts, D. R. G. C., Freddo, S. L., Bittencourt, A., & Monteiro, L. (2008). Uso de álcool, tabaco e outras drogas por adolescentes escolares em município do Sul do Brasil. Cadernos de Saúde Pública24(11), 2487-2498. ) têm revelado que os significados atribuídos ao uso são diversos e estão relacionados com o contexto onde o uso é feito, quem o faz, na companhia de quem, em que período da semana ou do dia, qual o tipo de bebida, o lugar que o uso ocupa na vida dos sujeitos, as questões de renda, moradia, escolaridade, gênero, raça/etnia, uma série de fatores que constituem e são constituídos pelos sujeitos, e nos reafirma o quanto o uso de álcool é um fenômeno multidimensional e complexo. O presente estudo tem o intuito de visibilizar a juventude quilombola, e a relação desta com o uso da referida substância.

Os/as jovens quilombolas são considerados/ as, nas políticas públicas existentes para a juventude, "população-alvo", ou seja, estão presentes no Programa Juventude Rural, de Inclusão Produtiva, Formação Cidadã e Capacitação para a Geração de Renda destinado aos jovens rurais, em especial, ribeirinhos, indígenas e quilombolas, promovido pela Secretaria Nacional de Juventude -SNJ (2013)Secretaria Nacional de Juventude - SNJ. (2013). Políticas públicas de juventude Brasília, DF: Secretaria-Geral da Presidência da República. . Mas temos visto que a efetivação das políticas ainda está longe de garantir uma existência digna para essa população, o que chama a atenção para a importância de pesquisas serem desenvolvidas contemplando os/as quilombolas e a sua relação com problemáticas que podem ocasionar repercussões negativas em suas vidas.

Distanciamo-nos de uma postura moralizante com respeito à interface juventude/álcool, e em nossa pesquisa buscamos valorizar os significados atribuídos ao uso por parte dos jovens, mas não deixamos de considerar também que por vezes o uso/abuso pode estar associado às dificuldades que vivenciam cotidianamente e que são marcadas pela sua condição de quilombola. A seguir abordaremos os caminhos percorridos para a realização deste estudo.

Metodologia

Três momentos constituíram este estudo: a construção dos dados foi feita em duas etapas: na primeira, realizamos observação participante nas comunidades (Castainho e Estivas). Iniciamos nossa inserção nas comunidades após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Pernambuco. Efetuamos um contato inicial com as lideranças das comunidades que nos apresentaram os equipamentos sociais (escolas, igrejas, casa de farinha, campo de futebol), algumas famílias e jovens. Assim, estivemos em diferentes momentos com os/as quilombolas, nos bares, nas escolas, nas casas dos/as moradores/as, participamos das festas que aconteceram nas comunidades, o que nos possibilitou desenvolver a pesquisa baseados em uma orientação etnográfica.

A etnografia se faz presente dentro da concepção naturalista como o método de pesquisa social por excelência. Esta abordagem metodológica, por se alinhar a concepções interpretativas, pressupõe que a realidade seja construída socialmente, expressandose nas práticas, nos discursos e nas instituições. Por tal motivo, essa abordagem demanda, no processo de pesquisa, a compreensão da cultura que estamos estudando (Sato & Souza, 2001Sato, L. & Souza, M. P. R. (2001). Contribuindo para desvelar a complexidade do cotidiano através da pesquisa etnográfica em Psicologia. PsicologiaUSP12(2), 29-47.).

No início das observações, percebíamos o estranhamento das pessoas com nossa presença, o que foi ressignificado à medida que falávamos da pesquisa - nesse momento outras questões se colocavam pelos/ as moradores/as: como seria a pesquisa, quanto tempo ficaríamos nas comunidades, tais questões foram sendo dialogadas com os/as moradores/as.

Na segunda etapa, na busca de construirmos mais dados junto aos/às jovens considerando algumas questões que foram observadas e que se relacionavam ao uso de álcool, a exemplo dos significados a partir da diversidade de situações juvenis, realizamos 20 entrevistas semiestruturadas com os/as jovens, na faixa etária entre 18 e 24 anos, moradores/as das comunidades quilombolas já mencionadas. As entrevistas ocorreram nas casas dos/as jovens, no trabalho, no campo de futebol. O período de observação foi fundamental para localizarmos os/as jovens que seriam entrevistados/as nessa etapa.

No terceiro momento, os dados construídos foram analisados seguindo a perspectiva da análise crítica do discurso e da interseccionalidade de gênero, geração, classe social e raça/etnia. A análise crítica do discurso permite "um aprofundamento da compreensão das estratégias discursivas que moldam as formas distintas de construção do meio social, ao colocá-las abertamente sob a crítica, acabando por facilitar os processos de transformação e não os reproduzindo" (Nogueira, 2001Nogueira, C. (2001). A análise do discurso. In L. Almeida & E. Fernandes (Orgs.), Métodos e técnicas de avaliação: novos contributos para a prática e investigação (pp. 15-48). Braga, PT: CEEP., p. 47). Desse modo, temos o intuito de não reproduzir concepções arraigadas e, por vezes, que estigmatizam as juventudes que fazem uso das substâncias psicoativas. E a interseccionalidade:

Oferece ferramentas analíticas para apreender a articulação de múltiplas diferenças e desigualdades. É importante destacar que já não se trata da diferença sexual, nem da relação entre gênero e raça ou gênero e sexualidade, mas da diferença, em sentido amplo, para dar cabida às interações de possíveis diferenças presentes em contextos específicos. (Piscitelli, 2008Piscitelli, A. (2008). Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura11(2), 263-274., p. 269)

Assim, na nossa análise do discurso e interseccional, estivemos atentas a como opera os marcadores de desigualdade de modo relacional, embora tenhamos percebido também que, em alguns momentos da análise, um dos marcadores opera com maior relevância, o que não significa que os demais não estejam presentes. Apresentaremos a seguir alguns dos significados do uso de álcool atribuídos pelos/ as participantes do estudo. Os nomes usados para identificar os/as participantes são fictícios, a fim de mantermos o sigilo sobre a identidade deles/as.

Resultados e discussão

Os resultados e as discussões estão exibidos em duas sessões, uma sobre a relação dos/as jovens com o uso de álcool, outra sobre as motivações e percepções em relação ao uso de bebidas alcoólicas. Consideramos que estes fatores estão relacionados. O que motiva o/a jovem a fazer uso de álcool tem ligação com as percepções, e isto constrói as significações atribuídas a essa substância.

Uso de álcool entre os/as jovens quilombolas

Nas observações e entrevistas realizadas, percebemos que muitos/as jovens, adultos e idosos/ as quilombolas fazem uso de álcool. Encontramos jovens solteiras com ou sem filhos/as e jovens casadas com ou sem filhos/as que frequentam os bares e fazem uso de álcool. Entre elas, algumas estudam nas escolas da comunidade ou na cidade, algumas trabalham, principalmente, como domésticas na área urbana de Garanhuns. Há aquelas que não estudam e não trabalham, e outras que trabalham na agricultura nos períodos de plantio e colheita. As jovens casadas geralmente frequentam os bares na companhia de parentes (irmãs, cunhadas) e algumas fazem uso de álcool em suas casas. Tivemos conhecimento de algumas mulheres que frequentam os bares com os companheiros, mas essa não é uma prática frequente.

Quanto aos homens jovens, encontramos solteiros que estudam e/ou trabalham na área urbana de Garanhuns ou nas comunidades; jovens que não estudam, não trabalham; jovens que são pais e jovens casados. Alguns frequentam os bares durante a semana e fazem uso de álcool, outros nos finais de semana. Há aqueles que também fazem uso em casa ou na casa de amigos.

Nos relatos que seguem abaixo, podem ser observadas algumas questões que dizem das relações dos/as jovens com o uso de bebidas alcoólicas:

Entrevistadora: Você costuma beber?

Eu bebo, é muito bom, a pessoa se diverte. Quando eu começo beber aqui em casa, sempre chega gente, às vezes eu compro uma cerveja, uma vodka, aí chega minha cunhada, as amigas, aí a gente fica bebendo, conversando. Eu só não tomo Pitú, mas o resto eu tomo, a gente vai pra o bar toma Dreher, Whisky, Rum, Vodka, cerveja, eu bebo mais cerveja.(Mali, 24 anos, F, casada)

Para a jovem acima, o álcool é consumido em casa e nos bares. Como podemos verificar, a bebida é um elemento que faz parte dos momentos de sociabilidade, de encontro de mulheres, em que as amigas bebem e conversam. As práticas de sociabilidade e o uso de álcool, no espaço privado (casa), proporcionam, de algum modo, uma mudança na forma como os significados atribuídos a esse espaço foram construídos socialmente. Nas observações nas comunidades isto foi percebido, sobretudo nos finais de semana, mulheres, normalmente as casadas, reunidas em suas casas bebendo.

O consumo de álcool é realizado também na companhia de parentes:

Entrevistadora: Você costuma beber na companhia de quem?

Eu bebia com meus 13, 14 anos, porque eu saia com a minha irmã pra o bar, aí ela bebia e me dava, também eu bebia. Minha irmã tinha uns 17, 16, minhas primas também gostavam muito, aí nós ia, saía pra casa onze horas da noite quando o bar ia fechar, aí ficava lá bebendo, dançando. (Bahati, F., 22 anos, solteira)

O uso de álcool faz parte da coletividade nas comunidades quilombolas, observamos que as primeiras experiências de consumo geralmente acontecem na companhia de parentes mais velhos, como visto no relato acima. Há uma relação entre uso de álcool, gênero e geração, algumas e alguns jovens afirmaram beber com os pais e avós.

A respeito dessa questão, Moreira (2001Moreira, M. I. C. (2001). Jovens avós e mães adolescentes. Articulando gênero e geração aos Estudos de Saúde e Sexualidade. Psicologia em RevistaPUC-Minas17, 1-7. ) salienta que uma geração produz a outra, e tal movimento entre as gerações é dialético, no sentido de que, para afirmarse, uma geração nega a antecedente e ao mesmo tempo a perpetua. Assim, notamos que alguns e algumas jovens estão perpetuando as gerações antecedentes, evidenciando o aspecto cultural do uso do álcool. Vale dizer que é cultural, mas não podemos banalizar a análise de situações de uso/abuso em que a própria vida dos/das jovens passa a estar em risco devido, entre outros aspectos, à ausência de ações que possam contribuir para o consumo com mais autonomia.

Ficamos refletindo sobre a ausência de trabalhos de redução de danos nas comunidades, a falta de intervenções que contribuam para que estes reflitam sobre suas práticas de uso. Nesse momento, ficamos pensando também acerca do papel do/a pesquisador/a e quais as contribuições que pesquisas nesse âmbito podem gerar, nas nossas limitações no sentido de realizarmos e contribuirmos com as estratégias de intervenção nas comunidades, fato que nos inquietava e ainda nos inquieta quando estamos refletindo a respeito dos resultados.

O tipo de bebida consumida com mais frequência foi algo que também observamos nas comunidades.

Entrevistadora: Que tipo de bebida você gosta?

Gosto de Montilla, cerveja, muitos gostam de Pitú aqui, a famosa cachaça, que é mais barato. Com uns 14 anos, eu comecei assim a beber com meus irmãos, que eles bebem, aí eu ia pra os bares com eles, ou em casa, às vezes eles bebem em casa, aí comecei a beber também, às vezes eu vou beber em casa de amigo, agora eu tô bebendo só de vez em quando nos finais de semana. (Thembi, M., 19 anos, solteiro)

No relato acima, o jovem se refere à Pitú como a bebida mais barata. De fato percebemos que alguns e algumas jovens tomam Pitú porque é uma bebida que possui um alto teor alcoólico, produz efeito mais rápido do que outros tipos,, como por exemplo, a cerveja, e o gasto financeiro é menor.

Em sua pesquisa com jovens rurais de Orobó, Paulo (2011Paulo, M. A. L. (2011). Juventude rural: suas construções identitárias. Recife: Ed. Universitária da UFPE , p. 253), observando os/as jovens em um momento de festa, constatou que, nesse espaço, a cachaça não é apreciada pelos jovens, "pois pode dificultar o desempenho da paquera ou até mesmo no beijo caso 'role de ficar com alguma moça'". Devido a isso, alguns jovens ficavam a noite inteira com uma ou duas cervejas na mesa, mas tomam cachaça escondidos, que é mais barata. Ou seja, o tipo de bebida também define status e o modo como os jovens são percebidos e aceitos por outros/as jovens.

Nas festas e nos bares observados no presente estudo, verificamos também que o tipo de bebida é um dos elementos que distingue jovens quilombolas dos/as jovens urbanos/as no contexto comunitário. Os homens jovens e adultos são os que comumente tomam Pitú nas festividades, inclusive porque aguentar beber muito é também considerado um símbolo da masculinidade. Percebemos nessa distinção o quanto as relações de gênero e classe estão relacionadas com o modo como os jovens se relacionam com o uso das bebidas alcoólicas. Outra questão é que o fato de os quilombolas fazerem uso de álcool em um padrão elevado reforça o preconceito que existe em relação a estes em virtude da condição de raça/etnia que possuem.

A discriminação racial constitui um constante ataque às identidades e subjetividades dos/ as excluídos/as, por meio da veiculação de um discurso que estabelece o padrão cultural dominante, capitalista, branco e andrógino, ao qual a população negra é constantemente pressionada a se adaptar e moldar. A dominação racial estabelece ao racialmente dominado o lugar da desonra. O racismo, o sexismo e a classe social se reforçam mutuamente, na medida em que ocorre uma potencialização entre a dominação racial/étnica e a dominação de gênero, e fazem com que grupos racialmente dominados estejam como que circulando por territórios de outrem (Anjos, 2004Anjos, J. C. (2004). Etnia, raça e saúde: sob uma perspectiva nominalista. In S. Monteiro & L. Sansone (Orgs.), Etnicidade na América Latina: um debate sobre raça, saúde e direitos reprodutivos (pp. 97-119). Rio de Janeiro: Fiocruz. ). O sofrimento gerado pode ocasionar consequências para a vida dos/as jovens, o enfraquecimento da autoestima, da sua condição de sujeitos políticos e de os/as jovens deixarem de lutar pela realização de seus projetos de vida. A seguir apresentaremos algumas das motivações para o uso de álcool.

Motivações e percepções em relação ao uso de álcool entre os/as jovens

Vimos que várias situações motivam os/as jovens a fazerem uso de álcool: o uso relacionado à alegria, coragem, para se refugiar dos problemas, esquecê-los, lidar com sentimentos desagradáveis. O uso como algo que facilitou mudanças na vida consideradas pelos/as jovens positivas, como uma prática de diversão, entre outras situações.

Notamos também que o uso não acontece só no tempo livre dos/as jovens, quando estes não estão trabalhando ou estudando, mas que alguns fazem uso durante o trabalho, inclusive com a função de ajudar a desempenhar atividades em locais que podem ocasionar algum risco à vida, como no relato a seguir em que o jovem diz beber antes de ir trabalhar em um mato cheio de cobra e escorpião:

Entrevistadora: A bebida ajuda você em alguma coisa?

É assim, eu tenho que tomar uma dose, duas doses, quando eu vô trabalhar no matagal que tem ali, é sapo, escorpião, cobra, aí tem que tomar um pouquinho de cana antes de sair, e num frio desse, oxe! A cana tem que ir de lado. (Tedros, M., 22 anos, solteiro)

O uso do álcool para esse jovem funciona como um elemento que favorece o enfrentamento de situações difíceis. E nos leva a refletir sobre a dificuldade que os/as quilombolas enfrentam para conseguir um trabalho formal, a exemplo do nível de escolaridade, do preconceito por serem quilombolas, por morarem na área rural distante da cidade, entre outros. Nesse sentido, percebemos o quanto as questões de classe e raça/etnia produzem efeitos que repercutem no uso de álcool.

O racismo e seus reflexos na distribuição dos recursos são elementos estruturantes da desigualdade social no Brasil. A persistência da diferenciação racial no acesso a serviços públicos, na aquisição de capacidades e na posição social desvela as consequências da atuação sistemática de mecanismos de produção e reprodução das desigualdades em vários campos da vida social (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea, 2010Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA. (2010). O Brasil em 4 décadas Rio de Janeiro: Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.). Percebemos que os/as quilombolas ainda sofrem o estigma e a discriminação devido à identidade étnica e as marcas da ancestralidade racial que possuem, e isto tem repercutido na vida de alguns e algumas jovens, a exemplo da dificuldade de conseguir um emprego, conforme já discutido acima.

O relato a seguir apresenta a forma de consumo do álcool pelos/as jovens, evidenciando que, para lidar com sentimentos como raiva, paixão, esquecer os problemas, estes/estas fazem uso, que ajuda a lidar com tais situações. Não podemos deixar de ter um olhar cuidadoso para essas práticas, visto sabermos que, dependendo de como o uso é feito, pode ocasionar repercussões negativas em suas vidas, como adoecimento, dificuldade de se manter nos estudos, trabalho, entre outras.

Entrevistadora: Existe algum momento que você bebe mais que em outros? "Quando eu tô com raiva, eu bebo mesmo, bebo, bebo até esquecer tudo" (Randa, F., 21 anos, solteira).

Uma motivação para o uso de álcool é também o contexto favorável. Nesse aspecto, a existência de muitos bares nas comunidades facilita o acesso às bebidas, como pode ser visto no relato na sequência:

Entrevistadora: Tem alguma situação que você bebe mais que em outras?

Bebo só pra me distrair mesmo, pra passar o tempo, pra relaxar, esquecer os problemas, essas coisas, porque a pessoa relaxa, esquece os problemas, a pessoa fica com o corpo mais tranquilo. Mas não tem outro lugar pra ir, tem muito bar aqui, a cidade é distante, aí é por isso, todo mundo bebe aqui. (Thembi, M., 19 anos, solteiro)

Podemos observar, no relato, que as dificuldades de mobilidade para ir à cidade em busca de outras formas de lazer são também fatores que favorecem o uso de álcool. A restrição de opções de lazer denuncia uma situação precária dessas comunidades e a sua invisibilização na sociedade. A existência de outras opções de lazer poderia interferir na frequência de consumo. Evidencia também como as situações de classe social podem estar relacionadas com o uso, haja vista ser o modo de diversão acessível para os/as mesmos/as, ainda que precisem ter gastos financeiros com a bebida.

Encontramos também jovens que atribuem um valor positivo ao início e à continuidade do uso de álcool, pois percebem que a bebida proporcionou mudanças em suas vidas, como podemos visualizar a seguir:

Entrevistadora: A bebida te ajuda a fazer alguma coisa?

Melhorou um bocado minha vida depois que eu comecei a beber (risos) porque antes eu só ficava em casa, aí depois que eu comecei a beber, nós sai, vamos pra uma festa, pro bar, se diverte, ficou mais animada minha vida, pra mim é bom. (Deka, F., 24 anos, casada)

Esse relato da vida ter mudado para melhor depois do uso de álcool é algo mais presente nos discursos das jovens, por mais que os jovens digam que beber é bom, que traz alegria, que se divertem, mas quando algumas jovens se referem às mudanças, é como se o álcool funcionasse como um elemento favorecedor à saída do privado para o público. Observamos, no relato acima, que o uso de álcool é "permitido" ser realizado pela mulher fora de casa, porque ela está acompanhada pelo seu companheiro.

Observamos também outras percepções sobre o uso de álcool entre os/as jovens, existem aqueles/ as que consideram que o álcool pode ocasionar consequências à vida das pessoas; há aqueles/as que não veem nenhum problema, que acham "normal" as pessoas beberem, até porque nas comunidades é uma prática frequente. Nos relatos abaixo, podemos perceber algumas dessas questões:

Entrevistadora: A bebida te atrapalha em alguma coisa?

Atrapalha não, mas eu quero parar de beber, porque não tem futuro, vô parar de beber, a pessoa gasta muito dinheiro, a bebida também não é coisa boa, muita gente morre de cachaça, já morreu gente lá na estivas de moto, teve um senhor que morreu faz pouco tempo aqui doente por causa da cachaça. (Amari, M., 19 anos, solteiro)

Para o jovem, a partir do que se tem visto no próprio contexto, as repercussões negativas do uso de álcool na vida de outras pessoas da comunidade têm contribuído para o significado que ele está construindo sobre o consumo dessa substância. Podemos perceber também um fato em comum entre os/as jovens e os/ as idosos, morte em decorrência do uso de álcool, através dos acidentes e de doenças.

Verificamos que existe uma diferença na percepção dos/as jovens em relação às práticas de consumo realizadas entre homens e mulheres jovens nas comunidades, principalmente no discurso dos homens jovens quando o consumo de álcool está associado às mulheres. O uso feito por elas é aceito com restrições. De acordo com alguns jovens, a questão não é as mulheres beberem, mas o lugar em que se dá o uso de álcool. Não acham "certo" mulher estar em bar bebendo. Vimos também que algumas mulheres, as que não fazem uso, não consideram que seja um comportamento adequado, que seja algo correto as mulheres frequentarem os bares.

No relato a seguir, o jovem é casado, faz uso de álcool, mas quando se refere a sua companheira, afirma:

Entrevistadora: Sua esposa vai com você ao bar?

Não, quero mulher minha no bar não, a mulher tem que ficar em casa, né, lugar de mulher, o bar não, cheio de homem. Eu não acho muito certo não mulher tá em bar bebendo. Porque os homens é normal, né, aqui todo mundo bebe, trabalha e depois vai se divertir no bar. (Tedros, M., 22 anos, casado)

Em uma pesquisa efetuada com os jovens em um munícipio da Zona da Mata de Pernambuco,Alves e Cantarelli (2010Alves, M. F. P. & Cantarelli, J. (2010). Ser um homem de respeito: masculinidade, sexualidade e relações de gênero na perspectiva de homens rurais de um município da Zona da Mata Pernambucana. In P. Scott & R. Cordeiro (Orgs.), Agricultura familiar e gênero: práticas, movimentos e políticas públicas (pp. 301-320). Recife: Ed. Universitária da UFPE.) encontraram nos discursos dos jovens participantes que o casamento representa uma significativa mudança na vida dos homens, uma vez que há o aumento da responsabilidade, sobretudo financeira, e uma diminuição na liberdade de ir e vir (precisam ficar mais caseiros). Nas comunidades quilombolas, temos constatado que, no que concerne à liberdade do homem de ir e vir, isso não é muito afetado com o casamento, como pôde ser visto no relato acima, o jovem é casado e afirma que não quer sua mulher no bar, mas os homens podem frequentar os bares e fazer uso de álcool onde querem.

Percebemos, assim, o quanto as desigualdades de gênero podem se potencializar nas práticas cotidianas. Tivemos conhecimento de algumas mulheres que sofreram violência nas comunidades por não seguirem os códigos de moralidade vigentes na localidade, a exemplo de ser casada e fazer uso de álcool nos bares, prática que não é bem vista na localidade.

O posicionamento do jovem casado, que existem comportamentos para a mulher e para o homem diferenciados, também foi encontrado entre os jovens solteiros, como pode ser observado a seguir:

Entrevistadora: O que você acha das jovens que fazem uso de álcool?

Já é feio um homem beber, e uma mulher ... o que vão pensar dela... (Yerodin, M., 22 anos, solteiro).

A estigmatização e as consequências que recaem sobre as mulheres ainda são muito presentes, conforme podemos perceber no relato abaixo que um jovem afirmou:

Entrevistadora: O que você acha dessas jovens que bebem?

Se fosse irmã minha, eu não deixava não, porque uma moça que bebe, fica bêbada no chão, aí os meninos se aproveita, no outro dia sai a fama dela, porque os homem engravida não tem nada não, mas a mulher começa logo a aparecer a barriga e surgir os boatos. (Ayubu, M., 19 anos, solteiro)

Além da reprovação ao uso de álcool realizado pelas mulheres, o jovem demonstra o posicionamento machista presente nas comunidades, através da manutenção de uma cultura androcêntrica que constrói papéis diferenciados para homens e mulheres, em que o homem tem autoridade sobre a mulher e a família. Sobre esse assunto, CynthiaSarti (1996Sarti, C. A. (1996). A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres Campinas, SP: Autores Associados., p. 47), ao estudar o lugar do homem e o lugar da mulher na família pobre, constatou que "o homem corporifica a ideia de autoridade como mediação da família com o mundo externo. Ele é a autoridade moral, responsável pela respeitabilidade familiar. Sua presença faz da família uma entidade moral positiva, na medida em que ele garante o respeito". Dessa maneira, o comportamento e o corpo da mulher passam a ser preocupação do homem em prol da manutenção moral da família, seja essa mulher, esposa, irmã ou filha.

Há os/as jovens que consideram o uso de álcool uma prática normal entre homens e mulheres, sejam estas casadas, sejam solteiras:

Entrevistadora: O que vocês acham das jovens casadas que bebem?

Elas estão certa, tão mais do que certa, porque quando eles saem de casa, que vão pra festa, deixam elas em casa, aí elas vão beber também(Randa, F, 21 anos, solteira).

No relato acima, a jovem apresenta a ideia de que algumas jovens da comunidade possuem: se eles (companheiros) podem beber, elas também podem, isto é, de algum modo o uso de álcool pode ser também uma forma de reivindicar um lugar de igualdade perante os homens, e um modo de contrariar o companheiro que sai de casa e deixa a mulher só. O comportamento de beber considerado transgressor quando realizado por uma mulher pode ser também uma forma de lidar com a insatisfação diante da situação vivenciada, inclusive porque se a jovem casada fica "mal falada", o seu companheiro também passa a ser percebido de outra forma, como algumas jovens relataram que nas comunidades há homens que são "dominados" pelas mulheres.

Em um estudo efetuado com mulheres de classes populares, David e Caufield (2005David, H. M. S. L. & Caufield, C. (2005). Mudando o foco: um estudo exploratório sobre o uso de drogas e violência no trabalho entre mulheres das classes populares da cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Revista Latino-Americana de Enfermagem13(2), 1148-1154.) destacaram que as mulheres que trabalham e contribuem financeiramente para a manutenção do lar, especialmente aquelas que o sustentam sozinhas, se sentem em situação de "liberdade", não devem nada a ninguém, nem precisam prestar contas dos seus comportamentos. Se elas estão, ou saíram de um relacionamento afetivo opressivo e controlador, a sua atitude em relação ao uso do álcool pode espelhar a afirmação do seu desejo de liberdade, como direito, muitas vezes duramente conquistado. A ruptura com o estereótipo histórico da "mulher comportada" pode incluir o uso do álcool como uma forma de transgressão. No presente estudo, também encontramos esse posicionamento de algumas mulheres solteiras e solteiras que têm filhos/as que fazem uso e não se importam com o que falam sobre elas.

No relato a seguir, uma jovem que não faz uso de álcool enfatiza seu posicionamento sobre os homens e as mulheres que fazem, a princípio, a mesma relata que as mulheres estão mais avançadas do que os homens por frequentarem os bares, mas percebemos que essa não está usando a comparação em sentido positivo, pelo contrário, a jovem tece uma crítica às mulheres solteiras e as casadas que têm filhos/as e frequentam os bares, vejamos:

Entrevistadora: O que você acha dos jovens que bebem?

As mulheres estão ganhando, tão bebendo demais aqui, porque tem vez que os homem tão em casa, e as mulher no bar bebendo, aí é o quê? Elas tão ganhando, né? (risos). Eu acho que elas tão assim, tão mais avançadas do que eles, porque muitas vezes você passa no bar, vê mais mulher do que homem. São tudo sem futuro ... Quando indagada sobre o que ela acha dos homens que bebem: os homens pode ir pro bar, é normal aqui, os homem trabalham e, quando não tão trabalhando, vão beber, se divertir. (Gina, F, 22 anos, solteira)

A entrevistada acima evidencia o quanto é uma prática considerada natural os homens irem aos bares. Mais uma vez esse discurso reifica a cultura sexista existente na sociedade, a mulher dona de casa e mãe, o homem no espaço público, e nos mostra o quanto isso é presente nas comunidades estudadas. Como pontua Alves e Cantarelli (2010Alves, M. F. P. & Cantarelli, J. (2010). Ser um homem de respeito: masculinidade, sexualidade e relações de gênero na perspectiva de homens rurais de um município da Zona da Mata Pernambucana. In P. Scott & R. Cordeiro (Orgs.), Agricultura familiar e gênero: práticas, movimentos e políticas públicas (pp. 301-320). Recife: Ed. Universitária da UFPE.), a socialização das mulheres é relacionada à contenção de comportamentos e a uma maior circunscrição ao espaço doméstico, já a socialização masculina ocorre geralmente no espaço público, e denota um movimento cada vez maior desse espaço, legitimado como masculino.

No discurso de outra jovem, esta relata seu posicionamento dizendo que é contra os homens e as mulheres fazerem uso de álcool. Alguns pontos nos chamam a atenção, a jovem se refere à idade, nos parece que para ela não há problemas se os adultos e idosos fazem uso e abuso de álcool, a questão são os menores de 18 anos. Mas percebemos também que a rejeição da jovem em relação às práticas de consumo tem um caráter de ordem econômica, dos gastos decorrentes do uso para os jovens solteiros, e principalmente os casados que são responsáveis pela família:

Entrevistadora: O que você acha das jovens que bebem?

Eu acho uma sem vergonheza, eu acho assim, quando a pessoa quer entrar em algum vício, espere completar seus 18 anos, porque já tem pensado o que realmente quer pra vida, mas entra na cachaça assim nova, aí envelhece antes do tempo, quando quiserem um marido para casarem, não vão achar ...A maioria dos jovens aqui da Estivas pararam o estudo por causa da cachaça, agora eles, pudendo tá trabalhando, se arrumando bem e eles não querem, os casados é uma pouca vergonha, porque a pessoa trabalhar a semana todinha pra ter seu dinheiro e comprar suas coisas, e chegar no final de semana e preferir beber do que comprar suas coisas, às vezes fica faltando as coisas dentro de casa, porque tem bebido o dinheiro todinho de cachaça, eu acho isso muito feio, eu sou contra a cachaça, mas cada cá tem seu gosto. (Bahati, F, 22 anos, solteira)

Outra questão que ainda nos leva a refletir, presente no relato acima, é que alguns jovens afirmaram fazer uso de álcool porque na comunidade não tem outra coisa para fazerem e para lidar com os problemas do cotidiano. Percebemos a extensão desses fatores quando a jovem entrevistada pontua que "às vezes falta as coisas em casa" porque o dinheiro foi gasto com a compra de bebida. Para o homem considerado provedor do lar, não conseguir oferecer o que a família necessita é experienciar a sensação de fracasso, inclusive através da família e de outras pessoas que conheçam a situação. Alguns assinalaram que bebem para esquecer os problemas, essa é uma situação que pode fazer parte de tais problemas. Com isso, não queremos dizer que todos os jovens casados que bebem gastam dinheiro, sentem-se mal por não cumprir com suas "obrigações" e vão beber para lidar com a insatisfação, mas é um dos casos possíveis de acontecer.

Encontramos também outro jovem que se referiu ao dinheiro gasto com o uso de álcool, as consequências a exemplo do fim do casamento, violência nas comunidades, e também a visão de que os homens bebem, mas "sabem" beber e as mulheres não, "porque quando vão ao bar, começam a beber, se depravar", como se toda a mulher que frequente o bar, que consuma bebidas alcoólicas, possa ter comportamentos considerados inadequados e diferentes do que os homens apresentam quando bebem, vejamos o relato:

Entrevistadora: O que você acha dos jovens que bebem?

Você sabe, é difícil ter homem pra não beber, a maioria bebe, gosta de beber assim, tem uns que bebem pra ficar assim mesmo, mas tem uns que bebem conscientes, né, aí você ver mais homem que mulher no bar, aí os homens, o pessoal manera mais a língua, não fala muito, porque tem homem que bebe ali sossegado, aí quando ver que tá meio, aí vai pra sua casa, e mulher não, mulher vai pro bar, começa a beber e a dançar, depravar, aí é mais falada do que os homens ... a mulher, se for uma mulher mesmo de respeito, ela não vai aguentar isso, querer um homem que só pensa em beber, beber, e estragar o dinheiro com besteira, aí acaba se separando por conta disso, tem muitas delas que fala, oia, se você parar de beber, eu fico com você, eles não param, aí elas se separam. (Rashid, M, 18 anos, solteiro)

É comum também, nas comunidades quilombolas que fazem parte deste estudo, a ocorrência de violência de gênero contra as mulheres, que ocorre nos espaços de intimidade ou em espaços públicos e que é explicada pelas quilombolas pelo uso abusivo de álcool realizado por seus companheiros, alegando que quando estes não estão embriagados, não cometem nenhum tipo de violência. Tal aspecto chama a atenção para o significado e as repercussões do uso/abuso de álcool em um contexto relacional, onde as mulheres jovens e adultas casadas estão vulneráveis aos "efeitos" do álcool, e também as/os filhas/os dessas mulheres.

As relações de classe social, gênero e raça/etnia, ao configurarem contextos de interação específicos, repercutem nos processos de subjetivação de cada pessoa, delineando possibilidades e limitações. Assim, as implicações dos marcadores sociais (gênero, classe, raça/etnia) vigentes sobre as relações e as formas de viver das pessoas nos diferentes grupos sociais podem contribuir para a existência de alguns comportamentos, a exemplo do uso de álcool que tem diversos significados, e em alguns contextos pode ter mais funções do que em outros, como já citado aqui.

Considerações finais

No presente estudo, vimos que os/as jovens fazem uso de álcool em casa e nos bares nas comunidades, sozinhos/as, acompanhados/as pelos familiares e amigos/as, em diferentes momentos e com significados diversos. Não negamos os aspectos culturais que circunstanciam o uso de álcool entre os/as jovens das comunidades estudadas. Por outro lado, consideramos que uma compreensão cultural separada de uma análise sobre seus efeitos sociais pode contribuir para a reificação das desigualdades que têm marcado a existência dos/as quilombolas. As percepções sobre o uso de álcool nas comunidades estudadas diferem quando o consumidor é homem (naturalização) e quando é mulher (difamação, principalmente para o consumo nos bares). As motivações para o uso de álcool entre os/as jovens são diversas: diversão, lazer, meio de esquecer os problemas e lidar com as dificuldades cotidianas, entre outras. Diante de tais fatores, observamos que os significados do uso são diversos e que este é feito com várias funções.

A compreensão acerca do uso de álcool por jovens, em geral, tem favorecido programas preventivistas e moralizantes como forma de enfrentamento aos "perigos" dessa relação (juventude/ álcool). Não se pode pensar em prevenção ao uso abusivo de álcool sem considerar o contexto no qual os/ as jovens estão imersos/as, e para os/as quilombolas, em especial, a análise interseccional contribuiu para visualizarmos suas condições de existência marcadas pela ausência de atividades diversificadas de lazer, dificuldade em arranjar emprego, o preconceito sofrido por serem negros/as e/ou quilombolas, enfim, situações que repercutem no uso de álcool, e que revelam a importância de vários fatores estarem presentes nos programas de prevenção e promoção de saúde.

Agência de fomento

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível superior - CAPES, bolsa concedida através do Programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco. Período: 20122013.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2015
  • Revisado
    17 Maio 2015
  • Aceito
    11 Jun 2015
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